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Número Especial CONSERVAÇÃO PREVENTIVA EM BIBLIOTECAS

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Academic year: 2023

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O presente ensaio reflete sobre a questão da perda e da finitude como eixo central ao redor do qual as dinâmicas e discursos patrimoniais se estruturam. Propõe, para o campo da conservação preventiva – mais amplamente, o da preservação –, um tipo de perspectiva melancólica, ou seja, compreender a condição finita dos acervos e seus componentes como potência ao invés de um obstáculo a superar. Trabalha com os conceitos de patrimônio, objeto e melancolia a partir do terreno intersecional e ambíguo dacoleção. Trata desses fluxos como reverberação de questões existenciais humanase estabelece relações entre essas instâncias de atuação e a essência paradoxal da vida.

Patrimônio. Conservação. Memória. Finitude.

1 Bacharel em Biblioteconomia (UNIRIO), mestre e doutora em Memória Social (PPGMS/UNIRIO).

Participa dos grupos de pesquisa "Memória Social, Tecnologia e Informação", "Espaços e Práticas Biblioteconômicas" e "Estudos sobre Patrimônio Bibliográfico e Documental" (UNIRIO). Atualmente é docente efetiva do Departamento de Biblioteconomia da UNIRIO, professora colaboradora do Programa de Pós Graduação em Biblioteconomia (UNIRIO) e coordenadora do Curso de Licenciatura em Biblioteconomia (UNIRIO). Email: kelly.melo@unirio.br

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Você não pode usar uma lanterna para enxergar seu caminho no escuro e ao mesmo tempo esperar que as pilhas durem para sempre (LOVELOCK, 1987, p. 90).

Falar de Conservação Preventiva é, acima de tudo, respeitar a mortalidade do material em um processo no qual encaramos essa condição e lidamos com ela como potência e não como algo que devemos, a qualquer custo, combater. Alguns podem perguntar: mas não é o que fazemos quando nos lançamos na empreitada de salvaguardar acervos? A diferença é tênue... Uma mudança de perspectiva, de valor. É, por exemplo, o que distingue proporcionar uma vida de superproteção, de proporcionar uma vida de risco controlado: a primeira é traumática, amputadora, pobre; a segunda permite o desenvolvimento e o fluxo da existência.

O fim é um fato. Agir no sentido de não permitir que aconteça seria algo como ter um filho e (tentar) impedir que crescesse. As histórias nos ensinam que tentativas no sentido de imortalizar coisas/pessoas ou trazê-las de volta do mundo dos mortos têm consequências catastróficas. Nos acervos – e aqui expandindo para além da Conservação, também para ações de Restauração, ou seja, para a área de Preservação como um todo – muitas vezes essa incapacidade de estar em paz com a finitude se manifesta em mutilações, apagamentos, empobrecimento.

Curiosamente, é nas próprias coleções e objetos que encontramos os recursos para a compreensão desses aspectos.

Lynn Margulis, quando tecendo considerações acerca dos indivíduos e da conquista biológica da individualidade – curiosamente uma vitória paga com a

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mortalidade, visto que o sexo meiótico (forma de reprodução que tem por resultado descendentes individualizados) implicou necessidade de morte programada (1997) – define a morte como o momento no qual, no corpo, os processos de autopreservação são interrompidos, suspendendo assim a “incessante reafirmação química da vida” (1997, p.

82). Nesse sentido poderíamos pensar a vida como o tempo durante o qual o organismo tem sucesso em autopreservar-se, ou, trazendo a questão mais para o campo que estamos aqui para visitar, o tempo no qual o corpo realiza uma série de ações bem sucedidas de conservação preventiva – a conservação preventiva aqui compreendida como o conjunto de ações empreendidas para estabilizar a degradação e, assim, prolongar a permanência, tendo por base e princípio norteador o fato (e a sabedoria) de que o fim é inevitável.

A relação com a biologia não foi aqui evocada a esmo, mas, antes, para localizar essas questões em um ambiente mais visceral – ou que possa ser percebido de forma mais visceral, mais como algo interior e não externo, distante – do que estantes, reservas técnicas, espaços expositivos, porões e sótãos2. Porque, quando falamos de conservação preventiva – e, em um crescendo, de preservação e de patrimônio (principalmente em sua essência como coleção) –, é do paradoxo da vida que estamos tratando.

Viver é o experimentar do percurso de morte programada (MARGULIS, 1997) já biologicamente traçado para nós, desde o nascimento, que é o crescer/envelhecer. Mais especificamente, é reconhecer seu poder e, nesse reconhecimento realizá-lo. A vida é o que resulta da/na polarização nascimento-morte, em um movimento que faz parecer oposição a relação entre polos que, na verdade, criam um ao outro.

2 Referência a Aleida Assmann (2011).

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O meio, sou eu mesmo.

O lugar que faz a ligação, sou eu.

Tornei-me outro, e tendo feito esse percurso, reatei os dois (PIGEAUD, 2009, p. 142).

Esse processo de administração de iminência de esfacelamento a ser operado pelo morrer – na medida em que a morte sinaliza a desintegração e dispersão daquilo que foi um indivíduo, significando a perda das fronteiras que o delimitam (MARGULIS, 1997) – empreendido devotadamente no/pelo corpo, extrapola as dinâmicas biológicas e se expressa também nas mais variadas manifestações psíquicas e sociais.

A substância da vida é o fato de que ela acaba e é em relação a/com essa finitude que a vida acontece.

Ou ainda: a substância da preservação é o fato de que tudo acaba e é em relação a/com essa finitude – e não somente, mas também justamente por isso – que a preservação acontece.

Não existe patrimônio sem a imanência da perda.

Tratando dessas dinâmicas no contexto do colecionismo de livros, Umberto Eco (2010) afirma que os seres humanos apresentam aquilo que ele chama de duas debilidades – na hipótese desse ensaio: potências –: 1) o fato de que morrem; e 2) que os desagrada ter que morrer. Em resposta a esse desagrado (e justamente aqui reside a potência), como não têm como escapar da mortalidade no âmbito físico, criam uma série de mecanismos que os possibilita encarar essa condição: manifestações relacionadas a dinâmicas de memória, à projeção daquilo que alguém concebe como algo passível de evocar sua presença apesar da ausência (lembrança) e assim o fazer permanecer por meio do reconhecimento e guarda de outros.

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Existe na coletividade, portanto, uma esperança de (alongamento de) permanência (do “eu”, daquilo que reconheço/quero reconhecer como “eu”, normalmente atrelado às lembranças que tenho/quero ter de mim) na medida em que a família tem sobrevida superior a dos seus membros; os grupos aos quais pertencem têm sobrevida superior às das famílias; e assim sucessivamente. Assim, projetamo-nos para o coletivo, então, tentando fazer sobreviver, na impossibilidade da totalidade do que somos, aquilo que julgamos importante, aquilo que para nós tem valor que não se perca.

Esse movimento de tentativa de fazer sobreviver da memória, tem início com o comportamento narrativo, reconhecido por Le Goff (2012) como o ato mnemônico fundamental por se tratar “da comunicação a outrem de uma informação, na ausência do acontecimento ou do objeto que constituiu o seu motivo” (LE GOFF, 2012, p. 407) (no nível celular, epigenética) – invocação da presença do ausente e, ao mesmo tempo, da presença da ausência. Por meio da linguagem falada e, posteriormente, por meio da linguagem escrita – e da produção de suportes para abrigá-la –, as possibilidades de permanência do ser se expandem, ultrapassando os limites de um indivíduo para se depositarem/serem depositadas em meios de memória menos perecíveis.

Falamos aqui, claro, de um processo intencional de transferência de memória, muito embora já se possa perceber um transferir mnemônico não intencional – a transposição do narrador pessoa para o narrador objeto e de uma linguagem nomeadora para uma linguagem muda das coisas (BENJAMIN, 2013) – ocorrendo a partir do momento em que o ser-humano passa a fabricar artefatos e que estes, para além de suas funções – suas destinações, como coloca Appadurai (2008), os propósitos para os quais são criados –, passam a ser evidência, rastros de sua existência.

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Como bem demonstrado pelas práticas de memoricídio (damnatio memoriae3) dos antigos Romanos (ainda hoje as testemunhamos, embora não ocorram declarada e assumidamente), a existência se encontra intimamente relacionada a ideia de (deixar/ter deixado) rastro, visto que se nenhuma evidência de mim fica, eu me dissolvo no esquecimento, sendo esse o território absoluto da morte, sua concretização absoluta.

Na mitologia grega, por exemplo, a morte se consolidava pelo beber das águas do rio Lethe – em grego, literalmente, ‘esquecimento’ –, ato que promovia o apagamento, naquele que bebia, de qualquer registro/vestígio de existência anterior, ou seja, de qualquer memória. Nesse sentido, a transcendência, o superar da mortalidade, se daria pela conservação da memória no Hades (ABREU, 1996) (vale ressaltar que, assim como não existe vida sem morte, não existe memória sem esquecimento).

É interessante apontar que os primeiros conjuntos de artefatos passíveis de serem identificados como fruto de reunião intencional de coisas para cumprir um papel social ou psíquico particular, os rastros mais antigos (entre 6500 e 5700 a.C.) (PEARCE;

2013; POMIAN, 1984) nos quais podemos identificar funções homólogas ao que atualmente percebemos como coleção estão localizados nas práticas de sepultamento dos mortos com (seus) objetos – resposta objetal a demandas fomentadas pela condição mortal. O costume de, nos túmulos, acompanhar o corpo com artefatos, indica a interpenetração das esferas do simbólico e do material (PEARCE, 2013; POMIAN, 1984).

Ao tipo de objeto capaz de manifestar essa interpenetração, Pomian chamou semióforo:

agentes do “intercâmbio que une o visível e o invisível” (POMIAN, 1984, p. 66), pontes/portais entre uma esfera e outra – o hífen entre os polos: visível-invisível,

3 “Ao poder pela memória corresponde a destruição da memória” (LE GOFF, 2012, p. 423).

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sagrado-profano, vida-morte, memória-esquecimento – que têm por função estabelecer a conexão entre elas: objetos de coleção. Essa função de passagem entre o mundano e o sagrado, o material e o simbólico, entre o que se pode e não se pode ver é, precisamente, o que caracteriza e diferencia uma coleção e possibilita a concretização de seu projeto narrativo: um jogo entre distância e proximidade que traz para o território colecionista imagens benjaminianas como rastro – “aparição de uma proximidade, por mais longínquo esteja aquilo que a deixou” (BENJAMIN, 2006, p. 490), onde a coisa é apoderada por nós – e aura – “a aparição de algo longínquo, por mais próximo esteja aquilo que a evoca” (BENJAMIN, 2006, p. 490) onde somos apoderados pela coisa.

Falamos de ‘imagens’ e não ‘conceitos’ em referência à interpretação de que Benjamin articularia seu pensamento de forma imagética (ARENDT, 1987; BUSSOLETTI, 2010), promovendo o acesso a outros tipos de saberes e formas de conhecimento “no limiar entre a consciência e o inconsciente” (BOLLE, 2000, p. 43). É nesse tipo de ‘linguagem de limiar’, sem nome, sem som, que localizamos a língua própria do material (BENJAMIN, 2013) que é a falada pelas coleções.

A concepção benjaminiana da língua do material como um tipo de linguagem superior, por permitir a expressão/percepção daquilo que escapa ao dizível, se afina com as considerações bergsonianas sobre a matéria como conjunto de imagens: algo que é mais do que o que o idealista chama de representação, e menos do que o que o realista chama de coisa; logo, uma existência a meio caminho dessas categorias (novamente o espaço do hífen a ligar dois polos), algo anterior à dissociação feita entre o idealismo e o realismo – nem algo que existe somente em seu espírito e para o seu espírito (afinal, um objeto, por exemplo, existe independentemente da consciência que o percebe); nem algo totalmente diferente e independente daquilo que é percebido por nós (a cor que o objeto

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tem não é a cor que o olho lhe atribui, a resistência que ele tem não é aquela que a mão encontra nele) – e que existe tal como se percebe. E já que é percebida como imagem, faz-se da matéria uma imagem (o objeto existe nele mesmo ao mesmo tempo em que é a imagem dele mesmo como a percebemos: é uma imagem, mas uma imagem que existe em si). Nesse sentido, não existe percepção que não esteja impregnada de lembranças, na medida em que no processo de perceber, aos dados imediatos e presentes de nossos sentidos, misturamos milhares de detalhes de nossa experiência passada. Nesse sentido, a percepção exige um esforço de memória e é uma ocasião de lembrar. E uma vez que a lembrança é o ponto de interseção entre o espírito e a matéria, o espírito está apreendido nos fenômenos de memória (BERGSON, 2011).

Mesmo fora de um projeto semiofórico, objetos complementam sínteses socioculturais (COSTA, 2013) devido ao fato de que aspectos técnicos, econômicos, culturais e sócio-históricos podem ser elucidados por meio da compreensão de suas funções e significados no âmbito das sociedades que os produzem/produziram e das redes por onde circulam/circularam (COSTA, 2013). As coisas têm seu destino, nascem com uma destinação (APPADURAI, 2008): são criadas para atender necessidades humanas, de forma que sua existência remete, como chave de entendimento, a essas necessidades, que, por sua vez, remetem ao contexto (acontecimentos, desdobramentos, condições) que gera tais demandas, e assim sucessivamente, rumo ao “infinitamente social” (BARTHES, 2001, p. 208). Nesse sentido, cada um deles é mensagem e mensagem social (MOLES, 1981), emite história “objeto-temporal” (OLIVEIRA; SIEGMANN; COELHO, 2005, p. 114), aspecto que é potencializado quando reunidos intencionalmente no conjunto que é a coleção.

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Como tudo nesse mundo dual, é válido ressaltar que, nesse jogo, os objetos também caminham rumo a finitude – nesse sentido depositamos esperanças de permanência em suportes impermanentes (outro paradoxo – ou o mesmo). Embora o ritmo consideravelmente mais lento da caminhada objetal apazigue e faça do objeto um guardião de memória (e de alma4) mais confiável do que o corpo, o paradoxo se sustenta e sua vida também se desenrola no hiato entre o início e o fim.

A finitude – zona limítrofe onde vida e morte se entreolham, tensionando a existência em um cabo-de-guerra – é aqui o eixo central ao redor do qual esse ensaio se espirala. Mais do que finitude: estamos tratando da experiência de finitude que permeia essas dinâmicas, ou seja, da melancolia (concepção aristotélica, não patologizante) existente nesses processos.

O movimento pendular da melancolia, entre inércia e dinamismo, transforma-se numa força paradoxal. E, precisamente a atmosfera gerada por esse antagonismo interno converte-se em lugar privilegiado para a experiência da finitude. A inércia e a resistência ligadas ao dinamismo e à transcendência tomam, nessa aliança paradoxal, um caráter positivo [...]. Ponto de resistência, o finito é o topos privilegiado para a transcendência (STEIN, 1976, p. 13).

4 União do pensamento de Bergson (2011) com a seguinte colocação de Eco: “Desde os tempos de Adão os seres humanos manifestam duas debilidades, uma física e outra, psíquica: do lado físico, mais cedo ou mais tarde, eles morrem; do lado psíquico, desagrada-lhes ter de morrer. Não podendo evitar a debilidade física, tentam compensar-se no plano psíquico, perguntando-se se existiria uma forma de sobrevivência após a morte, e a essa pergunta respondem a filosofia, as religiões reveladas e várias formas de crenças míticas e mistéricas. Algumas filosofias orientais nos dizem que o fluxo da vida não se detém e que, depois da morte, reencarnaremos em outra criatura. Mas, diante dessa resposta, a pergunta que nos surge espontaneamente é: quando eu for essa outra criatura, será que ainda me lembrarei de quem fui e saberei fundir minhas velhas lembranças com as novas que ela terá? Se a resposta for negativa, ficamos muito mal, porque, entre ser um outro que ignora ter sido eu e desaparecer no nada, não há nenhuma diferença. Eu não quero sobreviver como algum outro, quero sobreviver como eu mesmo. E, como de mim já não existirá o corpo, espero que sobreviva a alma: mas a resposta que todos daremos nos diz que identificamos nossa alma com nossa memória” (ECO, 2010, p. 9-10, grifo nosso).

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Abordar a melancolia como potência é compreender que a experiência do limite é o único caminho para vivenciar o prazer de sua superação. Da mesma forma que é apenas porque o limite existe que se pode buscar maneiras de o transpor. Como acontece na Alegoria da Pomba de Kant, vinculada à noção de melancolia por Stein (1976), a pomba, em vôo, se ressente da resistência do ar (limite, elemento limitante), imaginando que poderia voar melhor no vácuo. No entanto, é justamente a resistência que dificulta seus movimentos que torna possível que ela voe. É essa a força tensional constituinte da melancolia. Sem romper sua ambiguidade natural, ora ela repousa no peso, ora na (tentativa de) transcendência (STEIN, 1976).

Uma vez que a finitude, como elemento existencial, é o momento instaurador da melancolia (STEIN, 1976) – e, podemos dizer, momento instaurador, também, do impulso formador de coleções, e dos processos patrimonias e de preservação – essas seriam ‘atitudes de fronteira’. O conceito de fronteira, na filosofia, é constituído pela metáfora (imagem) daquele que traça uma linha em torno de algo para lhe dar uma forma bem definida, evitando assim que esse algo se derrame (GAGNEBIN, 2014) (evocamos novamente a noção de morte de Margulis (1997) como o momento em que essa fronteira se perde, ou seja, o instante em que o indivíduo se derrama), movimento que, simultaneamente, garante a sua definição e o seu aprisionamento. A melancolia, assim, se inscreve no âmbito das fronteiras, mas também no âmbito dos limiares – assim como, conforme dissemos, o fazem as coleções.

O limiar, que pertence ao domínio da metáfora5, se inscreve no registro do movimento de ultrapassagem, de derramamento, de transições e pode ser comparado a

5 Imagem, no sentido bergsoniano. Elemento central na ideia de criação poética (relação com a noção de língua superior benjaminiana), lembrando que o poeta, aedo, intérprete de Mnemosine, aquela que tudo sabe, desvela as ligações e revela o ser (PIGEAUD, 1998).

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uma ponte (GAGNEBIN, 2014). Aqui nos aproximamos novamente dos semióforos, as metáforas do mundo das coisas, pontos de irrupção do visível no invisível e vice-versa, ou seja, portais (pois como limiar, não separam simplesmente dois espaços, mas permitem a passagem de um para o outro) nos quais vida e morte entram uma no território da outra.

Nessa concepção melancólica, a coleção, além de limiar, é fronteira, na medida em que cria e demarca um domínio em oposição a um determinado ‘outro’ (GONÇALVES, 2009), traçado com os objetos que o colecionador – seja ele indivíduo, seja ele instituição, seja ele Estado – escolhe. No entanto, pela natureza objetal dessa fronteira- limiar – permeável como a membrana plasmática – e seu caráter semiofórico, por meio dela, o colecionador não só se define e limita, como também experimenta uma possibilidade de contemplar a própria condição mortal refletida sobre a apaziguadora possibilidade de permanecer, um pouco mais, por/para ser lembrado.

Lidar com acervos – coleções, dentro da macro coleção patrimônio – é lidar com a mortalidade de muitos.

Trabalhar com Conservação Preventiva – ou quaisquer dinâmicas patrimoniais (biblioteconômicas e/ou museológicas e/ou arquivísticas) – sem reconhecer a finitude do material como potência e como aquilo que, precisamente, faz dele o que é (possivelmente seu aspecto mais relevante), é ser a pomba de Kant.

Eliminar a resistência do ar da equação a invalida.

No livro “Mulheres que correm com lobos” (ESTÉS, 2018) encontramos a história de uma mulher reclusa, velha, gorda, cabeluda e sábia cujo único propósito é recolher ossos. Ela coleta e preserva aquilo que está em risco de ser perdido e sua

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caverna está repleta de toda sorte de ossos dos mais variados bichos, mas sua especialidade são os de lobo. Com muita calma, ela vaga pelo mundo procurando e recolhendo esses ossos, até que, quando os consegue reunir em sua totalidade, e, então, monta o esqueleto completo diante de si, ela se senta diante do fogo e pensa sobre que música irá cantar. Uma vez certa da canção, ela se põe de pé, ergue os braços acima da sugestão branca daquilo que foi a criatura e canta. Na medida em que ela canta, músculo, pele e pelo começam a (re)cobrir os ossos, restituindo o corpo do lobo até que ele volte a respirar. Nesse ponto, a mulher canta ainda mais profundamente, até que o lobo abre os olhos, se levanta e sai correndo deserto afora. Em algum momento dessa corrida, seja por conta da velocidade ou pelo espirrar de água ao cruzar um riacho, seja por um raio de sol ou de lua, o lobo se transforma em uma mulher jovem, que, às gargalhadas, corre livre em direção ao horizonte.

Tudo acaba...

Felizmente.

A resistência do ar se mantém.

Do contrário, não haveria ossos para juntar.

ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco, 1996.

APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: EdUFF, 2008.

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Referências

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