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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO PUC-SP. Rafael Gonzaga de Macedo. Invenções: arte africana DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL

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Rafael Gonzaga de Macedo

Invenções: arte africana

DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL

SÃO PAULO 2019

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Rafael Gonzaga de Macedo

Invenções: arte africana

DOUTORADO EM HISTÓRIA SOCIAL

Tese apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,

como exigência parcial para a obtenção do título de Doutor em História Social sob orientação da Prof. Dra. Maria Antonieta Antonacci

SÃO PAULO 2019

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BANCA EXAMINADORA __________________________________________ __________________________________________ __________________________________________ __________________________________________ __________________________________________

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Dedico esta tese a dois amigos e irmãos que me proveram paz e inspiração nesses anos de estudos: a Nilton Júlio de Faria, simplesmente Júlio, e a Raimundo Donato do Prado Ribeiro (Nino). A eles devo todos os meus agradecimentos e exemplos para minha vida.

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O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

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É muito difícil escrever agradecimentos para algo tão complexo e longo como um doutorado, eu poderia listar nomes aqui, mas isso não seria o bastante. Além do mais, ao longo desses quatro anos foram tantas pessoas que passaram em minha vida, que muito provavelmente eu deixaria nomes de fora, cometeria injustiças.

Escrevo, portanto, esse agradecimento com a consciência de que se trata de uma demanda formal para o doutorado, mas que não dá conta dos meus sentimentos por todos aqueles que atravessaram a minha vida durante esses anos e, de alguma forma, participaram do processo de escritura e formulação das ideias.

Assim, sendo, agradeço:

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ) e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) por garantir o apoio necessário e fundamental durante o meu doutorado na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

À estimada professora Dra. Maria Antonieta Antonacci, mesmo sabendo que qualquer agradecimento sempre será injusto diante da sua dedicação e orientação generosas. Sem dúvida, uma pessoa que fez diferença na minha formação e na minha vida!

Ao Prof. Dr. Norval Baitello Jr, Profª. Dra. Bebel Nepomuceno que contribuíram com leituras atenciosas, indicações bibliográficas e por compartilharem reflexões nos diferentes processos deste trabalho.

Aos meus queridos amigos Raimundo Donato do Prado Ribeiro e Nilton Júlio de Faria pelo companheirismo e, também, pela interlocução com minhas ideias e devaneios. Eu amo vocês.

À minha estimada e eterna professora Dra. Valéria Alves Esteves Lima, sempre disposta a contribuir e participar da minha formação.

À minha querida Lina Agifu, companheira de todas as horas e leitora e ouvinte generosa dos meus textos e das minhas ideias.

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incentivo aos meus estudos.

Aos meus colegas de profissão na UNIMEP e na CURUMIM, amizades importantes nesse momento tão difícil pelo qual passamos no Brasil.

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MACEDO, Rafael Gonzaga de. Invenções: arte africana. São Paulo, 2019, 248. Tese de Doutorado – Programa de Pós-Graduação em História Social, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Aquilo que chamamos de arte africana vem encantando multidões eurocentradas desde que artistas e teóricos modernistas, como Picasso e Carl Einstein, a elegeram como um modelo para suas aventuras e experimentos estéticos. No entanto, o deslocamento desses artefatos, como máscaras e estatuetas de orixás, que em seu contexto de origem são cultuadas em templos escuros ou em festas religiosas, para salas bem iluminadas dos museus e galerias de arte não foi um processo natural ou sem contradições. Constituindo uma cartografia das representações sobre as Áfricas e sobre os negros, essa pesquisa mapeia os contornos, linhas de fuga e imaginário que ainda hoje assombram e assombraram todos aqueles que um dia conviveram com esses objetos. Do sublime romântico de Frobenius, que viu na arte de Ifé os frutos remanescentes de Atlântida; passando pelo olhar formalista de Carl Einstein no anseio pela vitalidade primitiva, a tese desagua nas memórias de infância do escultor baiano e negro Agnaldo Manoel dos Santos, nos anos 40. Nesse processo, acompanharemos a longa travessia marcada por mortes, resistências e reinvenções que deu os contornos para aquilo que hoje chamamos de arte africana.

Palavras-chave: Vanguarda; Carl Einstein; Agnaldo Manoel dos Santos; Leo Frobenius.

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What we call African art has delighted crowds since Eurocentric modernist artists and theorists, such as Picasso and Carl Einstein, chose it as a model for their aesthetic adventures and experiments. However, the displacement of these artifacts, such as masks and statuettes of orixás, which in their original context are worshiped in dark temples or religious festivals, to well-lit rooms of museums and art galleries was not a natural process or without contradictions. It is a cartography of African and black representations, and this mapping outlines, lines of escape and imagery that still haunts and haunted all those who once lived with these objects. From the romantic sublime of Frobenius, who saw in the art of Ife the remaining fruits of Atlantis; passing through the formalist look of Carl Einstein in the yearning for primitive vitality, the thesis flows into the childhood memories of the Bahian and black sculptor Agnaldo Manoel dos Santos in the 1940s. In this process, we will follow the long crossing marked by deaths, resistances and reinventions that gave the outlines for what we now call African art.

Keywords: Avant-garde; Vanguarda; Carl Einstein; Agnaldo Manoel dos Santos; Leo Frobenius.

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INTRODUÇÃO ... 13

CRIADORES DE DEUSES ... 34

DEVORADORES DE DEUSES ... 91

NO CAMINHO RUMO À ATLÂNTIDA ... 128

O PHÁRMAKON DA EUROPA ... 161

CONSIDERAÇÕES FINAIS - TRAVESSIAS ... 192

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Figura 1 – O esquema, linhas de fuga, horizonte e estruturas da casa, uma metáfora para a tese.

Figura 2 - Bernini, c.1647-1652. Escultura em mármore. Igreja de Santa Maria della Vittoria, Roma.

Figura 3 - Duas imagens de cavaleiro senufos.

Figura 4 - Cajado de machado de lâmina dupla (Oxê de Xangô).

Figura 5–O cosmos iorubá - Igbá.

Figura 6 - minha versão de Nu Feminino de Rembrandt.

Figura 7 - bandeja de adivinhação com o motivo do cavaleiro montado (àgéré Ifá).

Figura 8 - guerreiro montado (elésin/jagunjagun).

Figura 9 - Painel de uma porta entalhada por Arowogun. Figura 10 - painel de uma porta entalhada por Oshamuko. Figura 11 - detalhe do painel entalhado por Bandele. Figura 12 - painel de uma porta entalhada por Lamidi. Figura 13 - banco de chefe dos luba.

Figura 14 - Figura de um altar carregando uma tigela.

Figura 15 - Mãe com seu filho carregando uma tigela de oferendas a Xangô. Figura 16 - Olówè de Ìsè. Pilar de varanda.

Figura 17 – Fotografia de uma tempestade em Campinas.

Figura 18 - A equação geométrica para a perspectiva óptica renascentista. Figura 19 -cabeça de uma colher entalhada por um artista chamado

Tompieme.

Figura 20 – um par de ère ibeji.

Figura 21 - Outra figura ìbeji Figura 22 - estatueta de Exu.

Figura 23 - ilustração da metralhadora inglesa MAXIM. Figura 24 - Exemplo de uma câmara escura.

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Figura 26 - o Atlas africanus desenvolvido por Frobenius.

Figura 27 - uma cabeça de bronze de Ifé de autoria desconhecida. Figura 28 - escultura Nok de uma cabeça.

Figura 29 - Édouard Manet. Almoço sobre a relva.

Figura 30 - William-Adolphe Bouguereau. O Nascimento de Vênus Figura 31 - Auguste Belloc. Sem Título.

Figura 32 - Diego Velázquez. Vênus ao espelho.

Figura 33 - KusakabeKimbei. Homem levando uma carta daimeo. Figura 34- Desconhecido. Um feliz ano novo (Mulheres zulus. Figura 35- Desconhecido. Sem título (Borneo).

Figura 36 - Richard Francis Burton. Mulher Motu remando uma canoa.

Figura 37– Desconhecido. Máscara de dança – homem com aranha sobre a

cabeça.

Figura 38 - anúncio do sabão Pears, século XIX.

Figura 39 - pôster promocional para o sabão Koloderma.

Figura 40 – Agnaldo Manoel dos Santos. Maternidade. S/d. Madeira.

Figura 41 – Agnaldo Manoel dos Santos. Cabeça esculpida. S/d. Madeira.

Figura 42 – Agnaldo Manoel dos Santos. Maternidade. S/d. Madeira.

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INTRODUÇÃO

No processo da dissertação do mestrado, cuja pesquisa debruçou-se sobre o olhar do artista teuto-dinamarquês Paul Harro-Harring, no Rio de Janeiro, em 1840 - ocasião em que observou, trocou informações e pintou aquarelas retratando escravizados e suas relações com senhores escravistas –, notei que, em sua maioria, os homens e as mulheres flagrados por seus olhos românticos eram oriundos do grupo etnolinguístico bantu do Centro-Oeste da África. Desde então, meu interesse não apenas pela cultura bantu, mas também pela Cultura Visual1 da “África negra” cresceu de forma contínua.

Esse e outros caminhos que foram surgindo ao longo de todo o processo de pesquisa são bastante instigantes; ainda que possam nos desviar do objetivo em si da investigação proposta, abrem possibilidades futuras.

Em função desse interesse, por coincidência, em 12 de Julho de 2014, o Museu de Arte de São Paulo (MASP) acolheu a exposição chamada “DO CORAÇÃO DA ÁFRICA”2. No texto de apresentação da exposição, no local e no

site do próprio museu, o curador Teixeira Coelho assim definia a importância da exposição:

A cultura africana está na origem de um dos marcos da arte moderna ocidental, aquele proposto pelo Picasso cubista de 1907 que buscou

1 A noção de cultura visual foi amplamente inspirada pela antropologia visual. Ttrabalhos a partir dos anos

60 deixaram de se ater somente ao visível e passaram a pensar a dimensão visual das expressões ligadas ao Outro, isto é, para a dimensão visual associada a modos de ver/olhar específicos de cada cultura. Com isso, há uma tomada de consciência de que era preciso prestar atenção aos múltiplos mecanismos de produção de sentidos entre aquele que observa e aquele que é observado resultando daí a constatação de que a fonte visual produz enunciados culturais. Ver: MENESES, U. T. B. de. “Fontes visuais, cultura visual, História visual. Balanço provisório, propostas cautelares”. Revista Brasileira de História. São Paulo, Volume 23, nº. 45, 2003, p. 16)

2 Inaugurada no dia 11 de julho de 2014, a exposição mostrava 49 obras extraídas da coleção Robilotta,

recentemente doada ao MASP, que expressam as manifestações centrais das tradições culturais e religiosas da “nação Iorubá”. Site de divulgação DO CORAÇÃO DA ÁFRICA,

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suas então escandalosas formas humanas nas máscaras e figuras das esculturas tradicionais da África negra.

Após ler o texto acima na entrada da sessão do MASP para a exposição, veio-me a vontade de compreender não a arte africana em si, mas o momento e a forma em que ela se fez arte aos olhos de artistas como Picasso e uma parte considerável da elite intelectual modernista europeia entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX. Eu não estava interessado em questionar se uma estatueta de gêmeos conhecida como Ibeji, que é tratado como um filho por uma mãe desamparada, é arte ou não, ao menos nesse primeiro momento, meu objetivo primário era questionar a naturalização desse status que eu percebia nas palavras do curador da exposição, pois isso deixou meu espírito de historiador com as orelhas em pé. Partindo de um olhar mais atento perceberemos que existem certos tipos de esculturas africanas que são mais valorizadas que outras, uma vez que alcançaram o horizonte de expectativa daquilo que se espera que uma “arte africana” ou “arte contemporânea africana” deva ser ou parecer ou ser. Assim, logo de cara, é evidente que existe um regime de enunciados que as constituiu como obras – e produtos - de arte para o mundo da arte – Artworld3. Dessa forma, essa pesquisa para doutorado se fez na tentativa de desvelar esse regime que levou algo chamado África a Picasso4.

Para o teórico da vanguarda e da cultura visual, o alemão Peter Burger5,

falando do interior da perspectiva modernista, as teorias estéticas, apesar de muitas vezes aspirarem à validade supra histórica acerca do seu próprio objeto, sempre serão marcadas pela época a que devem o seu surgimento. Portanto, a minha desconfiança inicial não era descabida, desta forma, cumpre a função de historicizar os sentidos e valores de que emergem tais julgamentos, pois não podemos perder de vista a própria historicidade do gosto estético da arte moderna ocidental quando baixou seus olhos para a África negra, procurando arte e não objetos etnográficos. E quando digo historicidade me refiro aos

3 JIMENEZ, M. “Pós-modernidade, filosofia analítica e tradição europeia”. ZIELINSKY, M (org.). Fronteiras – arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003, p. 78.

4 APPIAH, A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p.

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processos intelectuais, sociais e políticos que constelaram a experiência de Picasso quando ele entrou pela primeira vez no empoeirado, abafado e sufocante Museu Etnográfico do Trocadéro em Paris e se deparou com “fetiches” e máscaras primitivas.

Não é necessário lembrar a importância em valorizar e mesmo oferecer ao público em geral as valiosas expressões religiosas e plásticas da África negra, isto é, subsaariana, porém, não queremos impor aqui uma noção de África negra hegemônica e sem tensões, pois, além do reconhecimento da potência plástica das inúmeras comunidades que vivem nesse continente, há, ainda, a questão da preservação desse patrimônio. Entretanto, como vem mostrando diversos pesquisadores, como a historiadora Maria Antonieta Antonacci6, é preciso

reavaliar as heranças deixadas pelas grandes narrativas hegemônicas ocidentais sobre as expressões e identidades dos “povos subalternos”, pois há mais idiossincrasias nessas expressões do que pareciam suspeitar as réguas epistemológicas desses primeiros modernistas.

Com esse objetivo é que foram surgindo as ideias para essa pesquisa e, por um golpe de sorte, através da minha orientadora do mestrado e agora do doutorado, professora Antonieta Antonacci, fui apresentado à obra Negerplastik, publicada em 1915, escrita pelo teórico, crítico e escritor Carl Einstein (1885-1940). Nessa obra, Einstein foi um dos primeiros teóricos do campo vanguardista a deslocar, de forma sistemática e estética, o que ele chamou de plástica negra – que envolvia não apenas a arte africana, mas a arte dos povos de mentalidade dita “primitiva”, isto é, povos extra ocidentais - do campo meramente etnológico para o campo estético, elevando-as a um patamar que lhe era até então negado: o de objetos de arte.

Conceber o estatuto de arte para um objeto qualquer não tem nada de natural, não partimos da concepção de um “em si” para um objeto artístico fora da cultura e fora da história. Toda expressão considerada como arte pertence a um enquadramento discursivo sobre o que deve ser arte e, tal enquadramento, dificilmente pode ser pensado “fora da caixa” de um regime de enunciação específico. Desta forma, as reticências adotadas em torno da noção de arte se

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originam de uma postura prudente. De certa forma, quando se trata de expressões “artísticas” extra ocidentais, tudo que é chamado de arte já foi, em algum momento, “colonizado” por um saber que, inevitavelmente, vai tirar o objeto de seu próprio contexto, para alocá-lo em uma galeria ou museu.

Com efeito, por ora, deslocaremos o sentido de arte, aproximando-nos das considerações de Ola Balogune concebendo-a como um veículo de comunicação de uma cultura, já que o empreendimento artístico não se situa apenas nas atividades humanas ligadas aos valores espirituais, mas também em um fator ativo da tessitura social. Nesse sentido, acreditamos que a característica essencial das expressões da África negra, em geral, é ser uma linguagem social que utiliza as “harmonias” e as “discordâncias” das formas, da expressão, dos movimentos e dos sons a fim de transmitir emoções captáveis pelos sentidos7.

Os povos da África negra produzem uma quantidade inestimável de objetos e expressões plásticas que são definidas como “arte”. Tais formas de “arte” vão da escultura (madeira, pedra, ferro, bronze, terracota, etc.) à arquitetura, à música, à dança, aos ritos de caráter dramático, à literatura oral e escrita. Todas elas formam um conjunto específico de expressões visuais que dialogam com a própria maneira de estar no mundo desses povos.

Conforme aponta Ola Balogun, as expressões plásticas que se encontram em outras regiões da África negra apresentam, muitas vezes, semelhanças de estilo como também possuem, em comum, características gerais que se sobrepõem às diferenças regionais. Seguindo os passos de Frank Willet, na obra Arte Africana8, é possível notar que a escultura mais antiga que conhecemos ao

sul do Saara provém das primeiras comunidades sedentárias agrícolas às margens da floresta da África Ocidental. Trata-se das esculturas em terracota da cultura nok da atual Nigéria, que datam ao menos da segunda metade do primeiro milênio a. C. e trazem indícios de uma tradição ainda mais antiga. A tradição nok, por sua vez, mantém um parentesco lógico com a arte procedente

7 BALOGUN, O. “Forma e expressão nas artes africanas”. In: SOW, A. et al. Introdução à cultura Africana.

Luanda, Instituto Nacional do Livro e do Disco, 1977, pp. 39-40.

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provinda da cultura que emergiu ao redor da cidade de Ifé, a cultura iorubá, que carrega consigo uma longuíssima tradição estética9.

Assim, com o objetivo de compreender a África que se fez ao olhar das vanguardas modernistas tracei um recorte que percorre aproximadamente 55 anos e englobam o final do século XIX e as três primeiras décadas do século XX. Ou seja, de 1884/85 até 1939, tendo como referências temporais de um lado a Conferência de Berlim e, de outro, a eclosão da Segunda Guerra Mundial10. Além

disso, estabeleci a arte iorubá como uma espécie de modelo normativo temporário, isto é, não essencializado, para que eu pudesse colocar o pensamento estético europeu em paralelo, comparativamente, com um dos pensamentos estéticos africanos mais antigo e estudado no campo da história da arte africana e assim perceber os processos de agenciamento na perspectiva de desvelar não apenas as sínteses e hibridações entre os modernismos e os africanismos, mas também demarcar as contradições inerentes a uma situação em que as forças políticas e cosmológicas em jogo são extremamente assimétricas em termos de poder militar.

Na África, de forma geral, as expressões artísticas raramente são praticadas separadamente de outras linguagens no interior do contexto que as alimentam. As máscaras esculpidas, por exemplo, são vividas na relação intrínseca com oralidade – tanto em sua dimensão de “epopeia” palaciana quanto nas narrações populares dos contadores de aldeia -, como também com a dança e a música. Há casos em que a máscara é “só” mais um detalhe de um complexo jogo de movimento e som, sendo que ela nem se quer fica voltada para o público da mascarada, mas no topo da cabeça do dançarino, olhando para o céu, como se fitasse para além do horizonte material e se abrisse para uma dimensão

9Ibidem, p. 34.

10A primeira data marca o momento em que os impérios coloniais europeus repartiram entre si a África,

marca também o momento definitivo da entrada do homem branco, com seus barcos à vapor, metralhadora Maxim, câmera fotográfica e o desejo de inventariar e classificar as riquezas da África, incluindo ai o marfim, diamantes, ouro e artefatos culturais que eram sistematicamente pilhados e levados para as metrópoles. E a segunda data marca um ponto de inflexão política importante, pois é a partir da guerra que as Áfricas, tomando partido de um lado ou de outro, começou a esboçar um desejo de se tornar independente. Ambos os movimentos se conectam, pois em alguns casos, as reflexões modernistas ou europeias sobre a cultura africana foram agenciadas pelas elites locais para lutar contra a dominação estrangeira. É o caso, por exemplo, da ligação entre as ideias política de Senghor com as ideias difusionistas e românticas de Leo Frobenius, como veremos mais tarde.

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cósmica. Dessa forma, surge uma primeira e inesperada fissura entre a concepção de arte ocidental e as expressões plásticas africanas de forma geral: no ocidente a arte deve ser continuamente exposta, mas no caso da “arte africana”11 existem, não raras, esculturas que só podem ser vistas por um seleto

grupo de iniciados, como uma figura de bronze de Onilé12, forjada no século

XVIII, que era reservada apenas aos iniciados da sociedade ogboni, que cultuam a terra e formam, ainda hoje, uma importante força política entre os iorubás13.

Antes, porém, dessa mudança de paradigma trazida pela “ideologia” descrita por Appiah14, expressões plásticas africanas foram, nos primeiros

quatrocentos anos de contato com a costa africana15, tratadas com horror e como

o reflexo da depravação dos africanos16. Nenhuma tentativa séria de tentar

compreender sua verdadeira função fora feita; esses objetos eram representados no bojo das relações europeias com os povos africanos. Assim, elas eram condenadas sob um ponto de vista religioso, subestimadas por uma concepção evolucionista e mesmo rejeitadas sob a luz de juízos estéticos que negavam o caráter de “arte” aos mesmos. É interessante que em algumas descrições já no interior do recorte temporal dessa pesquisa, essa visão e a ênfase no grotesco convivia com uma certa aura “misteriosa”, que começou a encantar os olhos europeus:

No centro do círculo estava a mais impressionante figura do grupo, o principal sacerdote [...], coberto da cabeça aos pés pelo mesmo tipo de fibras flexíveis de que eram feitos os saiotes [dos demais dançarinos]. Sobre esse traje mostrava uma enorme máscara de madeira com a aparência de uma cabeça de antílope com um par de chifres recurvos. A máscara estava pintada de vermelho e branco, e os chifres decorados com anéis alternados dessas cores, para representar as

11Utilizo aspas, nesse momento, para demarcar que o termo arte africana é extremamente vago e

perigoso, por isso, sempre que possível, optarei por precisar de qual “arte africana” estou me referindo.

12Onilé, orixá que recebeu o governo da terra das mãos do próprio Olodumare. Onilé também é conhecida

como Aiê. Ver: PRANDI, R. Mitologia dos Orixás. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, pp. 410-415.

13 WILLETT, F. Arte Africana. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2017, p. 180.

14APPIAH, A. Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997. 15 WILLETT, F. Arte Africana. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2017,p. 92.

16Ressalva feita aos delicados marfins “portugueses” esculpidos pelos sapes de Serra Leoa, que

encantaram os portugueses ainda no século XV. Admirados pela maestria técnica dos sapes, os portugueses passaram a encomendar-lhes peças em que a sensibilidade desse povo era aplicada a objetos de uso na Europa. Desta forma, foram exportados trompas de caça, cibórios, saleiros, compoteiras, colheres e garfos que eram exibidos nas residências da aristocracia europeia, que os adquiria por alto preço. Ver: WILLETT, F. Arte Africana. São Paulo: Edições SESC São Paulo, 2017, p 16.

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projeções anulares existentes nos chifres do animal. Na fronte desenhara-se uma face humana grotesca e sobre ela havia dois buracos para o sacerdote poder ver. Dançava de forma estranha e misteriosa, produzindo um efeito assustador. Os dançarinos que formavam o círculo mantinham uma postura curva e cantavam repetidamente um breve refrão. [...]

Richard Austin Freeman17 em 1888-9

A partir da metade do século XIX, alimentados por uma busca romântica do estranho e do sublime uma nova percepção desses objetos começou, lentamente, a florescer aos olhos de estudiosos e mesmo artistas ocidentais. Um dos primeiros deles foi, sem dúvida, Leo Frobenius, que viajou diversas vezes para a África, colecionou os objetos coletados nessas viagens e escreveu textos que mostravam toda a sua admiração e espanto diante de obras extremamente sofisticadas. E, antes mesmo de Picasso se defrontar com máscaras negras no Museu Etnográfico do Trocadéro, Paul Gauguin abandonou tudo em Paris e partiu para o Haiti em busca da pureza, autenticidade e inspiração dos povos negros e primitivos.

A tese, portanto, consiste na compreensão da emergência desseregime estético das artes18 que constituiu a visualidade desses artefatos não mais nas

chaves evolutivas e darwinistas, mas no campo estético, como arte e, sobretudo, como modelo de arte para o olhar modernista. Para isso, dialogaremos com os estudos culturais para cartografar diversos enunciados que se cruzaram e se entrelaçaram no deslocamento dos objetos plásticos africanos. A construção de um mapa que delineie as representações sobre o Outro e sua arte se constituirá, portanto, em um objetivo central nessa pesquisa, permitindo desvelar a “estrutura” de sentimentos na qual os próprios artistas e teóricos modernistas, como o autor de Negerplastik, estavamsituado, numa relação fenomenológica com o mundo.

Nesse sentido, a concepção de cultura que fundamentou essa pesquisa é uma visão antropológica, exemplificada, entre outros, por Raymond Williams

17SILVA, A. C. (Org.). Imagens da África. São Paulo: Penguin, p. 477.

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em The LongRevolution (1961), isto é, cultura como a soma das descrições disponíveis pelas quais as sociedades dão sentido e refletem as suas experiências comuns. De tal modo, essa definiçãoconstitui o horizonte de expectativa do cotidiano dos seres humanos em suas vidas, no sentido que a cultura se torna ordinária e não mais somente aquilo que, em uma determinada experiência histórica, foi considerada o ápice da criação humana. As obras de arte, nesse sentido, deixam de ser objetos culturais extraordinários e atemporais19 para se tornarem produtos de sujeitos históricos inseridos em

processos culturais e sociais relacionados ao imaginário e a determinados regimes de enunciação20.

A cultura – incluindo aí a cultura visual -, portanto, seria atravessada por todas as práticas sociais que se cruzam formando feixes de representações. Nesse pressuposto, ela seria a forma como os homens organizam e dão sentidos subjacentes às práticas sociais. O estudo da cultura, assim, constitui-se como a descoberta do tecido e de interações entre diversas práticas sociais e a maneira como os homens configuram seus valores e sentimentos no interior dessa trama que chamamos de cultura Daí que, o propósito dos estudos culturais, segundo Stuart Hall, é entender como as inter-relações de todas as práticas sociais são vividas e experimentadas como um todo, em um dado período, isto é, descobrir a natureza da organização que forma o complexo desses relacionamentos.

No bojo da concepção de cultura delineada por Williams está uma rejeição, entre outras coisas, a certas posições do “marxismo clássico” que conferia à cultura um papel secundário ou como mero reflexo das forças de produção. Tal concepção de cultura vem da metáfora base/superestrutura, que atribui, à cultura, o papel de superestrutura sem uma efetividade social própria.

19Assim, a tese não lida especificadamente com a Arte em um sentido estrito, mesmo que utilize esse

termo em diversos momentos. Arte aqui é compreendida como um agenciamento, uma institucionalização que territorializa uma expressão dentro de um campo delimitado. Trata-se de um processo parecido com o processo de transformação química que resulta na formação de novas substâncias. Pensa-se, por exemplo, na transformação ocorrida com o Mictório de Marcel Duchamp antes deste receber a assinatura R. Mutt em 1917 e ser exposto em uma galeria de arte.

20Nesse sentido, as análises de Gombrich e Francastel, como expressa Maria Ozomar Ramos Squeff,

mostram como cada cultura condiciona os princípios de visualização e representação de mundo. Ver: SQUEFF, M. O. R. “Mimesis na arte: os limites da crítica”. In: ZIELINSKY, M (org.). Fronteiras – arte, crítica e outros ensaios. Porto Alegre: Editora UFRGS, 2003, p.104.

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Assim, Williams ataca diretamente o que Hall denomina como materialismo vulgar e determinismo econômico e substitui por um interacionismo radical. Nesse sentido, todas as práticas, econômicas e culturais, por exemplo, interagem-se mutuamente, as distinções entre diferentes práticas sociais são superadas por uma visão de todas elas, “como formas variantes de práxis – de uma atividade e energia humanas genéricas”21. Os padrões encontrados em

distintas práticas de uma mesma cultura são, portanto, “formas de organização” características de uma cultura em um determinado período, mas que só fazem sentido no interior de uma estrutura cultural mais ampla.

O conceito de cultura desenvolvido por Williams vai desaguar na ideia de “estrutura de experiência” (structure of feeling), cuja premissa básica partia de uma concepção de “estruturas mentais” que configuram e organizam a consciência empírica de um grupo social específico, bem como o mundo imaginativo dos sujeitos em sua experiência histórica. Trata-se, portanto, de uma interatividade entre as práticas sociais e as estruturas de significado e de sentido de uma determinada cultura, expressas tanto em obras de arte e dispositivos técnicos (máquina fotográfica) quanto no léxico da linguagem comum das pessoas no dia a dia. Desta forma, pode-se afirmar que a noção de cultura, para Williams, constitui-se como sentidos e valores que emergem da experiência dos sujeitos com base em suas relações e condições históricas.

Das considerações acerca dos estudos culturais feita por Hall, acreditamos que a perspectiva delineada por Williams – pautada mais na experiência do que em estruturas já acabadas (Althusser) - é a mais interessante para compreender quais estruturas de sentimentos constelam os olhares modernistas sobre a arte africana nas últimas décadas do século XIX até a eclosão da Segunda Guerra Mundial, em 1939. Assim, dentro desse campo, cumpre estabelecer quais relações e condições históricas permitiram, que antropólogos como Leo Frobenius, artistas como Paul Gauguin, Vlaminck, Picasso e teóricos, como Carl Einstein passaram a ver esses objetos, não como artefatos oriundos de uma civilização não evoluída, que poderiam ser colocados do lado de uma colher de madeira exótica, mas como objetos de arte, que

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poderiam ser colocados, como na exposição do MASP, ao lado de obras modernistas.

No entanto, não pretendemos cair na velha armadilha do historicismo e levantarmos exaustivamente as condições e as relações do momento da feitura, por exemplo, da obra Negerplastik, como se isso garantisse, por si só, uma compreensão objetiva do seu olhar. Faremos como Walter Benjamin e recorreremos à reflexão crítica do romantismo alemão, para quem era impossível, se não de maneira abstrata, conceber a obra “em si” separada de sua vida “para nós” no tempo do agora. Nessa perspectiva, para conhecer uma obra qualquer é necessário compreender tanto o momento temporal de sua feitura, quanto sua recepção, suas críticas, traduções, adaptações no presente imediato de sua interpretação22. Assim sendo, além de envolvermos o contexto

histórico de Negerplastik também consideraremos a sua vida “para nós” no tempo do agora.

Tal perspectiva, conduz-nos, diretamente, para o campo dos estudos pós-coloniais tendo como uma das referências o teórico anglo-indiano Homi Bhabba. Assim, como eixo teórico, adotaremos o que ele chamou de “racionalidade mínima como base para juízos não etnocêntricos.”23. É preciso, portanto, ocupar

um lugar não essencialista no entendimento seja da “arte africana” ou do olhar modernista que se formou na mesma época em que a África era desnudada pelos exploradores europeus munidos de barcos à vapor, metralhadoras, cadernos de anotação e máquinas fotográficas.

Nesse sentido, Carl Einstein ocupa o plano central da tese. Ao optar por um posicionamento fenomenológico diante da obra Negerplastik, construí a imagem de uma casa como um plano de consistência (grade)24. Nesta casa, as

paredes, as janelas e as portas são elas mesmas, por extensão, molduras, no conjunto formam um todo, mas que nem por isso deixam de existir de maneira autônoma. A casa demarca o limite da própria escrita e do pensamento que ora

22 GAGNEBIN, J. “Walter Benjamin: estética e experiência histórica”. In: Almeida, J.; Bader, W. O pensamento alemão no século XX: grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. Vol. 1. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 197.

23 BHABBA, H. K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 284.

24DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia, vol. 1. São Paulo: Ed. 34, 1995a, p.

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se fermenta. Essa casa, em certo sentido, é o verdadeiro objeto da tese – enquanto imagem. Com uma pitada de humor dadaísta a ocuparemos entrando não pela porta, mas através da janela. Ao invés de olhar de dentro para fora, pularemos de fora para dentro num movimento de acrobata, invertendo a equação albertiana25, que via na janela o modelo por excelência do

conhecimento do mundo através de uma visão matemática do espaço calcada na geometria26. A janela ela própria um objeto dentre outros será nada mais nada

menos que a própria plástica negra aos olhos de Einstein. No processo de cruzamento da janela, em pleno voo acrobático, apresentarei o regime de enunciação, significação27 e institucionalização da ideia de arte sobrepondo-se

à ideia de objetos menores ou sem nenhum valor.

Nas paredes dessa casa, elas próprias molduras da janela por extensão, desenvolvi uma espécie de ritornelo enunciativo em que paredes, teto, os quadros nas paredes e as esculturas depositadas no chão, o batente e as portas se abrem num processo dialógico. Entre a janela, Negerplastik, e a parede que a circunda, há uma relação, isto é, um elo entre o contexto social da Europa nos anos finais do século XIX com as práticas estéticas das vanguardas nas primeiras décadas do XX. Entre a popularidade das artes “primitivas” e a reprodução técnica de imagens a partir da invenção da câmera fotográfica. No entanto, não vejo todas essas imagens que passam diante da minha retina e chegam ao meu cérebro de forma incólume. Eu mesmo estou dentro dessa casa, que me abriga do vento, da escuridão e da velocidade infinita do caos. Assim, entre esse mundo enquadrado pelo recorte temporal da tese e eu mesmo há minha experiência com a arte africana, com o texto da curadoria da exposição do MASP e com os tambores que tocam maracatu nesse momento em algum lugar de São Paulo. Nesse sentido, passado, presente e futuro se conjugam num arranjo próximo a de um concerto ou de uma fotomontagem dadaísta.

25 ALBERTI, L. B. Da Pintura. Campinas: Editora da Unicamp, 2009.

26 Omesmo fundamento, diga-se de passagem, de Descartes. Ver: MERLEAU-PONTY, M. O olho e o espírito.

São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 28.

27 Para Bhabba, há uma diferença fundamental entre a perspectiva epistemológica e a perspectiva

enunciativa. Para ele, a posição epistemológica, por vezes, limita-se ao ponto do círculo hermenêutico, em que a própria interpretação não vai além da tradição que alimenta o intérprete. Assim, um indivíduo formado na tradição eurocêntrica vai buscar seus elementos e referenciais para a “leitura” de um determinado contexto somente em seu próprio universo epistêmico. Ver: BHABBA, H. K. O Local da Cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 285.

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Não se trata de construir uma árvore genealógica, ou arborescente, das ideias que emergem em Leo Frobenius, passam por Einstein e Picasso e evoluem até chegar em Abdias do Nascimento ou Agnaldo Manoel dos Santos. Rejeito absolutamente teorias evolutivas e essencialistas. Meus textos, que compõem a casa, são descrições de sobrevivências, sobreposições de gestos e enunciados que constituem circuitos abertos, sem determinismos, aproximando-se muito mais das aparições e relampejos que falam Walter Benjamin e Aby Warburg – estes, aliás, próximos, no campo estético/artístico de Carl Einstein. Sem aderir à atavismos fáceis, meu objetivo na composição dos capítulos foi o de dotar essas experiências de gravidade histórica, demarcando, ao mesmo tempo, práticas ideológicas da modernidade em seu desejo colonizador de normatizar narrativas não centradas e práticas ditas “tradicionais”, compreendendo-as em suas potências latentes que permitem a (re)existência de experiências diferenciadas.

Desta forma, ao mesmo tempo em que as consequências da transformação de expressões plásticas africanas em objetos de arte serão enfatizadas como atos de violência simbólica de ressignificação, transformando o sagrado em commodites, também delineou-se as heranças modernistas nos rastros com os quais olhamos, hoje, para a arte africana. Quando vejo uma máscara gueledê, por exemplo, vejo arte. Olhar para esses objetos dentro dessa casa é não se furtar disso. Portanto, a tese não pretende restabelecer “verdades sobre verdades” e muito menos encontrar “essências” de uma África pura e autêntica, mas composições cartográficas, rastros, travessias e re/existências.

Como dito, a tese foi construída como uma casa em que cada parte se constitui como um capítulo que pode ser lido (olhado) de forma independente e de maneira não linear. Há, entretanto, um eixo central, que como uma linha de fuga em um desenho, atravessa perpendicularmente toda a paisagem. Este eixo é a noção do Olhar. Mas não se trata do olhar do naturalista, que cataloga suas descobertas num campo de coordenadas pré-estabelecido. Mas um olhar agenciador, que percorre de maneira afetuosa28 os cômodos, as paredes, os

quadros e os móveis. Olhar que se faz vendo.

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Quando Carl Einstein olhou para aqueles objetos plásticos, que ele chamou de plástica negra, mas que também eram asiáticos, não apenas viu, mas também foi visto de volta. Esse olhar não aconteceu no puro vazio, mas ancorado numa profunda reminiscência de gestos e experiências da Europa com a África e com o negro. Antes mesmo de baixar seus olhos e ver formas puras nas estatuetas africanas havia um visual29 ou visibilidade30 operante. É nesse

sentido que a janela (Negerplastik) é a moldura da parede, que é moldura da porta, que é moldura do teto, que é a moldura do chão. Jamais ou um ou outro, mas sempre e... e...: janela e parede, parede e teto e chão e corredor, etc.. A casa é uma visão cosmológica. Quando se quer desenhar uma casa é preciso estabelecer, antes de tudo, os pontos de fuga, a linha do horizonte, as linhas verticais que darão sustentação arquitetônica para a obra. O meu objetivo com a tese foi mostrar a casa sem apagar esses rastros, que estruturam e dão sustentação. É nesse sentido que o texto apresenta as relações estabelecidas e inesperadas entre as representações da África e do negro com a pintura moderna e mesmo com a invenção da máquina fotográfica.

29 DIDI-HUBERMAN, G. Diante da Imagem. São Paulo: Editora 34, 2013.

30DERRIDA, J. Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Santa Catarina: UFSC,

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Figura 1 – O esquema, linhas de fuga, horizonte e estruturas da casa, uma metáfora para a tese.

No primeiro capítulo, por exemplo, perceberemos de que maneira as experiências de Cézanne rebateram sobre as máscaras e esculturas africanas no momento em que o olhar de Einstein se fez sobre elas. A ideia é mostrar como a conexão entre experiência de mundo e visualidade não é estanque, mas dinâmica e cambiável, mediante a própria possibilidade das vanguardas de refletir e introduzir novos elementos na “tradição” do regime de enunciação visual daquele momento.

Nesse sentido, a tese partiu do pressuposto – seria um truísmo? -, que todo olhar sempre é constelado por uma vivência31, assim, o olhar não apenas

informa os olhos sobre as coisas visíveis diante de si (como se houvesse uma

31 Vivência significa, aqui, uma tradução do termo alemão Erlebnis, importante categoria da

fenomenologia. Nesse ponto, optei por vivência ao invés de experiência vivida por sugestão de Sebastião Nascimento, tradutor da Crítica da razão negra de Achille Mbembe. Segundo Nascimento, o uso de vivência ao invés de experiência vivida refere-se a uma sugestão do Dicionário dos Intraduzíveis, que destaca a opção feita por José Ortega y Gasset e que remete, por sua vez, a discussão feita por Jorge Semprún sobre as opções de tradução de Erlebnis ao francês e ao espanhol, repito aqui a citação do próprio Nascimento na roda de rodapé 25, na página 256, da Crítica da razão negra de Mbembe: “(...) Temos que empregar perífrases. Ou empregar a palavra vivido, que é aproximativa. E contestável. É uma palavra chocha e frouxa. Antes de mais nada, e sobretudo, é passivo, o vivido. E depois, é no passado. Mas experiência vivida, que a vida faz dela mesma, de si mesmo enquanto está vivendo, é ativa. E é no presente, necessariamente. Quer dizer que ela se alimenta do passado para se projetar no futuro.” Ver: MBEMBE, A. Crítica da razão negra. São Paulo: n-1 edições, pp. 256-257.

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ordem universal, existente a priori nas coisas, esperando para ser decodificada por uma equação objetiva e ordenada sob uma métrica fora da história e da cultura) mas constrói novos sentidos, estabelece novas possibilidades de compreensão e realidade. Vivência, nesse caso, significa que as experiências de Einstein, Leo Frobenius e Agnaldo Manoel dos Santos diante de uma imagem, desloca e agencia os estímulos visíveis, desterritorializando esse visível e reterritorializando o invisível em uma experiência dinâmica e historicamente situada, que Warburg aproximará do quase “sobrenatural”. Estamos bem próximos daquele impulso fundamental do homem, que Nietzsche, certa vez, designou como impulso à formação de metáforas32. Nesse sentido, há duas

forças atuantes na formação da visualidade: o sujeito vidente e a coisa vista.

O olhar desses homens, portanto, foi compreendido à sombra de uma experiência histórica. Isto é, não como uma concepção de experiência achatada e trivial, como presentificação ou como repetição de um valor eterno do passado no presente, que acontece de maneira independente daquele que olha.A noção de experiência operante no presente texto se aproxima da noção de atualidade (Aktualität) de Walter Benjamin, isto é, como uma experiência intensiva de atualidade33. Nesse sentido, tanto a experiência de Leo Frobenius e Carl Einstein

diante das expressões plásticas africanas quanto a nossa diante de suas produções estão incorporadas de potências, ou vir a ser. Aquele presente em que o olhar de Picasso recaiu sobre estátuas e máscaras africanas não está aprisionado em seu próprio contexto histórico, mas “disponível para acolher esse ressurgir, reinterpretar a si mesmo e reinterpretar a narrativa de sua história à luz súbita e inabitável desse emergir”34.

Essa noção de atualidade se entrelaça intimamente com a própria noção de experiência35, mas uma experiência como deslocamento rumo a, viagem em

direção aos entre-lugares. O resultado dessa viagem é que as coisas vistas são

32NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral (Aforismo 1). In: Obras Incompletas. São

Paulo, Abril Cultural, Col. “Os Pensadores”, 1978, p. 58.

33 GAGNEBIN, J. “Walter Benjamin: estética e experiência histórica”. In: Almeida, J.; Bader, W. O pensamento alemão no século XX: grandes protagonistas e recepção das obras no Brasil. Vol. 1. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. 185.

34Ibidem, p. 186.

35DERRIDA, J. Pensar em não ver – escritos sobre as artes do visível (1979-2004). Santa Catarina: UFSC,

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também coisas criadas pelo olhar ancorado no afeto diante dessa vivência. Isso deve ficar evidente quando interpreto um pilar de varanda com as figuras de Xangô e Iansã como uma tempestade de ventos e relâmpagos ocorrida na cidade de Campinas.

O primeiro capítulo, chamado criadores de deuses, portanto, aborda de forma crítica e minuciosa a obra Negerplastik. Comentando quase que linha por linha dessa obra seminal, percorro o pensamento de Einstein com um misto de assombro e distanciamento. A ideia é tornar evidente que em 1915, quando Carl Einstein torna visível aspectos da plasticidade africana, ele, na verdade, nos oferece uma “evidência”, ou estrato, do invisível do seu próprio olhar, que nasce da relação com a plasticidade africana e de como esta era delineada pelos afectos e blocos de sensação que estavam ancorados no regime de enunciação estético modernista. Partindo desse plano de imanência, Einstein, provoca um deslocamento dessas expressões e cria novas maneiras de percebe-las e instituí-las no campo das artes ocidentais. Ele não apenas desnuda preconceitos sobre as esculturas africanas, mas, ao estabelecer os pontos de fuga que constituem sua trama, dá-nos a ver, em sua visualidade, a escultura africana olhando-o de volta.

Ao ocupar a casa através da janela, atravessamos também Negerplastik. Nesse ato subversivo, fazendo jus ao dadaísmo pulsante no coração do crítico de arte alemão36, notamos também que aquela janela, apesar de permitir uma

aparente transparência, pois podíamos olhar seu interior ainda do lado de fora, não era feito de vidro, mas de uma película particularmente viscosa. A janela não era nem mesmo transparente. O que víamos através da janela não era a coisa em si, mas uma imagem. Neste ponto, o visual é percebido como uma construção social que tem como lastro uma determinada experiência cultural-histórica, permitindo, com isso, perceber as diferenças nos modos de olhar e de ser no tempo e no espaço. Destarte, nenhuma visualidade é criada exclusivamente do nada, além dos afetos, os significados atribuídos ao visível estão sempre em relação com coordenadas que delimitam os contornos de

36Einstein chegou a ser editor de uma revista dadaísta na intensa Berlim dos anos 20. Ver: BAITELLO jr, N. Dada-Berlim. Des/Montagem. São Paulo: Annablume, 1993.

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funções, conceitos e composições37. Elas oferecem chaves interpretativas para

que Einstein e outros atribua novos sentidos, novas configurações visuais mediante o diálogo entre o olhar – e tudo o que ele comporta em termos de regime de enunciação visual – e a experiência coletiva vivida numa cosmogonia específica.

Estamos agora no centro da sala principal da casa. Mas nosso corpo ainda está tomado pela camada pegajosa formada pela película que separava o exterior do interior conectado através da janela. Essa camada oleosa que insiste em impregnar todos os poros da pele é a própria visualidade de Negerplastik, que é opaca e densa. Se o primeiro capítulo apresenta os criadores de deuses, no segundo, encararemos de frente os devoradores de deuses. Para isso, a opacidade das fotografias projetadas por Einstein em Negerplastik será o meu “objeto de estudo”. Essas fotografias presente em sua obra não serão, ironicamente, encaradas como janelas para a coisa fotografada38 e sim como

planos de composição, que não apenas colore, mas são colorantes da experiência do crítico diante daquilo que ele define como arte africana.

Dessa forma, a compreensão do regime visual inaugurado pelo advento da fotografia, em meados do século XIX, será de fundamental importância para apreendermos a maneira como a sociedade industrial ocidental expandirá o seu olhar para fora de si mesma e nesse processo constituirá um corpus de conhecimento sobre o outro e suas práticas. Mas essa visualidade que se apresenta inicialmente como neutra e científica é ela própria um vetor da mitologia secular europeia. Pois, tal como tão bem mostrou Walter Benjamin, não se pode falar de história da arte sem falar, também, da história da fotografia39.

A estratégia adotada no desenrolar da narrativa será a não dicotomia entre sujeito e objeto, isto é, a “coisa-em-si” e a “coisa-vista, pois elas sempre

37DELEUZE, G.; GUATTARI, F.O que é filosofia? São Paulo: Ed. 34, 1992. 38FLUSSER, V. Filosofia da caixa preta. São Paulo: Hucitec, 1985.

39“Muito se escreveu, no passado, de modo tão sutil como estéril, sobre a questão de saber se a fotografia

era ou não uma arte, sem que se colocasse sequer a questão prévia de saber se a invenção da fotografia não havia alterado a própria natureza da arte.” Ver: BENJAMIN, W. “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”. In: Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. Brasiliense, 1994, p. 176.

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existem em relação como as mãos que se tocam – quem toca e quem é tocado? Perguntou certa vez Merleau-Ponty40. Todas as visualidades são elas próprias

constituidoras de sentido e realidade, pois é a partir delas que os sujeitos, inseridos em uma experiência fenomenológica, dão sentidos ao visível, ao que se doa aos olhos. Assim, através desse jogo espalharemos as fotografias de

Negerplastikpela chão da sala formando um grande mosaico. Para Deleuze e

Guattari, é próprio da ciência lidar com funções, bem como é próprio da filosofia criar conceitos. A arte tem, ela própria, seus meios, que é a composição. Nesse sentido, a escritura da tese devaneia nas bordas dos três campos. Se por um lado ela apresenta a fotografia enquanto mecanismo de uma função científica, ela faz ver tal função como relevo de uma economia ou contexto histórico, retirando-o do absoluto e delineando sua finitude através do agenciamento e criação de conceitos. Ela, a tese, também brinca nas margens da arte, pois apresenta composições: o sentido da arte africana emerge dos entre-lugares que existe no jogo de luz e sombra como se fosse uma pintura. Lugar em que já não é luz e nem sombra, espaço de aparição de uma outra África. Não por acaso uma África mítica: Atlantes.

Nesse ponto chegamos ao terceiro capítulo. Um caminho rumo à Atlantes. Caminho que brota da encruzilhada que alimenta as noções e ideias acerca do outro que conecta os diversos enunciados e visualidades existentes na cultura de Carl Einstein: a “África” como remanescente dos antigos atlantes. Leo Frobenius foi considerado um dos precursores da etnografia na Alemanha e grande divulgador da teoria difusionista na antropologia. O terceiro capítulo é o próprio chão e as vigas que sustentam e compõe a tese. As imagens das Áfricas que seu tema desenvolve também alimentam grande parte das representações que os artistas de vanguarda farão do continente e do outro, tido como primitivo. Nesse capitulo exploramos os fundamentos que levaram a África ser considerada, a partir de uma visão de mundo essencialmente romântica, um antidoto aos vícios e decadência da sociedade industrial europeia. Frobenius, nesse sentido, é um dos primeiros intelectuais europeus a conceber plena

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cidadania estética aos objetos que ele se deparou em solo africano, muito embora tenha atribuído a autoria deles a uma cultura imaginária.

A África como um não lugar e como um não tempo41 é o mote que guiará

certa compreensão da “plástica negra” e que, naquele contexto, não se restringia somente à África subsaariana, mas a qualquer arte não europeia. Negro, no contexto de publicação de Negerplastik em 1915, era o outro indomável, selvagem e primitivo, a antípoda do europeu. O homem civilizado era tudo o que os artistas modernos, desde os impressionistas, não queriam ser.

E assim, sentimo-nos mais à vontade ao caminhar pelo interior da casa, observando e pressentindo seus perceptos nos seus móveis, as texturas das paredes e o desenho da planta da construção. Trata-se de uma casa simples, sem luxo, mas de alguém com bom gosto e que aprecia particularmente a arte modernista europeia, pois praticamente não se vê pinturas figurativas, dessas que encontramos nos museus de belas artes. Os corredores, por exemplo, estão repletos de reproduções de pinturas de artistas de vanguarda e algumas esculturas espalhadas em espaços estratégicos – jamais encostados nas paredes e de preferência diante de um espelho. Chegamos ao quarto capítulo: o phármakon da Europa. Phármakon, palavra grega, traduzida por Marilena Chauí42 como poção, remédio e veneno. Representa, assim, a impossibilidade

de um sentido único, pois essencialmente contraditório: ao mesmo tempo capaz de curar e matar. Significado arredio, cujo sentido é impossível de ser fixado sem a presença de seu contrário. Ao conceber a arte africana como um phármakon para a arte europeia, os artistas de vanguarda valorizaram as expressões plásticas africanas na mesma medida em que demarcavam uma espécie de racismo estrutural intimamente impregnado no olhar da Europa sobre o negro, visto como superior ao homem civilizado europeu justamente por sua suposta ingenuidade e primitivismo.

41O antropólogo alemão Johannes Fabian mostra de maneira absolutamente assombrosa de que maneira

a antropologia concebeu o outro na medida em que negava a este a coexistência temporal: o outro sempre fora a criança do adulto antropólogo. Ver: FABIAN, J. O Tempo e o Outro: como a antropologia estabelece seu objeto. Petrópolis: Vozes, 2013.

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A casa não é uma casa qualquer. Ela não se parece com um projeto arquitetônico clássico em que a simetria distribui as partes de maneira equilibrada e linear. Há corpos/territórios cuja gravidade atrai mais que outros corpos e deformam o “belo” transformando-o numa assombração43. O ar em seu

interior é pesado, denso, mas plenamente respirável, talvez até mesmo respirável demais. Os cômodos provocam desconforto e subvertem as linhas. Não é uma imagem linear e nem pictórica. Não se trata também de uma casa modernista que emerge de forma arbitrária, reivindicando sua presença de maneira monumental, com suas curvas clichê ou linhas e rupturas abrutas. As heras não crescem na parte externa do muro, mas dentro, formando uma espécie de rizoma barroco com suas volutas vegetais e orgânicas, que se entrelaçam nos quadros, nas paredes e nas esculturas depositadas no meio do caminho. Em seu interior não existe isso ou aquilo (em sem binarismo intrínseco), mas tudo se relaciona de forma a não desaparecer em sínteses, mas na coexistência cubista da simultaneidade, sem essencialismo pacificador. Comichão que impede que o corpo caia em repouso. É nesse sentido que o racismo que aparece na representação do negro como primitivo e selvagem brilha sob outro ângulo nos olhos de Agnaldo Manoel dos Santos.

Resta somente uma moldura a ser descrita: a porta de entrada e saída. A porta é o quadro, no sentido daquilo que enquadra a parede. Esta, por sua vez, é o quadro do chão e do teto – que produz a atmosfera necessária para que os rizomas floresçam. A porta existe em si mesma, mas só é enquanto for enquadrada por outras partes. Na tese ela é a saída (conclusão) e as travessias. Trata-se do desfecho em que abordo, finalmente, a arte de Agnaldo Manoel dos Santos para mostrar a surpreendente ressurgência de valores escultóricos africanos. Nos caminhos abertos por Didi-Huberman, Aby Warburg e Conduru44

reflito sobre as sobrevivências na história da arte em forças plásticas e simbólicas de linguagens que se transformam e transmutam configurando cosmogonias não determinísticas, carregadas de identidades energéticas e

43Tenho em mente aqui a experiência de Picasso quando se deparou com máscaras africanas no Musée d'Ethnographie du Trocadéro, momento em que se inspirou para pintar As senhoritas de Avignon. Naquele dia, segundo relato do próprio artista, ele voltou assombrado com todos aqueles “fetiches” e com a energia que aqueles objetos emanavam.

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espirituais. Essas ressurgências que pertencem mais ao território dos sonhos que dá razão; como uma espécie de fantasia imersiva e de razão emersiva45.

A conclusão é a porta de saída, mas também de entrada: travessia. Não há, à rigor, um script linear para vaguear e conhecer os planos modulares dessa tese. Se fosse uma pintura seria uma pintura cubista ou uma fotomontagem dadaísta, talvez até mesmo uma escultura iorubá, cujos planos e superfícies devem se mostrar ao mesmo tempo. Apenas através da relação entre os diferentes planos, que se complementam nas regiões crepusculares, é que se poderá olhar em sua totalidade a narrativa que agora se abre.

45Warburg, A. “Introdução à Mnemosine”. In: Histórias de fantasma para gente grande: escritos, esboços e conferências. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, p. 365.

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CRIADORES DE DEUSES

Antes de iniciarmos imagine um espaço infinito. A única distinção que se pode fazer é a linha do horizonte que se estende até onde sua vista alcança. O chão é cinza e, conforme se aproxima da linha do horizonte, ele vai se tornando mais claro, próximo do branco. No ponto em que se encontra o horizonte há um branco absoluto (na realidade, uma simples linha branca que cruza horizontalmente seu campo de visão), mas acima dele, esse branco vai escurecendo até o azul mais profundo que você já viu. Estamos no puro caos, a velocidade é infinita, tudo se transforma e se move de maneira mais rápida que sua capacidade cognitiva pode perceber. Uma espécie de pintura abstrata sem começo nem fim.

Você não se sente parado, mas se movendo em uma velocidade realmente incrível quando, no horizonte, surge um pequeno ponto que vai crescendo conforme você se aproxima. Logo esse ponto se transforma numa estrutura. Ela parece uma casa, carrega em si o princípio fundamental da arquitetura, que é cravar um território no não-território. Entretanto, sua forma não é estática, mas tremular, lembra uma espécie de aparição fantasmagórica em que as paredes vibram, por alguma razão esta casa parece uma espécie de barricada contra o movimento infinito do caos e por isso uma vontade irrefreável de entrar toma seu espírito. Para sua surpresa há uma janela e uma porta, mas, por alguma razão, é a janela que te chama atenção e você se aproxima, esta janela é a obra Negerplastik que paira no ar e parece convidá-lo a folhear suas páginas.

***

Quando Carl Einstein publicou a obra Negerplastik em 1915, ele considerou, de modo análogo às vanguardas europeias, o status de arte para uma série de objetos da África negra sem distingui-los por regiões ou grupos

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étnicos. A grande diferença entre Einstein e os artistas, entretanto, é que ele é o primeiro a tentar estabelecer um pensamento teórico sobre a arte africana. Para Barbosa46, tal livro reveste-se de uma importância significativa no que tange a

Arte africana, uma vez que reconhece o impacto causado pelas considerações estéticas em relação às expressões plásticas africanas, colocando-as em um patamar que lhe era, até então, negada. Negerplastik apresenta esculturas, estatuetas, taças, trompas, bancos, efígies, bustos, cabeças, relicários, postes funerários em 111 lâminas fotográficas – nem todas realmente africanas, pois algumas são oceânicas.

Carl Einstein, nas palavras de Liliane Meffre, foi o descobridor da arte africana e o primeiro teórico ocidental a levá-la realmente a sério. Einstein nasceu em 1885 em Neuwied em uma família judaica, cresceu em Karlsruhe e depois se mudou para Berlim, onde, na Universidade, estudou filosofia, filologia, história e história da arte. Durante sua formação, assistiu a aulas de professores famosos, como Heinrich Wölfflin, Georg Simmel e Aloïs Riehl. Já em 1912, criou a revista Neue Blätter com o objetivo de difundir a literatura francesa (Mallarmé, Rimbaud, Gide e Claudel). Sua primeira visita à França ocorreu alguns anos antes e lhe proporcionou contato com as vanguardas artísticas de Paris e se tornou conhecido do famoso mercador de arte Daniel-Henry Kahnweiler, que chegou a ser “retratado” por Picasso.

Na virada do século até por volta de 1920, Einstein viveu entre a Alemanha e a França, e brevemente na Bélgica durante a Primeira Grande Guerra, e em 1928 se estabeleceu definitivamente em Paris. Nesse período, teceu relações pessoais com artistas, escritores e poetas da capital francesa e também como artistas dadaístas de Berlim. Além de se dedicar à crítica e teoria de arte, Einstein lança-se ao que Meffre define como “reconquista da linguagem e à expressão de uma nova percepção da realidade tal como a descobre simultaneamente nos cubistas”47. Em 1912, publica um romance inspirado na

46 BARBOSA, M. A. Carl Einstein interdisciplinar: sobre Escultura Negra (Negerplastik).

InPandaemoniumger, São Paulo, n. 18, Dec. 2011. Disponível em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1982-88372011000200008&lng=en&nrm=iso>. Acessado em 21 de julho de 2014.

47 MEFFRE, L. “Apresentação”. In: EINSTEIN, C. Negerplastik (escultura negra). (Org. Liliane Meffre).

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linguagem fragmentada do cubismo chamado Bebuquin oder die Dilettanten des

Wundes (Bebuquin ou os diletantes do milagre), que seria dedicado a André Gide

e foi, posteriormente, considerado um dos primeiros romances surrealistas e referência para os dadaístas. Um crítico sem plumas, nos dizeres de Roberto Conduru, Einstein desenvolve uma relação bastante tensa com o mundo artístico, não sendo surpreendente que, em 1924, apesar de ter sido convidado para ocupar a cadeira de história da arte na Bauhaus mesmo sem ter um doutorado48, ele tenha negado o convite. Em 1926 ele publica a obra chamada

Die Kunst des 20. Jahrhunderts (A arte do século XX), que, devido a seu

sucesso, conhecerá duas novas edições em 1928 e 1932, respectivamente. Tal obra se configurou como precursora da história da arte moderna e foi considerada por Georges Didi-Huberman uma verdadeira “obra-prima de síntese histórica”. Einstein também demonstrou possuir um poder divinatório ao professar que “a velocidade futurista é precursora da energia fascista. ”49

Em 1929, em companhia de Georges Bataille, Georges Wildenstein, Georges-Henri Rivière e Michel Leiris, entre outros, funda a mítica revista

Documents, abrindo-lhe caminho para valiosas contribuições germânicas que

até então eram relativamente desconhecidas na França50. A revista se

transformou em grande divulgadora da estética das vanguardas europeias daquele período, estabelecendo uma espécie de contrapeso a André Breton, após Bataille ter rompido com este pouco tempo antes. Documents tinha uma pegada etnográfica que a atrairia a colaboração de futuros pesquisadores de campo como Griaule, Schaeffner e Michel Leiris51. Em suas contribuições à

revista Documents, Einstein revela suas preferencias estéticas, como em um artigo seu intitulado André Masson étude ethnologique, publicado na revista em 1929, em que ele empreende um estudo etnológico de um artista europeu, André Masson, fazendo ecoar uma espécie de manifesto cubista-surrealista. Nesse artigo, Einstein defende que tanto o artista quanto o crítico devem abalar o que

48 Conduru, R. Uma crítica sem plumas – A propósito de Negerplastik de Carl Einstein. In Concinnitas, ano

9, volume 1, número 12, julho 2008, p. 157.

49 Ibidem, p. 157.

50 MEFFRE, L. “Apresentação”. In: EINSTEIN, C. Negerplastik (escultura negra). (Org. Liliane Meffre).

Florianópolis: Ed. Da UFSC, 2011, p. 10.

51CLIFFORD, James. A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX. Rio de Janeiro:

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é chamado de realidade através de alucinações não adaptadas, bem como subverter as hierarquias de valor do real. Para Einstein, as forças alucinatórias abririam fissuras na ordem dos processos mecânicos. Dessa forma, era preciso introduzir blocos de “a-causalidade” na vivência das pessoas, expondo, nesse processo, as fraturas e o absurdo da vida. Era preciso rasgar a realidade, habitando não os polos confortáveis de uma dialética hegeliana, mas os abismos e os entre-lugares desses choques.52

Entre o final dos anos 20 e início dos 30, Einstein se transforma numa espécie de conselheiro de grandes colecionadores de arte e amigo pessoal de Kahnweiler, que chega a publicar alguns de seus poemas com ilustração de Gaston-Louis Roux. Em 1934, escreve, junto a Jean Renoir, o roteiro do filme

Toni (1935), e atua, nessa ocasião, como roteirista e diretor de arte. O contexto

político, entretanto, acaba levando-o a um engajamento político que o afastou definitivamente das artes. Em 1936, em coerência com suas crenças políticas, viaja para a Espanha a fim de lutar contra o fascismo dos nacionalistas espanhóis liderados por Franco. Einstein, nessa ocasião, engrossa as fileiras dos anarquistas, na Coluna Durruti. Meses mais tarde, na cidade de Barcelona em novembro de 1936, será a voz dele que pronunciará na rádio do CNT-FAI o elogio fúnebre a Durruti. Como oficial da Coluna, ele participará de inúmeras batalhas, especialmente na linha de frente de Aragão. Após a derrota das forças progressistas, Einstein retorna a Paris em 1939, local em que tentará se estabelecer novamente, mas, enquanto judeu, é detido e deportado para o campo de Bassens. Após ser liberado tenta se matar, mas fracassa, tendo sido recolhido por monges de Lestelle-Bétharram. Sendo impedido de escrever e de ter uma vida digna, fará seu “último ato de liberdade”, jogando-se no rio Gave de Pau, falecendo no dia 5 de julho de 194053.

Para compreender o seu pensamento e especialmente a obra

Negerplastik, é preciso, sobretudo, destrinchar os regimes de representações

sobre a África que constelam a visão de mundo de Carl Einstein; entender as representações, usos e funções das culturas ditas “primitivas” nos

52CLIFFORD, James. op.cit., p. 148.

53 MEFFRE, L. “Apresentação”. In: EINSTEIN, C. Negerplastik (escultura negra). (Org. Liliane Meffre).

Referências

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