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2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA

2.2 A RELEITURA BRASILEIRA DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

2.2.1 Primeiras menções

A moralidade administrativa surgiu, no âmbito do direito pátrio, muito antes da Constituição de 1988, contando com diversas referências na doutrina e jurisprudência brasileiras, lastreadas nos estudos franceses. Um dos acórdãos pioneiros no cenário nacional a adotar como fundamento a proteção à moral administrativa, foi o da Apelação Cível nº 151.580, julgada pela 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo – TJSP, em 01/03/1966, com relatoria de Cardoso Rolim.22 Tratava-se de uma apelação interposta por um ex-tesoureiro da Caixa Econômica de São Paulo, demitido da autarquia, após o devido procedimento administrativo, em virtude da emissão de cheque sem fundo contra a própria instituição financeira. Buscando o reexame do mérito desse ato administrativo, o ex- funcionário recorreu ao Judiciário, tendo por improcedente seu pleito em primeiro e segundo graus.

Apreciando o caso, o TJSP não se limitou a afirmar a legalidade do ato administrativo de demissão e o respeito ao princípio da separação de Poderes, que vedava ao Judiciário imiscuir-se no mérito das decisões do Executivo e permitia-lhe apenas controlar a apuração da falta segundo a lei, além da conformidade do ato à apuração administrativa. Por unanimidade, recorrendo à doutrina de Hely Lopes Meirelles, a 1ª Câmara Cível decidiu que o ato administrativo questionado era plenamente legal, tanto pela sua conformação à lei quanto por atender à moral administrativa e ao interesse coletivo, pois “seria absolutamente contrário

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Julgado publicado pela Revista de Direito Administrativo (RDA), vol. 89, jul./set. 1967. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, p. 134-137.

ao interesse público, reintegrar-se num cargo em que se exige a mais estrita probidade, pessoa que levianamente emite cheque sem fundos”.

Nessa análise histórica, destaque-se a rica contribuição, para a doutrina brasileira, dos estudos do promotor de Justiça do Rio Grande do Sul, José Guilherme Giacomuzzi, cuja dissertação de mestrado, defendida em dezembro/2000 na Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRS, foi publicada em forma de livro, com o título: “A Moralidade Administrativa e a Boa-Fé da Administração Pública – o conteúdo dogmático da moralidade administrativa”, obra de referência central para o presente trabalho.

Consoante mapeado por José Guilherme Giacomuzzi (2002, p. 32 e 128, 293- 294), a expressão “moralidade administrativa” não é nova no Direito Brasileiro, pois veio mencionada “aqui e ali, ainda que tímida e circunstancialmente”, tal qual no art. 7º do Decreto 19.398, de 11/11/193023. No âmbito da doutrina jurídica brasileira, José de Castro Nunes, em 1937, em obra acerca do mandado de segurança, tratando do cabimento do writ também nos casos de excesso de poder, afirmou que a moralidade administrativa estava enquadrada na legitimidade dos fins e motivos do ato administrativo e compunha, nas palavras do autor, a “trilogia” da autoridade administrativa, junto à legalidade e à oportunidade. (CASTRO NUNES, 1937, p. 132-133)

Outro doutrinador pátrio, Seabra Fagundes, referiu-se à moralidade administrativa ainda em 1946, quando abordou a ação popular em artigo doutrinário24. Ademais, pioneiro nos estudos de Direito Administrativo no Brasil, Hely Lopes Meirelles já falava em moralidade administrativa em 1964, desde a 1ª edição de seu clássico “Direito Administrativo

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Trata-se do decreto que instituiu o “Governo Provisório da República dos Estados Unidos do Brasil”, após a Revolução de 1930, que culminou com o golpe de Estado que levou Getúlio Vargas ao poder e ao fim da República Velha no Brasil. O artigo citado é o seguinte: “Art. 7º Continuam em inteiro vigor, na forma das leis aplicaveis, as obrigações e os direitos resultantes de contratas, de concessões ou outras outorgas, com a União, os Estados, os municípios, o Distrito Federal e o Território do Acre, salvo os que, submetidos a revisão, contravenham ao interesse público e á moralidade administrativa.”

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“Da ação popular”, RDA 6/1-19, Rio de Janeiro, outubro/1946. Com efeito, a Lei n.º 4.717/65 ou Lei da Ação Popular (LAP) prevê, em seu art. 2º, “e”, que os atos administrativos serão anulados quando eivados de desvio de finalidade. A expressão remete-se à origem francesa da moralidade administrativa, a qual foi desde o início identificada aos fins do ato administrativo. Tal vinculação se reflete na leitura da exposição de motivos da lei, especialmente na citação de Seabra Fagundes, quando afirma que a ação popular é um “instrumento de colaboração para a moralidade da prática de governo”, e de Raphael Bielsa, ao asseverar que o autor da ação popular: “É um cidadão que impugna o ato lesivo para o interesse geral, porque esse ato viola a lei ou prejudica o patrimônio da entidade pública ou implica uma imoralidade ou restringe arbitrariamente a liberdade. (...) O autor da Ação Popular é uma espécie de „cavaleiro cruzado‟ da legalidade e da moralidade pública. Nêle (SIC) se vê uma expressão da solidariedade para com todos os cidadãos honestos ou animados de espírito cívico”. Fonte: Exposição de Motivos nº 211-B-65 do Ministério da Justiça e Negócios Interiores. Dossiê do PL nº 2726/1965.

Disponível em:

<http://www.camara.gov.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=0233E038E64216ABAF3B96C81 00CC609.proposicoesWeb1?codteor=1196645&filename=Dossie+-PL+2726/1965> Acesso em 08/10/2016.

Brasileiro”. Hely adotara, então, sem reservas, as posições do advogado português Antônio José Brandão, o qual escreveu um artigo intitulado “Moralidade Administrativa”, originalmente publicado em 1947, no Boletim do Ministério da Justiça de Lisboa. Esse escrito foi copiado para a nossa Revista de Direito Administrativo (RDA), volume 25, de 1951, por meio da qual foi divulgado no Brasil e referenciado pela nossa doutrina, muitas vezes acriticamente. (GIACOMUZZI, 2002, p. 131, 293-294)

No mencionado artigo, Antônio Brandão (1951, p. 454-467) disserta sobre o desenvolvimento do conceito de moralidade administrativa, transcrevendo trechos das obras de Hauriou e de dois de seus discípulos, Lacharrière e Welter, todavia sem referências bibliográficas completas e imiscuindo os pensamentos desses autores às suas próprias ponderações.