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CAPÍTULO 1 A DOUTRINA LIBERAL

1.11 O DECLÍNIO DO LIBERALISMO

O liberalismo representou um sistema político-social, constituiu um momento da história denominado correntemente de Estado liberal, e a sua vivência foi também o motivo de seu desgaste. É importante observar que a liberdade passou a ser utilizada em proveito dos mais fortes, a iniciativa individual foi direcionada para a criação de monopólios e a propriedade foi utilizada como instrumento de opressão.75

Com efeito, embora o sistema tenha abarcado a defesa de diversas liberdades – política, econômica e de pensamento –, foi a econômica que prevaleceu, e as transformações ocasionadas pela industrialização favoreceram a classe burguesa, excluindo os trabalhadores, que ficaram desassistidos e submetidos às condições de trabalho oferecidas pelos grandes industriais. Em consequência, verificaram-se muitos abusos no aspecto da proteção do trabalho, em especial na contratação de mulheres e de menores de idade.76

Ressalte-se que o movimento foi direcionado para a fixação de uma ordem em prol das forças que assumiram sua direção, e foi no domínio do pensamento econômico que o liberalismo começou a demonstrar seu declínio. Isso porque a conservação das situações já estabelecidas preponderou e conceitos como autonomia e direitos receberam influência do êxito material, o que ocasionou a restrição da liberdade. No entanto, a procura coletiva pelo

73 APPIO, Eduardo; prefácio Luiz Guilherme Marinoni. Direito das Minorias. São Paulo: Revista dos

Tribunais, 2008. p. 150.

74 Ibid.

75 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p.

111.

76 SOUZA, Neomésio José de. Intervencionismo e Direito: uma abordagem das repercussões. Rio de Janeiro:

lucro e o mito da possibilidade de ascensão social mantiveram a situação que já estava instituída.

Por seu turno, o direito passou a servir à manutenção do status quo quando não mais regulava as relações trabalhistas e se recusava a utilizar os tributos para promover a distribuição mais equânime das riquezas produzidas, quadro denominado de ‘imobilismo jurídico’.77

Burdeau elenca também como causa do declínio do Estado liberal a distorção do papel do contrato, que passou tão somente a confirmar os privilégios daqueles que detinham a liberdade de exprimir sua vontade e burlavam os controles sociais, o que ele denomina de civilização do contrato. De fato, ressalta que o Estado, sobretudo na Europa, colocava em relevo a observância das formas em detrimento do conteúdo dos acordos, transformando-os em meros termos de adesão, conforme se extrai da seguinte passagem:

[...] Uma civilização do contrato assegura o reinado da força, na medida em que a igualdade que presume entre as partes é inexistente de facto. Por detrás da autonomia da vontade está o contrato de adesão, está o forçar a mão, isto é, a hipocrisia duma regra que não ousa confessar-se unilateral. Aquele que o impõe arranja boa consciência com pouca despesa, invocando a liberdade do seu parceiro [...].78

Outra causa do declínio do Estado liberal foi a ligação espúria da política com os negócios em busca de poder. Exemplificando a sujeição do poder aos interesses privados, chamado de lobby, mencionam-se as companhias concessionárias de estradas de ferro. As concessionárias não se limitavam a construir a via, eram também proprietárias ou credoras hipotecárias das terras; determinavam os preços das colheitas, aceitando ou não transportá-las; compravam os produtos diretamente e os armazenavam nos seus silos; concediam ou recusavam crédito nos bancos seus filiados. Em resumo, havia um monopólio. Contudo, há de se observar que os Estados negligenciaram a elaboração dos contratos e se esqueceram de neles inserir cláusulas protetoras do interesse público, levando as companhias concessionárias a destruir a liberdade de clientes obrigatórios. 79

Para conter essa ameaça, os legisladores pretenderam impor às companhias certas obrigações e um controle que o interesse público justificava. No entanto, as companhias se opuseram, invocando a liberdade de empresa e, como pretendiam que a liberdade que lhes

77 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p.

124.

78 Ibid., p. 126. 79 Ibid., p. 129-130.

servia não fosse diminuída pela defesa das liberdades que lhes prejudicavam, pressionaram as assembleias para obter medidas favoráveis.80

Outro fator do insucesso do Estado liberal foi o abandono da ideia inicial do liberalismo acerca da renovação do poder. O Estado transmutou-se em objeto de uma “investidura em regra pelas dinastias burguesas”, uma vez que o domínio econômico tornou- se garantidor do controle da autoridade política, e assumiu o papel de defensor das situações adquiridas, contradizendo o pensamento original.81

Nesse contexto, é importante observar o conflito entre livre-troca e protecionismo, que, no século XIX, marcou um dos eixos da política econômica dos Estados. Com efeito, os ingleses defendiam a livre-troca, porquanto o avanço técnico do país garantia aos industriais a vantagem na luta concorrencial. Eram os interesses depondo a favor da liberdade. De outro lado, na França, a inferioridade do equipamento econômico e o atraso das técnicas agrícolas levaram os manufatureiros e os meios rurais a verem a liberdade do comércio internacional como ameaça de ruína para a produção interna e a pressionarem o governo buscando tarifas protetoras sob o argumento de que a liberdade nacional conferiria aos franceses direitos sobre o mercado consumidor do seu país.82

Dessa maneira, o liberalismo, originariamente embasado nas virtudes da liberdade como elemento de evolução favorável a todos, passou a ser cada vez mais conservador, garantindo unicamente os interesses dos detentores do poder.83

Logo, a conservação da ordem existente ganhou, na legalidade, seu grande suporte, e as normas se transformaram em ficção, já que o Direito se voltou para os interesses dos comerciantes e detentores dos meios de produção. Com isso, a lei mostrou-se ineficiente para oferecer uma contribuição corretiva às graves desigualdades sociais que se estabeleceram, perdendo sua virtude moral de libertar e dedicando-se mais a proibir do que a inovar.84

Assim, o formalismo passou a resguardar a liberdade da burguesia, a qual era indispensável para conservar o domínio do poder político, que, só por generalização nominal, se estendia às demais classes, as quais, pela ausência de condições materiais que permitissem transpor as restrições do sufrágio, permaneciam subjugadas.85

80 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979. p.

129-130.

81 Ibid., p. 130 e 132. 82 Ibid.

83 Ibid.

84 SOUZA, Neomésio José de. Intervencionismo e Direito: uma abordagem das repercussões. Rio de Janeiro:

AIDE, 1984, p. 35.

Além disso, o comportamento ambivalente que o Estado liberal assumiu pode também ser apontado para o seu descrédito. Com certeza, a legislação social para a proteção da classe operária tinha finalidade meramente paliativa, cuja finalidade era conter conflitos sociais e, por conseguinte, manter a ordem então estabelecida.86 Alie-se a isso a circunstância de que o liberalismo passou a sofrer críticas por parte dos socialistas, conforme será analisado no capítulo seguinte.

86 BURDEAU, George. O Liberalismo. Tradução de J. Ferreira. Sintra: Publicações Europa-América, 1979.