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Capítulo 3 “Cerzindo” objetos e sujeitos: consumo, circulação e representação das

3.1 Padrões cotidianos de vestuário

O inventário póstumo dos bens que um indivíduo dispunha em seu domicílio a princípio nos induz a considerá-lo como uma relação de todos os bens acumulados durante sua vida. Entretanto, da mesma forma que adquirimos, também nos desfazemos, trocamos, vendemos, doamos e perdemos objetos em muitas ocasiões. Os inventários post-mortem

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MENESES, Ulpiano Toledo Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, História visual.

Balanço provisório, propostas cautelares.” In: Revista Brasileira de História. São Paulo, v. 23, nº 45, pp. 11- 36, 2003.p. 26.

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que dispomos para análise da cultura material dos séculos dezoito e dezenove nos fornecem uma gama de dados sobre um momento específico não apenas de um indivíduo, mas de sua família e de sua casa, pois todos os bens móveis e imóveis eram arrolados e avaliados a fim de garantir a sobrevivência dos filhos menores quando da morte de um genitor.

Neste sentido, a definição de consumo dos antropólogos Mary Douglas e Baron Isherwood refere-se a “um uso de posses materiais que está além do comércio” e é central para analisarmos a posse, a utilização e a circulação dos objetos enquanto materialidade da cultura.2 Os objetos arrolados nos inventários post-mortem foram adquiridos em algum momento da vida daquele indivíduo, apresentam, às vezes, vestígios de uso (quando descritos como velhos, gastos) e até ali faziam parte do conjunto de bens de um domicílio. Depois da partilha, muitas vezes a unidade desse conjunto de objetos era desfeita, sendo estes repartidos entre o cônjuge e herdeiros. Também parte era direcionada à arrematação pública, para ser convertida em dinheiro com o intuito de quitar as dívidas.3

Como salientou Daniel Miller, na qualidade de objetos mais pessoais, a vestimenta “desempenha papel considerável e atuante na constituição da experiência particular do eu, na determinação do que é o eu.”4 As roupas são necessárias para proteção do corpo, atuam como indicadores de status, e são compreendidas como artefatos que nos compõem. Observamos através dos inventários póstumos o consumo de roupas com o intuito de compreender como essas peças eram utilizadas pelo seu proprietário em vida, e após sua morte, de acordo com os registros de partilha e arrematação. Elegemos alguns personagens do universo ituano para evidenciar algumas questões envolvendo os sujeitos e suas roupas.

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DOUGLAS, Mary, ISHERWOOD, Baron. O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2004. p. 102-114

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Nos inventários post-mortem após a descrição e avaliação dos bens, os valores atribuídos a estes eram somados, denominado Monte-mor. Somadas as dívidas a receber (ativas) e subtraídas as dívidas a pagar (passivas), resta o Monte-menor, dividido em duas partes, denominadas meação. Se o inventariado possuísse um cônjuge, este receberia a Meação (metade) e a outra meação seria dividida em duas partes menores, um terço do valor (chamada Terça) era destinada a livre deliberação do inventariado, geralmente registrada como últimas vontades nos testamentos. E finalmente, dois terços do valor eram destinados aos herdeiros.

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MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a cultura material. Rio de Janeiro: Zahar, 2013. p. 63.

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Em 1803 o oficial ferreiro e soldado de sertanejas, Vicente Gonçalves Braga declarava ao Capitão Eufrázio de Arruda Botelho, seu recenseador, viver de ferragens e não possuir nenhum bem.5 Ele e sua esposa Ana Maria da Silva eram pardos e viviam em uma casa na Rua de Santa Rita, região central ituana.

Quando Vicente faleceu em 1808, a soma de seus bens era de aproximadamente 200$000 (duzentos mil réis) e sua dívida, contava em torno de 70$000 (setenta mil réis). No exercício da função de soldado, Vicente dispunha de uma farda, um capacete e uma espada. Normalmente o ferreiro trajava uma véstia de chita e um par de calças de ganga ou, poderia optar pelo conjunto de colete e calças de bretanha verde. Este último conjunto, avaliado em seu inventário na quantia de 1$760 (mil e setecentos e sessenta réis), apresenta valor semelhante à farda, no valor de 1$600 (mil e seiscentos réis), e à soma de outras duas peças mencionadas, 1$920 (mil novecentos e vinte réis).

Somadas as peças de roupas, o valor de 5$280 (cinco mil, duzentos e oitenta réis), ainda é menor do que o de suas armas que foram a leilão: uma espada arrematada em 2$000 (dois mil réis) e uma espingarda por 4$000 (quatro mil réis).6 As roupas também valem menos do que as cinco fivelas de prata do inventariado, avaliadas em 10$980 (dez mil, novecentos e oitenta réis). A sua casa, porém, foi avaliada em 100$000 (cem mil réis). Contabilizando o valor da roupa, este corresponde a 2,63% de seus bens. De forma geral, o valor das peças de roupas não alcançou na média 3% do valor total dos bens de Vicente. Os valores das categorias bens de raiz e escravos impactam na representação das roupas no espólio. Desta forma, quando somamos as demais categorias e excluímos imóveis e escravaria, as roupas passam a ocupar de 3,4% até 23% dos espólios em geral.

Ao final do inventário de Vicente, encontramos uma relação de itens que ele devia a Antônio Jose Ferraz Ferreira, possivelmente um mercador, mencionado como morador da vila de Itu.7 Vejamos os itens arrolados:

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AESP, Maços de População de Itu, 1803, lata 74. Apud. SAMARA, Eni de Mesquita. Lavoura Canavieira,

trabalho livre e cotidiano. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2005. p. 83. 6 ARQ/MRCI - Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1808.

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Quadro 15 - Bens relacionados na dívida de Vicente Gonçalves Braga com Antônio José Ferraz Ferreira, 1808

Categoria de bem Descrição Avaliação

(em réis)

Ferramentas 1 lima número 14, 1 lima número 11, 1 lima grande. $800 Objetos de uso pessoal relacionados à aparência Um chapéu de Braga 2$400 Matérias-primas

Meia vara de cassa, uma meada de linho, uma vara de fita, um côvado de baeta, meia vara de cadaço,

resto de 3 côvados de baeta, retrós azul

2$770

Total 5$970

Fonte: ARQ/MRCI, Inventário de Vicente Gonçalves Braga, folha 20.

A relação de bens apresenta três ferramentas (limas), um chapéu importado de Braga, tecidos em quantidades variadas a saber: cassa, linho, baeta, e outros componentes empregados nas costuras, como fita, retrôs e cadaço, que consiste em uma fita de linho branco ou de cor, segundo Moraes Silva8. Também consta um item Rel em conserto, apenas

com o valor de $220 (duzentos e vinte réis) referentes às peças de roupas que o inventariado teria enviado para reparos.9 A relação da dívida indica os materiais consumidos por Vicente e sua família para a confecção de roupas, exceto as três limas. Vicente dispunha de tecidos comuns, como linho, baeta e cassa, além de retrós e fitas para encomendar peças ao alfaiate ou costureira da vila, pois nas dívidas existe menção a conserto de roupas.

Outra moradora da Rua de Santa Rita era Quitéria de Oliveira, recenseada em 1803 e inventariada no ano seguinte. No censo, contava com 74 anos, solteira, costureira, sendo que residia com uma escrava em sua casa.10 Seu espólio era modesto, no valor de 313$560 (trezentos e treze mil, quinhentos e sessenta réis). Relacionado ao ofício, Quitéria possuía em sua casa uma vara e meia de ruão, no valor de $720 (setecentos e vinte réis) e retalhos

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SILVA, Antonio Moraes. Dicionario da língua portuguesa, vol. 1. p. 317. Disponível em: < http://www.brasiliana.usp.br/pt-br/dicionario/2/cadar%C3%A7o> . Acesso em 17/10/2014. 9

ARQ/MRCI - Inventário de Vicente Gonçalves Braga, 1808. 10

ARQ/MRCI - Inventário de Quitéria de Oliveira; AESP - Maços de População da vila de Itu, microfilme, rolos 85, 87, 88, 89, 90, 91.

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de pano de linho avaliados em $600 (seiscentos réis). De roupas, possuía três saias de baeta, duas pretas e uma azul. Uma destas saias preta era velha e foi avaliada em $640 (seiscentos e quarenta réis), a azul, em $480 (quatrocentos e oitenta réis) e a segunda preta mais nova, em 1$600 (mil e seiscentos réis). Em relação a objetos de uso pessoal, além das referidas saias, Quitéria contava com dois pares de brincos de ouro.11

Quitéria teve como herdeiros cinco sobrinhos. Alguns de seus bens foram arrematados: sua escrava, sua casa, seus brincos de ouro, um tacho, um prato, uma caixa, e enxadas. Até itens de baixos valores foram levados a pregão, porém, suas saias e as roupas de casa compostas de sete toalhas de algodão e linho, e uma fronha de algodão não foram conduzidas a leilão. Quitéria possuía um mínimo de objetos de variadas categorias, necessários à sua sobrevivência. Os itens que chamam a atenção são três barras de ouro, numeradas, avaliadas em 59$242 (cinquenta e nove mil, duzentos e quarenta e dois réis), 33$686 (trinta e três mil, seiscentos e oitenta e seis réis) e 24$482 (vinte e quatro mil, quatrocentos e oitenta e dois réis), respectivamente, as quais correspondiam a 37,4% de seus bens.

A princípio podemos considerar as joias, os adereços e peças de ouro e prata apenas como itens importantes para a aparência, complementando o traje. No entanto Nuno Madureira ressaltou que os objetos de ouro e prata possuem um “estatuto duplo: são, por um lado, bens com valor de uso pessoal – adornos e adereços -, e, por outro, formas de entesouramento.”12

Além do valor material, a posse de ouro e prata estava associada a um valor simbólico relacionado à boa conduta e sucesso na administração dos bens familiares, materializada na transmissão destes entre as gerações. O autor apontou também que a acumulação de peças de ouro e prata correspondia a uma espécie de seguro contra inesperados, situação na qual se conseguia converter rapidamente os metais preciosos em papel moeda.

11 ARQ/MRCI - Inventário de Quitéria de Oliveira, folha 3 verso. 12

MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários: Aspectos do consumo e da vida material em Lisboa nos finais do Antigo Regime. Dissertação de Mestrado em Economia e Sociologia Históricas, século XV – XX. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa. 1989. p. 65

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Em relação à classificação dos inventários póstumos analisados em nossa amostragem, não empregamos o conceito de pobreza, riqueza e decadência. Conforme sugeriu Milena Maranho, estes conceitos não são palavras neutras, portanto, não possuem significados estáveis.13 Pela perspectiva antropológica, Mary Douglas tratou a pobreza a partir da sua relação com o contexto social e não como a ausência ou falta de posses.14

Nuno Madureira ao trabalhar com inventários póstumos lisboetas assinalou que “a ideia de pobre veiculada pelos depoimentos é a da canalização de todos os recursos para as despesas do dia-a-dia sem hipótese de acumulação de reservas de valor. Não ter o suficiente equivale a não ter dinheiro para poupar.”15

O autor considerou dois valores em seu trabalho como critérios: os espólios inferiores a $400 (quatrocentos réis) foram denominados como pobres e aqueles menores de $200 (duzentos réis) considerados como miseráveis.16

Optamos por não empregar uma classificação baseada em valores, pois é importante observar a composição dos bens além das somas monetárias. Quitéria seria considerada pobre pela classificação que utiliza a soma do espólio, empregada por Madureira, mas as barras de ouro e a escrava que a costureira possuía são indicativas da variedade de padrões de bens que existiam. Consideramos inviável adotar uma classificação, indicando um indivíduo como pobre, se este possuía dois dos bens mais significativos no período: escravaria e metais preciosos. Por menores que fossem os valores atribuídos aos bens, como no caso da escrava de Quitéria, a carga simbólica que representavam é muito importante para ser desconsiderada, ao se privilegiar os valores monetários na avaliação. Para efeito de análise, adotamos então a comparação entre os próprios inventariados da amostra ituana.

A principal documentação utilizada contempla os domicílios mais abastados ou pelo menos os que possuíam um mínimo de bens a ser avaliado e cuidado para que os herdeiros

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Sobre a discussão sobre a decadência econômica da vila de São Paulo no período da mineração aurífera, Cf. MARANHO, Milena Fernandes. A opulência relativizada: níveis de vida em São Paulo do século XVII (1648 – 1682). Bauru, SP: EDUSP, 2010, capítulos I e II e BORREGO, Maria Aparecida de Menezes. A teia mercantil: negócios e poderes em São Paulo Colonial (1711 – 1765). São Paulo: Alameda, 2010. p. 35-54. 14

DOUGLAS, Mary, ISHERWOOD, Baron. O mundo...p. 35. 15

MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários...p. 17-18. 16MADUREIRA, Nuno Luís. Inventários...p. 18

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menores não fossem prejudicados na partilha ou com espoliação antes desta. Apesar de representar uma amostra da população, os inventários nos permitem avaliar os diferentes padrões de consumo entre indivíduos de diferentes faixas econômicas. Vejamos um outro domicílio ituano.

Manoel Antônio Leite perdeu no ano de 1806 seu pai Inácio Leite da Silveira, e sua esposa Ana Maria da Silveira, com quem tinha um filho de dois meses, Antônio. Inácio possuía um sítio de vivenda com engenho no bairro do Cajuru e uma casa na rua do Conselho. O casal provavelmente vivia no sítio já que no censo de 1803 o senhor de engenho Inácio declarou viver com três filhos e na partilha de bens de Ana Maria, cabia a Antônio parte do referido sítio de seu avô Inácio.

Além dos itens têxteis, Ana Maria dispunha de poucos bens: dois escravos, três vacas e um boi, uma caixa. O que notamos é que apesar de escassos, os bens de Ana Maria eram relevantes, ou seja, de considerável valor econômico. Quanto às roupas da casa, dispunha de três toalhas de algodão, sendo uma de mesa, um par de lençóis de algodão já usado, contabilizando 2$980 (dois mil, novecentos e oitenta réis). Ainda encontramos dois pedaços de pano de linho e de chita, no valor de 1$520 (mil, quinhentos e vinte réis) e sete saias de tecidos variados: droguete, pano azul, brilhante, chita, baeta, guingão e linho, avaliadas em 15$080 (quinze mil e oitenta réis), uma camisa de Bretanha com gola rendada, 1$600 (mil e seiscentos réis) e, por fim, uma peça de baeta sem identificação, em 2$000 (dois mil réis). Também possuía um par de brincos, um laço e um crucifixo no valor de 2$700 (dois mil e setecentos réis) e um par de fivelas de sapato com o preço de 1$500 (mil e quinhentos réis).

Ao analisar pelos valores, a proporção das roupas em relação ao total de bens de Ana Maria é de 2,7%. Excluindo os escravos e bens de raiz, as vestimentas perfaziam 44,7% dos pertences de Ana Maria. A inventariada possuía 646$140 (seiscentos e quarenta e seis mil, cento e quarenta réis) em bens, mais 73$000 (setenta e três mil réis) em dívidas a receber, totalizando 719$140 (setecentos e dezenove mil, cento e quarenta réis). Esta comparação monetária evidencia a importância das vestimentas frente aos demais bens.

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Ana Maria mostrou-se mais abastada em relação a Vicente e Quitéria. Porém, se observarmos os três personagens em relação à composição dos bens que possuíam, notamos mais semelhanças do que diferenças. A diferença no caso de Ana Maria foi contabilizar parte do sítio que seu sogro (senhor de engenho) possuía, no valor de 340$200 (trezentos e quarenta mil e duzentos réis). Os bens se assemelham ao número reduzido de escravos, joias e roupas da casa. Quitéria e Ana Maria possuíam peças de roupas de um padrão muito semelhante, composto de saias e camisas. Porém, na variedade, Ana Maria e Quitéria dispunham de quantidade e peças distintas, considerando também o estado e os tecidos de suas roupas.

Um dos conjuntos de vestuário feminino mais representativo da amostra ituana foi o de Mariana Leite Pacheco, composto por manto e saia de seda, avaliados em 3$200 (três mil e duzentos réis) e 15$000 (quinze mil réis) respectivamente, saia e espartilho de veludo nos valores de 12$800 (doze mil e oitocentos réis) e 5$000 (cinco mil réis) nessa ordem, duas peças identificadas como rasgão17, um de brilhante outro de veludo em 4$800 (quatro mil e oitocentos réis) e 4$480 (quatro mil, quatrocentos e oitenta réis) e um par de sapatos de seda, avaliado em 1$000 (mil réis).18 O vestuário de Mariana, avaliado no total por 45$280 (quarenta e cinco mil, duzentos e oitenta réis) era composto por tecidos nobres, e um item incomum para a amostra, o espartilho.

O domicílio do capitão José Manoel da Fonseca Leite, mais abastado do que os inventários acima mencionados, indica-nos dados também interessantes.

Em 1772, José Manoel casou-se com Josefa Maria de Góes, filha do capitão-mor Antônio Pacheco da Silva. Natural de Itu registrou seu testamento em 1785, tendo falecido quatro anos depois, em 1789. Seu espólio consta entre os cinco maiores da amostra, e estava dividido entre a propriedade no bairro do Pirapitingui e em um sobrado localizado na rua do Carmo.19 No Pirapitingui, a propriedade era formada por duas casas, plantação de cana, casa de engenho e de moinho, sendo avaliada em 6:000$000 (seis contos de réis). No

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Não foi possível identificar o que seria rasgão. 18

ARQ/MRCI – Inventário de Mariana Leite Pacheco, 1779. Folha 4. 19

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sítio havia dez pares de lençóis de linho, quatro de algodão e um par de bretanha. Quatro pares de fronhas de linho, todas com rendas, seis pares de bretanha, um cortinado de cama de algodão, quatro toalhas de mão, quatro toalhas de mesa, seis toalhas sem especificar o uso, sendo três de linho, e três de algodão, duas colchas de chita forradas com durante e três cobertores de papa. De uso pessoal, um casacão de baeta azul e dois chapéus de sol, um coberto de holanda, outro de ganga.

No sobrado da Rua do Carmo, havia vinte e seis itens de ouro, quarenta e dois de prata, três relógios de algibeira, louças finas, móveis e roupas. As roupas arroladas pertenciam ao casal, uma exceção observada em nossa amostra. Notamos também que constam poucas roupas de casa: um par de lençóis de linho com babados, um cobertor de papa velho, quatro toalhas de mão de linho ou bretanha. De uso pessoal, encontramos dezenove itens: dois penteadores, dois conjuntos de veste e calção, dois hábitos, duas fardas, uma opa e três vestidos masculinos. Do universo feminino, destacamos: três roupas inteiras, duas saias e duas marcelinas. Josefa possuía “uma roupa inteira de mulher de cabaia cor de rosa, com avental de seda branca, tudo guarnecido de galões de ouro, avaliada em 28$000 (vinte e oito mil réis); uma dita de cetim preto com seu manto, 16$000 (dezesseis mil réis); uma dita de veludo com seu manto usado, 12$800 (doze mil e oitocentos réis).”20

Se na propriedade do Pirapitingui estavam os bens relacionados à produção, no sobrado da vila foram arrolados os objetos importantes para a aparência do casal. Além das roupas acima mencionadas, foram inventariados dois hábitos: um de terceiro do Carmo com todos os seus pertences, no valor de 12$000 (doze mil réis) e outro, de S. Francisco, calculado em 2$560 (dois mil, quinhentos e sessenta réis).21 Provavelmente o hábito de terceiro do Carmo serviu de mortalha a José Manoel, pois conforme consta em seu testamento, as disposições mencionavam seu pertencimento à ordem carmelita e o desejo de ser sepultado na capela da referida ordem.

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ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso. 21ARQ/MRCI – Inventário de José Manoel da Fonseca Leite, folha 16 verso.

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Como capitão, José Manoel envergava possivelmente duas fardas: uma farda de pano azul fino com suas dragonas de fios de prata, com véstia e calção, em bom uso, avaliada em 8$000 (oito mil réis), e outra do mesmo tecido, porém sem dragonas, com véstia e calção, no valor de 4$000 (quatro mil réis).22

Em testamento de 1785, José Manoel declarou que possuía um engenho de açúcar e algumas benfeitorias em terras aforadas no bairro Pirapitingui, que pertenciam aos religiosos do Carmo da vila de Itu. Segundo o testador, este usufruía da propriedade

com a condição de eu não poder vender: mas sim, que poderia eu doá-las com todas as benfeitorias aos meus parentes; por isso – Declaro, que de toda esta propriedade, assim como possuo, faço inteira e total doação; quanto possa, e me for em Direito permitido à dita minha mulher Josefa Maria de Góes, e todos os meus filhos e filhas, para que vivam na dita Propriedade, e possuam igualmente, para o que eu os declaro, e instituo meus legítimos herdeiros assim dela como do remanescente da minha terça. Declaro, porém que se a dita minha mulher, depois que eu morrer, se casar segunda vez, neste caso desde já a dou por deserdada assim da dita propriedade, como do remanescente da minha terça23

De acordo com as Ordenações Filipinas, José Manoel estava seguindo corretamente a lei, nomeando em testamento os parentes que herdariam o direito ao usufruto da propriedade aforada, inclusive de forma igualitária entre seus filhos e esposa. José Manoel era dono de um patrimônio avaliado em 14:554$662 (quatorze contos, quinhentos e cinquenta e quatro mil, seiscentos e sessenta e dois réis), o quarto maior espólio da amostra. Em 1785 quando escreveu seu testamento, o homem já demonstrava certa preocupação em relação à propriedade na qual possuía o engenho de açúcar e as benfeitorias. A disposição de deserdar sua mulher da referida propriedade caso contraísse matrimônio novamente, baseava-se apenas na vontade do testador, (ou no costume, pela tradição), pois não encontramos menção a uma situação semelhante na legislação.24A preocupação em relação à administração dos bens legados às viúvas era comum, pois o