UNIVERSIDADE
CATÓLICA DE
BRASÍLIA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO
STRICTO SENSU EM DIREITO
MESTRADO
ESTADO MODERNO, GLOBALIZAÇÃO, INTEGRAÇÃO
ECONÔMICA E O EXERCÍCIO DA SOBERANIA
Autor: Marivaldo Antonio Cazumbá
Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
PROGRAMA DE MESTRADO EM DIREITO
MARIVALDO ANTONIO CAZUMBÁ
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu – Mestrado
em Direito Internacional Econômico da
Universidade Católica de Brasília – UCB,
como requisito para a obtenção do Título
de Mestre em Direito.
Orientador: Prof. Dr. Arnaldo Sampaio de
Moraes Godoy
Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do Título de
Mestre em Direito, junto ao Programa de Pós-Gradução Stricto Sensu em Direito, da
Universidade Católica de Brasília – UCB, defendida e aprovada em 27 de abril de
2007, pela banca examinadora constituída por:
___________________________________________ Prof. Dr. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy
Orientador
____________________________________________ Prof. Dr. João Rezende Almeida Oliveira
Membro Interno
____________________________________________ Profa. Dra. Maria Elizabeth Guimarães Teixeira Rocha
Membro Externo
Aos meus pais, MANOEL e IDÁLIA, pela confiança em mim
depositada.
Ao Professor e amigo, Dr. ARNALDO GODOY, pelo incentivo e
direção na pesquisa desenvolvida.
Aos Professores do Programa de Pós-Graduação Stricto
Sensu – Mestrado em Direito Internacional Econômico da
Universidade Católica de Brasília – UCB, pelas
provocações e ensinamentos.
Enfim, a DEUS, porque sempre permitiu que pessoas
constituído por três grandes constelações de práticas –
práticas interestatais, práticas capitalistas globais e
práticas sociais e culturais transnacionais –
profundamente entrelaçadas segundo dinâmicas
indeterminadas. Trata-se, pois, de um período de grande
abertura e indefinição, um período de bifurcação cujas
transformações futuras são imperscrutáveis. A própria
natureza do sistema mundial em transição é problemática
e a ordem possível é a ordem da desordem.
No presente trabalho procura-se investigar algumas das implicações da
globalização nas ações estatais, bem assim os reflexos decorrentes da participação
dos Estados em processos de Integração Econômica, com destaque para a
concepção histórica de soberania e a nova definição reclamada pela realidade do
mundo contemporâneo. Para que o objetivo seja alcançado, são evidenciadas, ao
longo deste estudo, as características do Estado, em especial o poder soberano e
seu exercício, tendo em mente os movimentos globais e os processos
integracionistas, indicando esses últimos como possíveis formas de se oferecer
respostas aos desafios impostos pelo sistema mundial. Alfim, apresenta-se uma
rápida abordagem da experiência européia (União Européia), de modo a
exemplificar, na prática, como os Estados-membros vêm se adaptando a essa nova
realidade global, onde o exercício compartilhado da soberania se faz necessário.
Palavras-chave: Globalização, Estado, Integração Econômica, soberania, União
This paper aims to investigating some implications of globalization upon
state-owned companies’ shares, as well as the reflexes resulting from the
participation of the States in the processes of Economic Integration, highlighting the
historical conception of sovereignty and the new definition claimed by the reality of
the modern world. In order to attain the aim, the characteristics of the State will be
remarked throughout this paper, especially the sovereign power and its practice,
acknowledging the global movements and the integrating processes, pointing the
latter ones as possible ways of offering answers to the opposing worldly-system
challenges. Finally, it is presented a quick approach of the European experience
(European Union), so as to remark, practically, how the Member-States have been
adapting themselves to this new global reality, where the practice of the shared
sovereignty is needed.
Key words: Globalization, State, Integration Economic, Sovereignty, European
INTRODUÇÃO...12
CAPÍTULO I – O ESTADO E SUAS CARACTERÍSTICAS... 18
1.ESTADO...18
1.1 Formação e conceito... 20
1.2 Evolução histórica...25
1.3 Modalidades... 27
1.4 Elementos Constitutivos... 31
1.4.1 Povo... 33
1.4.2 Território...35
1.4.3 Poder Político juridicamente organizado... 36
CAPÍTULO II – CONCEITOS E DOUTRINAS DO PODER SOBERANO...39
2.A SOBERANIA EM QUESTÃO...39
2.1 Perspectiva histórica...40
2.2 Conceitos e fases...42
2.3 Doutrinas da Soberania...45
2.4 Doutrinas Clássicas... 49
2.4.1 Jean Bodin...49
2.5 Características...54
2.6 A indivisibilidade em mutação... 57
2.6.1 Soberania interna e externa... 58
2.6.2 Soberania quantitativa e qualitativa... 60
CAPÍTULO III – GLOBALIZAÇÃO E SUAS IMPLICAÇÕES... 62
3.A GLOBALIZAÇÃO...62
3.1 Marco histórico e conceituação... 63
3.2 Globalização ou processos globais?... 68
3.3 Globalização e liberalismo...71
3.4 Processos globais e implicações globalizadas... 75
CAPÍTULO IV – GLOBALIZAÇÃO E ESTADO SOBERANO... 80
4.ECLIPSE DO ESTADO-NAÇÃO...80
4.1 Soberania diluída ou compartilhada...87
4.2 Soberania e interdependência... 90
4.3 Soberania e direitos humanos... 93
4.4 Soberania, informação, meios tecnológicos e criminalidade organizada...96
CAPÍTULO V – INTEGRAÇÃO, GLOBALIZAÇÃO E ESTADO SOBERANO...99
5.INTEGRAÇÃO OU REGIONALIZAÇÃO...99
5.1 Processo integracionista... 102
5.2.3 União Econômica e Monetária e União Política...110
5.3 Integração Econômica, globalização e soberania...111
CAPÍTULO VI – SOBERANIA E INTEGRAÇÃO NO CONTINENTE EUROPEU...117
6.A EXPERIÊNCIA EUROPÉIA...117
6.1 Histórico...118
6.2 Tratado Constitucional Europeu e soberania... 124
6.3 A soberania nas Constituições dos Estados-membros da União Européia... 128
CONSIDERAÇÕES FINAIS... 137
Em época fortemente marcada pela globalização das economias e da
organização de Estados em torno de integrações econômicas, constata-se, ao longo
das últimas décadas, a interdependência entre esses sujeitos de Direito
Internacional, não mais se concebendo afirmações em torno de comportamento
unitário do poder estatal, mormente face à extrema diversidade de interesses
privados e do crescente número de decisões econômicas adotadas fora do alcance
de sua jurisdição funcional e de suas fronteiras territoriais, passando tal fato a ser
visto não mais como algo natural, mas como verdadeiro problema a ser
administrado.
Com o movimento de unificação de áreas econômicas, iniciado a partir de
decisão deliberada de um grupo de Estados soberanos, o que se observa é a
construção de novos espaços não apenas de natureza econômica, mas também de
natureza política, cultural e social, nos quais são evidenciados problemas de ordem
interna, não raras vezes, decorrentes exatamente dessa busca por novos horizontes
econômicos.
Nesse cenário altamente cambiante de problemas locais de ordem global, o
papel desempenhado pelos Estados e até seus principais elementos
caracterizadores – povo, território e poder político juridicamente organizado – são
constantemente confrontados pela globalização e seus reflexos, e também pelo
próprio movimento integracionista.
Em um mundo cada vez mais globalizado e com países, ao mesmo tempo,
cada vez mais integrados economicamente, um dos elementos estatais que
marcante do Estado desde o seu surgimento, e, portanto, indelegável, indivisível e
irrenunciável. Essa idéia concebida para o poder soberano vem perdendo seu
significado histórico para uma interpretação mais flexível, capaz de emprestar-lhe
forças para resistir ao tempo e aos novos modelos de gestão territorial, idealizados
ao longo das últimas décadas, garantindo a manutenção do próprio Estado e
oferecendo respostas eficazes no combate às conseqüências negativas dos
processos globalizantes1.
Abordando a situação do Estado Moderno – ainda soberano – no contexto
da globalização, e particularmente os processos integracionistas como possível
complemento dos movimentos econômicos globais, procurar-se-á demonstrar que
soberania e integração econômica não são totalmente excludentes, mas capazes de
conviver de forma harmônica, inclusive complementando o movimento global,
mediante a possibilidade de promover a correção de alguns dos seus reflexos
negativos.
Para tanto, o desenvolvimento do presente trabalho permitiu verificar se o
Estado, ao participar de uma Integração Econômica, estaria renunciando
definitivamente à soberania em favor de uma estrutura decisória supranacional, ou
se essa decisão corresponde a uma tentativa de preservar a essência de seu poder
soberano diante do fenômeno da globalização, fazendo frente aos desafios que lhe
são constantemente impostos.
1
De modo a responder a essa indagação, a pesquisa pautou-se em duas
hipóteses: (H1) na Integração Econômica, a essência da soberania continua a
pertencer ao Estado-membro, não obstante sua decisão implique exercício
compartilhado de poder soberano com uma estrutura decisória supranacional; e (H2)
esse exercício compartilhado do poder soberano com uma estrutura decisória
supranacional – fato característico no fenômeno da Integração Econômica – pode
ser visto como uma forma de o Estado responder aos desafios que lhe são
constantemente impostos pela globalização, sobretudo no que tange à própria
manutenção de sua soberania.
Perseguindo o objetivo de testar essas hipóteses, inicialmente é
apresentada uma abordagem histórica acerca do Estado, partindo de sua definição
até os elementos apontados como caracterizadores desse fenômeno (Capítulo I).
Entretanto, é preciso registrar, desde logo, que a abordagem proposta para o
Estado não tem por fim afirmá-lo imprescindível ou não, situação que fugiria
completamente à proposta inicial da pesquisa ora desenvolvida. A idéia, longe de
discutir ser ou não o Estado essencial para a sociedade moderna, é destacar como
se operou sua formação, chegando aos seus elementos constitutivos, atribuindo
maior relevância à soberania, que constituirá o objeto deste estudo, ao lado da
globalização e da Integração Econômica.
Na seqüência (Capítulo II), o foco se volta para a soberania, suas
concepções e dilemas interpretativos, com destaque para a forma como veio sendo
definida ao longo do tempo, inclusive mediante abordagem das doutrinas clássicas
formuladas a seu respeito, e a forma contemporânea como vem sendo vista no
Posteriormente, a análise incide sobre o complexo tema da globalização e
suas características mais evidentes, sem perder de vista os conceitos que lhe são
emprestados, os efeitos que lhe são atribuídos e as implicações verificadas a partir
de seu atual delineamento (Capítulo III).
Passo seguinte (Capítulo IV), já no intuito de conduzir o trabalho para seu
objetivo principal, é apresentado um capítulo sobre globalização e Estado soberano,
com destaque para as problemáticas em torno do confronto do exercício do poder
soberano com as implicações dos movimentos globais, em especial a
interdependência entre os Estados e as dificuldades em oferecer soluções eficientes
para os desafios globais contemporâneos.
Exemplo dessas implicações consiste no fato de a capacidade instrumental
do Estado-Nação encontrar-se decisivamente comprometida pela globalização das
principais atividades econômicas, da mídia e da comunicação eletrônica, e também
pela globalização do crime (CASTELLS, 2002). Nesse particular, é possível a
identificação de um movimento apócrifo, voltado à criação, no âmbito estatal, de
espaços destituídos de poder, onde as principais regras poderiam ser ditadas
livremente por agentes econômicos globais, impulsionados tão-somente ao sabor do
capitalismo.
No mesmo sentido, também a reestruturação produtiva que atinge e
tenciona o comércio e as relações de trabalho, o capital financeiro e as políticas
neoliberais que beneficiam o desemprego estrutural, são importantes exemplos de
conseqüências globais que afetam presentemente a sociedade.
Essas implicações podem ser identificadas não apenas na área econômica
alcançando também os aspectos político, social, cultural e jurídico, enfim, todas as
áreas de atividade humana. Mesmo porque, “a globalização, longe de ser
consensual, é, (...), um vasto e intenso campo de conflitos entre grupos sociais,
Estados e interesses hegemónicos, por um lado, e grupos sociais, Estados e
interesses subalternos, por outro” (SANTOS, 2005, p. 27).
Posteriormente, nos dois últimos pontos (Capítulos V e VI), dedicados aos
processos integracionistas e suas teorias, bem assim à experiência européia e às
adaptações constitucionais levadas a efeitos pelos países que compõem a União
Européia, procura-se demonstrar que as situações experimentadas pelos
Estados-membros sinalizam que o exercício do poder soberano se encontra cada vez mais
sujeito a limitações de toda ordem, visto que a constituição de estruturas decisórias
supranacionais reclama o conseqüente compartilhamento de poderes para atuar em
nome de seus membros em determinadas áreas de relevo (política, econômica,
estrutural, dentre outras).
Nesse contexto, o desenvolvimento do presente trabalho tem como principal
objetivo fornecer maiores elementos para a compreensão dos reflexos decorrentes
da participação dos Estados soberanos em processos de Integração Econômica,
como meio de viabilizar novos horizontes econômicos e fazer frente aos desafios
impostos pela globalização, inclusive complementando-a quanto aos seus reflexos
negativos ou implicações.
As atividades reclamadas para levar a cabo o intento já afirmado são
pautadas e permeadas, quase de forma constante, pelo método hipotético dedutivo,
e em termos procedimentais, o resultado esperado para a conclusão do presente
estrangeiros – já publicados acerca do tema central inicialmente indicado, visando
ao oferecimento de uma conclusão lógica a respeito das variáveis que envolvem o
assunto, compreendendo sua importância nos debates acerca do papel dos Estados
e das estruturas supranacionais criadas a partir de Integrações Econômicas, bem
assim da necessidade de se fazer frente aos desafios globais, inclusive mediante a
relativização de conceitos historicamente definidos, a exemplo da soberania,
admitindo-se novas formas de exercer determinados poderes no cenário
internacional.
A partir das reflexões evidenciadas durante o desenvolvimento desses
mencionados pontos, o enfoque final torna possível concluir pela assertiva ou não
das hipóteses antes delineadas, envolvendo os processos integracionistas e a
participação dos Estados em estruturas decisórias supranacionais da espécie, como
forma de preservar a essência de seu poder soberano, e, ao mesmo tempo, fazer
CAPÍTULO I – O ESTADO E SUAS CARACTERÍSTICAS
1. Estado
Personificado por Hobbes como o Leviatã, ou “o mais frio de todos os
monstros” por Nietzsche, ou ainda comparado com a encarnação do espírito
absoluto na história (Weltgeist), segundo Hegel, fato é que o Estado, apesar de
todas as alcunhas e definições que lhe são dirigidas, pode ser admitido como um
fato natural, equiparável à existência do próprio homem e sua sobrevivência ao
longo da história.
Sem perder de vista as razões que levaram uma infinidade de autores a
debruçarem-se sobre o tema, é bem provável que Calheiros (2003) tenha
conseguido sintetizar uma resposta quanto ao porquê de tamanha ansiedade em
compreender o Estado. No seu entendimento, essa corrida humana pelo
conhecimento do Estado se justifica de diversas formas, sendo que não apenas
uma, e sim todas as razões invocadas, se farão presentes no cerne das mais
variadas reflexões: (i) para encontrar formas de legitimação do poder instituído; (ii)
para determinar o ideal de uma sociedade humana perfeita; e (iii) analisar e
conhecer cientificamente o fenômeno2.
Foi a partir do século XVI que o termo passou a ser acolhido pela política
dos povos ocidentais, sendo possível identificar, com o mesmo significado, as
seguintes terminologias para designar esse fenômeno: Estado, em espanhol e
português; État, em francês; State, em inglês; Staat, em alemão; e Stato, em
italiano.
2“A resposta, parece-nos, assenta em diferentes ordens de motivações: escreve-se sobre o Estado para
Ainda que possível encontrar, nas variadas linhas de pensamento, a
indicação dos termos polis (de origem grega) ou mesmo civitas e res publica (de
origem romana) como sinônimos do Estado, fato é que a origem latina da palavra
sinaliza que não possuía o termo status a significação hoje concebida, sendo mais
adequado para se indicar uma situação ou mesmo condição específica e
contextualizada.
Mesmo com a resistência daqueles que, hodiernamente, discordam de sua
própria finalidade – e até de sua continuidade, prevendo-lhe o ocaso em face dos
fenômenos como a globalização e a integração econômica – o Estado, enquanto
produtor de normas e regulador da vida em sociedade, ainda se faz presente e ativo
nos dias atuais.
Prever o fim de uma entidade assim caracterizada, conquanto possível,
seria desafiar uma forma de organização social e política que, a despeito das
mudanças sofridas desde sua origem, sobreviveu às intempéries que marcaram a
história da humanidade, em suas mais diversas épocas3.
De fato, não se pode olvidar que uma das características do Estado é a
transitoriedade; todavia, como esclarece Strobel (1996), embora se trate de um ente
naturalmente transitório, essa transitoriedade vem acrescida de significativa
longevidade, sendo tal traço de persistência temporária de essencial importância
3Mesmo porque, não seria absurdo divisar o Estado como uma realidade multifacetária, detentor do poder de
intervenção na vida de cada indivíduo, constituindo-se em uma realidade complexa e, ao mesmo tempo, capaz de exercer certo fascínio sobre aqueles que procuram compreendê-lo. Não é sem razão que Pierre Gaxotte
para a sociedade, mormente no que diz respeito à preservação de direitos
fundamentais, inclusive os de natureza social.
1.1 Formação e conceito
Desde os primórdios o homem vem buscando formas, as mais diversas
possíveis, de viabilizar sua sobrevivência. Ehrlich (1985), em seus apontamentos
acerca da sociologia do direito, indica que desde a pré-história já era possível
verificar a existência de agrupamentos humanos, então denominados parentelas e
famílias.
Para o autor em questão a característica da associabilidade foi o que tornou
possível ao homem resistir ao tempo, vencendo o individualismo ou mesmo a
tendência ao isolamento que caracterizava seus pares. Daí foi que surgiram,
segundo se aponta, as primeiras formas de comunidade, fundadas inicialmente em
laços familiares, cujo fim maior era garantir a própria sobrevivência individual de
cada um de seus integrantes4.
Um olhar mais acurado sobre esse mecanismo de defesa individual e
coletiva, criado pelo homem há muito tempo, certamente conduzirá à conclusão de
que também os animais não dotados de racionalidade – característica que torna o
homem diferente dos demais seres vivos, embora parte integrante do reino animal,
na condição de mamífero – se mostraram, ao longo do tempo, capazes de superar
dificuldades relacionadas a ameaças externas à sobrevivência (segurança e
4
manutenção), servindo-se de meios associativos semelhantes baseados na
convivência grupal.
A despeito da semelhança entre os mecanismos, a característica
associativa no homem vai além dessa concepção inicial, permitindo-lhe transpor o
estado primitivo que a natureza lhe impunha, em que se fazia permanentemente
necessário – e, talvez, naturalmente comum – o uso do poder, da perseguição,
enfim, da força física, para fazer valer sua superioridade (HOBBES, 1588-1679).
A racionalidade, somada a essa necessidade de sobrevivência, estabelece
um novo desafio ao homem pré-associativo. A idéia do conflito necessário com seus
pares, do uso indiscriminado da força, de testar constantemente sua superioridade
em relação aos demais, perdeu forças frente ao reconhecimento de que a renúncia
ao direito de autotutela seria a única forma de emprestar corpo a mecanismos
voltados à sobrevivência, porquanto a convivência em grupo, independentemente de
sua natureza, reclama a fixação de “[...] limites às liberdades de cada um dos
indivíduos que integre o conjunto social” (BÜTTENBENDER, 2004).
Bobbio (1987), referindo-se a essa comunidade primitiva e ao seu ocaso –
este marcado pela necessidade de um grupo social conceber mecanismos de
controle capazes de resistir ao instinto humano de liberdade, uma vez que a
renúncia voluntária à liberdade autotutela e livre arbítrio não é inerente ao homem –
indica o advento do Estado a partir de então, destacando que:
O individualismo selvagem, igualmente identificado como “estado da
natureza”, foi gradativamente perdendo espaço para o associativismo, que se
expandia à medida que foi sendo estabelecida uma nova ordem social para os
diversos grupamentos humanos – eis aqui mais uma vertente relacionada ao
surgimento do Estado –, ultrapassando o conjunto social e atingindo, até mesmo, o
aspecto geopolítico, ou seja, atingindo não apenas as relações sociais de certos
grupos, mas sim aquelas que se desenvolvessem em um determinado território
(PALLIERI, 1969).
Morais (1999) observa o Estado como fruto da razão humana,
convencendo-se o homem de que somente por meio desse ente jurídico seria
possível obter aquilo que no estado de natureza lhe era de difícil alcance, senão
impossível. Em outras palavras, a origem do Estado guarda relação com o fato de o
homem haver abandonado o individualismo que lhe era peculiar enquanto se
encontrava no estado da natureza, reunindo-se em sociedade organizada na
convivência recíproca. E essa convivência recíproca manifesta-se na história
emprestando os contornos ao Estado enquanto organização capaz de ditar regras a
todos os indivíduos, formado pela soma das parcelas de liberdades individuais
renunciadas em seu favor pelos membros que lhe integram.
Ao reconhecer, graças à racionalidade5, que o uso indiscriminado das forças
privadas individuais traria como conseqüência uma completa autodestruição, onde
“todos guerreariam contra todos”, o homem outorgou ao Estado, mediante cessão
de parcela de sua individualidade, o poder de dispor do monopólio da força para
5Assim como ARISTÓTELES (1999) já destacava que as pessoas se associavam em decorrência de uma
garantir a convivência coletiva, regulando e disciplinando as relações internamente
havidas entre os membros da coletividade, de forma a impor a todos aqueles
indivíduos alcançados pelo seu novo poder, o respeito aos regramentos
indispensáveis à manutenção da vida em sociedade6.
É nesse sentido, a propósito, que Ehrlich (1985) se refere ao Estado7 como
um instrumento a serviço da sociedade, cujo principal papel é a defesa e proteção
contra os estrangeiros – aqueles que não se encontram sob sua autoridade – que a
ele se opõem8.
Numa concepção até certo ponto moderna, Liszt (1929) define o Estado
como a pessoa jurídica independente no âmbito dos seus limites territoriais, o que
6Trata-se, aqui, de mais uma teoria que busca justificar a origem estatal: teoria da força ou da origem violenta
do Estado. Defensor de tal teoria, Hobbes (1998, p.33) já assinalava que “[n]ão haverá como negar que o estado natural dos homens, antes de ingressarem na vida social, não passava de guerra, e esta não seria uma guerra qualquer, mas um guerra de todos contra todos”. E foi exatamente o medo que permitiu que o Estado surgisse, a partir do momento em que, no estado natural, as disputas em questão eram sucedidas da necessidade de garantir o domínio do vencedor sobre os vencidos. O legítimo monopólio da força pelo Estado, portanto, se apresenta como um instrumento de dominação, como sustentado por Weber (1968, p.56), que esclarece que em nossos dias, é particularmente íntima a relação entre o Estado e o uso da violência: “[...] Em todos os tempos, os agrupamentos políticos mais diversos - a começar pela família - recorreram à violência física, tendo-a como instrumento do poder. Em nossa época, entretanto, devemos conceber o Estado contemporâneo como uma comunidade humana que, dentro dos limites de terminado território, - a noção de território corresponde a um dos elementos essenciais do Estado - reivindica o monopólio do uso legítimo da violência física. É, com efeito, próprio de nossa época o não reconhecer, em relação a qualquer outro grupo de indivíduos, o direito de fazer uso da violência, a não ser nos casos em que o Estado o tolere; o Estado se transforma, portanto, na única fonte do direito a violência”.
7Calheiros (2003, p. 11), reportando-se a esse ente e sua respectiva história, assevera que “[...] muitas vezes a
expressão <<Estado>> é utilizada como sinónimo de Estado moderno, o qual como se vê é apenas um dos seus tipos históricos. É certo que a este mesmo facto não são alheias as circunstâncias que conduziram à adopção da palavra Estado com o actual conteúdo conceptual. Com efeito, pode-se afirmar que é apenas no Renascimento que este termo (e o seu correlativo nas principais línguas europeias) surge como meio de designar grupos, territórios e poder de domínio”.
8 Aqui é possível vislumbrar a teoria da origem patrimonial do Estado, a qual procura esclarecer que a
implica admitir que a comunidade humana que se encontra habitando determinado
território é governada por um poder soberano independente.
Esse mesmo Estado, ainda poderia ser visto sob dois sentidos: o primeiro
deles, mais amplo, corresponde a todas as formações políticas soberanas, ou pelo
menos autônomas, localizadas em determinado território; já no sentido estrito, o
Estado se distingue de outras formações, e seu conceito se realiza peculiarmente
no caso do chamado ‘Estado Moderno’, considerado como uma estrutura histórica
específica (SALDANHA, 1998).
Entretanto, não basta à sua compreensão apenas e tão-somente o
conhecimento desses dois sentidos, porque é preciso vislumbrar o Estado sob três
perspectivas: (i) aquela alcançada a partir da abstração e de generalizações pela
observação da realidade circundante – um conceito geral; (ii) o Estado como
realidade cultural empírica, correlativo ao Estado real; e (iii) o Estado ideal, ou seja,
a representação do Estado como ele deveria ser9.
Resultado natural de um significativo processo de integração, assim é que
Smend (1985) compreende o Estado, o qual engloba em sua formação forças
independentes, congregadas e comandadas por ele:
O Estado atual é uma incessante luta de integração. Reflete, na sua estrutura, forças independentes que congrega e comanda. É um ângulo de convergência de todas as forças sociais propulsoras, sob sua disciplina, da felicidade e da ordem, no seio da comunhão. Ausculta as tendências, as influências dos fenômenos da natureza, imprimindo-lhes rumo e ritmo dirigidos à sua finalidade. (SMEND, 1985, p. 287)
9“O Estado é, como o próprio indivíduo humano, um ser complexo e estratiforme. Projecta-se em várias
A partir dessas considerações, pode-se arriscar uma definição válida para o
Estado como sendo o contingente humano que vive sob alguma forma de
regramento, dentro de uma determinada área territorial, possuindo, portanto, além
da personalidade jurídica originária, uma realidade física, qual seja, povo e território
(SILVA, 2002).
Entretanto, sem perder de vista a complexidade que o tema encerra, bem
como a acentuada divergência entre os diversos autores quanto a uma
conceituação una de Estado, foi exatamente essa pluralidade de conceitos que
levou Dallari (2000) a apontar duas orientações fundamentais acerca dessa matéria,
indicando um conceito a partir da noção de força e outro intimamente ligado à
natureza jurídica do Estado.
Aparentemente distintos, os conceitos surgidos a partir de ambas as
orientações não são excludentes, antagônicos ou simplesmente ignoram os fatores
que lhes servem de base, mas apenas reclamam uma mudança de perspectiva. No
primeiro caso, o Estado é apontado como força material invisível, mas que encontra
limites e regulação na disciplina jurídica, à qual se submete por suas próprias
virtudes. Já a partir da natureza jurídica, a prioridade é o elemento político,
indicando o Estado como uma organização de pessoas, dotada de elementos
materiais - a exemplo da base territorial10. É nessa senda que Dallari (2000)
conceitua o Estado como uma ordem jurídica soberana, cuja finalidade é o bem
comum de um povo situado em um determinado território.
1.2 Evolução histórica
Cuidando-se de uma realidade dinâmica e, bem por isso, sujeito aos efeitos
advindos do tempo, a evolução aponta para um Estado que passou por diversas
fases. Assim, cronologicamente, é possível identificar o Estado Antigo, Grego,
Romano, Medieval e Moderno.
O Estado Antigo, também chamado de Estado Teocrático, tinha como
característica principal a proeminência religiosa e mística, datando de
aproximadamente três mil anos antes da Era Cristã, formado na região da Baixa
Mesopotâmia, nas redondezas dos rios Tigre e Eufrates. Dentre suas principais
características, merecem destaque a natureza unitária, pois não se admitia qualquer
divisão interior, territorial ou de funções, e a religiosidade, porquanto tanto a
autoridade dos governantes quanto as normas de comportamentos individuais e
coletivos eram tidas como expressão da vontade divina (DALLARI, 2000).
Já no Estado Grego não havia confusão entre ordem religiosa e estatal, pois
era nítida a segmentação existente entre elas. Cuidava-se de uma monarquia
patriarcal que encontrava suas bases na aristocracia, contando cada cidade com um
Rei, um Conselho de Anciãos e uma Assembléia Geral de Anciãos – este último
que, mais tarde passou a ser subordinante do Conselho de Anciãos.
O Estado Romano tinha seus alicerces umbilicalmente ligado à família, e
sua principal característica era a utilização do Direito como instrumento para dar
conformidade às vitórias levadas a efeito por seus exércitos, os quais
consubstanciavam todo o ímpeto romano pela expansão e conquista de novos
espaços territoriais. Semelhantemente ao Estado Grego, religião e Estado eram
coisas distintas e não mais se justificava o divino como mecanismo conformador do
poder terreno, sendo possível observar a participação do povo, de forma até certo
O Estado Medieval, surgido com o ocaso do Império Romano, tinha como
principais características a prevalência do cristianismo, o grande número de
invasões bárbaras e o apogeu do feudalismo – este último intrinsecamente ligado à
propriedade de terras. Guerras constantes, temor a Deus e um marcante sistema de
exploração de mão-de-obra são os pontos mais marcantes dessa fase que o
fenômeno Estado viveu (DALLARI, 2000).
Sem olvidar as correntes opositoras, existe certa concordância em torno do
nascimento do Estado Moderno a partir da celebração dos Tratados de Westphalia,
ato que pôs termo à Guerra dos Trinta Anos (Paz de Westphalia, 1648), e foi
marcado pela aceitação do princípio da igualdade jurídica dos Estados, com a
transição das monarquias medievais para as monarquias absolutistas.
Reconhecia-se, no Estado Moderno, que assim como a propriedade se apresentava como direito
exclusivo do seu detentor sobre a “coisa”, o poder de império sobre o Estado era
direito absoluto e inquestionável do monarca.
Interessa-nos, a propósito dessa rápida digressão acerca da evolução
histórica do Estado, o Estado Moderno, cujas linhas mestras já apontadas passam a
perpassar, com raras exceções, as considerações que serão apresentadas no
presente trabalho, a partir de então.
1.3 Modalidades11
Segundo suas características, os Estados podem ser classificados em três
modalidades: simples, compostos e divididos. Os Estados compostos, também com
base em suas peculiaridades, subdividem-se em novos grupamentos: compostos
por coordenação, onde se inserem os Estados Federais, as Confederações, as
11
Uniões de Estados e a União Incorporada; e compostos por Subordinação, tal como
os Estados Vassalos, Protetorados, Estados Clientes, Satélites, Exíguos e
Associados.
A terminologia Estado Simples é utilizada para individualizar aquele estado
que possui poder único e centralizado, onde se faz presente uma maior força do
governo central, sendo detentor de personalidade jurídica internacional, ou seja, na
Sociedade Internacional, é sujeito personificado, a quem são reconhecidos direitos e
imputadas obrigações.
Já os Estados Compostos, opondo-se aos Estados simples, são aqueles
que possuem uma estrutura acentuadamente complexa, onde o poder não se
apresenta com grande grau de centralização. Em outros termos, os Estados assim
identificados são caracterizados pelo fato de os seus componentes – também
Estados – possuírem, igualmente, poderes em semelhante grau.
No âmbito dos Estados Compostos, é possível identificar aqueles entes
jurídicos que apresentam uma mesma estrutura, com visível equilíbrio nas forças
que dão origem a essa estrutura complexa. São os Estados Compostos por
Coordenação, os quais podem ser reagrupados, conforme suas características, em
classes ainda mais específicas:
O primeiro deles é o denominado Estado Federal, caracterizado pela união
de vários Estados que abdicam de sua soberania12 em favor da união federal que,
por seu turno, passará a agrupá-los em torno de objetivos comuns, emitindo
comandos de forma centralizada. Conforme o caso, esses membros que constituem
a União Federal (ou Federação) poderão, a despeito de não mais possuírem
poderes soberanos, deter maior ou menor capacidade para atuar
internacionalmente, conforme previsão constitucional – norma maior que regula a
relação entre os membros e a união federal.
A despeito de sua formação, são os Estados Federais tidos como Estados
simples no âmbito internacional, ou seja, é como se somente o ente principal,
constituído a partir da união dos vários membros, mediante cessão de poderes
soberanos em seu favor, tivesse personalidade jurídica.
Federação ou Estados Federais – refere Bastos (2000) – é a forma mais
sofisticada de se organizar o poder dentro do Estado, implicando delicada repartição
de competências entre o órgão do poder central (União) e as expressões das
organizações regionais (Estados-membros). Importante assinalar, ainda invocando o
autor em relevo, que convivem, na Federação, duas esferas distintas de poder
político, duas ordens jurídicas diversas que atuam em suas respectivas áreas de
competência: de um lado, o poder central, do outro, o regional.
Já as Confederações são, por seu turno, verdadeiras associações de
Estados independentes que, via tratado internacional, se obrigam a gerir em comum
todos os seus negócios internacionais, sobretudo os que respeitam à defesa
comum. Nessa modalidade, os Estados-membros, sujeitos de Direito Internacional e
com direito de secessão13, somente sofrerão limitações quanto ao exercício de sua
capacidade de acordo com o Tratado de Constituição da Confederação.
Servida por órgãos permanentes, uma Confederação é dotada de
personalidade jurídica, embora não se apresente como uma nova entidade, superior
aos seus membros – isto é, os Estados confederados. Enquanto verdadeiro
13Consiste naquele direito assegurado às partes signatárias de um ajuste internacional de, em situações
conjunto de Estados soberanos, não detém a Confederação a condição de Estado,
pois ausente o elemento soberania.
Uniões de Estados, não possuindo personalidade jurídica internacional,
constituem-se em uma forma de associação de Estados monárquicos,
caracterizadas pela presença de um mesmo soberano em dois ou mais Estados.
Quanto à União Incorporada, esta surge, basicamente, em decorrência de
um determinado Estado – de regra, o mais forte em termos bélicos e econômicos –
passar a exercer domínio sobre um outro, em virtude de conflitos bélicos levados a
termo.
Com relação aos Estados Compostos por Subordinação, onde
constantemente se mostra presente uma relação de poder nas forças existentes, é
possível segmentá-los em diversas modalidades.
Estados Vassalos é utilizada para caracterizar aqueles Estados que, embora
dominados por um determinado poder e obrigados a pagarem tributos e prestarem
auxílio militar, mantinham certo grau de autonomia. Essa autonomia, no entanto,
não se aplicava à celebração de tratados, porquanto o poder dominante impunha
obrigatoriedade de celebração, ainda que lhes fossem reconhecida a personalidade
internacional distinta do Estado suserano.
Historicamente, os Protetorados indicavam aquelas situações onde se
faziam presentes uma subordinação de um Estado a outro, via tratado internacional,
onde o protetor oferecia proteção ao protegido, tendo como contrapartida a
faculdade de gerir completa ou parcialmente, conforme as circunstâncias, as
A designação Estados Clientes era utilizada para caracterizar os Estados da
América Central que entregavam a administração de sua alfândega, exército e
parcela do seu serviço público para os Estados Unidos da América (EUA).
Guardando muitas semelhanças com os Estados clientes, denominavam-se
Estados Satélites aqueles Estados vinculados à extinta União Soviética. Já Estado
Exíguo é denominação emprestada àqueles Estados que, em função de sua ínfima
parcela territorial, encontram-se impedidos de exercer plenamente sua soberania,
ficando subordinados ao Estado que lhe é limítrofe.
Estados Associados são aqueles que, a despeito de atingiram a
independência, sequer possuem meio para sustentá-la – situação que lhe impõe a
subordinação a outros Estados.
Contudo, como se fará demonstrar mais adiante, essa divisão não é capaz,
por si só, de oferecer respostas satisfatórias aos problemas que os Estados,
independentemente da denominação ou classificação que lhes possam ser
emprestadas, vêm enfrentando em face dos movimentos globais.
1.4 Elementos Constitutivos
O Estado, assim como outros fenômenos sociais ou jurídicos talvez não da
mesma envergadura, pode ser identificado pelos elementos que o compõe, os quais
também se prestam a distingui-lo de outros entes que permeiam o cenário
internacional.
Previamente ao surgimento do Estado, a sociedade era nômade (homo
vagus), somente passando o homem à qualidade de homem sedentário (homo
manes) a partir de sua fixação no solo, em decorrência da atividade agrícola e
seu advento: uma base física da sociedade política ou território. Já existindo, de
fato, dominantes e dominados, passou o poder político, dotado do atributo da
soberania, de forma exclusiva, a substituir o poder social, passando a condicionar
aquelas sociedades ou grupos sociais menores.
Povo, território e poder político juridicamente organizado14, estes os
elementos constitutivos do Estado. Enquanto povo e território, também designados
elementos materiais, tornam o Estado distinto de Organizações Internacionais; o
poder político e o ordenamento jurídico (ou poder político juridicamente organizado)
se apresentam como elementos formais ou essenciais, presentemente indicados
como inerentes à própria figura do Estado.
Os pressupostos de fato ou elementos materiais seriam as condições aptas
a propiciar a vigência do ordenamento jurídico e a atuação do poder político – ou
seja, dos elementos formais. Melhor esclarecendo essa questão, Mello (1994)
traduz referidos elementos de maneira bastante pertinente, destacando que a
coletividade estatal passível de ser reconhecida como Estado equivale àquela que
possui uma população, um território, um governo e poder soberano. São estes os
requisitos necessários para a existência de um Estado como pessoa internacional
plena, e esclarecendo-se apenas que o governo deverá ser efetivo e possuir certo
grau de estabilidade15.
Desde já, no entanto, é preciso ter em conta a diferença essencial entre
Estado e Nação, termos largamente utilizados como sinônimos, não obstante
14Ou, simplesmente, uma comunidade humana estabelecida sobre a base territorial do Estado, como também
assinala Rezek (2000). De toda sorte, necessário registrar que outros elementos têm sido acrescentado, permitindo, exatamente por isso, uma variedade de interpretações. É o que se observa, por exemplo, nas lições de Dallari (2000), García-Pelayo (1999) e também de Groppalli (1968), os quais apontam a finalidade como o quarto elemento constitutivo do Estado (bem-estar, progresso social, bem comum, convivência pacífica etc.).
15Priorizando alguns em detrimento de outros, Legaz y Lacambra (1979, p. 779) já menciona tais elementos
equivocada prática da espécie. Sob a ótica sociológica, Nação é anterior ao Estado
e sequer depende de sua personalidade jurídica; enquanto este se caracteriza como
um fenômeno essencialmente jurídico – sem olvidar as diversas concepções que lhe
são destinadas – aquela se apresenta como típico fenômeno social. Por
conseguinte, uma Nação pode não estar organizada em Estado, sendo possível ao
Estado caracterizar-se pela presença de uma pluralidade de nações.
Legaz y Lacambra (1979), ao se deter sobre a diferença entre ambos os
fenômenos, assevera que a Nação guarda estreita conexão com o Estado, embora
sejam coisas diversas, porquanto existem Nações que não se encontram
organizadas como Estados e Estados que não coincidem com os limites da Nação -
seja porque mais reduzidos que esta, ou porque um mesmo Estado pode agrupar
várias entidades de título nacional16.
1.4.1 Povo
Distinguindo-se do conceito de população – esta, por definição, mera
expressão numérica do conjunto de indivíduos, nacionais ou estrangeiros, que vivem
num determinado Estado – e também de nação – esta, por seu turno, identificada
como uma comunidade onde se faz presente uma base histórico-cultural –, o
elemento povo pode ser definido como o conjunto de pessoas que se unem com o
fim comum de constituir um Estado, criando entre si um vínculo permanente de
natureza jurídico-política.
16La nación guarda conexión estrechíssima con el Estado. Sin embargo, son cosas diferentes porque hay
De fato, uma vez que o Estado não pode ser idealizado senão tendo em sua
constituição uma sociedade humana, resultado do agrupamento social, não há
como negar ser o povo elemento que o integra, distinto de outros agrupamentos –
enquanto comunidade humana estatal – ao passo que possuidor de um caráter
impositivo, determinante em relação a outros agrupamentos existentes, cujo escopo
se traduz na constante luta pela superação dos conflitos numa sociedade complexa,
por meio da harmonização dos dissensos.
Nesse sentido, qualquer pluralidade de homens não dotada da qualidade
subjetiva de povo – esclarece Jellinek (1981) – jamais poderia ser vista como
Estado, ainda que submetidos a uma autoridade comum. O povo – continua esse
teórico do Estado a manifestar seu entendimento acerca da questão – tem como
característica principal o fato de estar associado à idéia de unidade, não podendo
ser visto apenas como sujeito de direitos enquanto membro integrante do Estado,
mas também como verdadeiro sujeito de deveres, ao passo que objeto do poder do
Estado17.
Mais adiante, o autor em destaque permite-se, ainda que de forma indireta,
registrar a importância da organização política e do poder (vinculação
político-jurídica) enquanto atributo do Estado, fazendo sobressair, de suas lições, a
assertiva de que é a própria organização estatal que confere unidade à comunidade
assim agregada, constituída por uma pluralidade de membros18.
17
“El pueblo, em su calidad subjetiva, forma, a causa de la unidad del Estado, uma corporación, esto es, todos sus indivíduos están unidos, enlazados entre si, em cuanto sujeitos del Estado: son miembros de este, que es, por tanto, al próprio tiempo, asociación de autoridad y asociación corporativa. Ambos elementos, el autoritário y el de asociación, se resuelven em uma unidad necesaria em la corporación estatista. A causa de la autoridad del poder del estado es el pueblo objeto del imperium, y se encuentra, desde este punto de vista, em uma mera subordinación; mas como los indivíduos, em su cualidad de elementos del Estado, se hallan em la situación de miembros y son, por tanto, sujetos, viven em este sentido coordenados. Los indivíduos, em cuanto objetos del poder del Estado, son sujetos de deberes; en cuanto miembros del Estado, por el contrario, sujetos de Derecho.” (JELLINEK, 1981, p. 306)
18“[...] Mediante la comunidad de derechos y deberes unense entre sol os miembros de um pueblo. Esta
Abordando-a enquanto dimensão pessoal do Estado, Rezek (2000) refere
que a “[...] população do Estado soberano é o conjunto das pessoas instaladas em
caráter permanente sobre seu território: uma vasta maioria de súditos locais, e um
contingente minoritário – em número proporcional variável, conforme o país – de
estrangeiros residentes”. Contudo, de modo a afastar qualquer dúvida que
eventualmente possa se fazer presente, destaca que “[...] a dimensão pessoal do
Estado soberano (seu elemento constitutivo, ao lado do território e do governo) não
é a respectiva população, mas a comunidade nacional, ou seja, o conjunto de seus
súditos, incluindo aqueles, minoritários, que se tenham estabelecido no exterior”
(REZEK, 2000, p. 170).
1.4.2 Território
Território é o país propriamente dito, não se confundindo, portanto, com
povo ou nação, ou mesmo podendo ser compreendido como sinônimo de Estado –
é puro e simplesmente um de seus elementos constitutivos, correspondente à
porção de área terrestre pertencente ao Estado – independentemente do meio pelo
qual se conquistou – acrescida dos espaços hídricos de interesse interno (rios e
lagos que se colocam em torno dessa área terrestre). Enfim, é a base física, a
porção do globo terrestre por ele ocupada, que serve de limite à sua jurisdição e lhe
fornece recursos materiais.
Não seria absurdo entender que essa base física denominada território do
Estado, ganha relevância a partir do momento em que o seu reconhecimento
implica concordar com a impossibilidade de eventual coexistência de dois Estados
em um mesmo território. Do contrário, seria entender perfeitamente factível a
incidência do poder de dominação estatal de forma coincidente, onde os indivíduos
Jellinek (1981), em seus ensaios acerca da situação jurídica dos elementos
do Estado, entende que o sentido jurídico desse elemento – o território – pode ser
exteriorizado de dois modos: um negativo, porquanto recusa qualquer outro poder
não pertencente ao próprio Estado sem sua e expressa autorização; e outro
positivo, uma vez que as pessoas que se encontram em seu território estão
submetidas ao poder estatal19.
A importância do território, portanto, está no fato de ser esse elemento um
pressuposto necessário ao próprio exercício do poder estatal sobre os cidadãos que
nele vivem, e também sobre aqueles seus que se encontrem em outros países.
Faltando a um Estado o elemento em questão, falecer-lhe-iam, por completo, os
meios de autoridade sobre seus membros (JELLINEK, 1981).
Todavia, embora apontado como elemento essencial do Estado, enquanto
expressão de seu poder de fato, não é impossível a existência temporária de uma
sociedade política desprovida dessa base física – esta que pode ser considerada
um elemento contingente, até certo ponto e de forma temporária, prescindível.
1.4.3 Poder Político juridicamente organizado
Originário do latim arcaico potis esse, posteriormente contraída em posse e,
então, potere, o termo poder expressa a possibilidade para a realização de algo.
Não é, portanto, ação que ele compreende, mas sim potência, potencialidade.
Também pode ser empregado como força a serviço de uma idéia, como sustentado
19“[...] En este sentido jurídico la tierra se denomina território. La significacion jurídica de este se exterioriza de
por Burdeau (1974)20. Pode-se afirmar ser o poder o próprio Estado, com ele se
confundindo a ponto de ser possível afirmar-lhe uma expressão ordenada de
convivência, por natureza preponderante nesse grupo, o qual não sofre influências
pela modificação dos outros elementos ou agentes que o constituem.
Em síntese, é o poder a própria manifestação do Estado, a qual pode ser
identificada como governo e soberania. Este, nas lições de Silva (2002),
representaria aquele poder enquanto expressão dinâmica de ordem pública,
coordenando o funcionamento do Estado. Já a soberania, vista adiante com mais
vagar, corresponderia ao poder estatal supremo e independente em relação ao
poder dos outros Estados, dizendo respeito à própria relação do Estado com os
outros Estados que integram a Sociedade Internacional21.
É por intermédio desse elemento, especificamente, que o Estado se impõe
de forma generalizada sobre os indivíduos que o integram, sendo traduzido como
poder efetivo, poder de dominação, indispensável para garantir a própria
organização e estabilidade social. A despeito do poder de mando, pode o Estado, se
necessário para fazer valer suas ordens, recorrer ao seu instrumental de coerção,
de modo que as regras assim emanadas – verdadeiros mandamentos estatais –
prevaleçam nas situações de equilíbrio, mas também e principalmente diante de
conflitos.
Por certo, é preciso admitir que o poder político não se reduz apenas a
mandamento, sendo imprescindível que sua concepção, enquanto elemento
20Nesse sentido, Burdeau (1974) refere o autor que o poder é uma força a serviço de uma idéia. Trata-se da
força nascida da vontade social preponderante, destinada a dirigir a comunidade de uma ordem social que considera benéfica, bem como impor aos seus integrantes o comportamento necessário para tanto. Nesta definição se destacam dois elementos: força e idéia se interpenetram estreitamente; parece-nos, portanto, que ela apresenta uma idéia exata da realidade. Se aquilo que pretendemos, como efeito, é isolar o duradouro no fenômeno do poder, enquanto se sucedem as figuras que exercem seus atributos, veremos que o poder é menos a força exterior que se coloca a serviço de uma idéia do que a potência mesma de tal idéia.
21
constitutivo do Estado, contemple uma carga social considerável, de modo a
encontrar uma correlação entre a ordem e a aquiescência, ou seja, uma relação
entre vontades (BOBBIO; MATTEUCCI E PASQUINO, 1995).
Assim, sob a ótica social, o poder se apresenta como a capacidade ou
possibilidade de agir – o que importa admitir o poder como verdadeira autonomia – e
fazer com que outros ajam – não somente pela força, mas também por criar nos
indivíduos que por ele serão atingidos uma convicção íntima, de modo a levá-los a
se conduzirem harmonicamente com a regra. Nesse particular, tem-se que o poder
encontra justificativa junto àqueles por ele alcançados, tornando-se legítimo e
plenamente realizável a partir de então.
Não negando a importância de todos os elementos que integram o Estado,
da forma como aqui abordada, a soberania reclama um exame mais aprofundado,
de modo a se buscar compreender suas raízes e o modo como vem sendo vista ao
longo dos anos, desde o nascimento do Estado até os dias atuais, quando os
movimentos globalizantes põem em xeque toda e qualquer concepção histórica de
fenômenos que, eventualmente, possa impedir o progresso desmedido do
CAPÍTULO II – CONCEITOS E DOUTRINAS DO PODER SOBERANO
2. A Soberania em questão
A despeito de o conceito de soberania, enquanto caracterizada como
princípio absoluto, ter resistido ao tempo por um longo período na história da
humanidade, o hodierno fenômeno da mundialização da economia – ou
globalização, como também referido –, pode ser apontado como o maior
responsável por trazer à tona acirradas discussões acerca do seu significado e da
eventual necessidade de adaptá-lo ao mundo contemporâneo.
Ferrajoli (2002), apresentando uma visão crítica a respeito dessa temática,
refere que a soberania pode ser vista como um conceito jurídico e político ao
mesmo tempo, “em torno do qual se adensam todos os problemas e as aporias da
teoria juspositivista do direito e do Estado” (FERRAJOLI, 2002, p. 01).
Enquanto para alguns teóricos a soberania se apresenta como elemento
distinto na constituição do Estado, chegando mesmo a distingui-lo dentre os demais
– povo, território e poder político juridicamente organizado –, assevera Rezek (2000)
que “[...] a soberania não é elemento distinto: ela é atributo da ordem jurídica, do
sistema de autoridade, ou mais simplesmente do terceiro elemento, o governo, visto
esse como síntese do segundo – a dimensão pessoal do Estado – e projetando-se
sobre seu suporte físico, o território” (REZEK, 2000, p. 217).
Se, por um lado, não se pode negar que o conceito historicamente aceito
para a soberania vai de encontro aos interesses que se descortinam no processo de
integração de mercados – sobretudo se levado em consideração que o próprio
impossível admitir que a questão possa não estar centrada no conceito clássico do
termo, mas talvez na própria forma que a sua leitura vem sendo realizada desde
então.
2.1 Perspectiva histórica
A opção por se trazer à baila uma perspectiva histórica acerca da soberania
ganha sentido a partir do momento que sua própria definição, ao longo do tempo,
traz em si forte preocupação, por parte dos doutrinadores, com a identificação
daqueles que seriam seus detentores, ou seja, com uma questão de poder. Recorrer
à história é prática que não permite apenas compreender acontecimentos passados,
mas também analisar o presente e seus fenômenos, muitos deles de inegável
natureza cíclica, de modo a aperfeiçoar o discurso frente à realidade que lhe é
posta, por vezes rompendo paradigmas, avançando na área do conhecimento.
Conhecer a história para compreender o presente22.
A palavra soberania, advinda de ‘superior’ na forma superiorem non
recognoscens (que não reconhece outro acima de si), foi utilizada, historicamente, já
no século XIII, nos Livros dos costumes e dos usos de Beuvoisis, de autoria do
federalista francês Beaumanoir, que a empregou no sentido de “cada um dos
barões é soberano em seu baronato”. Também remonta a essa mesma época a
afirmação “o rei, não reconhecendo ninguém acima de si, é imperador em seu reino”
(FERRAJOLI, 2002, p. 66).
22Assim, como assevera Finger et al (2003, p. 17-18), recorrendo a Goyard-Fabre (2002): “Não se deve, pois,
Nesse particular, ainda que não um consenso, é possível apontar traços
originários da soberania na Idade Média, remontando, no entanto, ao nascimento
dos grandes Estados nacionais europeus e à divisão correlativa, no limiar da Idade
Moderna, da idéia de um ordenamento jurídico universal, recebido como herança da
cultura romana pela medieval.
Doutrinariamente, o conceito de soberania como hoje se conhece tem
ensejo nos idos do século XVI, sendo seu objetivo legitimar o absolutismo
monárquico. O enfraquecimento do poder da Igreja (séc. X a XIII), seguido pelos
combates travados entre os poderes romano e dos príncipes na França – estes que
se intitulavam representantes diretos de Deus na terra –, a transferência do poder
Papal para Avignan (1309), o Cisma do Ocidente (1378-1429), além da Reforma
Protestante (1517) são apontados como ápices do ocaso da autoridade detida por
Roma sobre a Europa Cristã (CAMPOS, 2000).
Nesse conturbado momento político em que as relações entre os Estados
passam a ser dominadas pela rivalidade constante, inclusive mediante lutas
armadas, esses entes políticos chegam a senhores de si próprios, aproveitando
suas forças e alto grau de coesão, bem assim o vácuo político na Europa Medieval.
Assim, um esboço histórico a partir da ordem dos acontecimentos até o
momento em que emergem os Estados territoriais, modelos unitários de
organização política centralizada, com um território delimitado e conseqüente poder
sobre este, em flagrante oposição, portanto, ao traço dual que matiza fortemente o
Papado e o sistema imperial, permitirá que se defina esse momento como marco da
Ultrapassada, após longo período, a frágil e simbólica centralização do
poder político na pessoa do imperador – época em que o conceito de soberania
começa a mostrar sua face, exprimindo a superioridade de um poder central
desvencilhado de qualquer tipo de sujeição – o cenário político-teórico passa, então,
a contar com a genialidade do publicista Bodin23, de naturalidade francesa, cujo
pensamento assegurou o liame entre o conceito de Estado e soberania24.
Também em Bobbio et al. (1995) encontra-se estabelecido o século XVI
como marco para os conceitos modernos de soberania e de Estado:
Em sentido estrito, na sua significação moderna, o termo Soberania aparece, no final do século XVI, juntamente com o de Estado, para indicar, em toda sua plenitude, o poder estatal, sujeito único e exclusivo da política. Trata-se do conceito político-jurídico que possibilita ao Estado moderno, mediante sua lógica absolutista interna, impor-se à organização medieval do poder, baseada, por um lado, nas categorias e nos Estados, e, por outro, nas duas grandes coordenas universalistas representadas pelo papado e pelo império [...]. (BOBBIO et al., 1995, p. 1179)
2.2 Conceitos e fases
A soberania já foi vista como sendo o poder absoluto e perpétuo de uma
república – esta entendida como o governo correto de várias famílias, e do que lhe é
comum, com poder soberano (BODIN, 1973-1576)25. Também pode o termo ser
empregado para significar o poder de mando de última instância, numa sociedade
23Friede (1993, p. 98), ao debater-se para estabelecer os limites da soberania nacional, relata que “[...] a
expressão souveraineté (soberania) é essencialmente francesa. O grande teórico da soberania é exatamente o gênio francês BODIN, cujos olhos estiveram sempre presos à realidade histórica de sua pátria”.
24A propósito de Bodin e sua contribuição para o estudo e compreensão da soberania, NUNES JÚNIOR (2003,
p. 42) relata o seguinte: “Visando dar legitimidade e significância ao poder político dos reis e que surgiu o conceito de soberania. Foi Jean Bodin que, em Os seis livros da República (1583), deu especial atenção ao tema, formulou o conceito de soberania (souveraineté), atribuindo o poder absoluto e perpétuo ao Rei, estando este apenas sujeito à lei natural e a mais ninguém”.
25No original: “La souveraineté est la puissance absolute et perpetuelle d’une république que les latins apellent