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2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA

2.1.2 Desenvolvimentos em outros sistemas jurídicos: Itália, Espanha e Portugal

O desenvolvimento do controle jurisdicional sobre os motivos determinantes, móveis subjetivos ou simples intenção do administrador deu-se igualmente sob outras nomenclaturas, que não a de moralidade administrativa, em diversos outros países, a exemplo da Itália, Espanha e Portugal.

Na Itália, o administrativista Renato Alessi18 afirmou que, por meio do sviamento di potere, ataca-se a ilegitimidade substancial do ato por duas causas: ato emanado sem relação com o interesse público, mas a serviço de interesse privado, e ato emanado por interesse público de natureza diversa do proposto em lei. Portanto, foi a noção de interesse público que vigorou no direito italiano enquanto critério a embasar o desvio de poder, num contexto de legalidade substancial, não se problematizando a “causa” ou o móvel moral do ato administrativo. (GIACOMUZZI, 2013, p. 124)

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Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano, Milão, Giuffrè Editore, 1953, p. 306-308, conforme citado por Guilherme Giacomuzzi (2013, p. 123)

Outro administrativista de expressão na Itália, Massimo Severo Giannini (1991, p. 112-115) cita como princípios decorrentes e complementares do princípio da legalidade, no direito italiano: o princípio do acesso à justiça, o princípio da imparcialidade, o princípio da regularidade e os princípios de garantia e organização. Segundo o jurista italiano, o princípio do acesso à justiça desenvolveu-se modernamente para abarcar não apenas a possibilidade de controle judicial dos atos administrativos no sentido de tutela dos interesses dos particulares, mas também de “interesses legítimos”, o que seria uma das mais importantes conquistas da ciência jurídica dos últimos séculos. Nenhuma menção é feita à moralidade administrativa.

Já a Constituição Espanhola de 1978, no seu Título IV, que cuida “Do Governo e da Administração”, afirma, no artigo 103 que “la Administración Pública sirve con objetividad los intereses generales y actúa de acuerdo con los principios de eficacia, jerarquía, descentralización, desconcentración y coordinación, con sometimiento pleno a la ley y al Derecho”. A seguir, versando sobre o controle da administração, no artigo 106, afirma que “los Tribunales controlan la potestad reglamentaria y la legalidad de la actuación administrativa, así como el sometimiento de ésta a los fines que la justifican”.

Portanto, na legislação espanhola, à parte não ter sido incluído o princípio da moralidade no rol daqueles que regem a atividade administrativa, a referência à legalidade é complementada pelo controle da submissão da administração aos “fins que a justificam”. Embora não haja, nessa expressão, qualquer reminiscência a condicionantes morais, ela expressar justamente a ideia de legitimidade supralegal, cujo papel é exercido pelo princípio da moralidade no ordenamento brasileiro.

Tal assertiva é corroborada pela análise da Ley reguladora de la Jurisdicción contencioso-administrativa de 1956, vigente de 28/06/1957 a 14/12/1998 em território espanhol. O diploma definia o instituto do desvio de poder em seu artículo 83.3, assim redigido: “constituirá desviación de poder el ejercicio de potestades administrativas para fines distintos de los fijados por el Ordenamiento Jurídico”. A mesma definição foi repetida na lei que a sucedeu, a Ley 29/1998, de 13 de julio, reguladora de la Jurisdicción Contencioso-administrativa19.

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Esclareça-se que a referência feita por Guilherme Giacomuzzi na nota de rodapé n.º 303 (op. cit. 2013, p. 192) encontra uma pequena inconsistência, dado que a definição de desvio de poder, na Lei Jurisdicional de 1956, encontra-se no artigo 83.3, não no 70.2. Com efeito, é na Lei Jurisdicional de 1998, que sucedeu à lei de 1956, que dita conceituação é repetida no artigo 70.2.

Versando sobre essa norma do contencioso-administrativo espanhol, o catedrático de direito administrativo da Universidade de Valladolid e destacado teórico espanhol do direito público, García de Enterría20 (1962, p. 169-170) afirma que a Lei de 1956 introduziu, pela primeira vez no ordenamento da Espanha e sem respaldo da jurisprudência, a técnica de controle dos poderes discricionários pelo instituto do desvio de poder. Segundo o autor, o direito espanhol se encontrava, na segunda metade do século XX, numa fase de redução dos poderes discricionários a partir do controle dos elementos formais do ato administrativo, incluindo o seu fim, fiscalizado pela técnica do desvio de poder – que não seria a forma de controle mais substanciosa, na opinião do autor.

García de Enterría (1962, p. 169-176) especifica, então, três técnicas que seriam mais efetivas no exercício do controle do poder discricionário, quais sejam: a) o controle dos fatos determinantes; b) a distinção entre conceitos jurídicos indeterminados e sujeitos à discricionariedade; c) o controle via princípios gerais do direito. Dentre esses, interessa a este estudo, por ora, apenas o terceiro tipo, no qual se poderia pensar incluída a moralidade administrativa. A segunda técnica será tratada mais adiante.

O autor espanhol ressalta que os princípios gerais de direito seriam princípios jurídicos materiais que legitimam o Estado de Direito e exemplifica suas extensas possibilidades de controle citando os princípios: da iniquidade manifesta, da irracionalidade, da boa-fé, da proporcionalidade entre os meios e os fins e da natureza das coisas. Por fim, argumenta que outros princípios se revelariam mais imediatos e operantes naquele ordenamento, tais como o princípio da igualdade e todos os derivados dos direitos e liberdades fundamentais. (ENTERRÍA, 1962, p. 176-179) Em nenhum momento, mais uma vez, é sequer mencionado o princípio da moralidade administrativa ou qualquer condicionante moral no controle da Administração Pública na Espanha.

Tal situação se repete no direito português. A Constituição da República Portuguesa de 1976 abre o Título IX (“Administração Pública”) com o artigo 266º, intitulado “Princípios fundamentais”. Na 1ª parte, explicita-se o caráter garantista da carta política ao se afirmar que “a Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos”. Observa-se, mais uma vez, a centralidade dada ao interesse público enquanto finalidade do atuar administrativo.

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Em trabalho que recolhe o texto da conferência pronunciada pelo autor na Faculdade de Direito da Universidade de Barcelona, no dia 2 de março de 1962, dentro do curso “O Poder e o Direito”, organizado pela Promoción Manuel Ballbé daquele ano.

Já na segunda parte do artigo 266º, além da submissão à Constituição e à lei – que pode ser traduzida enquanto princípio da legalidade –, elencam-se como regentes dos órgãos e agentes administrativos do Estado português os princípios: da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa-fé. A ausência da enunciação do princípio da moralidade parece ter sido suficientemente suprida pela menção aos princípios da justiça e da boa-fé, os quais também apontam para uma construção de sentido de normas para além do positivado.

Tomando por base a Constituição da República Portuguesa de 1976, o constitucionalista português J. J. Gomes Canotilho (1999, p. 30-31) afirma que a dimensão do Estado de direito encontra expressão jurídico-constitucional num complexo de princípios e regras dispersos pelo texto constitucional. Além do já citado princípio da legalidade, expresso no artigo 266º, o constitucionalista português identifica: o princípio da constitucionalidade (artigo 3º); o controle judicial da constitucionalidade de atos normativos, a começar pelos de valor legislativo (artigos 277º e seguintes); o princípio da responsabilidade do Estado por danos causados aos cidadãos (artigo 22º); o princípio da independência dos juízes (artigo 218º) e os princípios da proporcionalidade e da tipicidade no domínio de medidas de polícia (artigo 272º).

Aprofundando-se no caráter jurídico fundacional desses valores constitucionais, o catedrático da Universidade de Coimbra contrapõe-se ao entendimento de que o Estado de direito é uma forma de organização jurídica e política circunscrita aos Estados liberais do Ocidente, adeptos de determinado paradigma jurídico, político, cultural e econômico, e afirma que o Estado de direito seria uma forma de organização política em torno da chamada juridicidade estatal. Essa, por sua vez, estaria calcada no governo de leis gerais e racionais, na organização do poder segundo o princípio da divisão de poderes, o primado do legislador, a garantia de tribunais independentes, o reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, o pluralismo político, o funcionamento do sistema organizatório estadual subordinado aos princípios da responsabilidade e do controle e o exercício do poder estadual através de instrumentos jurídicos constitucionalmente determinados. (CANOTILHO, 1999, p. 20)21

Igualmente, portanto, a doutrina e a constituição portuguesas demonstram ter construído todo o sentido de juridicidade estatal passando ao largo da moralidade administrativa e aparelhando o princípio do “governo das leis” com outros princípios de

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Para um aprofundamento acerca desses princípios jurídicos informadores da juridicidade estatal, na visão de Canotilho, conferir a obra Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 2ª ed., Coimbra, 1998, p. 235-272.

cunho ideológico supralegal, tais quais o da proporcionalidade e do pluralismo político. Outro doutrinador português, Marcelo Caetano, chega a afirmar que a doutrina da moralidade administrativa se encontra hoje abandonada, sendo majoritária a opinião de que a moralidade está acautelada pela lei nos termos por essa estabelecidos. (GIACOMUZZI, 2013, p. 125)