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As diferentes feições da moralidade administrativa na Constituição Cidadã e as lacunas

2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA

2.3 A PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA NA

2.3.3 As diferentes feições da moralidade administrativa na Constituição Cidadã e as lacunas

Analisando-se o texto da Carta de 1988, observa-se que a moralidade administrativa encontra previsão nos já citados artigos 37, caput, sob a feição de princípio, e 5º, LXXIII, sob a égide de direito fundamental de todo cidadão. Também é importante a referência do artigo 14, §9º, à moralidade enquanto dever político-administrativo.

Prevista no artigo 37, caput, ao lado dos princípios da legalidade, impessoalidade, publicidade e eficiência, o mandatório de moralidade na atuação dos administradores públicos ganhou proteção legal em vários notáveis diplomas, dentre os quais destacam-se a Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92) e a Lei dos Processos Administrativos Federais (Lei nº 9.784/99).

Fundamental à efetivação do princípio em tela, especialmente diante do cenário de escândalos de corrupção que minam a credibilidade dos agentes públicos perante a sociedade brasileira, a Lei nº 8.429/92, em seu artigo 11, estabelece como ato de improbidade administrativa a violação aos cinco princípios da Administração Pública e aos deveres de honestidade, imparcialidade, legalidade e lealdade às instituições, elencando um rol exemplificativo desses atos ímprobos, nos incisos do dispositivo. Ademais, o diploma em comento define quais entes fazem parte da Administração Pública e, consequentemente, podem ser vítimas de atos de improbidade, bem como quem pode ser considerado agente

público e, nessa condição, possível infrator daqueles mesmos princípios e deveres públicos. Observe-se que, embora a Lei nº 8.429/92 esclareça alguns pontos relacionados ao princípio da moralidade administrativa, mormente quem pode ser agente e quem pode ser vítima de sua violação, a conceituação e exemplificação do artigo 11 é feita indistintamente quanto a todos os princípios da Administração Pública e, ainda, a alguns chamados deveres, que possuem conceituação também abstrata. Portanto, a Lei de Improbidade contribui muito timidamente para a fixação de um balizamento conceitual sobre o princípio da moralidade administrativa.

Já a Lei dos Processos Administrativos Federais dispõe, no artigo 2º, que a Administração Pública obedecerá ao princípio da moralidade e a outros princípios caros à processualística brasileira, exemplificando, no parágrafo único, os critérios a serem observados pelos administradores na condução dos procedimentos em âmbito federal. Assim como no artigo 11 da Lei nº 8.429/92, os critérios são mencionados sem qualquer distinção de qual(is) princípio(s) seria(m) violado(s) por seu descumprimento. Dessa forma, pode-se apenas inferir, pelo senso comum, por exemplo, que os deveres de atendimento objetivo ao interesse público, vedada a promoção pessoal do agente público, e de atuação segundo padrões éticos de probidade, decoro e boa-fé dizem respeito diretamente ao princípio da moralidade.

No tocante à referência do artigo 14, §9º, da Constituição Cidadã, observa-se que a proteção da moralidade para o exercício de cargos eletivos foi incluída nesse dispositivo, junto com a proteção à probidade administrativa, a partir da Emenda Constitucional de Revisão nº 4, de 199446. A recente mudança denota uma preocupação do constituinte

derivado, nas últimas décadas, com o alargamento da aplicação do princípio da moralidade às diversas atuações no âmbito público, incluindo a política.

Trata-se não de uma previsão abstrata, mas de uma exigência concreta e individualizada ao político eleito para exercer mandato eletivo, cuja vida pregressa será considerada para se verificar se seu “histórico moral” é compatível com o exercício desse mandato. A Constituição previu a edição de lei complementar para regulamentar tais casos de inelegibilidade, uma vez que tal juízo não poderia ocorrer sob o manto da discricionariedade

46Antes da Emenda Constitucional nº 4/1994, a redação do dispositivo era a seguinte: “§ 9º Lei complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.”

do administrador, especialmente por se tratar de uma possível interferência na expressão da vontade do povo, princípio central da democracia.

Hodiernamente, os critérios objetivos para essa proteção à moralidade pública no âmbito político encontram-se dispostos na Lei Complementar nº 135/2010, conhecida como Lei da Ficha Limpa, que veio alterar a Lei Complementar nº 64/1990 para incluir novas hipóteses de inelegibilidade – situações legalmente previstas como violadoras não apenas do dever de moralidade, mas também de probidade administrativa e normalidade e legitimidade das eleições. Tal como nos diplomas anteriormente citados, a Lei da Ficha Limpa não diferencia, em suas prescrições, quais condutas estariam ferindo qual(is) dever(es) previsto(s) no artigo 14, §9º, da Constituição; contudo, observando que o texto desse dispositivo se refere à consideração da vida pregressa do candidato unicamente para a aferição da moralidade para o exercício do mandato eletivo, pode-se concluir que as referências da LC nº 135/2010 ao passado dos candidatos eleitos reportam-se diretamente ao dever em comento.

Interessante observar que, em seu art. 1º, e, a Lei Complementar nº 64/1990 passou a prever a inelegibilidade, por até 8 (oito) anos após o cumprimento da pena, nos caso de condenação transitada em julgada ou proferida por órgão colegiado em desfavor dos candidatos condenados pelos seguintes crimes: contra a economia popular, a fé pública, a administração pública e o patrimônio público; contra o patrimônio privado, o sistema financeiro, o mercado de capitais e os previstos na lei que regula a falência; contra o meio ambiente e a saúde pública; eleitorais, para os quais a lei comine pena privativa de liberdade; de abuso de autoridade, nos casos em que houver condenação à perda do cargo ou à inabilitação para o exercício de função pública; de lavagem ou ocultação de bens, direitos e valores; de tráfico de entorpecentes e drogas afins, racismo, tortura, terrorismo e hediondos; de redução à condição análoga à de escravo; contra a vida e a dignidade sexual; e praticados por organização criminosa, quadrilha ou bando. (BRASIL, 2010)

Vê-se que a citada lei não se resumiu a mencionar os crimes diretamente relacionados à atuação administrativa ou política da vida pregressa do candidato ao exercício de mandato. O dispositivo inclui também os delitos contra o meio ambiente, a saúde pública, a vida e a dignidade sexual, assim como o tráfico de entorpecentes e a redução à condição análoga à de escravo, crimes que dizem respeito ao agir do candidato em sociedade, de uma forma geral.

Da mesma forma, o art. 1º, m, da mesma Lei Complementar nº 64/1990, ao prever a inelegibilidade dos que forem excluídos do exercício da profissão, por decisão sancionatória do órgão profissional competente, em decorrência de infração ético-profissional, não diz respeito a uma conduta pública do agente político, mas à sua conduta ética no exercício da profissão, a qual não incide, necessariamente, sobre o trato da coisa pública. (BRASIL, 1990) Infere-se, pois, que a referência constante no artigo 14, §9º, da Constituição Federal possui um sentido ainda mais largo que a moralidade exigida no atuar administrativo, dizendo respeito também à moralidade comum, atinente à conduta desejada de todo cidadão em seu agir social.

Percebe-se que a Constituição Federal contemplou a moralidade não apenas como um princípio administrativo, mas também como uma regra de procedimento social que possui reflexos, inclusive, na permissão para que o agente se candidate ao exercício de mandato eletivo. Concomitantemente, embora as hipóteses de inelegibilidade citadas na lei complementar tenham por escopo a proteção da moralidade no exercício de mandato eletivo, certo é que o cumprimento da moralidade não se restringe a tais hipóteses.

Outra menção constitucional de suma relevância à moralidade administrativa é atinente à sua tutela pela via da ação popular, prevista no artigo 5º, LXXIII, da Carta Magna, com regulamentação da Lei nº 4.717/65. Embora o dispositivo constitucional cite expressamente o termo “moralidade administrativa”, o qual não volta a aparecer no texto do diploma legal (promulgado antes da constituição), uma análise de seu conteúdo à luz do desenvolvimento histórico do conceito em questão, permite aproximar a tutela da moralidade administrativa, na ação popular, à anulação dos atos administrativos eivados do vício de desvio de finalidade, previsto no artigo 2º, “e”, e parágrafo único, “e”, da citada lei, o qual diz respeito diretamente ao desvio de poder das autoridades públicas. (GIACOMUZZI, 2013, p. 126)

Ante a menção aos diplomas legais que orientam a sanção do agente público ímprobo (função repressora), bem como a correção do atuar estatal mediante a anulação dos atos administrativos eivados de desvio de finalidade (função corretora), pode-se concluir que, embora sob uma flagrante porosidade de sentido, o ordenamento brasileiro concretiza o princípio da moralidade a partir dos vieses repressivo e corretor. Porém, existe ainda outra dimensão de suma relevância à concretização do princípio constitucional em tela, que aparece diluída no texto constitucional: a formação ético-profissional do agente público. Essa formação desempenha uma função conformadora da moralidade administrativa, a partir, e.g.,

do treinamento e da motivação dos servidores públicos para o conhecimento e escorreito cumprimento de seus deveres. (BARBOZA, 2002, p. 130-133)

Dita feição conformadora do princípio da moralidade aparece en passant no texto constitucional, quando se menciona que “a União, os Estados e o Distrito Federal manterão escolas de governo para a formação e o aperfeiçoamento dos servidores públicos” (art. 39, §2º) e que a lei disciplinará a aplicação de recursos “no desenvolvimento de programas de qualidade e produtividade, treinamento e desenvolvimento, modernização, reaparelhamento e racionalização do serviço público” (art. 39, §7º). A Lei n.º 8.112/90, que disciplina o regime jurídico dos servidores públicos em âmbito federal, não deixa dúvidas de que é dever do servidor público “manter conduta compatível com a moralidade administrativa” (art. 116, IX), embora não comprometa a administração a tomar responsabilidade concreta sobre a formação do servidor nesse talante.

A nível nacional, observam-se apenas algumas iniciativas esparsas nesse sentido formativo, tal qual a aprovação do Código de Ética Profissional do Servidor Público Civil Federal e a instituição do Sistema de Gestão da Ética do Poder Executivo Federal, respectivamente por meio dos Decretos n.º 1.171/1994 e n.º 6.029/2007. No inciso III da Seção I do retrocitado código de ética, inclusive, encontra-se não uma definição, mas um caminho interpretativo acerca da moralidade do ato administrativo, conforme se transcreve a seguir:

III - A moralidade da Administração Pública não se limita à distinção entre o bem e o mal, devendo ser acrescida da idéia de que o fim é sempre o bem comum. O equilíbrio entre a legalidade e a finalidade, na conduta do servidor público, é que poderá consolidar a moralidade do ato administrativo.

Vê-se que o dispositivo acima não se propõe a definir abstratamente o que seria a moralidade administrativa à parte do caso concreto, mas estabelece diretrizes interpretativas para sua aplicação ao delimitar que ela passa pela distinção entre o bem e o mal e alcança a finalidade do bem comum, a ser equilibrada pelo cumprimento da legalidade. Nesse sentido, o dispositivo parece orientar-se à busca de critérios e balizamentos objetivos a fim de instruir o jurista e o cidadão na interpretação casuística da moralidade administrativa, em consonância com os caminhos apontados por García de Enterría para se trabalhar com conceitos indeterminados.

Retornando à feição formativa do princípio, importante reconhecer que a questão ética vai muito além da mera previsão legal educativa e alcança o enfrentamento de toda uma

cultura social que subjuga o exercício da cidadania ao ganho individual e ao desprezo pela coisa comum.

Faz-se imprescindível, bem menos por temor e muitíssimo mais por espontânea persuasão, interiorizar padrões éticos respeitáveis, se se quiser timbrar a jornada dos que lidam com a coisa pública pelo acatamento cabal aos princípios superiores. Indubitavelmente, a eticidade apenas haverá de se tornar um bem universalizado, gerando o correlato afastamento do improbus administrator e dos seus comparsas, se vivificada – sem ingenuidade – a noção de cidadania plena e adulta, antes pela formação contínua do que pela repressão (...)” (FREITAS, 1996, p. 64)

Seja na dimensão repressiva, corretiva ou conformadora, certo é que a moralidade administrativa é contemplada no texto constitucional e em diversos diplomas legais que o regulamentam, assumindo um papel de destaque no ordenamento pátrio. Porém, em que consiste a atuação do agente público pautada pela moralidade administrativa? Ou, mais significativamente, quando se poderia demandar o agente público por ter violado o princípio da moralidade administrativa?