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Sob capas e mantos : roupa e cultura material na Vila de Itu, 1765-1808

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Academic year: 2021

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LIGIA SOUZA GUIDO

SOB CAPAS E MANTOS: ROUPA E CULTURA MATERIAL NA

VILA DE ITU, 1765-1808.

Campinas

2015

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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS

LIGIA SOUZA GUIDO

SOB CAPAS E MANTOS: ROUPA E CULTURA MATERIAL NA

VILA DE ITU, 1765-1808.

Orientadora: Profa. Dra. Leila Mezan Algranti

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas, para obtenção do título de Mestra em História, na área de concentração Política, Memória e Cidade.

ESTE EXEMPLAR CORRESPONDE À VERSÃO FINAL DA DISSERTAÇÃO DEFENDIDA PELA ALUNA LIGIA SOUZA GUIDO, ORIENTADA PELA PROFA. DRA. LEILA MEZAN ALGRANTI E APROVADA PELA COMISSÃO JULGADORA EM 11/02/2015.

CAMPINAS 2015

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RESUMO

O presente trabalho dedica-se ao estudo das roupas nas dimensões material e simbólica no período que corresponde ao crescimento da produção açucareira e da consolidação do núcleo urbano da vila de Itu, capitania de São Paulo, entre 1765 e 1808. A aparência dos indivíduos em uma sociedade com características de Antigo Regime aliada a presença da escravidão consistia em um elemento importante de identificação e ordenamento social. A materialidade é compreendida através da descrição e da valoração atribuídas aos artefatos têxteis descritos principalmente nos arrolamentos de bens dos inventários post-mortem. Procedemos ao levantamento de informações complementares sobre os indivíduos junto aos Maços de População (censos) e em trabalhos de genealogia. Também coletamos dados sobre as importações de produtos realizadas pela de vila de Itu nos Mapas de Importação, relação pertencente aos Maços de População. Através dos bens descritos na documentação de quarenta e quatro inventariados que residiam na vila de Itu, foi possível montar um quadro da composição material dos bens dos indivíduos e seus domicílios, vislumbrando suas fontes de rendas, seus espaços de trabalho, de moradia, bem como os objetos que compunham os seus pertences. No momento em que os bens eram divididos entre os herdeiros, os objetos ou a quantia referente aos dotes ou adiantamentos de heranças eram mencionados, evidenciando assim, a circulação de bens promovida em vida e após o falecimento de um dos genitores. Além dos inventários da vila de Itu, foram consultados vinte e quatro inventários póstumos da cidade de Lisboa, referentes aos mesmos anos da amostra ituana, para efeito de comparação entre os padrões metropolitanos e coloniais de tipos de roupas, tecidos e adereços em circulação antes da abertura dos portos brasileiros em 1808.

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ABSTRACT

This work is dedicated to the study of clothing considering both material and symbolic dimensions in the period that corresponds to the growth of sugar production and to the consolidation of the urban nucleus of the small town Itu, captaincy of São Paulo, between 1765 and 1808. The appearance of the individuals in a society during the so-called Old

Regime, combined with the presence of slavery was an important element of identification

and social ranking. Materiality is understood from the description and the rating assigned to the textile articles described mainly in listing of goods of post-mortem inventories. The survey was conducted for further information on individuals from the Maços de População (census) and genealogy work. We also collected data on imports of products made by the Itu village next to the Mapas de Importação, this relationship belonging to the Maços de

População. Through the goods described in the documentation of forty-four inventoried

residing in small town Itu, it was possible to assemble a picture of the material composition of the assets of individuals and their homes, seeing their sources of income, their workspaces, housing and the objects that made up their belongings. By the time the goods were divided among the heirs, the objects or the amount related to gifts or inheritances of advances were mentioned, thus underlining the movement of goods promoted in life and after the death of a parent. Besides the inventories from Itu, nineteen posthumous inventories of Lisbon were consulted, relating to the same years of Ituana sample for comparison between metropolitan and colonial patterns of kinds of garments, fabrics and accessories in circulation before the opening of Brazilian ports in 1808.

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SUMÁRIO

Introdução...1

Capítulo 1 A vila do açúcar: configuração espacial e a posse de bens em Itu...23

1.1 Aspectos históricos e populacionais de Itu...24

1.2 Os cabedais dos ituanos nos inventários póstumos...50

1.3 O ambiente doméstico e os bens têxteis...73

Capítulo 2 O vestuário da vila de Itu despido em detalhes...85

2.1 O bens têxteis: materialidade e valor monetário...87

2.2 Os itens de vestuário nas listas de importação e no estoque da loja de Itu...112

2.3 Uso público e doméstico dos trajes...119

Capítulo 3 “Cerzindo” objetos e sujeitos: consumo, circulação e representação das vestimentas na vila de Itu...135

3.1 Padrões cotidianos de vestuário...135

3.2 A circulação de roupas: dotes, doações, dívidas, partilhas e arrematações...153

3.3 O material e o imaterial nas aparências: religiosidade, representações e honra...172

Considerações finais...193

Referências bibliográficas...197

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Aos meus pais Wilson e Maria Luiza.

À memória do meu padrinho Reinaldo Leopassi.

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AGRADECIMENTOS

Agradeço à CAPES pela bolsa concedida no período inicial do mestrado e à FAPESP pelas bolsas de mestrado e de estágio de pesquisa no exterior (BEPE), financiamentos imprescindíveis para a realização deste trabalho.

À minha orientadora Leila Mezan Algranti, pela confiança que depositou em mim. Presente, atenciosa e humana, soube motivar e me guiar nesses últimos três anos.

Agradeço aos membros da minha banca de defesa de mestrado, Profa. Dra. Maria Aparecida de Meneses Borrego e Profa. Dra. Adriana Angelita da Conceição, por toda a contribuição e atenção que dispensaram ao trabalho, desde o exame de qualificação até a defesa. À Profa. Dra. Milena Maranho e à Profa. Dra. Márcia Almada, sou muito grata por comporem a suplência, dispondo de seu tempo para a leitura deste trabalho.

Aproveito para agradecer a todos os professores que contribuíram com a discussão do projeto, ideias e debates promovidos durante as disciplinas da pós-graduação, especialmente à Profa. Dra. Izabel Andrade Marson e à Profa. Dra. Iara Lis Schiavinatto.

Aos funcionários do Museu Republicano “Convenção de Itu” Maria Cristina, José Renato e Alzira, da biblioteca, por toda a atenção e ajuda, à Anicleide e Giovanna do Arquivo Histórico. Aos funcionários da biblioteca do Museu Paulista e à Profa. Dra. Teresa Cristina Toledo de Paula, conservadora do setor de têxteis, pela indicação de valiosa bibliografia.

Ao Prof. Dr. Carlos de Almeida Prado Bacellar e Daisy Ferraz de Bonna, por cederem os arquivos da documentação digitalizada. Agradeço imensamente Silvana Alves de Godoy, por disponibilizar para consulta as planilhas que confeccionou a partir dos Maços de População da Vila de Itu.

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Agradeço à Anicleide Zequini, Aline Zanatta e Michelle Tasca por toda a ajuda quando ainda iniciava a escrita do projeto de pesquisa. As sugestões, apontamentos e leituras foram muito importantes.

Para a confecção do banco de dados contei com a ajuda de Rosilene e Matheus do CESOP, Profa. Dra. Milena Maranho, Daisy Ferraz e de Márcio Faria. Muito obrigada!

Durante a realização do estágio de pesquisa em Portugal contei com o apoio de muitas pessoas. Agradeço à Universidade do Minho e à Profa. Dra. Isabel dos Guimarães Sá pela supervisão do estágio de pesquisa. O intercâmbio foi extremamente produtivo. Fui muito bem acolhida pela Profa. Dra. Isabel, e também pelo seu grupo de orientandos, especialmente por Andreia Durães, que me auxiliou na seleção das fontes no Arquivo Nacional da Torre do Tombo. Sou grata também aos pesquisadores Leonor, Bruno, Hélder, Alice e Luciane, pelas conversas e sugestões de pesquisa.

Agradeço o empenho e ajuda que Ângela Valério, do Museu Nacional do Traje dispensou a mim, durante a pesquisa que realizei na biblioteca desta instituição. À Profa. Dra. Marta Lourenço do Museu Nacional de História Natural e da Ciência, pelo convite para apresentar minha pesquisa no Seminário de Estudo de Caso de Cultura Material, cujo debate foi muito instigante.

Henrique e Michelle estiveram presentes em todas as etapas do trabalho em Portugal, amigos para todas as horas. Agradeço à Dona Isabel, Elisabete e David a acolhida, e à Dona Ana, Walmira, Luciane e Régia, a companhia.

Tive a ajuda de Juliana e Smirna na revisão do texto. Obrigada Mariana Bernardes pelas correções dos textos em inglês e Danielle Siltori, pelas sugestões.

As disciplinas da pós-graduação significaram mais do que o cumprimento dos créditos, foram realmente momentos de trocas e de aprendizado. Agradeço o companheirismo dos meus colegas Carol, Bea, Fayga, Gabriela Assis, Gabriela Berthou, Ana Luísa, Raíssa, Paula, Michelle, Henrique, Samuel, Felipe, Arthur, Walter, Caroline, Eliane, Juliana, Luciana e Tiago.

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Agradeço à Raíssa, Natália e Stella, pela hospitalidade durante um ano inteiro. Tiago, Fayga, Bea, Gabe e Raíssa mostraram que é possível encarar tudo de uma maneira divertida.

Obrigada Luciana pelas diversas leituras, sugestões e palavras de incentivo. Tenho uma dívida imensa contigo.

Agradeço a todos os meus queridos e valiosos amigos, envolvidos direta ou indiretamente, que me ajudaram, confortaram, dividiram as angústias e entenderam as ausências.

Márcio Faria teve imensa paciência e interesse pelo trabalho, acompanhando de forma próxima e atenciosa todas as etapas. Sem seu amor e companheirismo, tudo seria mais difícil.

E finalmente, à minha família, que me apoiou incondicionalmente desde o momento que decidi me dedicar exclusivamente ao mestrado. Palavras não expressam a minha gratidão.

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Nos meses anteriores à fuga, como recordou Madame Campan, Maria Antonieta deu uma atenção excessiva à forma como iria vestir-se longe de Paris, como se os seus trajes de cores monárquicas fossem uma promessa dos privilégios que ela acreditava estar prestes a recuperar. Ao renegar as cores da militância revolucionária e voltar a abraçar as cores ligadas ao Antigo Regime, e ao reunir o seu antigo “ministério da moda” para a vestir para o seu triunfo iminente, Maria Antonieta indicava que, dali para a frente, a única agenda política revelada pelo seu vestuário era a sua. Tinha apenas mais um vestido enganador para usar antes de ela e a família ficarem finalmente livres.

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ABREVIATURAS

AESP: Arquivo Público do Estado de São Paulo ANTT: Arquivo Nacional da Torre do Tombo, Lisboa

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - Relação entre número de fogos e habitantes da vila de Itu, 1773-1813...38 Tabela 2 – Distribuição dos inventariados por faixas de bens, Itu, 1765-1808...58 Tabela 3 – Roupas da casa, vila de Itu, 1765-1808...74 Tabela 4 – Matérias-primas têxteis arroladas nos domicílios ituanos, 1765-1808...80-81 Tabela 5 – Informações sobre as peças de roupas masculinas, vila de Itu...87-88 Tabela 6 - Objetos de uso pessoal relacionados à aparência, Itu, 1765-1808...96 Tabela 7 – Tipos de peças de roupas femininas, quantidades e valores, vila de Itu, 1765-1808...98 Tabela 8 - Composição dos bens dotados aos filhos de Inácia e José do Amaral Gurgel...156-157

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LISTA DE QUADROS

Quadro 1 - Distribuição das casas dos inventariados por ruas da vila de Itu, 1765-1808...71 Quadro 2 - Bairros identificados na área rural...72-73 Quadro 3 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas masculinas, Itu...89 Quadro 4 – Vestuário e joias pertencentes a Inácio Leite da Fonseca, 1806, Itu...90 Quadro 5 – Vestuário e joias pertencentes a Antonio Francisco da Luz, 1805, Itu...92 Quadro 6 – Bens de Inácio Pacheco da Costa, 1806, Itu...94 Quadro 7 – Relação de cores e tecidos por peças de roupas femininas, Itu...99 Quadro 8 – Vestuário, objetos de uso pessoal e joias pertencentes a Ana Maria da Silveira, 1805, Itu...100 Quadro 9 – Relação das roupas femininas presentes no arrolamento de bens de José Manoel da Fonseca Leite, 1798, Itu...101 Quadro 10 – Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes a Mariana Leite Pacheco, 1779, Itu...102 Quadro 11 - Roupas masculinas por peças, tecidos e porcentagem ao total da amostra lisboeta...105-106 Quadro 12 - Roupas femininas por peças, tecidos e porcentagem ao total da amostra lisboeta, 1765-1808...108-109 Quadro 13 - Vestuário e objetos de uso pessoal pertencentes à Angélica Perpétua Rosa Portella, 1802, Lisboa...110 Quadro 14 – Tecidos do estoque da loja de João Fernandes da Costa, 1801, Itu...115-116 Quadro 15 - Bens relacionados na dívida de Vicente Gonçalves Braga com Antônio José Ferraz Ferreira, 1808...138 Quadro 16 – Esquema genealógico da Família de José Manoel da Fonseca Leite...145 Quadro 17 - Relação das peças de roupas inventariadas no rol de bens de José Manoel da Fonseca Leite e sua partilha, 1798...146 Quadro 18 - Primeiro casamento de José do Amaral Gurgel...154 Quadro 19 - Segundo casamento de José do Amaral Gurgel...156

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Quadro 20 - Roupas recebidas em forma de dote pelas filhas de Inácia e José do Amaral Gurgel...157 Quadro 21 - Terceiro casamento de José do Amaral Gurgel...162 Quadro 22 – Relação das roupas e herdeiros na partilha dos bens de José do Amaral Gurgel, Itu, 1806...163 Quadro 23 – Esquema genealógico da Família Costa Aranha...172

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LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Valor em réis dos bens totais inventariados divididos por categorias...61 Gráfico 2 - Posse de engenho...63 Gráfico 3 - Relação do número cativos nos espólios de Itu, 1765-1808...64 Gráfico 4 - Ocorrência de bens agrupados por produção açucareira...64 Gráfico 5 - Valor dos bens de raiz em relação ao total dos bens, Itu, 1765-1808...66 Gráfico 6 - Materiais e técnicas construtivas dos bens de raiz da vila de Itu, 1765-1808...67 Gráfico 7 - Perfis e ocorrências de bens de raiz em Itu, 1765-1808...70 Gráfico 8 – Tecidos provenientes de Lisboa importados pela vila de Itu (em peças)...113 Gráfico 9 – Tecidos provenientes do Porto importados pela vila de Itu (em peças)...114 Gráfico 10 – Relação das meias de seda importadas por Itu provenientes de Lisboa...117 Gráfico 11 – Número de chapéus importados por ano e o porto de origem...118

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 - Figura por estimação da Vila de Itu, por José Custódio Sá e Faria, 1774...30 Figura 2 - Mapa Estilizado da Vila de Itu em 1830, por André Santos Luigi...31 Figura 3 – Bairros rurais e área central da Vila de Itu, século XIX...34 Figura 4 - Largo de São Francisco, Miguel Dutra, 1845...36 Figura 5 - Vestido Império confeccionado em cassa, 1810...111 Figura 6 - Uniforme de Gala, século XIX...123 Figura 7 – Casula do século XVIII...125 Figura 8 – Exemplo de manto e mantilha, final do século XVIII, Portugal...128 Figura 9 – Penteador, século XIX...131 Figura 10 – Vicente Taques por Miguel Dutra...187 Figura 11 - Vicente da Costa Taques Góes e Aranha por Benedito Calixto...188

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INTRODUÇÃO

Inácio Leite da Silveira foi morador da vila de Itu. Faleceu no ano de 1806, com 68 anos de idade1, deixando quatro filhos já adultos do seu primeiro matrimônio, e dois menores, do segundo casamento com Escolástica Ferraz de Camargo. Na ocasião, um contava dois anos e o segundo era, recém-nascido.2

Escolástica e Inácio viviam em um sítio no bairro Cajuru, próximo à estrada para a vila de Nossa Senhora da Ponte de Sorocaba. No sítio havia três lanços de casas de parede de taipa de mão, cobertas de telhas, um paiol e as casas de engenho do mesmo material, tendo recebido a avaliação de 600$000 (seiscentos mil réis)3. A propriedade continha objetos de cobre e estanho, a saber: as ferramentas para diversos usos, como serras, martelos, ferro de marcar animais, enxadas, bem como acessórios do engenho: os tachos de cobre, cano de alambique e escumadeiras. Na casa do sítio, dispunham de móveis como duas mesas, três catres4, três caixas, um armário e um oratório com três imagens pequenas, no total de 9$680 (nove mil, seiscentos e oitenta réis)5. Alguns pratos de louça fina importada contrastavam com peças de montaria feitas de couro de onça, de preguiça e peças de couro de veado, itens confeccionados com elementos rústicos. Também compunham o sítio seis cativos, os animais de criação, porcos, bois e os aparatos de duas juntas de bois6.

Possuía ainda outro imóvel, uma casa na rua do Conselho, de taipa de pilão, coberta de telhas com quintal, no valor de 100$000 (cem mil réis). Na casa da vila, havia utensílios domésticos como duas bacias de pé de cama, um candeeiro, um ferro de engomar, um tacho e alguns móveis, oito caixas, uma mesa com gaveta, dois bancos, dois catres e um estrado.

1

ARQ/MRCI - GODOY, Silvana Alves de. Tabela dos Maços de População da vila de Itu. 2

ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folha 3. 3

ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folha 10. 4

Leito de pés baixos, de lona e dobrável. Vide SILVA, Antonio Moraes. Diccionario da língua portuguesa. Lisboa: Typographia Lacerdina, 1813. Vol. 1, p. 362.

5

ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folha 8 verso. 6 ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folhas 9 – 10.

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Também havia dois colchões de pano de algodão no valor de $640 (seiscentos e quarenta réis) e duas redes, sendo uma velha de varandas, outra nova, sem varandas, avaliadas cada uma em 1$600 (mil e seiscentos réis)7. De roupas da casa, o casal possuía lençóis de algodão e de cassa, toalha de algodão com franja, toalhinha de mãos de algodão, colcha também de algodão pintada e um cobertor de Castela somando 9$420 (nove mil, quatrocentos e vinte réis), objetos que expressam o padrão observado nos bens avaliados. Porém, são nas roupas de uso pessoal e demais objetos relacionados à aparência que recai nosso interesse: um chapéu, um par de botas, dois pares de esporas, dois pares de fivelas para sapatos e um par de fivelas para calção avaliados em 23$200 (vinte e três mil e duzentos réis)8. De calçados, possuía um par de botas de veado já usadas, no valor de $960 (novecentos e sessenta réis).

No total, as roupas somaram 24$400 (vinte e quatro mil e quatrocentos réis). As peças de pano azul foram avaliadas em 9$480 (nove mil, quatrocentos e oitenta réis) consistiam em um casacão, um fraque e um capote, de baeta azul havia um timão novo em 3$200 (três mil e duzentos réis). Ademais, encontramos duas camisas de bretanha no preço de 2$560 (dois mil quinhentos e sessenta réis), dois pares de meias de algodão em $480 (quatrocentos e oitenta réis), um jaleco e um par de meias de fustão em $800 (oitocentos réis) cada, um calção preto de duraque em $880 (oitocentos e oitenta réis), um lenço de pescoço sem informar tecido no preço de $200 (duzentos réis) e um hábito de terceiro do Carmo descrito pelo avaliador como já muito usado e com todos os seus pertences, no valor de 6$000 (seis mil réis)9.

Todas as roupas foram confeccionadas com tecidos estrangeiros, possivelmente algumas delas fossem importadas já prontas, apresentam semelhança com o vestuário europeu (casaca, calção), particularmente com o português (capote) e expressa a influência da moda inglesa (fraque) além dos tecidos (bretanha). Em menor quantidade, encontramos

7

Varandas ou barandas consistiam em “Guarnições laterais da rede, ornadas de franjas ou borlas esfiadas que são as bonecas da varanda.” Vide CASCUDO, Luís da Câmara. Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica. São Paulo: Global, 2003. p. 15.

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ARQ/MRCI – Inventário de Inácio Leite da Silveira, 1806, caixa 17 A, folhas 11 verso e 12. 9

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peça de uso doméstico (timão) e a indumentária dos leigos religiosos pertencentes às ordens terceiras (hábito). As peças de roupas de Inácio revelam o padrão do vestuário ituano entre os anos de 1765 e 1808. Este recorte compreende o período de crescimento da produção canavieira e de concentração demográfica na vila de Itu, capitania de São Paulo. A produção do açúcar voltada para exportação foi incentivada pelo governador da capitania, Morgado de Mateus.10 A localidade ituana destacou-se até a década de 1830 como a maior produtora de açúcar da capitania, constituindo a base da riqueza de muitas famílias que em meados do século XIX se estabeleceram no oeste paulista, em Campinas, Rio Claro, Ribeirão Preto, dedicando-se à cafeicultura.

No final do século XVIII, muitas famílias ituanas tinham nas propriedades localizadas nos bairros rurais as benfeitorias para a produção do açúcar, plantação de mantimentos e as casas de vivenda. Também contavam com uma casa na área central da vila, onde guardavam os bens mais valiosos relacionados à aparência, como joias, acessórios como chapéus, fivelas de sapatos, de calção e roupas, especialmente as de maior valor e os hábitos de ordens terceiras. Através do arrolamento dos bens nos inventários póstumos realizamos a análise da posse de bens e da materialidade dos artefatos. Buscamos discutir também a questão do consumo, da circulação e dos usos das roupas, considerando a dimensão simbólica, importante, pois tratamos de uma sociedade altamente hierarquizada, permeada por práticas e mentalidades do Antigo Regime, onde “a ostentação pública do lugar ocupado por cada um e de suas prerrogativas tinha importante significado político.”11

Neste sentido, as roupas constituem-se em um importante elemento da aparência.

Apresentamos de forma breve as principais obras e vertentes das ciências humanas e, especialmente da história que versaram sobre a roupa e a moda.

De acordo com Maria Lúcia Bueno, entre o final do século XIX e início do XX, surgiram alguns estudos que buscavam oferecer uma “chave para pensar a moda no mundo

10

BELLOTTO, Heloísa Liberalli. Autoridade e conflito no Brasil colonial: o governo do Morgado de Mateus em São Paulo (1765-1775). 2. Ed. São Paulo:Alameda, 2007. p. 83.

11

LARA, Silvia Hunold. Fragmentos setecentistas: escravidão, cultura e poder na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 86.

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capitalista e industrializado, elaborado com base na teoria da distinção social”12, uma vez que a moda já era concebida como um elemento de “reconstrução das fronteiras sociais na sociedade burguesa.”13

Os principais estudos dessa linha de interpretação são As leis da

imitação, de Gabriel Tarde, A teoria da classe ociosa, de Thorstein Veblen e Filosofia da moda, de Georg Simmel.14

Segundo o filósofo Lars Svendsen, os três estudos partem da teoria do “gotejamento”, difundida por Immanuel Kant e Herbert Spencer. Este termo gotejamento foi empregado para explicar que a inovação da moda ocorreria primeiro em um estrato social mais alto, passando depois para as camadas mais baixas, que se esforçariam para igualar-se às camadas superiores através da imitação.15 A explicação clássica de difusão da moda está amparada nesta formulação do gotejamento.16

Já na década de 1960, a proposta teórica de se tratar a moda através da Semiologia de Fernand Saussure foi empreendida por Roland Barthes no livro Sistema da moda, cujo objeto é “a análise estrutural do vestuário feminino tal qual ele é hoje descrito pelos jornais de Moda.”17

Segundo o autor, o trabalho não se enquadra totalmente à Semiologia e à Linguística, pois seu foco de investigação “não trata nem do vestuário nem da linguagem, mas, sim, da „tradução‟ duma e da outra, contanto que a primeira já seja um sistema de signos.”18

Lars Svendsen problematizou a abordagem estruturalista para análise da moda. Explicou ele que

as roupas podem ser consideradas semanticamente codificadas, mas trata-se de um código com uma semântica extremamente tênue e instável, sem quaisquer regras realmente invioláveis. As palavras também mudam de significado de acordo com o tempo e o lugar, mas a linguagem verbal é muito estável, ao passo

12 BUENO, Maria Lúcia. “Moda e Ciências Humanas”. In: CRANE, Diana. A moda e seu papel social: classe, gênero e identidade das roupas. São Paulo: Editora Senac São Paulo, 2006. p. 10.

13

BUENO, Maria Lúcia. “Moda... p. 10. 14

TARDE, Gabriel. Les lois de l’imitation. Paris: Felix Alcan, 1890; SIMMEL, George. Philosophie de la

modernité. Paris:Payot, 2004; VEBLEN, Thorstein. A teoria da classe ociosa. Sâo Paulo: Livraria Pioneira

Editora, 1965. 15

SVENDSEN, Lars. Moda: uma filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. p. 42 16

SVENDSEN, Lars. Moda... p. 46 17

BARTHES, Roland. Sistema da moda. São Paulo: Ed. Nacional: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979. p. XIX.

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que a semântica do vestuário está em constante mudança. Esta é uma importante razão por que a abordagem estruturalista às modas no vestuário não funciona muito bem: esse método pressupõe significados bastante estáveis. Não por coincidência, foi seu trabalho em O sistema da moda que levou Roland Barthes a abandonar o estruturalismo clássico.19

Na década de 1980, o historiador Roger Chartier, elencou o conceito de representação como um elemento chave para a história cultural, pois “a representação é instrumento de um conhecimento mediato que faz ver um objeto ausente através da sua substituição por uma “imagem” capaz de o reconstituir em memória e de o figurar tal como ele é”, definiu o autor20. Acerca do vestuário, ao pensarmos nas relações entre a roupa e quem a vestia, considerando as pessoas, os espaços e eventos que frequentavam, bem como a recepção/percepção da aparência por seus contemporâneos, Chartier nos indicou

que a distinção fundamental entre representação e representado, entre signo e significado, é pervertida pelas formas de teatralização da vida social de Antigo Regime. Todas elas tem em vista fazer com que a identidade do ser não seja outra coisa senão a aparência da representação, isto é, que a coisa não exista a não ser no signo que a exibe.21

Ao estudar os aspectos simbólicos da cultura, as contribuições de Pierre Bourdieu também são importantes referências teóricas para a análise da vestimenta enquanto elemento simbólico. 22 Para o autor, os símbolos são os instrumentos por excelência da „integração social‟ pois “enquanto instrumentos de conhecimento e de comunicação (...), eles tornam possível o consenso acerca do sentido do mundo social que contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social”23

. Na busca pela distinção e dominação simbólica, Bourdieu apontou que as disputas “que têm o poder simbólico como

19

SVENDSEN, Lars. Moda... p. 79 20

CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Lisboa/ Rio de Janeiro, Difel/Bertrand, 1990. p. 20

21

CHARTIER, Roger. A História... p. 21 22

“Os habitus são princípios geradores de práticas distintas e distintivas. (...) Mas o essencial é que, ao serem percebidas por meio dessas categorias sociais de percepção, desses princípios de visão e de divisão, as diferenças nas práticas, nos bens possuídos, nas opiniões expressas tornam-se diferenças simbólicas e constituem uma verdadeira linguagem. As diferenças associadas a posições diferentes, isto é, os bens, as práticas e sobretudo as maneiras, funcionam, em cada sociedade, como as diferenças constitutivas de sistemas simbólicos, como o conjunto de fonemas de uma língua ou o conjunto de traços distintivos e separações diferenciais.” BOURDIEU, Pierre. Razões praticas: sobre a teoria da ação. Campinas: Papirus, 1996. p. 22 23

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coisa em jogo, quer dizer, o que nelas está em jogo é o poder sobre um uso particular de uma categoria particular de sinais.” 24

Ao criticar as análises baseadas na semiótica, o antropólogo Daniel Miller chamou atenção para o peso dos artefatos sob as pessoas, pois sob a perspectiva semiológica, a roupa “é reduzida à habilidade de significar algo que parece mais material (sociedade ou relações sociais), como se estas coisas existissem acima ou anteriormente à sua própria materialidade.”25

Concordamos com a crítica de Miller à semiótica, pois a roupa sozinha emanaria um código, uma informação, e o sujeito que a veste teria nessa equação uma participação pequena ou mesmo nula.

Miller e Ulpiano Meneses sugerem caminhos de investigação parecidos, que contemplam a interação, ou seja, a relação entre sujeito e objeto de forma equilibrada, considerando elementos materiais, simbólicos, sociais, psicológicos em escala de igualdade e importância.26 O autor inglês propôs que é necessário

confrontar os trecos: reconhecê-los, respeitá-los; nos expor à nossa própria materialidade, e não negá-la. Meu ponto de partida é que nós também somos trecos, e nosso uso e nossa identificação com a cultura material oferecem uma capacidade de ampliar, tanto quanto de cercear, nossa humanidade.27

Assim, acreditamos ser necessário analisar de forma ponderada o peso e papel dos sujeitos e objetos, visto que no caso da aparência, é a interação destes dois elementos, ou seja, em todas as ações que integram o ato de vestir-se, que são cruciais para nossa investigação.

Em relação a trabalhos descritivos e ilustrativos sobre história da moda, cabe destacar três estudos produzidos na segunda metade do século XIX, entre eles a obra

História do Vestuário, de Carl Köhler que se distingue das demais pela grande abrangência

24

BOURDIEU, Pierre. O Poder… p. 72 25

MILLER, Daniel. Introduction. In: KÜCHLER, Susanne; MILLER, Daniel. (ed.) Clothing as material

culture. Oxford:Berg, 2005. p. 2 Tradução nossa. 26

MENEZES, Ulpiano. Prefácio In: CARVALHO, Vânia Carneiro de. Gênero e Artefato: o sistema doméstico na perspectiva da cultura material – São Paulo, 1870 – 1920. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo/FAPESP, 2008. p. 12.

27

MILLER, Daniel. Prefácio. Trecos, troços e coisas. Estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 12

(37)

7

temporal e pelo caráter técnico: inúmeros desenhos de trajes com informações detalhadas, inclusive com moldes e fotografias28. O segundo, a obra ilustrada de história do vestuário mais conhecida é Le costume historique de Auguste Racinet. Publicada entre 1876 e 1886, em vinte fascículos para assinantes, foi reeditada em 1888, em seis volumes. A edição retratava o vestuário em uma longa duração: do Egito antigo ao início do século XIX. De acordo com Melissa Leventon, esse trabalho “ganhou notoriedade não só pela impressionante abrangência, mas também por ser o primeiro livro de moda para um público amplo a utilizar a cromolitografia, técnica que se popularizou a partir da década de 1860 e tornou a publicação de imagens coloridas mais acessível.”29

Um trabalho semelhante ao de Racinet e também da segunda metade do século XIX, é Trachten, Haus- Feld- und Kriegsgerätschaften der Völker alter und neuer Zeit [Trajes e utensílios da cidade, do campo e de guerra dos povos dos tempos antigos e modernos], de autoria de Friedrich Hottenroth. Composta de duzentas ilustrações, a obra de Hottenroth retratou o vestuário europeu até 1840, sendo publicada entre 1884 e 1891. Leventon fez uma ressalva: apesar do grande valor histórico das imagens, devemos tomar uma série de cuidados na avaliação dos desenhos, pois desconhecemos as fontes utilizadas, o rigor e a precisão adotados, especialmente em relação às cores empregadas, inseridas posteriormente, em edições diferentes.30

Já no século XX, encontramos outra importante referência: o historiador inglês James Laver. Entre 1938 e 1959, Laver foi curador e responsável pelos departamentos de Gravura, Desenho e Pintura do Victoria and Albert Museum de Londres. O autor tornou-se referência para cursos de arte na Inglaterra e é considerado um dos maiores especialistas em história das roupas. Sua obra A roupa e a moda: uma história concisa31, publicada em 1968,

28

KÖHLER, Carl. História do Vestuário. São Paulo: Martins Fontes, 1993. (Edição original: Die Entwicklung

der Tracht in Deutschland während des Mittelalters und der Neuzeit, Nuremberg, 1877.) 29

LEVENTON. Melissa (org.). História Ilustrada do vestuário: um estudo da indumentária do Egito Antigo ao final do século XIX, com ilustrações dos mestres Auguste Racinet e Friedrich Hottenroth. São Paulo: Publifolha, 2009. p. 6.

30

LEVENTON. Melissa (org.). História ...p. 8 – 9. 31

A primeira edição, de 1968, A Concise History of Costume (World of Art). No Brasil, foi publicada em 1990 pela Companhia das Letras. Cf. LAVER, James. A roupa e a moda: uma história concisa. São Paulo: Companhia das letras, 1989.

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8

compreende o vestuário desde o Egito e Mesopotâmia da antiguidade até 1960 no mundo ocidental.

Durante o século XX, estudos sobre vestimentas e moda surgiram em âmbito de instituições museológicas, como o de Laver. Na história, os estudos concentravam-se em política e economia. Na historiografia francesa, especialmente na Escola dos Annales temas diferenciados foram abordados.

Foi a partir de Fernand Braudel, sucessor de Lucien Febvre na direção da revista dos Annales e também da VI Seção da École des Hautes Études en Sciences Sociales que os estudos acerca da cultura material ganharam visibilidade.32 Febvre propôs a Braudel a escrita da história da Europa entre 1400 e 1800, em dois capítulos. O primeiro seria dedicado ao pensamento e crença, o qual ficaria a cargo de Febvre, e o segundo, versaria sobre a história da vida material, sob responsabilidade de Braudel.33 Lucien Febvre faleceu antes de iniciar o projeto. No entanto, Braudel deu continuidade ao mesmo, escrevendo três volumes sobre seu tema (volume 1: As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível; vol. 2: Os jogos das trocas; vol. 3: O tempo do mundo), com o título Civilização Material, Economia e Capitalismo34. Segundo Peter Burke, Braudel partiu das “categorias econômicas do consumo, distribuição e produção”, mas não se prendeu às fronteiras tradicionais da história econômica (agricultura/comércio/indústria)35. Além de suas contribuições valiosas sobre as diferentes durações na história e sua concepção espacial diferenciada, Braudel reintroduziu o conceito de civilização material e o cotidiano como abordagem importante para o estudo das sociedades.36

Para nossa pesquisa, o primeiro volume da obra Civilização Material é extremamente relevante, pois nele Braudel tratou, entre outros temas, do vestuário e da

15

BURKE, Peter. A Revolução Francesa da historiografia: a Escola dos Annales (1929-1989). São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991. p. 39.

33

BURKE, Peter. A Revolução... p. 40. 34

BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo: séculos XV-XVIII. São Paulo: Martins Fontes, 1998. 3 v.

35

BRAUDEL, Fernand. Civilização... p. 40 - 41 36

Burke aponta as referências de Braudel para o estudo do cotidiano (T.F. Troels-Lund) e para civilização material (Oswald Spengler). BURKE, Peter. A Revolução... p. 42

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9

moda. Em relação ao vestuário, ao combater possíveis críticas ao tema abordado, justificou o seu estudo apontando caminhos de análise. Para ele o exame da vestimenta possibilita a problematização e o entendimento: “das matérias-primas, dos processos de fabrico, dos custos de produção, da fixidez cultural, das modas, das hierarquias sociais.”37 Desta forma, Braudel apontou para os aspectos tradicionais nos costumes de vestir, pertencentes à longa duração, como alguns trajes de festas, a interessante relação entre o uso de roupa interior e a disseminação de doenças de pele, e características dos trajes camponeses. 38 Do tradicional e do permanente, Braudel passou para as mudanças do século XIV, as quais considerou serem as primeiras manifestações da moda39. E ressaltou ainda mais um tema suscitado pelas vestimentas: a produção e circulação têxtil40. Burke teceu apenas uma ressalva ao estudo de cultura material de Braudel: a ausência do domínio simbólico41.

Ainda ligado à historiografia francesa, e da terceira geração dos Annales, destaca-se o autor Daniel Roche.42 Dentre seu trabalho com história cultural e social francesa, dois livros em especial são referências importantes para o estudo do vestuário: História das

coisas banais: nascimento do consumo (século XVII – XIX), de 1997, e A Cultura das aparências: uma história da indumentária (séculos XVII – XVIII), de 1989.43

História das coisas banais tratou do consumo entre os séculos XVII e XIX, com o

foco na materialidade.44 Na primeira parte do livro, Roche apresentou o panorama das transformações ocorridas no âmbito da cidade. Na segunda, destacou o ambiente doméstico, ressaltando o impacto da iluminação, da distribuição de água, móveis e objetos, hábitos de alimentação, entre eles, o vestuário e a aparência. No capítulo VIII, Vestuário e

aparência, o autor abordou os principais aspectos das roupas durante o Antigo Regime,

37

BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 271. 38

BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 273. 39

BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 276. 40

BRAUDEL, Fernand. Civilização... 1998a, p. 284 41

BURKE, Peter. A Revolução...p. 42 42

Professor da Universidade de Paris I, diretor de estudos na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Durante a década de 1970, pesquisou sobre a vida cotidiana do povo de Paris (Le Peuple de Paris. Essai sur la culture populaire au XVIIIe siècle, Paris, Aubier, 1981).

43

As publicações das edições brasileiras são respectivamente de 2000 e 2007. 44

ROCHE, Daniel. História das coisas banais: nascimento do consumo nas sociedades do século XVII ao XIX. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.

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10

como a hierarquia social, as leis suntuárias e a questão da moda modas e do vestuário entre diferentes regiões francesas. Daniel Roche aprofundou essas questões em sua obra seguinte,

O Povo de Paris.45

No livro A Cultura das aparências, Roche desenvolveu uma análise valiosa sobre as vestimentas e os costumes46. Seu estudo abarcou a França, mais especificamente Paris entre os séculos XVII e XVIII, correspondente período de governo dos reis Bourbons Luís XIV, Luís XV e Luís XVI. Nesta obra, Roche dedicou-se exclusivamente ao universo das roupas, evidenciando os sistemas indumentários franceses de três séculos. O autor ressaltou os elementos da hierarquia das aparências – questão crucial para uma sociedade do Antigo Regime, o surgimento da roupa branca, a importância dos uniformes, e toda a cadeia produtiva, de consumo e circulação das roupas: os oficiais, os comerciantes e consumidores parisienses. A importância do trabalho de Daniel Roche reside no fato de nos apresentar uma sociedade através dos valores simbólicos e estéticos que estruturavam a „cultura das aparências‟ então vigentes.

Também encontramos estudos relacionados à moda e às vestimentas na perspectiva de uma personalidade. Isto é, através de uma pessoa é possível discutir e proporcionar todo o debate do contexto em que ela se insere. Sob esta perspectiva, dois livros são bons exemplos dessa opção de análise: A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV, de Peter Burke, e Rainha da Moda, de Caroline Weber.47

Peter Burke realizou um estudo sobre a imagem pública de Luís XIV e seu lugar no imaginário coletivo. O autor apontou a extensa bibliografia existente sobre este monarca,

45

No prefácio de O Povo de Paris, Roche explicou que esta obra foi produzida durante a década de 1970 e foi publicada pela primeira vez na França em 1981. Neste livro, o autor já havia reservado um capítulo ao vestuário popular. Portanto, os trabalhos seguintes apontam a continuação e aprofundamento do autor no tema. Cf. ROCHE, Daniel. O Povo de Paris: ensaio sobre a cultura popular no século XVIII. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2004. p. 11 – 29.

46

ROCHE, Daniel. A cultura das aparências: Uma história da indumentária (séculos XVII-XVIII). São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2007.

47

BURKE, Peter. A fabricação do rei: a construção da imagem pública de Luís XIV. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1994; WEBER, Caroline. Rainha da Moda. A roupa que Maria Antonieta usou para a Revolução. Oceanos: Lisboa, 2008.

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11

mas a relevância deste trabalho está no enfoque à figura do rei: projeto de construção da imagem real levado a cabo por seus homens de confiança, depois também executado pelo próprio rei, no período do governo pessoal, e de que forma essa imagem foi recebida contemporaneamente e na posteridade.

O livro nos chama atenção especialmente pela investigação sobre as representações reais, buscando referências mobilizadas por Luís XIV e/ou as consolidadas a partir dele. Burke enriqueceu sua análise ao apresentar sempre a imagem da peça a qual se referia em seu texto. Imagens variadas: fotografias, rascunhos, esboços de estátuas, quadros, medalhas, plantas arquitetônicas. Rainha da Moda, por sua vez, é uma obra que evidenciou a influência estética de Luís XIV sob Maria Antonieta. Segundo Caroline Weber, há muitos trabalhos sobre Maria Antonieta, especialmente biografias. No entanto, nenhum investigou a fundo a relação do público com a roupa da rainha, a relação estabelecida entre a moda e a política para esta figura pública importantíssima.

De maneira inovadora, Weber investigou como Maria Antonieta utilizou a moda para marcar uma posição política em Versalhes, bem como sua imagem era compreendida, tanto por membros da corte, quanto por seus súditos. Entre outras fontes, a autora utilizou as referidas biografias de Maria Antonieta, relatos, memórias de pessoas que frequentavam a corte e também os panfletos publicados principalmente contra a rainha.

Weber demonstrou como Maria Antonieta se serviu da moda para demarcar sua posição política e desencadear o gosto pela moda na França: roupas, chapéus, penteados e adereços ganhavam outra visibilidade e significados. Contemporânea e posteriormente a rainha geralmente foi retratada de forma negativa, apontando o excesso de luxo, ou a falta dele. O livro coloca ao leitor a dimensão e o papel da roupa para Maria Antonieta assim como a construção da sua imagem pública.

Voltada à análise da composição e utilização dos bens que integravam os enxovais dos membros da corte portuguesa, a pesquisa da historiadora Isabel dos Guimarães Sá

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12

evidenciou a interessante utilização de objetos como estratégias de reforço de autoridade e poder político entre os séculos XV e XVII.48

Dedicados à roupa e à moda dos séculos XIX e XX, destacamos o livro de Diana Crane, A Moda e Seu Papel Social - Classe, Gênero e Identidade das Roupas. A autora apresentou um panorama da moda e de padrões de vestuário da França, Inglaterra e Estados Unidos no período pós-industrial.49 Também cabe destacar a contribuição de Gilles Lipovetsky ao analisar a moda nas sociedades modernas e pós-modernas.50 Para a área de curadoria de acervos têxteis em instituições, as obras The study of dress history e

Establishing Dress History de Lou Taylor são importantes referências, pois problematizam

as roupas em acervos e dialogam com a historiografia sobre moda.51

No Brasil, por sua vez, grande parte da produção acadêmica sobre vestimentas e moda está ligada às atividades de museus. De forma geral, existem poucos trabalhos acadêmicos sobre o tema, pois a moda e as roupas, geralmente relacionadas ao universo feminino, foram consideradas por muito tempo assuntos menos importantes.

Em seu trabalho pioneiro, Vida e morte do bandeirante, Alcântara Machado trabalhou com a coleção dos Inventários e Testamentos da vila de São Paulo, publicada pelo Arquivo do Estado de São Paulo, no início da década de 1920. Através dos inventários, Machado discorreu sobre aspectos materiais da vida dos primeiros paulistas, antecipando temáticas e abordagens somente tratados pela historiografia muitas décadas depois, como o estudo do cotidiano. O capítulo „Fato de vestir, joias e limpeza da casa‟ é

48

SÁ, Isabel dos Guimarães. “Coisas de princesas: casamentos, dotes e enxovais na família real portuguesa (1480-1580)”, Revista de História da Sociedade e da Cultura 10, tomo I: 97 – 120, 2010. SÁ, Isabel dos Guimarães. “Dressed to impress: clothing, jewels and weapons in court rituals in Portugal (1450-1650).” Paper presented at the Conference Clothing and the Culture of Appearances in Early Modern Europe.

Research Perspectives, Madrid, Fundación Carlos Amberes/Museo del Traje. 3-4 February 2012. SÁ, Isabel

dos Guimarães. “The uses of luxury: some examples from the Portuguese Courts from 1480 to 1580”, Análise

Social 14, 192: 589 – 604, 2009. 49

CRANE, Diana. A Moda e Seu Papel Social - Classe, Gênero e Identidade das Roupas. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2006.

50

LIPOVETSKY, Gilles. O império do efêmero: a moda e seu destino nas sociedades modernas. São Paulo: Companhia das Letras, 1989; RIOUX, Elyette e LIPOVETSKY, Gilles. O luxo eterno: da idade do sagrado ao tempo das marcas. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.

51

TAYLOR, Lou. The study of dress history. Manchester: Manchester University Press, 2002; e TAYLOR, Lou. Establishing Dress History. Manchester: Manchester University Press, 2004.

(43)

13

dedicado à análise do vestuário, tipos de tecido, peças de roupas, preço do feitio de roupas, joias, adereços e peças de uso doméstico.52

Inicialmente publicada no volume V da Revista do Museu Paulista em 1952, a tese de doutoramento de Gilda de Mello e Souza, A moda no século XIX, foi orientada por Roger Bastide ganhando projeção e reconhecimento apenas trinta e sete anos depois, o que aponta a falta de interesse da historiografia pela temática.

Reeditada em 1987 sob o título O espírito das roupas: a moda no século

dezenove53, a obra encontrou um ambiente acadêmico transformado especialmente pela antropologia e pela história das mentalidades, o que permitiu a definição de novos temas e objetos de estudo. Segundo Heloisa Pontes, a consolidação do campo da moda no Brasil – tanto pela profissionalização, quanto como uma área de interesse acadêmico - possibilitou a legitimação do tema e da obra de Gilda de Mello e Souza54.

De viés sociológico, a pesquisa de Souza utilizou-se de fontes impressas e visuais: fotografias, pranchas coloridas de moda, estudos sobre moda, romances e crônicas de jornal foram seu escopo documental prioritário, que permitiu a autora analisar com maior riqueza de detalhes a moda no século XIX. Outro trabalho de cunho sociológico é o livro Modos de

homem & modas de mulher de Gilberto Freyre.55 Publicado em 1987, um ano antes da obra de Gilda de Mello e Souza, este trabalho de Freyre abordou do final do século XIX até a década de 1980, várias questões relacionadas aos costumes e à moda no Brasil, como a influência da moda francesa, a adaptação e criação de peças e tecidos genuinamente brasileiros e a mudança dos padrões femininos de beleza.

52

MACHADO, Alcântara. “Fatos de vestir, joias e limpeza da casa.” In: Vida e morte do bandeirante. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006.

53

SOUZA, Gilda de Mello e. O espírito das roupas: a moda no século dezenove. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.

54

PONTES, Heloisa. A paixão pelas formas. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, p. 87-105, 2006. p. 91 55

(44)

14

Passaremos agora a alguns trabalhos realizados no âmbito de museus ou a partir de coleções museológicas.56 Três trabalhos estão relacionados ao acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo57.

A tese de Teresa Toledo de Paula, Tecidos no Brasil: um hiato, conservadora do Setor de Têxteis do Museu Paulista-USP, visa compreender a conservação dos têxteis pertencentes ao acervo do Museu Paulista e do MAE (Museu de Arqueologia e Etnologia), ambos da Universidade de São Paulo58, bem como a falta de informação generalizada sobre tecidos no Brasil.

Em relação ao período colonial, a autora abordou algumas imagens de indumentárias, fruto do romantismo do século XIX, cristalizadas até hoje no imaginário nacional. Exemplo, a “roupa branca de Peri”, personagem de José de Alencar, na obra O

Guarani, retratado em túnica branca, elemento relacionado à civilidade, em oposição às

vestimentas de peles de animais, penas e ossos dos aimorés, denotando atraso e um estado animalesco.59

A tese de doutorado de Rita Morais de Andrade investigou a trajetória de um vestido da maison francesa Bouè Soeurs, durante a década de 1920 até sua incorporação à coleção de objetos no Museu Paulista, em 1993, através da doação realizada pela filha da proprietária do vestido. 60 A autora utilizou o vestido como principal fonte através da opção

56

Cabe ressaltar a importância do acervo bibliográfico específico de têxteis do qual o Museu Paulista da Universidade de São Paulo é detentor. Devido à criação do Setor de Têxteis em 1994, esta instituição passou a atuar especificamente neste ramo montando o acervo bibliográfico, com formação e treinamento da equipe, bem como ampliando o acervo têxtil.

57

Discussão desenvolvida por nós no artigo O que a traça não comeu: reflexões sobre o trabalho histórico com o vestuário como fonte de cultura material, disponível em:

<http://snh2013.anpuh.org/resources/anais/27/1371316848_ARQUIVO_ArtigoLigiaSouzaGuidoAnpuh2013o k.pdf>

58

PAULA, Teresa Cristina Toledo. Tecidos no Brasil: um hiato. Tese (Doutorado em Ciências de Informação). 2004. Escola de Comunicações e Artes. Universidade de São Paulo . São Paulo, 2004. p. 10. 59

PAULA, Teresa Cristina Toledo. Tecidos... p.49-50. 60

ANDRADE, Rita Morais. Bouè Soeurs RG 7091. A biografia cultural de um vestido. Tese (Doutorado em História). 2008. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo, 2008. p. 29-30.

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15

teórica proposta na década de 1980 por Igor Kopytoff, a biografia do objeto61, mais especificamente, a biografia cultural de um objeto, abordagem ainda não difundida e pouco adotada no Brasil.

Especialista de apoio à pesquisa e supervisor do Serviço de Objetos do Museu Paulista, Adílson José de Almeida desenvolveu sua dissertação de mestrado, sobre uma categoria específica de indumentária, os uniformes da Guarda Nacional. O recorte temporal explorado por Almeida circunscreve o período de criação da Guarda Nacional, (1831) e o estabelecimento do segundo plano de uniformes, época em que ocorreram várias alterações relevantes (1852). Sua estratégia foi abordar não a totalidade da existência da associação, mas o período mais relevante para compreender a regulamentação oficial dos uniformes. De 80 peças entre uniformes e insígnias, o autor contou com cinco que permitiam melhor identificação ao período de análise.

Almeida sistematizou três conceitos para empreender a análise dos uniformes: as funções pragmáticas, diacríticas e simbólicas. A análise das funções pragmáticas foi dividida nos seguintes itens: proteção contra choques e intempérie, regulação da temperatura, favorecimento à mobilidade e higiene.62 Nas funções diacríticas, observou-se a necessidade da Guarda Nacional em diferenciar-se dos uniformes civis.63 Já nas funções simbólicas, Almeida explorou os elementos de cidadania, honra e ética, associados ao uniforme da Guarda Nacional.64

Outro trabalho relacionado ao acervo têxtil museológico é o de Soraya Aparecida Álvares Coppola, dedicado aos paramentos litúrgicos do Museu Arquidiocesano de Arte

61

Cf: KOPYTOFF, Igor. “A biografia cultural das coisas: a mercantilização como processo.” In:

APPADURAI, Arjun. A vida social das coisas: as mercadorias sob uma perspectiva cultural. Niterói: Editora da Universidade Federal Fluminense. 2008.

62

ALMEIDA, Adílson José de. Uniformes da Guarda Nacional: 1831 – 1852. A indumentária na organização e funcionamento de uma organização armada. Dissertação (Mestrado em História). 1998. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo. São Paulo, 1998. p. 83 63

ALMEIDA, Adílson José de. Uniformes... p. 99. 64

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16

Sacra de Mariana-MG65. Como objetivo principal, a autora estabeleceu o “estudo, conhecimento e catalogação do acervo têxtil” do referido museu, comparando o acervo mineiro com coleções têxteis italianas. 66 Na análise dos paramentos litúrgicos, ressaltou um tríplice ponto de vista: “a prática atual quanto a sua forma, qualidade e uso; o desenvolvimento histórico quanto à forma, qualidade e uso; significado simbólico.”67 Coppola encontrou a maioria das vestes externas, já que as internas, de uso pessoal, eram lavadas muitas vezes, deteriorando mais facilmente. Como existe um grande número de paramentos remanescentes e em bom estado de conservação, a hipótese é que talvez os religiosos possuíssem roupas próprias.

Além de um glossário, a autora disponibilizou informações importantes nos Anexos. Relevantes não apenas para compreendermos melhor suas fontes e análises, mas também como dados sobre tecidos para comparações em futuros trabalhos, como modelos de fichas para catalogação, transcrição do inventário dos bens da igreja e uma compilação das principais características dos paramentos de cada segmento pertencente à igreja católica.

Duas dissertações versaram sobre vestimentas no século XVIII e utilizaram como principal fonte os inventários post-mortem, na região das minas.

Em sua dissertação de mestrado, Cláudia Mól abordou o cotidiano e a vida material das mulheres forras de Vila Rica, entre 1750 e 1800.68 A autora avaliou os bens de mulheres forras em 74 testamentos e inventários. Através dos dados obtidos, foi possível constatar a ocupação destas mulheres, a forma de habitação, a posse e o relacionamento com seus cativos, as relações de sociabilidades estabelecidas na participação de irmandades religiosas, bem como o vestuário e as joias pertencentes às forras.

65

COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. Costurando a Memória: o acervo têxtil do Museu Arquidiocesano de Arte Sacra de Mariana. Dissertação (Mestrado em Artes Visuais). 2006. Escola de Belas Artes.

Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006. p. 21 66

O trabalho de Soraya junto ao acervo têxtil se iniciou com o levantamento e a catalogação do acervo têxtil do MAAS, pois apesar de tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), não havia sido devidamente inventariado até então.

67 COPPOLA, Soraya Aparecida Álvares. Costurando... p. 21. 68

MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres forras: cotidiano e cultura material em Vila Rica-1750-1800. 2002. Dissertação (Mestrado em História) Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2002.

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A autora resgatou registros semelhantes de viajantes, como Mary Graham e Luís dos Santos Vilhena, nos quais relatavam a grande diferença entre os trajes domésticos (muito “à vontade”, largos, transparentes e que deixavam partes íntimas à mostra) e as roupas utilizadas fora de casa, pois “ao se apresentar em público, essa mesma mulher adornava-se da melhor forma possível e ostentava, tanto através dos trajes quanto das joias, uma posição social, se não possuída, imensamente desejada.”69

Mól também apontou outro elemento importante relacionado a vestimenta, a legislação portuguesa que regulamentava o vestuário e a transgressão destas normas por parte das mulheres forras.

As mulheres brancas deveriam zelar por uma boa conduta, mantendo o máximo de discrição, portando capas negras e vestindo tecidos nobres.70 Mol apontou que apesar das proibições, “a moda, representou, assim, a oportunidade para que as mulheres negras expressassem suas preferências estéticas, desafiando as normas vigentes na América Portuguesa.”71

Já a dissertação de Marco Aurélio Drumond analisou o comércio, a produção e os usos de roupas na Comarca do Rio das Velhas na primeira metade do século XVIII, período em que houve um grande êxito da atividade mineradora.72 Como atestado pela historiografia, a mineração atraiu um grande número de pessoas, tanto da Colônia, quanto de Portugal. Neste sentido, o autor demonstrou a importância do vestuário para aquela sociedade, uma vez que existia naquele espaço a convivência de diferentes camadas sociais: funcionários reais, escravos, forros, faiscadores, clérigos e comerciantes.

Ao se dedicar ao universo da produção, Drumond teceu uma interessante análise sobre os “oficiais da aparência”: sapateiros, alfaiates e costureiras.73

A atividade destes oficiais era rigidamente fiscalizada e regulamentada pelas câmaras municipais. Segundo o autor, os inventários destes oficiais analisados demonstraram através das dívidas “a

69

MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres... p. 90. 70 MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres... p. 91-92. 71

MÓL, Cláudia Cristina. Mulheres... p. 92 72

DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária e Cultura Material: Produção, comércio e usos na Comarca do Rio das Velhas (1711-1750). 2008. 217f. Dissertação (Mestrado em História). Faculdade de Filosofia e Ciências humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte. 2008.

73

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18

inserção social desses oficiais que, de maneira direta ou indireta à sua atividade, mantinham relações comerciais (de crédito ou de serviço) com indivíduos de diferentes espaços da Comarca, mesmo que distantes do seu local de morada.”74

O trabalho intitulado O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808 – 1821), de Camila Borges da Silva, explorou o papel da cultura indumentária no Antigo Regime português em um contexto muito peculiar, na Corte joanina então situada na colônia.

Diferentemente de uma área dedicada à história da moda, que trata das mudanças e transformações dos trajes, a pesquisa de Silva se insere em uma vertente mais ampla que reconhece o potencial das roupas (em diversos suportes, tais como material, visual, escrito) como objeto principal. Considerando a vestimenta como uma “linguagem passível de ser lida socialmente”75

, a autora buscou a relação das peças com os significados e práticas sociais que permeavam a sociabilidade e a cultura política lusa.

Silva investigou durante a estadia da corte portuguesa no Rio de Janeiro a presença e oferta de produtos importados, de mão de obra especializada relacionada à aparência, como alfaiates, costureiras e cabeleireiros, além da interessante relação travada entre a monarquia e a elite comercial fluminense abastada que almejava títulos e comendas nobilitantes, concedidos em troca de serviços e doações financeiras. A autora também dedicou especial atenção aos cerimoniais de corte, atentando para a importância das vestes, adereços e insígnias portados e exibidos publicamente.76

Também dedicado ao estudo da moda na corte, o trabalho de Joana Monteleone intitulado O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda, versou sobre o período de

74

DRUMOND, Marco Aurélio. Indumentária... p. 81. 75

SILVA, Camila Borges da. O símbolo indumentário: distinção e prestígio no Rio de Janeiro (1808 – 1821). Rio de Janeiro: Secretaria Municipal da Cultura: Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, 2010. p. 21. 76

Cf. Capítulo 3. O Luxo e as Insígnias – estratégias de prestígio e distinção nos cerimoniais da Corte. In: SILVA, Camila Borges da. O símbolo...

(49)

19

governo de D. Pedro II, o segundo reinado, período complexo, marcado pela combinação de elementos aristocráticos, com traços de Antigo Regime, com a ascensão da burguesia77.

Nos trabalhos mencionados, foi possível dimensionar a grande importância dos ofícios ligados à aparência nas sociedades coloniais, o papel dos trajes nos momentos festivos coloniais, bem como a necessidade de produtos importados, oriundos principalmente da Europa. Os contextos de Minas Gerais e Rio de Janeiro são interessantes para nosso estudo sobre Itu, pois fornecem dois padrões (ainda que muito distintos) de contextos coloniais no início do século XVIII, para a região mineradora, e do século XIX em dois momentos da corte carioca, como parâmetro para compararmos com o contexto paulista, considerando com todas as particularidades e contextos.78

Para São Paulo, além do trabalho de Alcântara Machado, contamos com a pesquisa de Luciana da Silva, Artefatos, sociabilidades e sensibilidades.79 Pautada na cultura material, Silva analisou as redes de sociabilidade e o trânsito de objetos na vila de São Paulo entre os séculos XVI e XVII, dedicando um tópico especificamente às vestimentas.

Como principais trabalhos no campo da cultura material que utilizam os inventários póstumos, elencamos as dissertações de Luciana da Silva, de Nuno Luís Madureira,

Inventários - Aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime, a investigação sobre Alimentação e Cultura Material na América portuguesa

desenvolvida por Leila Mezan Algranti80 e a terceira parte da obra Portas adentro, dirigida

77

MONTELEONE, Joana de Moraes. O circuito das roupas: a corte, o consumo e a moda (Rio de Janeiro, 1840-1889). 2013. Tese (Doutorado em História Econômica) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013.

78

Cabe destacar também para o contexto carioca o trabalho “Estilos de vida e consumo doméstico da elite mercantil fluminense, em 1808: uma representação da natureza simbólica dos objetos asiáticos”, de Luís Frederico Dias Antunes. In: MARTINS, Ismênia e MOTTA, Márcia (org.) 1808: A corte no Brasil. Niterói, RJ: Editora da UFF, 2010. Pp. 331-365.

79

SILVA, Luciana da. Artefatos, sociabilidades e sensibilidades: cultura material em São Paulo (1580-1640). 2013. Dissertação (Mestrado em História). Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas.

80

ALGRANTI, Leila Mezan. “Alimentação e Cultura material: das fontes seriadas ao estudo de caso (Rio de Janeiro segunda metade do século XVIII).” Apresentação parte da Mesa redonda: Caminhos de pesquisa sobre cultura material. In: V Encontro Internacional de História Colonial. UFAL, Maceió-AL, 2014. Texto fornecido pela autora.

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20

por Isabel Sá e Máximo Férnandez, dedicada aos bens de luxo, em herança e patrimônios familiares.81 Entre os artigos, cabe destacar “Inventarios post-mortem, cultura material y consumo em Léon durante la Edad Moderna”, de Juan Manoel Bartolomé Bartolomé, e “Penhoristas do Porto no início do século XVII: homens, atividade e objetos”, de Andreia Durães. Também de autoria de Durães, o artigo “The Empire Within” abordou aspectos metodológicos e apresentou dados referentes ao consumo de bens coloniais em Lisboa.82

A principal fonte de nossa pesquisa são inventários póstumos, que consistem no processo de levantamento, avaliação e partilha dos bens de um indivíduo entre seus herdeiros. No arrolamento dos bens, cada objeto era descrito, algumas vezes mencionavam seu estado de conservação e por último, recebia um valor monetário atribuído por avaliadores. Os inventários são (até as três primeiras décadas do século XIX) a única documentação remanescente que fornece dados sobre roupas e tecidos dos moradores da vila ituana.

Consultamos 148 inventários post-mortem da vila de Itu, correspondente à totalidade de documentos do recorte temporal, balizados pelas datas de 1765, que corresponde à autonomia administrativa da Capitania de São Paulo e ao início do governo de Morgado de Mateus, que promoveu e incentivou a produção açucareira paulista voltada à exportação, e no ano de 1808, quando a corte portuguesa chega ao Rio de Janeiro e ocorreu a abertura dos portos brasileiros, o que diversificou a oferta de tecidos, roupas, acessórios e profissionais da aparência na América Portuguesa.

Os critérios para escolha dos inventariados foi a seleção de indivíduos residentes na vila de Itu (ruas e bairros rurais, não em seus termos) e que possuíssem roupas ou itens têxteis em seus espólios.83 Junto ao Primeiro Ofício de Justiça de Itu foram localizados

81

SÁ, Isabel dos Guimarães e FÉRNANDEZ, Máximo García (dir.). Portas adentro: comer, vestir e habitar na Penínlsula Ibérica (ss. XVI-XIX). Valladolid: Universidad de Valladolid, Secretariado de Publicaciones e Intercambio Editorial: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2010.

82

DURÃES, Andreia. “The Empire Within: Consumption in Lisbon in Eighteenth Century and First Half of the Nineteenth Century” In: Histoire & Mesure, EHESS, Vol. XXVII, 2012, pp. 165-196.

83

Referências

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