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A influência do neoliberalismo no sistema jurídico brasileiro : o atual regime de insolvência empresarial

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Universidade Católica de Brasília Instituto de Pós-Graduação e Pesquisa

Mestrado em Direito Internacional Econômico

A influência do neoliberalismo no sistema legal brasileiro

Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa

Stricto Sensu em Direito

A INFLUÊNCIA DO NEOLIBERALISMO NO SISTEMA

JURÍDICO BRASILEIRO: O ATUAL REGIME DE INSOLVÊNCIA

EMPRESARIAL

Brasília - DF

2012

(2)

LUCIANA SOUZA ALMEIDA

A INFLUÊNCIA DO NEOLIBERALISMO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO: O ATUAL REGIME DE INSOLVÊNCIA EMPRESARIAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito da Universidade Católica de Brasília (UCB), como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Direito.

Orientador: Prof. Dr. Maurin Almeida Falcão

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12,5 cm

7,5 cm

Ficha elaborada pela Biblioteca Pós-Graduação da UCB 15/06/2012

A447i Almeida, Luciana Souza.

A influência do neoliberalismo no sistema jurídico brasileiro: o atual regime de insolvência empresarial. / Luciana Souza Almeida – 2012.

183 f. ; 30 cm

Dissertação (mestrado) – Universidade Católica de Brasília, 2012. Orientação: Prof. Dr. Maurin Almeida Falcão

1. Neoliberalismo. 2. Empréstimos. 3. Estado. 4. Política econômica. I. Falcão, Maurin Almeida, orient. II. Título.

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Dissertação de autoria de Luciana Souza Almeida, intituladaA INFLUÊNCIA DO NEOLIBERALISMO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO: O ATUAL REGIME DE INSOLVÊNCIA EMPRESARIAL”, apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Direito da Universidade Católica de Brasília, em 12 de junho de 2012, defendida e aprovada pela banca examinadora abaixo assinada:

____________________________________ Prof. Dr. Maurin Almeida Falcão

Orientador

____________________________________ Profª. Drª. Leila Maria Da’ Juda Bijos

Examinadora Externa

____________________________________ Prof. Dr. Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Examinador Externo

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A Rune Henry Bentzen (in memoriam)

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A meu pai, Carlos dos Santos Almeida, e a minha mãe, Maria de Lurdes Souza Almeida (in memoriam). Ensinaram-me que a disciplina e a tenacidade constituem o caminho

para a realização de todos os projetos.

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ALMEIDA, Luciana Souza. A influência do neoliberalismo no sistema jurídico brasileiro: o atual regime de insolvência empresarial. 183 f. 2012. Dissertação (Mestrado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, Universidade Católica de Brasília, Brasília.

O presente estudo objetiva analisar o novo regime de insolvência empresarial (Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005). Pretende demonstrar sua relação com o neoliberalismo, ideologia que influenciou o Fundo Monetário Internacional - FMI. O FMI adotou então diretrizes neoliberais e passou a exigir dos Estados solicitantes de empréstimos, reformas estruturais. Alterações legislativas surgiram em função disso. O trabalho apresenta a evolução histórica do pensamento econômico, a partir do liberalismo clássico. A doutrina neoliberal, baseada na intervenção estatal mínima nas relações econômicas, pode ser, dessa forma, melhor compreendida. Estabelecidas essas premissas teóricas, prossegue-se com o exame da origem, estrutura, funcionamento do FMI e seus acordos stand-by. São chamadas assim, uma das

formas de concessão de empréstimo que vinculam a liberação do crédito ao cumprimento de condições impostas pelo organismo, assumidas pelos países requerentes por meio das cartas de intenções. Deve-se assinalar que apesar de atender aos interesses do FMI, o novo regime de insolvência empresarial brasileiro buscou também desenvolver a função social da empresa, conferindo ênfase à sua preservação, medida inexistente na lei anterior.

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This study aims to analyze the new corporate insolvency regime (Law No. 11101 of February 9, 2005). It intends to demonstrate its relationship to neoliberalism, an ideology that influenced the International Monetary Fund – IMF. The IMF then adopted neoliberal policies and began requiring the loan applicant States to do structural reforms. Legislative amendments have arisen as a result. The work traces the history of economic thought, from classical liberalism. The neoliberal doctrine, based on the minimal state intervention in economic relations, can be thus better understood. Given these theoretical premises, the research continues with an examination of the origin, structure, operation of the IMF and its stand-by arrangements. Stand-by arrangements is the name of one of the forms of money lending. They link the release of credit to the conditions imposed by IMF, accepted by the requesting countries by means of letters of intent. It should be noted that while serving the interests of the IMF, the new Brazilian corporate insolvency regime also sought to develop the social function of the company, with an emphasis on preservation, so far missing in the previous law.

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INTRODUÇÃO ... 10

CAPÍTULO 1 - A DOUTRINA LIBERAL ... 13

1.1 O CONCEITO DE LIBERALISMO ... 15

1.2 A LAICIZAÇÃO DA LIBERDADE: RAÍZES DO LIBERALISMO ... 18

1.3 A FORMAÇÃO DE UMA ORDEM SOCIAL ... 20

1.4 A CONSTITUIÇÃO NO ESTADO LIBERAL ... 23

1.5 A SEPARAÇÃO DOS PODERES ... 24

1.6 O REINADO DA LEI ... 26

1.7 O HABEAS CORPUS ... 27

1.8 O LIBERALISMO POLÍTICO E O LIBERALISMO ECONÔMICO ... 28

1.9 A ORIGEM DA EXPRESSÃO LAISSEZ-FAIRE ... 31

1.10 A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO SOB A ÉGIDE DO LIBERALISMO ... 32

1.11 O DECLÍNIO DO LIBERALISMO ... 36

CAPÍTULO 2 - O ADVENTO DO INTERVENCIONISMO ... 40

2.1 A EVOLUÇÃO HISTÓRICA E O CONCEITO DE INTERVENCIONISMO ... 40

2.2 O KEYNESIANISMO E SUAS INFLUÊNCIAS NO MODELO DE INTERVENÇÃO ESTATAL ... 51

2.3 A ORDEM ECONÔMICA E SUAS TRANSFORMAÇÕES ... 54

2.4 POLÍTICAS SOCIAIS E ESTADO DO BEM-ESTAR SOCIAL ... 56

2.5 OS PROBLEMAS DO ESTADO INTERVENCIONISTA: A HIPERTROFIA DO PODER EXECUTIVO ... 60

CAPÍTULO 3 - AS REPERCUSSÕES DO NEOLIBERALISMO ... 62

3.1 BREVE HISTÓRICO DO NEOLIBERALISMO ... 63

3.2 AS VERTENTES NEOLIBERAIS ... 67

3.2.1 A Vertente Austríaca ... 68

3.2.2 A Vertente Americana ... 72

3.2.2.1 A Escola de Chicago ... 72

3.2.2.2 A Teoria da Escolha Pública (Public Choice Teory) ou Escola da Virgínia ... 74

3.3.2.3 A Escola Libertariana ... 80

3.3 NEOLIBERALISMO E GLOBALIZAÇÃO ... 81

(10)

... 90

4.2 A NATUREZA JURÍDICA DO ACORDO STAND-BY ... 96

4.3 AS RELAÇÕES DO FMI COM O BRASIL ... 104

CAPÍTULO 5 - REPERCUSSÕES DO NEOLIBERALISMO NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO: O NOVO REGIME DE INSOLVÊNCIA EMPRESARIAL ... 110

5.1 ASPECTOS HISTÓRICOS DO DIREITO FALIMENTAR ... 111

5.1.1 Do Direito Romano ao Código Comercial Francês ... 111

5.1.2 O Direito Falimentar no Brasil ... 113

5.2 A NOVA LEI DE INSOVÊNCIA EMPRESARIAL: O CONTEXTO DE SUA EDIÇÃO ... 114

5.3 AS ALTERAÇÕES NO SISTEMA DE INSOLVÊNCIA EMPRESARIAL PROMOVIDAS PELO NOVO REGRAMENTO ... 116

5.3.1 A exposição de motivos da Lei 11.101/05 ... 117

5.3.2 A Lei de Insolvência Empresarial ... 118

5.4 A FUNÇÃO SOCIAL DA EMPRESA ... 121

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 126

REFERÊNCIAS ... 129

REFERÊNCIAS ELETRÔNICAS ... 135

(11)

INTRODUÇÃO

A globalização e suas repercussões nos Estados representam um dos fatos mais marcantes do final do século XX e início do século XXI. Embora não constitua fenômeno recente, pois esteve presente na história da humanidade desde os antigos impérios, ganhou novos contornos a partir dos anos setenta, quando assumiu um prisma ideológico neoliberal. Os Estados passaram a sofrer a influência da economia transnacional, que implicava alterações nas instituições estatais para a supressão das barreiras que obstassem a abertura comercial.

A par desses acontecimentos, ocorria de forma concomitante a conscientização dos Estados de ser necessária a cooperação entre eles para a realização de finalidades comuns, o que deu ensejo ao processo de institucionalização da interdependência internacional, o qual pode ser também denominado de globalização jurídica. Isso possibilitou a criação de diversas organizações internacionais de cooperação com viés técnico, destacando-se o Fundo Monetário Internacional – FMI– na seara econômica.

O FMI foi criado a partir da Conferência de Bretton Woods com o objetivo inicial de manter o equilíbrio financeiro internacional. Após a segunda metade da década de setenta, a organização passou a desempenhar a atividade creditícia de forma mais expressiva, encampando também as diretrizes do neoliberalismo e condicionando a concessão de auxílio financeiro à adoção pelos países solicitantes de um ajuste estrutural em consonância com a doutrina do Estado mínimo.

Essa circunstância influenciou a produção normativa dos países solicitantes, que passaram a legislar considerando o contexto econômico-financeiro internacional, a exemplo do Brasil com o regime de insolvência empresarial. Assim, a hipótese desta pesquisa é demonstrar que os acordos firmados entre o Governo brasileiro e o FMI conduziram à edição do novo regime de insolvência empresarial em razão das condicionalidades impostas por esse organismo para a liberação de créditos.

Em relação aos elementos textuais, o trabalho se divide em introdução, cinco capítulos de desenvolvimento e considerações finais, acrescentadas as referências e o anexo.

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indivíduos. O capítulo ainda tratará das causas do esfacelamento do Estado Liberal no final do século XIX e início do século XX, período em que se fortalecem as ideias de maior atuação do Estado tanto na economia quanto nas questões afetas aos particulares.

Em seguida, apresentar-se-á, no segundo capítulo, o intervencionismo estatal, oriundo da percepção de que a economia não se move por si, mas é necessária a intervenção do poder público para disciplinar as relações entre particulares, atuando também para promover o equilíbrio social, garantindo oportunidades e bem-estar a todos. Nesse contexto, merece destaque o pensamento de John Maynard Keynes, para quem a intervenção estatal deveria ocorrer de maneira mais ou menos perene, em especial mediante o implemento de políticas monetárias e fiscais com a finalidade de influenciar três elementos: consumo, entesouramento e investimento. No entanto, a demanda por direitos sociais passou a exigir muito do Estado que, sobrecarregado, se exauria e entrou em declínio.

Com as crises mundiais da década de sessenta do século XX, o neoliberalismo ganhou projeção, conforme será visto no terceiro capítulo, que abordará, de início, o marco dessa doutrina, delineada nos estudos desenvolvidos pela Escola Austríaca de Economia, capitaneada por Ludwig von Mises e Friedrich August von Hayek. Nesse capítulo discorrer-se-à também sobre a contribuição da vertente norte-americana do neoliberalismo, a qual se subdivide em Escola de Chicago e Escola da Virgínia. A primeira, assente no pensamento de Milton Friedman, um dos principais defensores do Estado mínimo nos Estados Unidos da América; a última, fundamentada nos elementos da Teoria da Escolha Pública –TEP–, que apresenta medidas para corrigir as falhas dos governos, associadas a problemas de eficiência econômica das decisões e a injustiças na repartição do rendimento. Para resolver essas questões, a TEP enfatiza as vantagens da intervenção estatal mínima e propõe maneiras de limitar os gastos públicos.

No quarto capítulo, será enfocado o FMI, apresentando seu contexto de criação. Será feito um estudo das características do FMI e do seu papel na dinâmica global, sobretudo após o Consenso de Washington, que teve por finalidade estabelecer um programa de ajuste para os países em desenvolvimento, consistente na disciplina fiscal, na redução dos gastos públicos e na privatização. Esses princípios foram encampados pelo FMI, que passou a condicionar a concessão dos empréstimos ao cumprimento das metas neoliberais, utilizando-se principalmente dos stand-by arrangements ou acordos stand-by para tal finalidade.

(13)

O estudo das relações do FMI com o Brasil ocorrerá em tópico específico, no qual se evidenciará que a concessão do empréstimo solicitado por intermédio do acordo stand-by de 2002 ficou condicionada à efetivação, entre outras medidas, da edição de um novo conjunto de regras relativas ao sistema de insolvência empresarial.

Por fim, no quinto capítulo, após tecer algumas considerações sobre a evolução do direito falimentar ao longo da História, discorrer-se-á sobre as alterações no sistema de insolvência empresarial promovidas, no Brasil, pela Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005, que substituiu o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, com algumas considerações sobre os debates travados à época da edição dessa Lei e sua importância para a garantia dos investimentos e defesa da função social da empresa.

(14)

CAPÍTULO 1 - A DOUTRINA LIBERAL

A presente dissertação abordará a evolução do pensamento econômico em relação à atuação do Estado, com ênfase na repercussão do neoliberalismo no sistema jurídico brasileiro. Faz-se necessária, para melhor compreensão, uma análise prévia a respeito dos conceitos de Estado, Direito e Estado de Direito, estendendo-se sobre as origens deste último.

De acordo com a conceituação sintética dos manuais jurídicos, ‘Estado’ é definido como nação politicamente organizada. Nessa perspectiva, aduzem Mendes, Coelho e Branco que tal conceito demandaria incursões aos elementos constitutivos do Estado – povo, território e governo – e, em especial, ao modo como em seu interior se exerce a violência física legítima, “cujo monopólio Max Weber considera necessário à própria existência do Estado Moderno”.1

Para Weber, o Estado Moderno, sob o ponto de vista sociológico, é definido pela referência a um meio específico que ele, a exemplo de qualquer associação política, possui: a violência física, representando a comunidade humana que, dentro de um determinado território, reclama para si o monopólio da violência física legítima. É, pois, específico do nosso tempo que a todas as outras associações e indivíduos somente se defira o direito à violência física com a concessão do Estado, e é este a única fonte do “direito à violência”.2

Destarte, à luz do pensamento de Weber – compartilhado pelos teóricos do Estado e pelos cientistas políticos –, a violência legítima é o meio de se avaliar o Estado como instrumento de legitimação do exercício do poder, e é essa a razão pela qual a ideia de Estado de Direito sempre esteve vinculada à de contenção do Estado pelo Direito, os quais, para tanto, são pensados como realidades diversas, uma formulação ideológica, como a vê Kelsen com críticas.

Segundo esse autor, o Estado deve ser representado diferentemente do Direito para que se possa justificar o Estado, que o cria e a ele se submete. É certo que tal justificação se torna possível quando o Direito é visto como ordem diversa do Estado, oposta à sua originária natureza – o poder – e, por isso, reta ou justa em qualquer sentido.3

Por seu turno, à luz do normativismo jurídico concreto de Miguel Reale, o Direito é definido como um conjunto de normas que, em determinado contexto social e em dado

1 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 33.

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momento histórico, por meio da intervenção decisória do Poder, promove a ordenação dos fatos sociais de acordo com valores. Referidas normas representam substratos que dialeticamente integram e superam que sintetizam os conflitos entre fatos e valores, os quais, nelas e por elas, transformam-se em fatos e valores especificamente jurídicos.4

Torna-se relevante assinalar que o conceito básico de Estado de Direito abrange três aspectos cruciais. O primeiro diz respeito à renúncia a qualquer ideia ou objetivo transpessoal do Estado, que não é criação de Deus, nem uma ordem divina, mas apenas uma comunidade (res publica) a serviço do interesse comum de todos os indivíduos. As inclinações

suprassensíveis dos homens, a ética e a religião encontram-se fora do âmbito das competências do Estado de Direito.5

Já o segundo aspecto refere-se aos objetivos e às tarefas do Estado, limitados a garantir a liberdade e a segurança das pessoas e da propriedade, possibilitando o autodesenvolvimento dos indivíduos. Por sua vez, o terceiro aspecto relaciona-se à organização estatal e à regulação das suas atividades, que obedecem a princípios racionais, do que decorre, em especial, o reconhecimento dos direitos básicos da cidadania, tais como a liberdade civil, a igualdade jurídica, a garantia da propriedade, a independência dos juízes, a responsabilidade do governo, o domínio da lei, a existência de representação popular e sua participação no Poder Legislativo.6

Assim, o que caracteriza o Estado de Direito é o uso legítimo da força, vindo desse traço a sua origem. O seu surgimento ocorre quando o próprio Estado se submete às normas por ele elaboradas.

De início, o Estado mostrava-se como um postulado do direito administrativo, porquanto designava um sistema de relações entre a lei, a administração e o indivíduo. Após, transmudou-se em princípio de direito constitucional. Como consequência, a noção do Estado de Direito converteu-se em sinal de legitimidade de todo o sistema jurídico.

Na atualidade, quando se faz menção a Estado de Direito, refere-se aos seguintes aspectos: àquele em que se viva sob a preeminência do Direito, compreendido este como sistema de regras estabelecidas de maneira democrática e que atendam ao império da lei, esta como expressão da vontade geral; à divisão de poderes; à legalidade da administração, consubstanciada na atuação em conformidade com a lei, com o controle judicial; e ao direito e

4 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 34.

5 BÖCKENFORDE, Ernst Wolfgang. Estudios sobre el estado de derecho y la democracia. Tradução de Rafael de Agapito Serrano. Madrid: Trotta, 2000. p. 19-20.

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às liberdades fundamentais. Ressalte-se que tais conquistas foram consectárias de luta e sofrimento.7

Após essa breve introdução, passa-se ao estudo da evolução do pensamento econômico, iniciando-se com a fase liberal.

1.1 O CONCEITO DE LIBERALISMO

Embora seja importante para a presente dissertação o uso político do termo ‘liberal’, para efeito didático examinar-se-ão de modo sucinto, os vários sentidos do vocábulo.

Em significado comum, o termo indica uma atitude aberta, tolerante ou generosa, ou indica as profissões exercidas pelos indivíduos livres. O Dicionário Houaiss define-o como “doutrina baseada na defesa da liberdade individual, nos campos econômico, político, religioso e intelectual, contra as ingerências e atitudes coercitivas do poder estatal”.8

De acordo com Bobbio, em sentido mais restrito, o termo aparece primeiro na proclamação de Napoleão – no conhecido ‘18 Brumário’ –, ingressando depois na linguagem política por meio das Cortes de Cadiz, em 1812, para determinar o partido que defendia as liberdades públicas contra o partido servil e, na literatura, por intermédio de Chateaubriand, Madame de Staël e Sismondi, para indicar uma nova orientação ético-politica em fase de afirmação.9

Apesar da amplitude conceitual, o liberalismo pode ser definido como o sistema político-econômico norteado pela liberdade individual e contrário à excessiva ingerência estatal, cuja atuação deve restringir-se à preservação das liberdades individuais e subordinar-se às leis.

A dificuldade de se obter uma definição do termo advém basicamente de três razões. A primeira, de achar-se a história do liberalismo vinculada à evolução da democracia; a segunda, do fato de o liberalismo manifestar-se em épocas distintas, ocorrendo uma impossibilidade de estabelecer “o momento liberal capaz de unificar histórias diversas”; já a terceira refere-se ao fato de que, conquanto o modelo liberal inglês tenha tido uma influência

7 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Mártires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 36-37.

8 LIBERAL. In: HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Objetiva, c2001.

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determinante, não há de se falar em uma “história-difusão” do movimento, tendo em vista também o modelo derivado da Revolução Francesa e as especificidades estruturais de cada sociedade.10

Convém destacar que a Revolução Liberal se manifestou abertamente na Inglaterra com a Revolução Gloriosa (1688-1689) e alcançou repercussão global durante a Revolução Francesa (1789). Posteriormente, a Primeira Guerra Mundial e a Grande Depressão catalizaram a tendência que se iniciou no final do século XIX, na Europa, para um liberalismo que defendeu maior atuação estatal com o objetivo de melhorar as condições sociais.

Lembra Bobbio que outro motivo que torna difícil o uso do termo liberal é o fato de ele abranger contextos disciplinares diversos. Com efeito, o liberalismo jurídico refere-se a determinada organização do Estado, capaz de garantir os direitos do indivíduo, e consiste em uma forma muitas vezes propensa a transformar suas próprias soluções particulares em fins absolutos.11

Em seguida, vale mencionar o liberalismo político, no qual se manifesta com mais força o sentido da luta política parlamentar, que se resume no princípio do “justo meio” como autêntica expressão de uma arte de governar apta a promover a inovação, nunca a revolução.

Acerca do liberalismo político, Bobbio menciona também que:

Esta arte de governar oscilou constantemente entre o simples comprometimento parlamentar, objetivando manter inalterados os equilíbrios existentes e a capacidade de uma síntese criadora entre conservação e inovação, capaz de libertar e mobilizar novas energias. Foi esta política que causou a passagem da monarquia constitucional para a parlamentar, embora o liberal não tenha sido por princípio um republicano.12 Do mesmo modo, impende abordar o liberalismo econômico, sedimentado na concepção de que as relações econômicas entre particulares funcionariam por si sós, sem qualquer ingerência do Poder Público. Nesse contexto, acreditava-se que o máximo de felicidade comum dependia da livre busca individual da própria felicidade.

Também Burdeau admite a complexidade de se compor uma definição para o termo em virtude das peculiaridades culturais e temporais às quais a doutrina esteve submetida, enfatizando que o liberalismo somente assumiu todo seu sentido em âmbito coletivo, quando se expressou de forma concreta em todos os domínios em que os indivíduos se encontravam. Há o liberalismo político, o econômico, o dos costumes e cada um constitui expressão do meio que pretende reger, havendo conflitos entre eles. Por exemplo, seria necessário ser indiferente à realidade para acreditar que a democracia liberal – liberalismo político – poderia

10 BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Brasília: Universidade de Brasília, 2009. p. 686-687.

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respeitar todos os imperativos do liberalismo econômico. Assim, não é possível definir com precisão as vertentes de um conceito tão múltiplo.13

O liberalismo surgiu por motivos sociais, políticos e econômicos, influenciado sobretudo pelo Iluminismo -- movimento intelectual do Renascentismo --, que se apoiava em uma visão racional do universo e dos humanos, entendendo-se que este produziria o máximo de si se fosse livre em sociedade, a qual seria orientada pela harmonia natural produzida pelas relações interpessoais.

Cabe mencionar a atuação de alguns intelectuais nesse processo histórico. Para Thomas Hobbes (1588-1679), a ambição e a busca do prazer funcionavam como propulsores para os indivíduos, visto que a ganância os levaria aos movimentos bélicos. Já para John Locke (1632-1704), a capacidade intelectual e o conhecimento eram assimilados pelos homens com as experiências, uma vez que nasceriam como “tábula rasa”. Como as vivências são diversificadas, dessa circunstância decorreriam as diferenças e desigualdades, por isso seria necessário um novo Estado, dirigido pelos mais capacitados. Ressalte-se que tal pensamento foi decisivo para a implantação das monarquias constitucionais. 14

Para Jean Jacques Rousseau (1712-1778), o ser humano nasceria bom, sendo corrompido pela sociedade. Os indivíduos, por meio do contrato social, dariam origem ao estado de sociedade, cujos governantes seriam eleitos. Já Adam Smith (1723-1790), na obra ‘A Riqueza das Nações’, interpretou o mundo econômico e estabeleceu as bases do capitalismo. Charles Robert Darwin (1809-1882), por intermédio de sua teoria evolucionista, defendia a competição como dado para a existência, vencendo os mais aptos; circunstância que também ocorreria na sociedade. 15

O movimento liberal representou uma reação à concentração de poder inerente ao absolutismo, às diferenças sociais e, especialmente, às restrições econômicas praticadas na Idade Média. Pressupunha atuação estatal mínima – caracterizada por prestações negativas ou pelo não fazer, com competências voltadas apenas a assegurar as liberdades individuais – e mecanismos de controle do poder político pelo sistema de freios e contrapesos da separação de poderes de Montesquieu, caracterizado pela independência entre os órgãos do poder e pelo interrelacionamento de suas atividades.

Com efeito, ao analisar a teoria política do liberalismo, Kelsen explica que, para a ideologia, o Estado era um “mal necessário”, mas, por ser imprescindível, seu âmbito de

13 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 9.

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atuação deveria ser reduzido ao mínimo: defesa da segurança exterior, proteção da vida e da propriedade de seus membros; porém, não deveria fomentar o bem-estar dos cidadãos, nem, especialmente, intervir na vida econômica e na cultura espiritual, pois uma e outra não florescem senão com o livre jogo das forças sociais.16

Assim, ao Estado caberia tão somente intervir para obstar e punir ações que atentassem contra as liberdades individuais e contra o livre funcionamento da concorrência. Devido a isso, o Estado representaria uma criação deliberada e consciente da vontade dos indivíduos que o compunham, de acordo com as doutrinas do contratualismo social.17

Por isso, o Direito também atuava restritivamente, de modo a prover o sistema de liberdades – vida, segurança, propriedade, liberdade contratual, entre outras –, fixando direitos oponíveis a outros indivíduos ou ao arbítrio dos governantes.

1.2 A LAICIZAÇÃO DA LIBERDADE: RAÍZES DO LIBERALISMO

O presente tópico enfoca o fortalecimento das ideias liberais com base no fenômeno da laicização do Estado.

O Estado leigo opôs-se ao Estado confessional, o qual assumia como sua determinada religião e privilegiava os fiéis desta. E é a essa noção de Estado leigo que fazem referência as correntes políticas que pregavam a autonomia das instituições públicas e da sociedade civil de toda diretriz proveniente do magistério eclesiástico e de toda interferência exercida por organizações confessionais, ou seja, o regime de separação entre o Estado e a Igreja e a garantia da liberdade dos cidadãos perante ambos os poderes.18

A Reforma Religiosa promovida, no século XVI, por Lutero e Calvino trouxe como ensinamento o fato de que a liberdade está no ser humano, porquanto estendeu aos homens comuns a liberdade que os fortes tinham avocado para si e teve papel decisivo na ascensão do liberalismo. Lutero ensinou ao cristão que a liberdade não devia provocar revolta, nem ensejar a substituição dos decretos divinos pelas vontades de natureza pecadora, mas sim possibilitar a intervenção divina sobre ele. Dessa forma, enquanto Lutero pregava uma submissão

16 KELSEN, Hans. Teoría general del estado. Tradução de Luis Legaz Lacambra. Barcelona: Labor, 1934. p. 41.

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resignada e via na subordinação dos súditos uma espécie de penitência, que estes deveriam aceitar, Calvino exigia uma adesão alegre à ordem política.19

Essa libertação espiritual promovida pela Reforma inaugurou uma época de pluralismo religioso, que refletiu na liberdade intelectual e conduziu à libertação material, suscitando a procura pelo lucro e contribuindo para difundir a ligação entre relações sociais e econômicas, a qual se transformaria no capitalismo, embora não se possa afirmar que fosse essa a intenção de Lutero e Calvino.20

A partir da mudança de pensamento promovida pelo protestantismo, o indivíduo começa a desenvolver um sentimento de poder sobre o universo, apercebendo-se de que os governos são feitos para o povo, e não o contrário. Logo, as características do liberalismo podem ser atribuídas a essa origem.

Com efeito, o liberalismo tratava-se de uma doutrina individualista, porquanto a liberdade que proclamava deveria ser conquistada por esforço individual. Ainda, era uma teoria otimista, na medida em que garantia que as desigualdades sociais seriam corrigidas pelo uso da liberdade.

Nesse processo de laicização, a partir do século XVII, as relações com o Criador tornaram-se mais distantes, sendo necessário encontrar a formulação de seus mandamentos em algo mais próximo, que foi a natureza. O caminho das leis naturais mostrou-se, destarte, a via que levaria à descoberta da vontade divina.21

Essa ideia, conquanto não fosse nova, uma vez que os juristas romanos e São Tomás de Aquino já haviam se referido à lei natural, inovava pelo método segundo o qual se pretendia chegar à compreensão das leis naturais, procurando-se aprendê-las mediante um estudo direto do universo. Assim, pode-se dizer que os progressos da investigação científica, estabelecendo a suficiência da razão, levaram a uma laicização da noção de lei natural, o que permitiu ao liberalismo incipiente desvincular-se da origem religiosa.

Nessa medida, destaca-se que a razão exerce o importante papel de possibilitar ao homem distinguir aquilo que é corruptível daquilo que se mostra em conformidade com a harmonia da ordem natural.

E, com a construção do Estado jurídico, os pensadores do direito natural julgavam haver encontrado formulação teórica apta a salvar, em parte, a liberdade ilimitada da qual o

19 BURDEAU, George. O liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 20-24.

20 MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. Tradução de Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 23.

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ser humano usufruía na sociedade pré-estatal; ou conferir função preponderante a essa liberdade, submetendo o Estado ao indivíduo.22

Tais considerações não significavam que, no liberalismo, não houvesse espaço para preocupações morais, visto que essa doutrina se baseava na confiança no ser humano e estabelecia a liberdade do indivíduo como seu foco principal. Essa ideologia enfatizava a ação individual para a edificação de um mundo melhor e, de acordo com ela, o ser humano alcançaria a harmonia final de interesses por meio da educação, que ensinaria o indivíduo a moderar suas exigências, a respeitar a liberdade dos demais, a conduzir a concorrência no sentido da divisão do trabalho e a cultivar as virtudes do empenho pessoal. 23

1.3 A FORMAÇÃO DE UMA ORDEM SOCIAL

Locke afirmava que os homens renunciaram à liberdade primitiva absoluta para fundar a autoridade pública, conservando resíduos dessa liberdade original, que seriam os direitos individuais, que poderiam ser opostos ao Estado, porquanto anteriores a ele.24

Nessa tese, que colocava o indivíduo no centro de todas as preocupações, se radicou a prática do liberalismo, que adotava a concepção restritiva da atividade do poder político como um de seus dogmas e a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, como o verdadeiro código da liberdade e do individualismo devido ao seu caráter abstrato e universalista.

Sob a nova perspectiva, o Estado representava a entidade que apenas subsidiava os indivíduos para que pudessem buscar seus interesses pessoais, e a produção normativa apenas expressava as vontades individuais.

Essa concepção não foi inspirada pelo interesse das categorias sociais que se favoreceriam da abstenção estatal, mas formulada com a exclusiva preocupação de evitar que a autonomia das pessoas fosse comprometida pela imperícia ou pela arbitrariedade do poder. Nesse espírito é que se enumeraram os direitos individuais como, por exemplo, a propriedade

22 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 41.

23 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 103-105.

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e a segurança, que proporcionaria as liberdades civis − de ir e vir e de consciência e de opinião.25

No concernente ao tema direitos individuais, é importante assinalar também o posicionamento de Mill, para quem a intervenção da sociedade na vida dos indivíduos teria uma finalidade utilitária. A ingerência estatal somente se justificaria pela promoção da maior felicidade ao maior número possível de pessoas. Dessa forma, asseverava que o único objetivo que justificaria o exercício do poder, de modo legítimo, sobre qualquer membro da sociedade contra sua vontade, seria o de evitar danos a outros indivíduos. 26

Fica evidenciada na doutrina liberal a subordinação da vontade política à independência individual e o papel das instituições políticas nesse Estado gendarme. Essas

instituições políticas baseavam-se em um sistema de governo caracterizado por mandato representativo, bicameralismo, separação dos poderes. os quais se destinavam a minimizar a atuação do poder público, que representaria um a posteriori da convivência humana,

importando, primeiramente, organizar a liberdade no campo social. Nesse contexto, a sociedade se reduziria à chamada poeira atômica de indivíduos.27

Contudo, a expansão do liberalismo deveu-se não somente aos princípios enunciados pelos revolucionários franceses, mas também à experiência vivida na Inglaterra e nos Estados Unidos, sendo certo que tanto o Bill of Rights, de 1689, quanto o Act of Settlement, de 1701,

consagraram as liberdades individuais. A interpretação inglesa para a liberdade foi crucial para a promoção dessa ideologia, que propunha uma concepção moderada, apta a ser inserida em uma ordem social já estabelecida.28

Na Inglaterra, conquanto a estrutura social mantivesse uma sólida base de classe, a hierarquia dos Estados, típica da sociedade tradicional, deu lugar ao surgimento de agricultores livres e à conversão da nobreza ao capitalismo, fatos que, aliados à realização de um Estado unitário, estabeleceram o modelo no qual o Estado se apoiava em indivíduos independentes, criando uma associação.29

A sociedade francesa, por seu turno, manteve a estrutura hierárquica fechada por longo período e quando a Revolução privou essa organização de sua legitimidade política, a lógica

25 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 31 et seq.

26 MILL, John Stuart. Da liberdade. Tradução de E. Jacy Monteiro. São Paulo: IBRASA, 1963. 27 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 40. 28 BURDEAU, op. cit.

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da situação demandou o uso do Estado para libertar o indivíduo, assegurando a este direitos e mantendo-se o Estado como fonte única de autoridade legítima.30

Já nos Estados Unidos, o liberalismo assumiu feições racionais, pois os imigrantes que chegaram à América encontraram condições inóspitas, tendo de se estabelecer com muita tenacidade, razão pela qual defendiam a liberdade individual e, por conseguinte, a limitação do Estado.31

Verifica-se, pois, que o ponto de convergência entre as diversas interpretações de liberalismo – francesa, inglesa e americana – foi o fato de se considerar a liberdade como faculdade inerente ao ser humano e precedente a toda forma de poder.

Convém mencionar os três princípios complementares à liberdade: autonomia individual, propriedade e segurança. O primeiro refere-se à possibilidade de se fazer tudo aquilo que não prejudique os outros, consoante expresso no artigo 4º da Declaração de 1789.32

Importante observar que o século XVIII não desvinculou a ideia de liberdade da submissão à regra moral, e, desse modo, a vedação às ações prejudiciais ao meio social não significava restrições à liberdade impostas pelo legislador. Tão somente enunciava regras que a razão concebia como inseparáveis da autonomia individual. A finalidade do Estado era estabelecer liberdade ao indivíduo sem excluir suas responsabilidades em relação ao meio social. Entretanto, o antagonismo ordem social e liberdade surgiu no século XIX, quando esta passou a servir como justificativa para interesses egoístas. 33

Na análise da relação entre a autonomia individual e o Estado, percebe-se que o antagonismo entre o indivíduo e o Estado não é da essência do liberalismo, mas constitui desvio deste, observado quando uma parcela da sociedade – por receio de ver o Estado colocar-se a serviço dos desfavorecidos, equalizando o contexto social – assumiu uma atitude defensiva que a levava a insurgir-se contra todas as intervenções que pudessem conduzir o poder público a corrigir iniquidades advindas do excesso de liberdade.

Pode-se afirmar que desde a sua origem, o liberalismo buscava assegurar a autonomia individual responsável, protegendo os direitos individuais em face dos entraves ao seu exercício, derivados do uso abusivo da autoridade política.

30 MERQUIOR, José Guilherme. O liberalismo: antigo e moderno. Tradução de Henrique de Araújo Mesquita. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1991. p. 33.

31 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 35-36.

32 DECLARAÇÃO dos direitos do homem e do cidadão de 1789. Disponível em:

<http://www.faimi.edu.br/v8/RevistaJuridica/Edicao7/DECLARA%C3%87%C3%83O%201789.pdf>. Acesso em 7 jul. 2011.

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Dessa maneira, foram concebidos mecanismos para conter arbitrariedades tanto no plano coletivo quanto no individual. No primeiro, a prevenção era garantida por um regime assente em três princípios: a existência de uma constituição, a separação dos poderes e o reinado da lei; já no plano individual, o habeas corpus assumiu o papel de proteger a

autonomia do indivíduo.

1.4 A CONSTITUIÇÃO NO ESTADO LIBERAL

Para o liberalismo, a Constituição era o instrumento da liberdade, uma vez que excluía a possibilidade de arbítrio, por estabelecer competências antecipadamente fixadas e com objetivos definidos.

Assevera Burdeau que, historicamente, os povos ou seus representantes lutaram primeiro pela obtenção de uma lei suprema e, depois, pelo respeito a esse instrumento para que fosse realizada “uma partilha das prerrogativas governamentais entre o rei e a nação” e também para que se proporcionasse segurança aos direitos individuais.34

Sobre o ideal da segurança do direito no Estado liberal, é importante assinalar também que ele se colmatou com a intenção de submeter toda a existência do Estado a um controle jurisdicional. Dessa forma, entre as funções do Estado, se concretizou a jurisdição política, à qual incumbia decidir, com os modos e as formas de um litígio, todas as controvérsias que surgissem no processo de formação da vontade política, que tivessem por sujeito os órgãos do Estado. De acordo com a compreensão genérica de jurisdição política, o controle da constitucionalidade das leis representaria a máxima integração do Estado de Direito.35

O controle jurisdicional da constitucionalidade das leis pressupunha a existência de uma Constituição, a qual surgiu, influenciada pelo Iluminismo, como defensora da livre concorrência e assumiu o status de lei suprema, estabelecendo sua preponderância sobre as

demais produções normativas.

As Constituições passaram a limitar as funções e o poder do Estado ao mínimo possível, a fim de não haver ingerência indevida na harmonia natural da sociedade, aspecto que sobressai como reação às características inerentes ao absolutismo do Ancien Régime,

34 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 53.

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sistema em que o soberano concentrava o exercício do poder, impossibilitando imputar-lhe responsabilidade, porquanto a legislação, a execução das leis e a jurisdição dependiam de sua vontade.

Referidos ideais foram determinantes para o surgimento do constitucionalismo no século XVIII, movimento político-jurídico que ressaltava as virtudes de uma nova ordem caracterizada por governos moderados, limitados pela vontade democrática formalizada por leis decorrentes da manifestação da sociedade.

1.5 A SEPARAÇÃO DOS PODERES

A Declaração de 1789 dispõe, no seu artigo 16, que “toda a sociedade onde a separação dos poderes não esteja determinada não tem Constituição”, revelando que a separação dos poderes constituía um dos fundamentos do liberalismo político.36

Afirma também Burdeau que, no século XVIII, a Constituição era tida como o fundamento da limitação do poder político, ao passo que a separação dos poderes era considerada o meio para consegui-la. 37

Na doutrina da separação dos poderes, subjaz a ideia de proteção dos direitos e liberdades do indivíduo, pois a concentração de forças mostra-se opressora, já que a tomada de decisões assume feições particulares.

Antes de Montesquieu, Aristóteles já mencionava três poderes: o poder deliberante, que decidia sobre todos os negócios do Estado; o poder executivo, exercido pelos magistrados com fundamento nas decisões tomadas pelo poder deliberante; e o poder de fazer justiça, concernente à jurisdição. Ressalte-se, entretanto, que, na concepção desse pensador grego, tais poderes não dispunham de independência, constituindo atividades do governo.

Também Locke propôs a divisão das funções estatais em poder federativo, competente para o trato das questões exteriores; poder legislativo, editor de leis; e poder executivo, executor da ordem jurídica no plano interno, havendo preponderância do legislativo.38

36 DECLARAÇÃO dos direitos do homem e do cidadão de 1789. Disponível em:

<http://www.faimi.edu.br/v8/RevistaJuridica/Edicao7/DECLARA%C3%87%C3%83O%201789.pdf>. Acesso em:7 jul. 2011.

37 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 55.

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Conforme asseverado por Gomes, os escritos de John Locke e de Montesquieu constituem as bases teóricas mais sólidas da Arte de Governar, e de suas obras foram extraídas as primeiras constituições escritas bem como o princípio da separação dos poderes, o qual representou o ponto central desses trabalhos, que objetivavam evitar o arbítrio.39

Ressalte-se também que essas ideias atravessaram o Atlântico no século XVIII e constituíram o substrato teórico-filosófico decisivo no processo de institucionalização da primeira nação a adotar uma constituição escrita – os Estados Unidos –, na qual se proclamava como um dos elementos essenciais do sistema o princípio da separação dos poderes. Os Estados Unidos seriam, portanto, o protótipo do sistema presidencialista, com as três funções estatais rigidamente distribuídas entre “departamentos” estanques e independentes; sistema esse que se difundiu pelo mundo.40

A divisão dos poderes, por representar técnica acauteladora dos direitos do indivíduo perante o organismo estatal, não se restringia a determinada forma de governo, servindo tanto a um Estado democrático quanto a uma monarquia constitucional, caracterizada como técnica do liberalismo, o qual procurou instituir uma divisão para a autoridade e, assim, obter uma limitação para ela.

Deve-se assinalar, portanto, que, segundo o liberalismo, o objetivo, da separação dos poderes era multiplicar o número das autoridades públicas, para que o poder de cada uma fosse monitorado pelo poder das demais e, assim, nenhuma pudesse atingir o poder absoluto – freios e contrapesos ou checks and balances. E essa multiplicação do número de autoridades

ensejaria uma partilha de atribuições.

Sobre a necessidade de freios entre os Poderes, assim exemplifica Montesquieu: “se o Poder Executivo não tiver direito de frear as iniciativas do corpo legislativo, este será despótico. Porque, podendo atribuir-se todo poder imaginável, aniquilará os demais poderes”.41

Torna-se relevante observar que Locke foi menos radical que Montesquieu, e a separação de poderes, de acordo com o primeiro, teve feição mais utópica, na qual o poder se limitaria pela anuência, pelo direito natural, pela virtude dos governantes. Já para Montesquieu, o pessimismo marcava a doutrina liberal e, por isso, todo o poder tendia a se

39 GOMES, Joaquim B. Barbosa. Agências reguladoras: a metamorfose do Estado e da Democracia. In: BINENBOJM, Gustavo (Org.). Agências Reguladoras e Democracia. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006. p. 41-43.

40 Ibid.

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corromper, bem como todos os que o possuíssem estariam propensos a fazer uso inadequado dele.42

Cumpre registrar que Montesquieu ressaltava a divisão dos Poderes e não a harmonia entre eles. A repartição era entendida no sentido de que os Poderes possuíam funções próprias, e cada Poder concorria,dentro de sua esfera, para um objetivo comum. Ao atuarem juntos, cada um intransigente nas suas funções, resultaria, politicamente e não por expressa disciplina legal, a harmonia entre eles. Assim se compreendeu a razão de não atuarem os Poderes de modo isolado, em áreas estanques, mas concorrentemente, embora independentes na mesma realidade política.43

Entretanto, Burdeau afirma que a separação dos Poderes não era condizente com as exigências da realidade e que “a direção dos negócios públicos não pode ser partida às fatias de modo que cada órgão do Estado apenas assuma uma parte dela, uma vez que se tornaria inevitavelmente impossível o exercício da função política”. Porém, sublinha que a sua complexa implementação seria justamente o objetivo dos liberais, pois a paralisia do poder era bem vista, como forma de salvaguardar as liberdades dos indivíduos contra os governantes. Afirma Burdeau, ainda, que o princípio em questão mostrou-se consentâneo com o reduzido papel que o liberalismo atribuiu ao Estado; contudo, observava que as liberdades que essas precauções protegiam eram as que poderiam ser exercidas pelos beneficiários da ordem estabelecida, o que levou a separação dos Poderes a se tornar o princípio de organização da democracia burguesa.44

1.6 O REINADO DA LEI

No que concerne ao reinado da lei, cumpre aduzir que ela foi considerada pelos liberais franceses como a expressão da razão, a fonte da justiça e o instrumento da felicidade comum.

De acordo com Burdeau, razão e vontade do povo constituíam para a lei uma fonte única, visto que, sob a designação de vontade geral, as exigências populares exprimiam os imperativos da razão. Essa coincidência seria garantida pelo órgão encarregado de enunciar a

42 BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 9.ed. São Paulo: Malheiros, 2009. p. 47.

43 MONTESQUIEU, Charles de Secondat, Baron de. O espírito das leis: as formas de governo, a federação, a divisão dos poderes. Tradução e notas de Pedro Vieira Mota. 9.ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 28.

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lei, uma vez autorizado pela nação para estabelecer as suas regras dentro da sensatez, concepção advinda do interesse do século XVII, que estava direcionado às ciências naturais, o que ensejou a busca de princípios equivalentes quanto à precisão e à imutabilidade também no plano moral.45

Pelas razões apontadas, a lei passa a ser vista pelo liberalismo como proteção infalível contra a arbitrariedade do poder e, como tal, deveria ser utilizada com prudência e para finalidades precisas. Para conservar suas virtudes, pensou-se em seu caráter abstrato como condição de sua perenidade. Outrossim, a generalidade e a impessoalidade também comporiam as características garantidoras da segurança para os cidadãos.

Entretanto, a história se encarregaria de demonstrar que essa crença apenas legitimou a autoridade da elite burguesa, que se considerava como a única suficientemente esclarecida para discernir aquilo que a razão exigia, consoante será visto no tópico relativo ao declínio do liberalismo.

Assim, após análise dos mecanismos concebidos para obstar arbitrariedades do poder no plano coletivo, examinar-se-á o habeas corpus, instrumento de proteção da autonomia no

plano individual.

1.7 O HABEAS CORPUS

Para a maior parte da doutrina, o habeas corpus teve origem na Magna Carta Inglesa,

de 1215, e reapareceu posteriormente no Bill of Rights e no Habeas Corpus Act, de 167946,

quando assumiu o caráter de mecanismo destinado a conferir mais proteção à segurança individual, pois a lei era vista como uma barreira com força eminentemente doutrinal.

O habeas corpus representava garantia contra perseguições e detenções abusivas, visto

que estabelecia que, quando um cidadão fosse detido, deveria ser notificado da acusação que lhe era imputada. Outrossim, à exceção dos crimes graves, qualquer pessoa poderia obter a liberdade provisória mediante prestação de uma garantia. O habeas corpus, além disso,

assegurava que o acusado seria conduzido a um tribunal que, após apuração da veracidade dos

45 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 60.

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fatos, valoraria a viabilidade do processo em razão do conjunto probatório até então carreado.47

É importante destacar que a convicção de garantia à segurança dos cidadãos inspirou os autores da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que dedicaram três artigos ao tema:

Art. 7. Ninguém pode ser acusado, preso ou detido senão nos casos determinados pela Lei e de acordo com as formas por esta prescritas. Os que solicitam, expedem, executam ou mandam executar ordens arbitrárias devem ser castigados; mas qualquer cidadão convocado ou detido em virtude da Lei deve obedecer imediatamente, senão torna-se culpado de resistência;

Art. 8. A Lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias, e ninguém pode ser punido senão em virtude de uma lei estabelecida e promulgada antes do delito e legalmente aplicada;

Art. 9. Todo o acusado se presume inocente até ser declarado culpado e, se se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor não necessário à guarda da sua pessoa, deverá ser severamente reprimido pela Lei.48

Acrescente-se que a Declaração de 1793 dedicou oito artigos à segurança, estabelecendo a responsabilidade dos executantes, a presunção de inocência do acusado e a não retroatividade das leis, ressaltando que o ambiente favorável mostrava-se imprescindível para a efetivação de referidas garantias. 49

1.8 O LIBERALISMO POLÍTICO E O LIBERALISMO ECONÔMICO

A liberdade intelectual que marcou o início dos tempos modernos não se restringiu ao domínio do pensamento, mas expandiu-se também para o mundo real, no qual a economia tinha lugar imprescindível. No campo econômico, a liberdade revestia-se de um significado concreto, uma vez que se revelava no comércio, nas trocas e no trabalho; bem como na produção, na apropriação, no uso e no modo de transmissão de bens, estando a propriedade no centro desse universo. 50

Acerca da distinção das searas política e econômica, declara Souza que a ideia de que a economia funcionaria por si, obedecendo a uma ordem natural, automática, e rejeitando

47 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 63-64.

48 DECLARAÇÃO dos direitos do homem e do cidadão de 1789. Disponível em:

<http://www.faimi.edu.br/v8/RevistaJuridica/Edicao7/DECLARA%C3%87%C3%83O%201789.pdf>. Acesso em: 7 jul. 2011.

49 DECLARAÇÃO dos direitos do homem e do cidadão. Disponível

em:<http:www.direitoshumanos.usp.br/índex.php/Declaração-Universal-dos-Direitos-Humanos/declaração-universal-dos-direitos-humanos.htm> Acesso em: 9 jul.2011.

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qualquer intervenção externa justifica a concepção liberal de buscar estabelecer rigorosa distinção entre as esferas econômica e política. Esta se referiria ao Estado, e caberia ao cidadão o poder político. Já a esfera econômica estaria afeta à vida privada dos indivíduos, na condição de produtores e consumidores. Esse seria, então, o motivo pelo qual o Estado capitalista do século XIX teria se limitado a intervir apenas quando necessário à defesa da ordem social.51

Assim, se liberalismo econômico e político podiam ser intelectualmente separados, historicamente se mostraram indissociáveis, uma vez que o segundo se impôs para garantir o primeiro e que o controle do poder pelos governados, defendido pela vertente política do liberalismo, foi estabelecido em benefício da propriedade que, de certa forma, teria comprometido a base espiritual do liberalismo ao ser colocada a serviço dos interesses econômicos.52

Vale destacar que a propriedade constituiu um dos fundamentos legais mais sólidos da doutrina liberal e foi incluída entre os direitos do homem, constantes das Declarações dos Direitos de 1789 e de 1793, no mesmo patamar da liberdade. Isso ocorreu porque a propriedade era considerada pelos liberais como critério de dedicação aos interesses coletivos bem como de compromisso com estes. Acreditava-se que os proprietários defenderiam o Estado, e este se encarregaria de preservar os interesses privados.

A propriedade também representou para os liberais uma justificativa moral, uma vez que, desvencilhada da influência religiosa, a ideia de que a salvação deveria ser o princípio da atividade humana foi abandonada e adotou-se a busca da felicidade terrena como razão para o desenvolvimento intelectual e o progresso econômico.

Dizia-se que a propriedade geraria o progresso em função da acumulação do capital, que permitiria os investimentos. Com efeito, Adam Smith – para quem a maior conquista do liberalismo foi demonstrar a contribuição da mão invisível do mercado em converter os interesses pessoais em um bem coletivo – afirmava que o produto da terra ou da empresa industrial só poderia se desenvolver em valor se aumentasse ou o número de trabalhadores ou sua capacidade produtiva, o que implicaria, necessariamente, capital complementar, conforme se infere do seguinte trecho da obra ‘A Riqueza das Nações’:

Da mesma forma que o acúmulo de capital é previamente necessário para a realização desse grande aperfeiçoamento nas forças produtivas do trabalho, esse acúmulo também, de modo natural, causa esse aperfeiçoamento. A pessoa que emprega seu capital na manutenção do trabalho necessariamente deseja empregá-lo

51 SOUZA, Neomésio José de. Intervencionismo e Direito: uma abordagem das repercussões. Rio de Janeiro: AIDE, 1984, p. 33.

(31)

de maneira a produzir a maior quantidade de trabalho possível. Ela se esforça, portanto, para fazer a mais coerente distribuição de emprego entre seus trabalhadores, assim como procura também lhes oferecer as melhores máquinas que possam desenvolver ou conseguir adquirir. Suas habilidades nesses dois aspectos são geralmente proporcionais à extensão de seu capital, ou ao número de pessoas que é capaz de empregar. A quantidade de indústria, portanto, não somente aumenta em todos os países com o aumento do capital que é empregado, mas, em conseqüência desse aumento, a mesma quantidade de indústria produz uma quantidade muito maior de trabalho.53

Por essa razão, a propriedade que passa a ser exaltada é a propriedade que faz empreendimentos e, nessa condição de criadora do progresso, deveria estar protegida do controle excessivo do Estado.

Ressalte-se que, da leitura da obra de Smith, se depreende que o pensamento econômico da época defendia também o comércio e a manufatura como modelos de atividades meritórias, estabelecendo um novo paradigma ético.

O autor de ‘A Riqueza das Nações’ apresentou uma nova teoria para o crescimento econômico, na qual buscou demonstrar que as atividades dessa esfera estariam aptas a conduzir a sociedade ao progresso, sem conflitos, e, portanto, seriam menos injustas que a predecessora agrária, pois todos os indivíduos teriam iguais oportunidades de meios de subsistência devido à difusão da prosperidade, significando, portanto, uma percepção de que cada pessoa que procurasse satisfazer seus interesses contribuiria para a riqueza social, ainda que não tivesse essa intenção.54

Nessa percepção, ao se defender a ideia de que a força econômica representava melhor padrão de vida, liberdade e segurança para a coletividade, incluídos os trabalhadores, o progresso passou a ser aclamado pelos liberais.

Deve-se observar também que, na busca da prosperidade e da ordem, a poupança surgiu como um dever – forma de contribuição para subsidiar o capitalismo –, que representava uma obrigação moral e um cálculo econômico55.

Convém acrescentar que a doutrina liberal trouxe a crença de que a privação no presente representaria o lucro futuro – impulsionador da sociedade, uma vez que as economias seriam reinvestidas nas atividades produtivas – ou permitiria que outras pessoas empregassem esses valores economizados em troca de juros.

Nesse contexto econômico, é preciso assinalar que a neutralidade e a abstenção do Estado diante da liberdade social ficaram asseguradas pela Constituição, que trazia garantias

53 SMITH, Adam. A riqueza das nações: uma investigação sobre a natureza e as causas da riqueza das nações. Tradução de Getulio Schanoski Jr. São Paulo: Madras, 2009. p. 213.

54 Ibid., livro 3, cap. 4.

(32)

para o exercício das atividades. De início, pode-se mencionar o reconhecimento do direito de propriedade, que fazia de seu titular dono absoluto de seu bem, com a excepcional limitação de expropriação embasada na utilidade pública. Ainda, havia o asseguramento da liberdade de trabalho, de contrato, de indústria, de comércio e de trânsito. A faculdade tributária do Estado também observava limitações, tais como a igualdade e a certeza das cargas tributárias e a direta proporcionalidade que deveria existir entre o montante do tributo e a renda do capital tributável. Com essas garantias, a burguesia logrou sua mais cara aspiração a um ordenamento constitucional que colocava o menor número possível de empecilhos, éticos e políticos, à atividade econômica, criando a seu favor um infranqueável reduto jurídico, conhecido como liberdade econômica.56

1.9 A ORIGEM DA EXPRESSÃO LAISSEZ-FAIRE

Embora a poupança tenha passado a ser vista como uma justificativa para o otimismo liberal, este exigia uma base mais sólida, que se referia ao efeito da ordem natural e que veio substituir a fé nas leis providenciais e na ordem da qual o enfraquecimento das crenças religiosas retirara o suporte. Esse sustentáculo seria a razão concedida ao cidadão para que se comportasse de acordo com leis cuja reflexão lhe permitia conhecer.

Entre os ingleses, o otimismo revelou-se ainda mais completo, porquanto, para eles, os indivíduos não tinham que procurar ou estabelecer as instituições capazes de assegurar o domínio da lei natural, que se realizaria espontaneamente. Nesse contexto, a máxima laisser-faire, laisser-passer, generalizou o ensinamento teórico e atendeu às exigências dos mestres

da vida econômica, a exemplo de Adam Smith, que asseveravam que os indivíduos deveriam ter liberdade para seguir seus próprios interesses.57

Destarte, com Adam Smith, e principalmente após ele, a economia política tornou-se uma disciplina científica autônoma, e os conceitos de leis providenciais, de harmonia preestabelecida, de finalidade transcendente foram substituídos pela crença no progresso, na transformação de um dom gratuito em uma conquista.

56 SAMPAY, Arturo Enrique. La crisis del estado de derecho liberal-burgués. Buenos Aires: Losada, 1942. p. 69-70.

(33)

O progresso ao qual o liberalismo se encontrava relacionado não se limitava apenas às aplicações científicas, que, segundo Burdeau, seria seu aspecto exterior, mas incluía, também, suas componentes espirituais, subordinando-se à conscientização pelo indivíduo das responsabilidades que ele, o progresso, implicava, ensejadora da ruptura entre um liberalismo materialista – Estado liberal – e um liberalismo idealista.58 Porém, foi no otimismo baseado nos avanços científicos conjugados com o egoísmo do empresariado capitalista que o Estado liberal se fez garante.

1.10 A ATUAÇÃO DO PODER JUDICIÁRIO SOB A ÉGIDE DO LIBERALISMO

A relevância de se analisar a atuação do Poder Judiciário durante o Estado liberal encontra-se no fato de se reconhecer a influência da teoria liberal no modo de decisão daquela época e, consoante o magistério de Barroso, também no fato de se compreender as origens do ativismo judicial, que remontam a esse período, cuja principal fonte foi a jurisprudência norte-americana.59

De início, torna-se relevante tecer considerações acerca da diferenciação entre a judicialização e o ativismo judicial. A ideia de judicialização encontra-se relacionada à discussão de temas de largo alcance político e moral sob a forma de ações judiciais. Já o ativismo judicial refere-se à escolha de um modo específico e proativo de se interpretar o texto constitucional.

É importante assinalar que, durante o Estado liberal, se esperava que o magistrado se mantivesse adstrito, ao máximo, à letra da lei. O julgador era conhecido como “a boca da lei” (bouche de la loi), ou, consoante o magistério de Côrtes, ao juiz júpiter não era permitido

interpretar a legislação ou tecer considerações acerca de sua repercussão social.60

O leading case Lochner versus New York, de 1905, denominou um período – Era

Lochner – marcado pela invalidação de atos normativos considerados como intervenções desarrazoadas, desnecessárias e arbitrárias no direito de propriedade e na liberdade contratual.

58 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p. 98.

59 BARROSO, Luís Roberto. O Controle de Constitucionalidade no Direito Brasileiro: exposição sistemática da doutrina e análise crítica da jurisprudência. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 335.

(34)

De acordo com Moro o Poder Judiciário encontrava-se impregnado pelo liberalismo econômico. 61

No mesmo sentido é o magistério de Godoy quando afirma que a Era Lochner

“cristalizou doutrinas liberais do laissez-faire”.62

Deve-se assinalar que a Era Lochner foi inicialmente marcada por um quadro de

aumento das atividades de comércio e indústria nos Estados Unidos, e a liberdade de mercado parecia ser a fórmula ideal e exclusiva para o progresso do país. Até mesmo os membros da Suprema Corte professavam uma fé indiscriminada no poder do mercado de se autorregulamentar. Assim, durante esse período, predominou, na Suprema Corte Americana, uma doutrina liberal totalmente avessa à intervenção estatal nos contratos celebrados entre particulares – inclusive nos contratos que dispunham sobre matéria trabalhista – bem como na regulação estatal de preços. Tal concepção sustentava ser obrigação do governo demonstrar que, mediante uma lei regulatória, se estaria buscando um objetivo público, bem como que haveria uma relação de meios e fins entre a lei e esse objetivo.63

Então, no caso Lochner versus New York , discutiu-se a constitucionalidade de uma lei

editada na cidade de Nova Iorque, que fixava a jornada máxima de trabalho para os padeiros, cuja controvérsia teve início quando a Legislatura de Nova Iorque promulgou, em 1897, à unanimidade, o Ato Bakeshop, que regulamentava condições sanitárias nas padarias e também

proibia os trabalhadores de exercerem a atividade por mais de dez horas diárias ou mais de sessenta semanais.64

Joseph Lochner, dono da Lochner’s Home Bakery, em Utica, foi indiciado sob

acusação de violar o ato em questão, por exigir que um empregado trabalhasse mais de sessenta horas semanais. Foi multado e em uma segunda infração, decidiu recorrer. Todavia, a condenação foi confirmada pela Corte de Apelação (Appellate Division of the New York Supreme Court) por maioria. Em segundo recurso, no qual sucumbiu também por maioria,

decidiu levar o caso à Suprema Corte.65

61 MORO, Sergio Fernando. Afastamento da presunção de constitucionalidade da lei. Jus Navigandi, Teresina, ano 5, n. 40, p.1, mar. 2000. Disponível em: <htpp://jus.uol.com.br/revista/texto/117>. Acesso em: 23 jun. 2011. 62GODOY, Arnaldo Sampaio de Moraes. Direito comparado. Introdução ao direito constitucional

norte-americano. Jus Navigandi, Teresina, ano 12, n. 1515, 25 ago. 2007. Disponível em: <http://jus.uol.com.br/revista/texto/10282>. Acesso em: 17 jul. 2011.

63 APPIO, Eduardo; prefácio Luiz Guilherme Marinoni. Direito das Minorias. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 147.

64 MCBRIDE, Alex. Lochner v. New York (1905). The Supreme Court. Dec. 2006. Disponível em: <http:// www.pbs.org/wnet/supremecourt/capitalism/landmar lochner.html> Acesso em: 17 jul. 2011.

Referências

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