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A moralidade administrativa no contexto democrático brasileiro: desencontros da doutrina administrativista e da jurisprudência do STF

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CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS FACULDADE DE DIREITO DO RECIFE PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO

Camila Laurentino Lopes

A MORALIDADE ADMINISTRATIVA NO CONTEXTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: desencontros da doutrina administrativista e da jurisprudência do STF

DISSERTAÇÃO DE MESTRADO

Recife 2017

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A moralidade administrativa no contexto democrático brasileiro: desencontros da doutrina administrativista e da jurisprudência do STF

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito do Centro de Ciências Jurídicas/Faculdade de Direito do Recife da Universidade Federal de Pernambuco como requisito final para obtenção do título de Mestre em Direito. Área de concentração: Teoria e Dogmática do Direito Linha de pesquisa: Estado, Constitucionalização e Direitos Humanos / Direitos Humanos, Sociedade e Democracia

Orientador: Prof. Dr. João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira

Recife 2017

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Catalogação na fonte

Bibliotecário Wagner Carvalho CRB/4-1744 L864m Lopes, Camila Laurentino

A moralidade administrativa no contexto democrático brasileiro: desencontros da doutrina administrativista e da jurisprudência do STF. – Recife: O Autor, 2017.

115f.

Orientador: Profº. Drº. João Paulo Allain Teixeira.

Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Pernambuco. CCJ. Programa de Pós-Graduação em Direito, Recife, 2017.

Inclui referências.

1. Direito Administrativo - Brasil. 2. Ciência política – Brasil. 3. Pós-positivismo filosófico. 4. Brasil. Supremo Tribunal Federal. 5. Democracia - Brasil. I. Teixeira, João Paulo Allain (Orientador). II. Título.

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A MORALIDADE ADMINISTRATIVA NO CONTEXTO DEMOCRÁTICO BRASILEIRO: desencontros da doutrina administrativista e da jurisprudência do STF

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Faculdade de Direito do Recife / Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal de Pernambuco, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Direito. Área de concentração: Teoria e Dogmática do Direito. Orientador: Prof. Dr. João Paulo Fernandes de Souza Allain Texeira. A banca examinadora composta pelos professores abaixo, sob a presidência do primeiro, submeteu a candidata à defesa, em nível de Mestrado, e a julgou no seguintes termos:

MENÇÃO GERAL: ____________________________

Professor Dr. João Paulo Fernandes de Souza Allain Teixeira (Presidente) Assinatura: ______________________________________________

Professor Dr. José Luciano Gois de Oliveira (1º Examinador: Externo/UNICAP)

Julgamento: _____________________________ Assinatura:_________________________

Professor Dr. Artur Stamford da Silva (2º Examinador: Interno/UFPE)

Julgamento: _____________________________ Assinatura:_________________________

Professor Dr. Alexandre Ronaldo da Maia de Farias (3º Examinador: Interno/UFPE) Julgamento: _____________________________ Assinatura:_________________________

______________, ___ de _________ de _______.

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Ao Deus de todo o entendimento, pela oportunidade de qualificar-me em busca de melhor servi-Lo no mundo profissional;

A Luis, Rosilene, Flaviana e Tarcísio, por serem a firmeza da minha raiz, quando os ventos do mundo sopram meus galhos em tantas direções;

A Thomas, pela sublime realização de ser comigo, em cada momento, dos gráficos e formatações deste trabalho aos contornos e formas que o Amor nos traçar;

A Luiz Carlos e à Comunidade Lumen, pelo aprendizado de ofertar esforços por algo muito além de mim mesma;

A Vitória, por compartilhar pacientemente suas descobertas, recursos e etapas de construção de um mesmo projeto acadêmico e de vida;

A Artur Stamford, pela disponibilidade e atenção gratuitas para com este trabalho.

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“Este é tempo de partido, tempo de homens partidos.

Em vão percorremos volumes, viajamos e nos colorimos.

A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é túmulo, e escreve-se na pedra.

Visito os fatos, não te encontro. Onde te ocultas, precária síntese, penhor de meu sono, luz

dormindo acesa na varanda?

Miúdas certezas de empréstimo, nenhum beijo sobe ao ombro para contar-me

a cidade dos homens completos.

Calo-me, espero, decifro. As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas!”

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Os desencontros na delimitação de sentido do princípio da moralidade administrativa, tanto entre os administrativistas e diplomas legais que tratam do tema, quanto na jurisprudência recente do Supremo Tribunal Federal, formam a tônica do presente trabalho. Inicialmente, contextualizou-se o tema no âmbito do pós-positivismo filosófico de resgate de cargas valorativas, da crise do liberalismo econômico na crítica à busca do autointeresse e da crise ética e democrática da esfera pública brasileira, motivada pelos recentes escândalos de corrupção no país. Em seguida, usando a metodologia da pesquisa bibliográfica, abordou-se a origem sistematizada da moralidade administrativa, que remonta ao controle dos desvios do poder na seara do direito francês, e as controvérsias doutrinárias na recepção desse instituto no Brasil, onde se firmou como contraponto à legalidade formal dos atos administrativos, sob a feição de conceito jurídico indeterminado. Depois da menção aos dispositivos constitucionais e diplomas legais que regulamentam esse instituto, realizou-se uma pesquisa empírica de dados dos acórdãos do STF que citam expressamente a moralidade administrativa, entre os anos de 2012 a 2016, buscando analisar se também a jurisprudência da Suprema Corte espelhou a fluidez conceitual observada na doutrina e na legislação pátrias que versam sobre o tema.

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Disagreements towards the delimitation of meaning of the administrative morality principle, both among the Administrative Law writers and laws concerning the subject, and in the recent jurisprudence of the Federal Supreme Court, are the focus of this work. Initially, the topic was contextualized in the scope of the philosophical post-positivism of values rescue, from the crisis of economic liberalism in the critique of the search for self-interest and the ethical and democratic crisis of the Brazilian public sphere, motivated by the recent corruption scandals in this country. Then, using the methodology of the bibliographical research, we approached the systematized origins of administrative morality, which goes back to the control of power deviations in French law, and the legal doctrine controversies in the reception of this institute in Brazil, where it was firmed as a counterpoint to the formal legality of administrative acts, in terms of an indeterminate legal concept. After mentioning the constitutional articles and legal acts that regulate this institute, there was an empirical research of data of the Supreme Court judgments that explicitly cite the administrative morality between the years of 2012 to 2016, seeking to analyze if also the jurisprudence of the Brazilian Supreme Court mirrored the conceptual fluidity observed in the legal doctrine and laws that deal with the subject.

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ADC – Ação Direta de Constitucionalidade ADI – Ação Direta de Inconstitucionalidade

ADPF – Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental AgR – Agravo Regimental

AI – Agravo de Instrumento AP – Ação Penal

ARE – Recurso Extraordinário com Agravo CNJ – Conselho Nacional de Justiça

CPC – Código de Processo Civil HC – Habeas Corpus

Inq – Inquérito

MS – Mandado de Segurança

OAB – Ordem dos Advogados do Brasil PJe – Processo Judicial Eletrônico Rcl – Reclamação

RDA – Revista de Direito Administrativo RE – Recurso Extraordinário

RHC – Recurso Ordinário em Habeas Corpus RMS – Recurso em Mandado de Segurança SL – Suspensão de Liminar

STF – Supremo Tribunal Federal STJ – Superior Tribunal de Justiça STM – Superior Tribunal Militar TJSP – Tribunal de Justiça de São Paulo TSE – Tribunal Superior Eleitoral TST – Tribunal Superior do Trabalho

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INTRODUÇÃO ... 11

1 O CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO DO ESTADO SOCIAL DEMOCRÁTICO: AMBIENTANDO A DISCUSSÃO SOBRE A MORALIDADE ADMINISTRATIVA ... 16

1.1 DA FILOSOFIA PÓS-POSITIVISTA DO DIREITO ÀS TEORIAS POLÍTICAS DEMOCRÁTICAS ... 16

1.2 O ASPECTO MORAL DA BUSCA DO INTERESSE COLETIVO NA CRÍTICA AO LIBERALISMO POLÍTICO-ECONÔMICO ... 20

1.3 A CORRUPÇÃO DA ESFERA PÚBLICA BRASILEIRA ... 24

2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA 30 2.1 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE MORALIDADE ADMINISTRATIVA ... 30

2.1.1 França: o berço da sistematização ... 30

2.1.2 Desenvolvimentos em outros sistemas jurídicos: Itália, Espanha e Portugal ... 36

2.2 A RELEITURA BRASILEIRA DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA ... 40

2.2.1 Primeiras menções... 40

2.2.2 Tentativas dispersas de situar e conceituar a moralidade do ato administrativo ... 42

2.2.3 Moralidade X Legalidade ... 47

2.2.4 Moralidade administrativa X Moralidade comum ... 50

2.3 A PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA NA FORMA DE PRINCÍPIO ... 52

2.3.1 Uma relevância sem precedentes ... 52

2.3.2 O princípio constitucional da moralidade administrativa: conceito indeterminado ou discricionário? ... 54

2.3.3 As diferentes feições da moralidade administrativa na Constituição Cidadã e as lacunas de sentido nos diplomas legais que regulamentam a matéria... 57

2.3.4 O desencontro de sentidos espelhado na jurisprudência ... 62

3. ANÁLISE DE ACÓRDÃOS: UMA PESQUISA EMPÍRICA DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA NA JURISPRUDÊNCIA RECENTE DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL ... 68

3.1 BREVES COMENTÁRIOS SOBRE A PESQUISA EMPÍRICA EM DIREITO E A ANÁLISE DE ACÓRDÃOS ... 68

3.1.1 A pesquisa empírica como superação do paradigma idealista da doutrina jurídica... 68

3.1.2 O “mundo dos fatos” do direito: o Poder Judiciário e seus acórdãos ... 69

3.1.3 Características da pesquisa de acórdãos judiciais ... 72

3.2 DESENHANDO A PESQUISA: PROBLEMÁTICA, HIPÓTESE E VERIFICAÇÃO 75 3.2.1 Esclarecendo a problemática e formulando a hipótese a ser testada ... 75

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3.3 RESULTADOS E CONCLUSÕES DA PESQUISA: MEDIANDO CERTEZAS E INCERTEZAS EM INFERÊNCIAS DESCRITIVAS QUANTO À MORALIDADE ADMINISTRATIVA ... 85 3.3.1 Resultados da pergunta n.º 1: Qual a data de julgamento? ... 86 3.3.2 Resultados da pergunta n.º 2: Quantas vezes a moralidade é citada? ... 87 3.3.3 Resultados da pergunta n.º 3: Quantas vezes a moralidade é referida junto a outros

princípios ou valores? Quais e por quantas vezes cada um? ... 88 3.3.4 Resultados da pergunta n.º 4: A moralidade é referida como princípio central na questão de fato sob exame? Se sim, ele foi considerado observado ou violado? ... 91 3.3.5 Resultados da pergunta n.º 5: Houve algum balizamento do conceito de moralidade? Se sim, por mera afirmação, doutrina ou precedente judicial? ... 91 3.3.7 Analisando os resultados da pesquisa através de inferências ... 92 3.3.8 Posicionar-se é encarar o desafio: o exemplo do ministro Teori Zavascki ... 95 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS: TRAÇANDO LINHAS PARA UM POSSÍVEL

BALIZAMENTO DO PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA . 100 REFERÊNCIAS ... 105

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INTRODUÇÃO

O tema da moralidade administrativa encontra-se em plena discussão no cenário sociopolítico brasileiro, especialmente diante dos recentes e alarmantes casos de corrupção dos agentes públicos nacionais. O escândalo do Mensalão1 somado, recentemente, às investigações, acusações e condenações no bojo da Operação Lava Jato2, vem levando a opinião pública a um cansado descrédito na probidade das instituições públicas nacionais e dos agentes administrativos e políticos, que frequentemente as movem em prol de seus interesses particulares, deixando o bem público em segundo (ou último) plano.

Nesse cenário, volta a ganhar força o clamor social pela moralização do Poder Público, pelo exercício do chamado direito à boa administração pública, que alberga a faculdade de exigir uma administração: transparente (com especial resguardo do direito à informação), dialógica (com as garantias do contraditório e da ampla defesa), imparcial (que não pratica nem estimula discriminação negativa, mas promove discriminações inversas ou positivas, redutoras das desigualdades injustas), proba (na vedação de condutas éticas

1

O Supremo Tribunal Federal concluiu que o “Mensalão” foi um esquema ilegal de financiamento político organizado pelo PT para corromper parlamentares e garantir apoio ao governo Lula no Congresso em 2003 e 2004, logo após a chegada do partido ao poder. Esse esquema possuía três núcleos: o político, chefiado pelo então ministro da Casa Civil, José Dirceu, e formado por outros três dirigentes partidários que integravam a cúpula do PT; o operacional, encabeçado pelo empresário Marcos Valério Fernandes de Souza, dono de agências de publicidade que tinham contratos com o governo federal, condenado por usar suas empresas para desviar recursos dos cofres públicos para os políticos indicados pelos petistas; e o financeiro, alimentado pelo Banco Rural através de empréstimos fraudulentos, permitindo que os políticos sacassem o dinheiro sem se identificar e transferissem parte dos recursos para o exterior. Os participantes desse esquema foram acusados de sete crimes: formação de quadrilha, lavagem de dinheiro, corrupção ativa, corrupção passiva, peculato, evasão de divisas e

gestão fraudulenta. [FONTE:

<http://www1.folha.uol.com.br/especial/2012/ojulgamentodomensalao/ojulgamento/> Acesso em 31 jul. 2015.] 2“A operação Lava Jato é a maior investigação de corrupção e lavagem de dinheiro que o Brasil já teve. Estima-se que o volume de recursos desviados dos cofres da Petrobras, maior estatal do país, esteja na casa de bilhões de reais. Soma-se a isso a expressão econômica e política dos suspeitos de participar do esquema de corrupção que envolve a companhia. (...)

Nesse esquema, que dura pelo menos dez anos, grandes empreiteiras organizadas em cartel pagavam propina para altos executivos da estatal e outros agentes públicos. O valor da propina variava de 1% a 5% do montante total de contratos bilionários superfaturados. Esse suborno era distribuído por meio de operadores financeiros do esquema, incluindo doleiros investigados na primeira etapa. (...)

Essa repartição política revelou-se mais evidente em relação às seguintes diretorias: de Abastecimento, ocupada por Paulo Roberto Costa entre 2004 e 2012, de indicação do PP, com posterior apoio do PMDB; de Serviços, ocupada por Renato Duque entre 2003 e 2012, de indicação do PT; e Internacional, ocupada por Nestor Cerveró entre 2003 e 2008, de indicação do PMDB. Para o PGR, esses grupos políticos agiam em associação criminosa, de forma estável, com comunhão de esforços e unidade de desígnios para praticar diversos crimes, dentre os quais corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Fernando Baiano e João Vacari Neto atuavam no esquema criminoso como operadores financeiros, em nome de integrantes do PMDB e do PT.” [FONTE: <http://lavajato.mpf.mp.br/entenda-o-caso> Acesso em 31 jul. 2015.]

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universalizáveis), além de preventiva, precavida e eficaz (comprometida com resultados e em sintonia com os objetivos fundamentais do Estado Democrático). (FREITAS in JORGE et al, 2010, p. 355)

O desencanto da população com a moralidade de seus representantes e administradores faz com que o direito a um Estado dirigido por administradores íntegros, legisladores probos e juízes incorruptíveis, que desempenhem as suas funções com respeito aos postulados ético-jurídicos, num exercício legítimo da atividade pública em terras brasileiras, mais pareça uma utopia. Assim, permanece longe de concretização o direito a um governo honesto, a uma administração legal, impessoal, moral e eficiente, cujos atos sejam públicos e permitam a qualquer pessoa contestar aquilo que considera prejudicial ao seu interesse ou ao interesse público (DAL BOSCO, 2004, p. 78).

Atualmente, portanto, o estudo da moralidade administrativa ganha contornos urgentes e imprescindíveis ao enfrentamento da crise ético-política que atinge a Administração Pública brasileira. Trata-se de uma matéria de dimensão teórica controversa e de grande repercussão prática, sendo um dos mais relevantes vetores normativos que formam o ordenamento jurídico brasileiro. Assim, não se pode considerá-la uma simples abstração, mas uma questão de senso político, de regime de liberdades públicas e de direitos consubstanciados em leis. (FRANCO SOBRINHO, 1993, p. 21)

De fato, o direito positivo está repleto de normas que se utilizam de conceitos jurídicos indeterminados, retirados do mundo da cultura e dos valores ético-morais, os quais não podem ser desprezados pelo intérprete que deseje fixar o sentido e o alcance dessas normas. (CAMMAROSANO, 2006, p. 37)

Por um lado, os indivíduos são livres para se determinarem e relacionarem segundo os valores e preceitos morais que mais lhes apeteçam, abrindo a possibilidade para uma infinidade de comportamentos baseados nos mais diversos sistemas morais, cada qual segundo as práticas culturais de um povo ou grupo de interesse. Porém, é inegável, de outro lado, que a positivação da moralidade dentro de um ordenamento jurídico, ainda que sem um conteúdo determinado, aponta para a consagração de certos valores morais específicos, os quais devem guardar consonância com as demais regras e princípios desse mesmo ordenamento. Isso sem deixar de remeter aos valores morais que permanecem em voga na sociedade para além do direito, tal qual vem sendo recentemente resgatado pela filosofia do direito e a teoria política democrática.

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Nos ordenamentos jurídicos, a consagração do respeito à moralidade estabelece uma conexão entre as esferas da política, da economia, da moral e do direito. Quiçá por essa razão, a moralidade ganhou um destaque sem precedentes na Constituição Cidadã, a partir de sua nomeação expressa: como princípio constitucional, no art. 37, caput; como direito fundamental, no art. 5º, LXXIII; e como requisito de elegibilidade, no art. 14, §9º. Tal previsão está em consonância com o paradigma seguido por nossa carta constitucional: o do Estado Democrático e Social de Direito e das chamadas Constituições Programáticas ou Dirigentes, voltadas à implementação de políticas públicas e à efetivação dos direitos fundamentais, buscando o resgate da utilização de cargas valorativas dentro dos âmbitos de aplicação e interpretação jurídica.

Contudo, a efetividade desse instituto não supõe apenas seu reconhecimento como direito fundamental e critério de conduta a ser seguido pelo cidadão comum e pelo gestor público, em consonância com o conteúdo axiológico da constituição, mas a reflexão sobre os contextos filosófico, político e econômico nos quais esse princípio se realiza, compreendendo sua dimensão ideológica e concebendo sua expressão prática. Caso contrário, corre-se o risco de cair num discurso vazio de moralização da Administração Pública, manipulável pelos detentores do poder e atentatório ao Estado Democrático de Direito, não sendo raros os exemplos de ditaduras que se instalam sob o discurso de moralização das práticas governamentais.

A relação íntima entre Moralidade Administrativa, que alcança indubitavelmente a atuação parlamentar, e o princípio democrático é inegável, já que a efetivação deste implica necessariamente a fidelidade política da atuação dos representantes populares, como bem assinala Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Mais do que isso, a confiança depositada pela sociedade em sua classe governante é elemento indeclinável da consecução da segurança jurídica erigida como um dos fundamentos da República. (MARTINS, 2012, p. 150-151)

Nessa senda, o objetivo geral deste trabalho consistiu na investigação dos (desencontrados) caminhos percorridos pela doutrina, legislação e jurisprudência brasileiras quanto à exegese do princípio constitucional da moralidade, isto é, sua construção de sentido, a partir do paradigma do regime democrático de governo, suportado pelo desenvolvimento de uma filosofia pós-positivista e pelas críticas ao liberalismo político-econômico, e culminando numa análise de acórdãos do Supremo Tribunal Federal (STF) que mencionaram a moralidade administrativa nos anos de 2012 a 2016.

Como objetivos específicos, propomos, inicialmente, a contextualização da temática da moralidade administrativa dentro da filosofia pós-positivista e das teorias políticas

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democráticas, bem como da crítica ao pensamento econômico liberal diante da primazia da busca do interesse público num paradigma de Estado Social Democrático. Prosseguindo a ambientação das discussões sobre a moralidade administrativa, refletimos sobre a problemática da corrupção na esfera pública brasileira, expondo um breve diagnóstico das bases patrimonialistas da construção da sociedade brasileira e dos avanços recentes no fortalecimento de uma consciência cidadã por parte dos brasileiros.

No segundo capítulo, debruçamo-nos sobre o instituto da moralidade administrativa, desde a sua origem e desenvolvimento, da França até o Brasil, identificando suas controvérsias no âmbito da doutrina, além de detalhar os diversos aspectos constitucionais e legais que circunscrevem a aplicação desse princípio. Antecipando o provável reflexo da fluidez conceitual observada na doutrina e na legislação, destacamos algumas decisões da Suprema Corte, além do acórdão referente à Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) nº 3026/DF, em cujo julgamento os ministros divergem sobre o sentido da moralidade frente ao conteúdo de outros princípios caros à Administração Pública.

Por fim, procedemos a uma pesquisa empírica no âmbito jurisprudencial, identificando todos os acórdãos do Supremo Tribunal Federal, entre os anos de 2012 e 2016, que fizeram referência expressa à moralidade administrativa, e relevando os aspectos quantitativos da análise do conteúdo de cada acórdão, a partir das seguintes: 1) Qual a data de julgamento?; 2) Quantas vezes a moralidade é citada?; 3) Quantas vezes a moralidade é referida junto a outros princípios ou valores? Quais e por quantas vezes cada um?; 4) A moralidade é referida como princípio central na questão de fato sob exame? Se sim, ele foi considerado observado ou violado?; 5) Houve algum balizamento do conceito de moralidade? Se sim, por mera afirmação, doutrina ou precedente judicial?

O objetivo da investigação empírica supradescrita foi constatar se a indeterminação conceitual que se observou nas referências à moralidade administrativa no âmbito da doutrina e legislação pátrias espelhava-se na jurisprudência cotidiana do mais alto tribunal do país.

A metodologia utilizada neste trabalho foi, inicialmente, a pesquisa bibliográfica das diferentes doutrinas administrativistas sobre o tema e um aporte documental da legislação brasileira, seguida pela pesquisa empírica de acórdãos judiciais. Num primeiro momento, a pesquisa bibliográfica levou ao aprofundamento teórico sobre a contextualização do tema central do trabalho, nas esferas jusfilosófica, econômica, sociopolítica e

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jurídico-constitucional contemporâneas. Em seguida, procedeu a uma minuciosa análise doutrinária sobre o surgimento da moralidade administrativa no cenário jurídico, sua finalidade e seu desenvolvimento histórico na França e em outros países europeus até a sua recepção no direito brasileiro, seguida de uma investigação sobre as diversas tentativas de caracterização desse instituto pelos doutrinadores brasileiros.

Em continuação, realizou-se um aporte documental na identificação e comentário dos dispositivos constitucionais e diplomas legais pátrios que preveem a moralidade administrativa e no destaque de alguns julgados do Supremo Tribunal sobre a matéria e suas divergências. Por fim, procedeu-se a uma pesquisa empírica de todos os acórdãos do Supremo Tribunal Federal que mencionaram a moralidade administrativa, entre os anos de 2012 e 2016, a partir de pesquisa no banco de dados disponível no sítio eletrônico da corte, seguida pela crítica desses resultados. A pesquisa foi do tipo estudo de casos cruzados, com a exceção de um acórdão em especial, o RE 405386/RJ, julgado em 26/02/2013, que pelo foco dado à moralidade administrativa, especialmente no voto do ministro Teori Zavascki, mereceu uma análise mais aprofundada.

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1 O CONTEXTO POLÍTICO-ECONÔMICO DO ESTADO SOCIAL

DEMOCRÁTICO: AMBIENTANDO A DISCUSSÃO SOBRE A MORALIDADE ADMINISTRATIVA

1.1 DA FILOSOFIA PÓS-POSITIVISTA DO DIREITO ÀS TEORIAS POLÍTICAS DEMOCRÁTICAS

De acordo com a filósofa italiana Carla Faralli, a partir dos anos 1960, surgiram novas correntes jusfilosóficas, fruto de correções, especificações ou crises das escolas de pensamento anteriores. A autora agrupa essas novas correntes em cinco linhas de pesquisa: 1) retorno aos valores ético-políticos; 2) institucionalismos e realismos jurídicos; 3) raciocínio jurídico; 4) lógica jurídica; e 5) novas fronteiras técnico-científicas. A primeira linha, que interessa particularmente a este trabalho, é dedicada ao retorno do valor ético-político ao debate jusfilófico e à renovada aplicação dessa perspectiva às constituições democráticas, remetendo a uma crise do positivismo jurídico. (LOSANO In FARALLI, 2006, p. X-XI)

Faralli observa que o juspositivismo encontrava suporte em duas teses: a da teorização dos cientistas sociais do final do século XIX, sustentando a impossibilidade estrutural de encontrar critérios de juízo moral para fundamentar decisões no campo do direito e da política, e a da filosofia analítica, mais característica da primeira metade do século XX, que desenvolveu uma metaética não cognitivista dos valores, afirmando a impossibilidade de conhecê-los objetivamente. Para a autora, o debate contemporâneo questionou ambas as teses, determinando, de um lado, a abertura da filosofia do direito ao mundo dos valores ético-políticos, e, de outro, essa mesma abertura ao mundo dos fatos, integrando as duas primeiras novas linhas de pesquisa supracitadas. (FARALLI, 2006, p. 3)

No centro desse debate contemporâneo encontra-se a Teoria dos Princípios de Robert Alexy, segundo a qual os princípios são mandados de otimização, gerais e abstratos, os quais interagem entre si por meio da ponderação justificada pelo razoável. Eles concentram relevante grau de imperatividade, impondo obrigatoriamente a conformação das ações, atos e

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condutas ao respectivo comando normativo, característica que lhe é própria. Suas semelhanças e diferenças no tocante às regras foram explanadas in verbis:

“Tanto regras quanto princípios são normas, porque ambos dizem o que deve ser. Ambos podem ser formulados por meio de expressões deônticas básicas do dever, da permissão e da proibição. Princípios são, tanto quanto as regras, razões para juízos concretos do dever-ser, ainda que de espécie muito diferente. A distinção entre regras e princípios é, portanto, uma distinção dentre duas espécies de norma” (ALEXY, 2008, p. 87).

“O ponto decisivo na distinção entre regras e princípios é que princípios são normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das possibilidades jurídicas e fáticas existentes. Princípios são, por conseguinte, mandamentos de otimização que são caracterizados por poderem ser satisfeitos em graus variados e pelo fato de que a medida devida de sua satisfação não depende somente das possibilidades fáticas, mas também das possibilidades jurídicas”. (ALEXY, 2008, p. 90)

A abertura do debate filosófico e jurídico hodierno aos valores ético-políticos trouxe, como um de seus mais importantes resultados, as chamadas teorias constitucionalistas ou neoconstitucionalistas, que reconhecem o aumento da complexidade da estrutura normativa dos sistemas constitucionais contemporâneos, com introdução dos princípios e a sua diferenciação das regras. Essas teorias seguem três aspectos principais: a consideração de que a moral não pode ser resumida ao direito válido, mas deve passar pelo processo de inclusão no direito, através dos princípios e dos direitos fundamentais dos indivíduos; o destaque aos processos de aplicação do direito, em particular, a atuação do Judiciário, para sua determinação no interior dos sistemas constitucionais; e, por fim, a vinculação do legislador aos princípios e aos direitos constitucionais e sua execução pelos juízes, ainda que em contraste com a lei. (FARALLI, 2006, p. 12)

O reconhecimento da formação ética e moral coletiva é consubstanciado justamente no regime democrático, de modo que um dos grandes méritos da filosofia política e do direito contemporâneo foi resgatar a visão positiva sobre a democracia, pois, até os anos 1980, por influência do marxismo e do estruturalismo, a democracia fora considerada asseguradora de uma mera liberdade formal, que ocultava a história de exploração e alienação das classes menos favorecidas. Era a chamada democracia liberal, uma democracia “de baixa intensidade”.

Sociólogo contemporâneo de grande expressão na temática da democracia, Boaventura de Sousa Santos tece importantes reflexões críticas à sociedade hodierna, propondo um modelo contra-hegemônico de defesa dos direitos humanos e sociais e anunciando uma degeneração das práticas democráticas nos sistemas políticos dominados pela lógica capitalista globalizada neoliberal e fomentados pela mídia oligopolizada.

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Nesse sentido crítico dos rumos atuais da democracia, Boaventura defende que, à parte as exclusões sociais gestadas e ampliadas no bojo de uma vivência democrática meramente formalista, a democracia liberal caracterizou-se, sob a influência norte-americana, por campanhas eleitorais midiáticas, partidos cada vez menos diferenciados, financiamentos milionários e substituição das ruas e praças pela privacidade das casas, numa ideologia que buscava identificar o cidadão com o consumidor e o processo eleitoral com o mercado. A formação da opinião pública é feita cada vez mais pela ação dos grandes meios de comunicação, cada vez mais condicionados por critérios comerciais de busca de audiência e de publicidade. (SANTOS, 2005, p. 653)

O catedrático português afirma que o debate sobre a democracia, ao longo do século XX, especialmente no período entre guerras, na Europa, deu ensejo a duas formas complementares de hegemonia: a primeira, baseada no abandono do papel da mobilização social e da ação coletiva na construção democrática; a segunda, calcada numa solução elitista para o debate sobre a democracia, com a supervalorização do papel dos mecanismos de representação, sem que esses precisassem ser combinados com mecanismos societários de participação. Estabeleceu-se uma contradição entre mobilização e institucionalização, além de uma valorização positiva da apatia política do povo, concentrando o debate democrático na questão dos desenhos eleitorais de cada Estado. (SANTOS, 2005, p. 43)

Num diagnóstico preciso, Boaventura conclui que a democracia liberal contemporânea, desenvolvida sob o influxo direto do neoliberalismo, encontra-se em grave crise, induzida pela corrosão da estrutura social e cultural por parte das relações mercantis sem o contrapeso da ação reguladora do Estado na promoção de direitos. As consequências dessa crise seriam a perda de legitimidade dos governos, dos legislativos e da Justiça, o enfraquecimento das organizações sociais, a desmoralização das ideologias e dos partidos, o desinteresse eleitoral e político geral e a privatização exacerbada das relações sociais e do próprio Estado. (SANTOS, 2005, p. 653-654)

O jurista português arremata que, após a expansão global da democracia liberal, observou-se a degradação das práticas democráticas até mesmo nos países centrais, onde o regime mais se tinha consolidado, acarretando uma “dupla patologia”: a da participação popular, em vista do aumento dramático do abstencionismo; e a da representação, pelo fato de os cidadãos se considerarem cada vez menos representados por aqueles que elegeram. Diante disso, surgiram correntes teóricas contra-hegemônicas acerca do conceito e da efetivação da democracia, as quais ressaltaram a pluralidade humana, dando ênfase à criação de uma nova

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gramática social e cultural, à procura de uma nova institucionalidade da democracia. (SANTOS, 2005, p. 41 e 51)

Portanto, a efetivação da democracia numa experiência contra-hegemônica implicaria o reconhecimento da pluralidade humana e da ampliação de uma cultura democrática que proponha uma nova institucionalização da democracia. Em seguida, caberia a valorização positiva de uma mobilização social para além do jogo eleitoral, mais próxima de um modelo de democracia representativa e participativa, na qual haja a prática fiscalizada dos princípios e valores morais consubstanciados na ordem jurídica.

Não se trata, portanto, de promover a participação política dos cidadãos centrando-a no voto, como fez a democracia liberal, ao sacralizar o momento eletivo e tomá-lo como uma espécie de cheque em branco, num víncutomá-lo que só é retomado a cada cictomá-lo eleitoral. (SANTOS, 2005, p. 658) De fato, o respeito à consciência cívica de cada cidadão implica a valorização de sua participação, do “fazer política” no cotidiano, resultando na ocupação da esfera pública numa dimensão política e pedagógica, sem apelar a ideologias políticas específicas.

A participação tem valor em si mesma, por isso não é instrumental de um projeto político. Podemos dizer que a participação tem suas dimensões fundamentais interligadas e que interagem permanentemente: a dimensão política e a pedagógica. Participação, antes de tudo, é a partilha do poder e o reconhecimento do direito a interferir de maneira permanente nas decisões políticas (dimensão política). É também a maneira através da qual as aspirações e as necessidades dos diferentes segmentos da população podem ser expressas no espaço público de forma democrática, estando associada ao modo como esses “grupos” se percebem como cidadãos e cidadãs. A participação é um processo educativo-pedagógico. Expressar desejos e necessidades, construir argumentos, formular propostas, ouvir outros pontos de vista, reagir, debater e chegar ao consenso são atitudes que transformam todos aqueles que integram processos participativos. É uma verdadeira educação republicana para o exercício da cidadania, que amplia um espaço público real, em que a construção dialogada do interesse público passa a ser o objetivo de todos os homens e mulheres. Por isso, participar também é disputar sentidos e significados. (MORONI, 2006).

Hoje, pode-se identificar uma nova visão do espaço público, como questionamento permanente dos significados, das instituições e das representações de cada comunidade, calcada na ideia de dignidade humana. Essa é concebida como uma cláusula aberta que assegura a mesma consideração e respeito a todos os indivíduos, mas que depende, na sua concretização, dos próprios julgamentos desses indivíduos, tonando-se o próprio ethos da moralidade administrativa. (RABENHORST, 2001, p. 48-49)

Entretanto, não se pode supor que a fidelidade aos princípios democráticos, especialmente à dignidade humana, imponha a aceitação de um “populismo moral”, isto é, a

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concepção de que a maioria tem o direito moral de determinar como todos devem viver. Essa interpretação da democracia ameaça a liberdade individual e elimina a voz política dos grupos minoritários. Segundo Hart, não se pode incorrer no equívoco de pensar que o exercício do poder político pela maioria implique no uso desse poder, pela maioria, como estando acima de críticas e resistências. (HART, 1987, p. 95-96)

Portanto, o debate reavivado pela teoria jusfilosófica contemporânea dialoga diretamente com os direitos e garantias fundamentais previstos nas constituições modernas em proteção às minorias, enriquecendo o debate da moralidade administrativa a partir dos horizontes e limites interpretativos dos institutos constitucionais de cunho democrático.

1.2 O ASPECTO MORAL DA BUSCA DO INTERESSE COLETIVO NA CRÍTICA AO LIBERALISMO POLÍTICO-ECONÔMICO

Numa perspectiva histórica, pode-se afirmar uma flagrante contradição entre o desenvolvimento da economia liberal e o nascedouro do pensamento econômico na cultura grega, em meio às considerações éticas do comportamento humano, subjacente à política e à busca do interesse coletivo. Em “Ética a Nicômaco”, Aristóteles (1991, p. 6) afirma que até as faculdades tidas em maior apreço, como a estratégia, a economia e a retórica, estão sujeitas à política, de modo que a finalidade desta abrange a das outras ciências, consistindo na busca do bem humano. E quando esse fim é o mesmo para o indivíduo e para o Estado, o deste último parece ser algo “maior e mais completo”, “mais belo e divino” a se atingir e preservar.

É que a dimensão política referida por Aristóteles consubstanciava-se já na primeira experiência democrática consagrada da história da humanidade: a democracia grega do século IV a.C. Construída enquanto sistema político de cidadãos iguais, governando a si próprios numa coletividade de indivíduos soberanos e com capacidades, recursos e instituições suficientes para tal governo, a democracia grega permanece como um notável referencial de participação política e concretização de valores morais na política.

Em seu berço filosófico-cultural, portanto, a economia estava atrelada à política e à busca do bem comum, e o mesmo ocorreu quando do seu despontar científico, no século XVIII. Com efeito, Adam Smith, em sua obra “The Theory of Moral Sentiments”, publicada

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em 1759, enaltece o aspecto moral da conduta dos seres humanos individualmente e em sociedade, salientando, entre outros valores, o espírito público e a realização de estudos científicos para animar os homens a buscar meios de promover a felicidade social. Ele afirma, ainda, que embora pareça louvável cultivar hábitos econômicos por motivos de autointeresse, o egoísmo mancha a beleza dessas ações, que devem emergir de uma afeição benevolente. (SMITH, 1790, p. 249-250, 327-328)

Não obstante suas raízes históricas ligadas à ética e aos valores morais, a economia contemporânea foi dominada pelo capitalismo de mercado, que encontra no jurista espanhol Joaquín Herrera Flores um de seus maiores opositores. Da mesma linha crítica ao neoliberalismo adotada por Boaventura de Sousa Santos, com cuja teoria converge especialmente na defesa da interculturalidade dos direitos humanos, o professor de Sevilla analisa a globalização a partir de sua contextualização histórica e fundamentação teórica.

Numa breve remissão histórica do último século, Flores afirma que, nas décadas que se seguiram à Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, os economistas e políticos keynesianos reformularam os âmbitos produtivos e geoestratégicos, nas bases de uma “geopolítica de acumulação capitalista baseada na inclusão”, política que lançou as bases do chamado Estado de bem-estar social, no qual se consagraram diversos pactos entre o capital e o trabalho, com o Estado servindo de garantidor e árbitro da distribuição da riqueza. No entanto, desde a década de 1970 até os dias de hoje, estabeleceu-se globalmente o neoliberalismo, como resultado de uma “geopolítica de acumulação capitalista baseada na exclusão”, acarretando a desregulamentação dos mercados, dos fluxos financeiros e da organização do trabalho, com a conseguinte erosão das funções do Estado. (FLORES, 2002, p. 9)

Ainda segundo o humanista espanhol, a teoria neoclássica elevou a economia ao ambicioso posto de justificação e racionalização da luta para conseguir o maior benefício individual, num pretenso ambiente de escassez de meios e recursos exigíveis para cumprir simultaneamente com as expectativas de todos. A sociedade de mercado capitalista subordinou o objetivo de satisfazer as necessidades materiais dos seres humanos ao da apropriação de meios e recursos que satisfaçam as necessidades dos indivíduos “mais racionais”. (FLORES, 2009, p. 58-59)

Herrera Flores afirma que a própria forma ocidental de ver o mundo, sobretudo a partir do final do século XIX, teria sido constituída com base num processo de separação

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entre a economia e o restante das instituições sociais, resultando na instauração do capitalismo de mercado como ideologia, racionalidade e fundamento da vida em sociedade. Consequentemente, entrou em evidência o aspecto individualista, travestido de racional, na busca dos interesses econômicos do homem contemporâneo, processo em que a moralidade é muitas vezes circunscrita à legalidade prática dos direitos garantidos aos trabalhadores, pequenos e médios empresários e consumidores, porém pouco aplicada na própria motivação das iniciativas econômicas e na efetiva distribuição dos lucros. (FLORES, 2009, p. 57)3

De fato, no último século, ganhou popularidade na economia a ideia de que as pessoas se determinam de maneira racional apenas quando conscientemente buscam maximizar a realização de seu autointeresse. Esse é o núcleo das teorias da escolha racional formuladas por diversos economistas e cientistas políticos, como um reflexo da hegemonia liberal no campo econômico e da filosofia individualista e pretensamente racional do capitalismo de mercado, herdando toda a insatisfação social com as desigualdades fomentadas nesse sistema.

Assim como o liberalismo político conheceu um significativo enfraquecimento ante a recente retomada de valores democráticos na própria concepção dos sistemas políticos, também o liberalismo econômico, fomentado pelas teorias da escolha racional, vem sofrendo fortes críticas dos teóricos que advogam a defesa de valores éticos e sociais na definição e concretização das práticas de mercado. Um desses teóricos mais renomados é o economista indiano Amartya Sen, vencedor do Prêmio Nobel de Economia de 1998.

Quando proferiu uma série de conferências na Universidade da Califórnia (EUA) – adaptadas para publicação no livro “Sobre Ética e Economia” –, em 1996, Amartya criticou o empobrecimento da economia moderna em razão de seu distanciamento da ética. Desenvolvendo seus estudos, o Nobel de economia deixou clara sua crítica à chamada “escolha racional”, observando que os seres humanos podem facilmente ter boas razões para

3

Um dos projetos que se contrapõem integralmente à chamada “economia de domínio”, desde os ideais subjacentes à atividade econômica até o cotidiano de partilha dos esforços e ganhos dela decorrentes, é a Economia de Comunhão (EdC), criada em 1991 por Chiara Lubich, fundadora do Movimento dos Focolares, após uma visita ao Brasil, no intuito de dar uma resposta concreta à desigualdade social e ao desequilíbrio econômico patentes no nosso país e no sistema capitalista em geral. Dirigida primariamente às empresas, a proposta da EdC é colocar em comum a riqueza produzida e fundamentar a dinâmica operacional sobre a comunhão e a fraternidade. Atualmente, centenas de empresas, no mundo inteiro, inspiram-se nela, ao adotar uma governança centralizada na fraternidade, partilhando a riqueza produzida. O objetivo do projeto é apresentar uma porção de humanidade “sem indigentes”, ativando a reciprocidade em vários níveis: criando postos de trabalho a fim de incluir os excluídos do sistema econômico e social, difundindo uma “cultura da partilha” e da comunhão, suscitando iniciativas educativas e culturais e intervindo em situações de emergência, com ajudas concretas e projetos de desenvolvimento, conduzidos em colaboração com a ONG AMU (Ação Mundo Unido). [Fonte: http://www.focolare.org/pt/in-dialogo/cultura/economia/]

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adotar objetivos distintos da obstinada busca do autointeresse e perceber razões a favor do reconhecimento de valores mais amplos que os individuais ou de regras normativas de um comportamento decente. Desse modo, aquela teoria não passaria de uma compreensão limitada da racionalidade (SEN, 2011, p. 212).

Amartya Sen observa que o próprio Adam Smith, em “The Theory of Moral Sentiments”, elaborou as limitações da pressuposição de uma busca universal do autointeresse, distinguindo claramente entre as diferentes razões para ir contra os ditames do “amor próprio” ou self-love. Essas diferentes motivações seriam: a simpatia (a qual não exige abnegação, autocontrole ou grande esforço do senso de prioridade), a generosidade (quando se sacrifica algum grande e importante interesse próprio por um interesse igual de um amigo ou de um superior) e o espírito público (observação dos fatos não sob a luz em que aparecem naturalmente a nós mesmos, mas à nação pela qual lutamos). E se a primeira delas ainda pode ser enquadrada no espectro do “amor próprio”, a generosidade e o espírito público seriam motivações não centradas no autointeresse, ainda que muitas vezes não em virtude de uma reflexão crítica, mas do mero seguimento de regras de comportamento bem estabelecidas em sociedade. (SEN, 2011, p. 218-222)

Constatando a debilidade dos pressupostos individualistas das teorias da escolha racional, Amartya Sen propõe uma teoria alternativa, defendendo que as escolhas humanas seriam dotadas de racionalidade quando baseadas em argumentos que possam ser sustentados de forma reflexiva quando submetidos à análise crítica, isto é, à investigação crítica das razões para agir. Tal ponderação seria feita a partir de um raciocínio minucioso (quando necessário, com o diálogo com os outros), levando em conta mais informações, quando e se forem relevantes e acessíveis. Porém, isso não supõe a possibilidade de uma previsão da escolha real que será feita por cada indivíduo, visto que, supondo que todos os seres humanos agem de maneira racional, existe em cada situação um conjunto de escolhas potencialmente racionais, mesmo nesse sentido reflexivo e crítico. (SEN, 2011, p. 213-216)

As considerações acima indicam que a economia, especialmente quando vivenciada em meio a um regime democrático de governo, não pode se furtar ao seguimento de princípios políticos e morais de busca do interesse coletivo, nem mesmo a propósito de uma suposta racionalidade individualista de cunho liberal. Com efeito, a construção de um espaço público democrático será consideravelmente limitada enquanto o liberalismo continuar sobrelevando a vida privada e reduzindo a participação cidadã na esfera política a uma mera gestão de economia de mercado baseada num modelo representativo de democracia.

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É certo que o grau de egoísmo, de um lado, ou de busca do interesse coletivo, de outro, responde diretamente ao nível de lealdade de um indivíduo ao grupo do qual participa, seja no âmbito das relações familiares e comunidades ou dos sindicatos e grupos de pressão econômica. (SEN, 2003, p. 38) Porém, as críticas atualmente direcionadas ao liberalismo político-econômico evidenciam que as democracias contemporâneas urgem a lealdade de seus participantes, especialmente dos que detêm cargos de gestão, dos quais se espera uma conduta pautada pela moralidade, em consubstanciação dos valores afeitos ao interesse coletivo e à concretização dos princípios estabelecidos nas constituições nacionais.

1.3 A CORRUPÇÃO DA ESFERA PÚBLICA BRASILEIRA

Num cenário em que a economia liberal centraliza a racionalidade humana na busca do autointeresse e da maximização do poder de consumo, exsurge a insistente problemática da corrupção. Inobstante a crescente tomada de consciência política dos cidadãos, a corrupção ainda não foi eficazmente atacada em seu ponto-chave: a permanência do comum entre os indivíduos, o restabelecimento de um processo de demarcação entre público e privado. (AVRITZER, 2008, p. 134)

De grande valia para a compreensão do fenômeno da corrupção é a teoria política da alemã Hannah Arendt. É de sua autoria o conceito de esfera pública, cujo desenvolvimento retirou a teoria democrática do dilema entre uma concepção elitista e uma concepção direta do exercício da política e criou uma terceira opção interativo-participativa, razão pela qual é considerado por Leonardo Avritzer (2008, p. 133) o mais importante conceito elaborado pela teoria política na segunda metade do século XX. A esfera pública foi definida no âmbito da obra magna de Hannah Arendt, “A Condição Humana”, significando tudo aquilo que “pode ser visto e ouvido por todos e adquire a maior visibilidade possível” (ARENDT, 2007, p. 50).

Hannah Arendt associa a esfera pública diretamente à política, cujo elemento central seria a demarcação distintiva entre o público e o privado, uma dicotomia expressa numa dupla chave de ação e de interação entre os indivíduos, pensada a partir do contraste entre o que é visível e partilhável (público) e o que é invisível e não partilhável (privado)

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(AVRITZER, 2008, p. 133). Por isso, Hannah sustenta que a sociedade de massas e a ascensão das preocupações e necessidades sociais, enquanto centro ou objetivo primeiro da vida em sociedade, despolitizaram a condição humana, transferindo para as atividades privadas e, em especial, para o consumo, o centro das atividades humanas.

Essa centralidade dada à satisfação das necessidades sociais e, proximamente, dos interesses pessoais, afetou diretamente a política, pois introduziu no seu interior a dimensão do interesse privado, da busca pelo poder econômico, gerando aquilo que podemos denominar de “societalização da política”, fenômeno em que o interesse passou a ser o elemento fundamental da ação política moderna. (AVRITZER, 2008, p. 134)

Tal observação, conjugada com as pontuações anteriores, faz-nos concluir que a democracia pode ser considerada um regime de governo que fomenta liberdades individuais, expressadas no plano da representação dos interesses particulares na esfera pública. Tomando-se o interesse enquanto um valor que se projeta sobre determinada coisa ou prática, percebe-se que pensar a questão da democracia e a economia significa pensar os elementos ligados à própria moralidade, entendida como um sistema valorativo social.

A complexidade da questão, porém, é agravada ao se verificar que o intercâmbio entre interesses públicos e privados é uma característica típica das democracias modernas – não apenas dos regimes ditatoriais. No regime democrático, de um lado, aumentam-se as oportunidades de transações ilegítimas entre o público e o privado e, de outro, permanecem ausentes as restrições de acesso aos lugares de poder, o que distingue o Estado democrático do absolutista e do oligárquico. Na mesma extensão em que se distribui o poder, distribuem-se as oportunidades de corrupção nele implícitas (SANTOS, 2008, p. 126), entendida a corrupção, de maneira geral, enquanto confusão entre a esfera pública e a esfera privada.

Seria a corrupção, assim, um fenômeno intrínseco à democracia ou à própria política, de modo que nem o fim de um regime autoritário poderia salvar o país do desrespeito contumaz à coisa pública? A resposta é negativa, se se considera que a política, em si mesma, insere-se no campo do pensamento plural, no ser capaz de pensar no lugar e na posição dos outros, numa mentalidade alargada (LAFER, 2003, p. 59): o inverso do pensamento individualista do agente público que superpõe seus interesses particulares aos interesses coletivos, da cultura do agir político em benefício próprio, que parece arraigada na cultura patrimonialista brasileira há tempos.

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Assim, pensar a corrupção enquanto resultado, e não causa, de diversas características sociopolíticas que permeiam a histórica nacional – desde o patrimonialismo, a motivação individualista dos partidos políticos, a deficiência de movimentos políticos organizados e até mesmo a própria estrutura da democracia – não significa uma fuga ao enfrentamento da questão, mas uma estratégia interdisciplinar epistemológica de sua abordagem.

É fato que os males da corrupção são prementes e danosos nos mais diversos âmbitos da vida humana em sociedade4, contudo, parece infrutífero o empenho numa luta anticorrupção às cegas. Por esse motivo, ora se põe uma reflexão sobre os diversos fatores que influenciam a problemática da moralidade no âmbito da esfera pública brasileira.

Embora os debates acerca da (i)moralidade da esfera pública brasileira tenham ganhado novo fôlego com os escândalos recentes de corrupção, é antiga a constatação de que os desmandos do Estado Brasileiro decorrem, em grande parte, do uso que os agentes públicos fazem dos recursos estatais para fins particulares, assim como da ausência de uma mobilização democrática politicamente organizada por parte dos cidadãos.

Tal posicionamento pode ser encontrado, com farta argumentação, na análise da República Velha feita por Oliveira Vianna, jurista, historiador e sociólogo brasileiro nascido no final do século XIX, estudioso dos direitos sociais e do processo de formação do povo brasileiro. Em sua obra “O Idealismo da Constituição”, escrita no início do século XX, o jurista fluminense observa que a formação de partidos políticos, após a proclamação da República, não passou por uma mudança cultural que os dominasse do “espírito do interesse público” e os impulsionasse a agir de maneira transcendente à sua própria corporação. Em vez disso, os partidos continuaram a atuar no plano provincial e, depois, no plano nacional, com os mesmos objetivos e o mesmo espírito de afirmação dos interesses dos seus chefes e do pequeno grupo de ambiciosos que os formavam desde sua origem, no âmbito doméstico. (VIANNA, 1939, p. 184)

De fato, a sociedade brasileira perpetuou, ao longo de sua histórica política, suas raízes culturais patrimonialistas, que se refletem no exercício autoritário da política, na instituição de uma ética que consagra a honra como valor social maior e submete o espaço público à pilhagem dos interesses privados, fazendo daquele um prolongamento da

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“A corrupção impede de olhar para o futuro com esperança, porque, com a sua prepotência e avidez, destrói os projetos dos fracos e esmaga os mais pobres. É um mal que se esconde nos gestos diários para se estender depois aos escândalos públicos.” (IGREJA CATÓLICA, 2015)

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propriedade, da família, das manobras aliancistas e da rapinagem política. É a prática do favorecimento e do clientelismo, uma espécie de “domesticação da política”, na qual se contemplam com benesses e favores os familiares e amigos, dando continuidade às relações do “espaço doméstico-afetivo-familiar”. (SIQUEIRA, 1993, p. 437 e 441)

Não se pretende, com a referência ao patrimonialismo enquanto elemento histórico-cultural formador da sociedade brasileira, reforçar o mito da demonização do Estado corrupto e da divinização do mercado como reino da virtude, tampouco justificar a conduta dos agentes públicos como uma mera consequência desse traço formador da sociedade brasileira, tal qual adverte outro sociólogo crítico do patrimonialismo estatal e estudioso da formação das classes sociais no Brasil, o potiguar Jessé de Souza (2009, p. 63 e 73). Ao contrário, a razão patrimonialista identificada historicamente auxilia a compreender que a postura classicamente individualista (ou “familiarista”) do agente público brasileiro, que utiliza a máquina pública em favor de si e dos seus, sobretudo em termos econômicos, vem de um longo passado político e se repete insistentemente até os dias de hoje, sinalizando que ainda não foi combatida eficazmente, na sua origem cultural.

Em tom crítico e aguçado, Oliveira Vianna também nega que a culpa pelos males da sociedade brasileira estaria apenas no Estado corrupto, na superposição dos interesses particulares dos agentes públicos ao interesse coletivo do povo. Vianna critica, sobretudo, a postura passiva e politicamente desorganizada dos cidadãos brasileiros, que não tinham espírito democrático, sentimento democrático, nem tradições e hábitos democráticos. Por isso, os “clãs partidários” fizeram dos cargos públicos sua propriedade privada, tal qual um indivíduo que se apoderasse de uma res derelicta. (VIANNA, 1939, p. 103)

Apesar das graves críticas à formação político-democrática do Brasil ao longo de sua história, as transformações sociais vividas no último século apontam para um amadurecimento do exercício da cidadania no Brasil, sem perigo de incorrer num otimismo ilusório. Pode-se constatar essa mudança, por exemplo, a partir da externalização do clamor da sociedade brasileira insatisfeita com a conduta imoral de seus agentes públicos, em diversas manifestações públicas organizadas que envolveram boa parte da população, tais como as que se viram nas ruas em junho de 2013.5

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Segundo Leonardo Avritzer (2013), em artigo publicado em julho/2013 sobre a onda de manifestações populares que tomou as ruas do país em junho/2013, movimento popularmente apelidado “Vem Pra Rua”: “Ele [o movimento] surgiu em um campo de esquerda semi-petista ou pós-petista que envolveu militantes de diferentes movimentos da juventude quase todos de esquerda com uma agenda de democratização do acesso ao

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Alexandre Delduque Cordeiro (2005, p. 2-3) afirma que a insatisfação popular atual parece estar ligada, fundamentalmente, a dois fatores. O primeiro seria um maior esclarecimento da população a respeito do papel dos administradores públicos e agentes políticos, bem como dos desvios que são por eles cometidos, conhecimento devido, em grande parte, ao elevado grau de liberdade da imprensa brasileira, à popularização do acesso aos meios de comunicação (especialmente os que utilizam a Internet) e ao aumento do nível de instrução da população, que implica uma maior fiscalização das ações dos homens públicos e de exigência por um feedback pós-eleições.

Em segundo lugar, a maior tomada de consciência política pelos cidadãos brasileiros também estaria ligada às mudanças estruturais do próprio papel do Estado, ocorridas ao longo do século XX. De fato, o Estado passou de executor e explorador direto de serviços públicos para regulador da atividade econômica e concessor da exploração dessas mesmas atividades, resultando num maior intercâmbio entre o setor privado e a Administração Pública, o que gera certa desconfiança por parte do cidadão (CORDEIRO, 2005, p. 3-4). E essa suspeita acaba sendo corroborada pelas inúmeras notícias de fraudes em licitações, superfaturamento de obras públicas executadas por empresas privadas, desvio de dinheiro público dentro de Organizações Sociais (OSs), supostos patrocínios a Organizações Não-Governamentais (ONGs) “fantasmas”, etc. – acirrando ainda mais o debate acerca da ética pública no Brasil.

Foi nesse cenário que a moralidade administrativa foi inserida na Constituição Cidadã de 1988. A palavra “moralidade” ecoa forte, traz consigo uma ideia de justiça para além da lei, após o fim de um regime autoritário de mais de duas décadas. Com os olhos no passado recente de menosprezo e desrespeito a direitos do cidadão pelo próprio Estado, pretendeu o legislador constituinte romper com o modelo autoritário, consagrando, inclusive,

transporte público e com críticas ao sistema político. Tais críticas, em quase todos os casos, estavam relacionadas ao que podemos denominar de forma da democracia, isto é, uma crítica à maneira como o governo federal e, em especial, o Congresso Nacional vem governando o país através de acordos para a nomeação de cargos políticos. [...] A lição que fica das manifestações tanto para o sistema político quanto para a opinião pública pode, talvez, ser resumida da seguinte forma: há um enorme potencial de insatisfação ligado a infra-estrutura urbana e às políticas públicas no Brasil hoje. Este potencial tem sido explorado por atores de esquerda, mas pode vir também a ser objeto de manifestações de atores conservadores, quando a porta de entrada leva apenas a uma agenda despolitizada relativa à luta anti-corrupção.” A ressalva premonitória final do autor demonstra a preocupação de que, enquanto o movimento político em favor da probidade democrática permanecer sem uma orientação política definida, operando um combate cego à corrupção, o clamor de insatisfação das massas populares – especialmente dos jovens – tende a seguir a orientação ideológica, inclusive conservadora, dos agentes que tiverem maior apelo social e midiático no momento. No ano de 2016, frente à permanente insatisfação popular com as medidas governamentais a partir da reeleição de Dilma Roussef, a previsão de Leonardo Avritzer pareceu concretizar-se nas manifestações populares de cunho conservador que pressionaram o Congresso Nacional a aprovar o impeachment da presidente petista.

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o extenso rol de direitos do art. 5º, certamente o ponto alto e mais libertário da Constituição Federal vigente. (GIACOMUZZI, 2013, p. 142)

No entanto, a moralidade administrativa já se havia consagrado no cenário jurídico brasileiro ou mundial muito tempo antes da Constituição de 1988, desde o início do século XX, quando foi invocada como fundamento de um controle supralegal da discricionariedade dos agentes públicos, tal qual será explanado no tópico seguinte.

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2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA

2.1 ORIGEM E DESENVOLVIMENTO DA IDEIA DE MORALIDADE ADMINISTRATIVA

2.1.1 França: o berço da sistematização

Não se pode dizer que o reconhecimento da moralidade, para além da legalidade, é ideia de cunho recente no âmbito jurídico. Os jurisconsultos romanos já a expressavam desde a Antiguidade, no famoso brocardo jurídico non omne quod licet honestum est6. Contudo, a primeira sistematização teórica conhecida sobre a moralidade administrativa data do início do século XX e é atribuída ao jurista e sociólogo francês Maurice Hauriou, autor da obra Précis de droit administratif et de droit public.

É de Hauriou o mérito de tomar um conceito até então restrito ao âmbito do direito privado – em institutos como o de boa-fé contratual e abuso de direito – e aplicá-lo ao direito público. O intuito do pensador francês era fundamentar o controle dos atos discricionários pelo Conselho de Estado da França, opondo-se ao desvio de poder, o détournement de pouvoir das autoridades, quando a legalidade falhasse no alcance da regulação de seus juízos de valor.(HAURIOU, 1933. p. 442-454)

O jurista francês defendeu a moralidade enquanto critério para o controle dos atos administrativos no momento histórico da fase republicana do Conselho de Estado, já com a feição de tribunal soberano, que pronunciava arrêts (sentenças) em matéria administrativa. O Conselho foi o precursor da autonomização do direito administrativo e, por meio de sua jurisprudência, firmou os princípios da legalidade e da responsabilidade da ação administrativa, facultando aos indivíduos administrados manejar o recours pour excès de pouvoir (recurso por excesso de poder), com o intuito de anular os atos administrativos

6

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ilegais, e o recours en indemnisation (recurso de indenização), almejando condenar o Estado a uma reparação pecuniária em caso de desconhecimento dos direitos do requerente. (GAZIER, 1955, p. 7-8)

Portanto, a única forma de garantia do administrado frente ao administrador, na França do início do século XX, era a invocação à ilegalidade ou à lesividade do ato administrativo: aquela, no momento da ação; esta, no momento da repercussão do ato administrativo. Não havia, portanto, mecanismos que resguardassem os administrados da prática de atos administrativos legais, porém viciados em sua concepção, isto é, em seus motivos determinantes ou móveis subjetivos, quando esses fossem contrários ao interesse público, a serviço de algum interesse particular.

Nesses casos, defendeu Hauriou que estaria caracterizado o desvio de poder por violação à moralidade, facultando ao administrado acionar o Conselho de Estado via recours pour excès de pouvoir. A primeira obra a desenvolver essa ideia pioneira do teórico francês foi uma publicação em conjunto com Guillaume Bezin, datada de 19037, mencionada por José Guilherme Giacomuzzi (2013, p. 63 e 73)8.

Recorde-se que, no início do século XX, já estava plenamente consolidado o positivismo científico9. Portanto, o contexto filosófico de que participava Hauriou rejeitava a cientificidade de quaisquer concepções baseadas em justificativas não objetiváveis. Por essa razão, desde a primeira menção à ideia de moralidade administrativa, o mestre de Toulouse fez questão de desvinculá-la de escalas de valores morais de cunho subjetivo, remetendo-a a duas condicionantes objetivas, a teoria da declaração de vontade do ato administrativo (Erklärungstheorie) e a noção de “boa administração” (GIACOMUZZI, 2013, p. 54-72).

Na obra supracitada, Hauriou e Bezin afirmam que a declaração de vontade “é oponível, em princípio, desde o momento de sua emissão, da qual se retira a consequência de dar à declaração uma existência objetiva, fazendo-a independente de seu autor e

7

La déclaration de volonté dans le droit administratiff français, Revue Trimestrielle de Droit Civil 3/543-586. Ano 2. Julho-setembro/1903.

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Portanto, está equivocada a referência de que a obra pioneira no trato da moralidade administrativa foram as anotações de Hauriou às decisões do Conselho de Estado proferidas no caso “Gomel”, no ano de 1914, como erroneamente afirmam Diogo Moreira Neto (1992, p. 5) e Antônio José Brandão (1951, p. 457).

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O positivismo foi invocado por seu maior expoente, Augusto Comte, como o último estado que a humanidade teria atingido após o movimento histórico que perpassou o “estado teológico” e o “estado metafísico”, alcançando o “estado positivo”, onde se encontraria a ciência, que se atém à observação dos fatos e se limita a raciocinar sobre eles e procurar suas relações invariáveis, suas “leis”. Como consequência, estaria posta a utilidade do conhecimento, que se traduziria na previsão e controle do fenômeno da construção da sociedade positiva. (SIMON, 2004, p. 144-148)

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