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O princípio constitucional da moralidade administrativa: conceito indeterminado ou

2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA

2.3 A PREVISÃO CONSTITUCIONAL DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA NA

2.3.2 O princípio constitucional da moralidade administrativa: conceito indeterminado ou

Com o fortalecimento de um novo modelo estatal garantista, o do Estado Democrático e Social de Direito, surgiram as chamadas Constituições programáticas ou dirigentes, voltadas à implementação de políticas públicas e demandando uma nova harmonização e otimização do sistema jurídico, a fim de permitir a efetivação dos direitos fundamentais. Entre outros objetivos, tais constituições buscam resgatar a utilização de cargas valorativas dentro dos âmbitos de aplicação e interpretação jurídica, como diretrizes que consistem parte integrante e indissociável do ordenamento, dentre as quais exsurgem justamente os princípios jurídicos.

O princípio é um mandamento nuclear que se irradia sobre as diferentes regras e funciona como alicerce do sistema normativo, compondo-lhe o espírito e servindo de critério para sua exata compreensão e inteligência, por definir a lógica e a racionalidade de todo o sistema, outorgando-lhe sentido harmônico (MELLO, 2013, p. 54). Veicula, assim, diretivas comportamentais de maior grau de generalidade quando comparados às regras, embora estas e aqueles devam ser aplicados em conjunto. Os princípios implicam, ademais, um agir positivo, direcionado à consecução dos valores que integram o sistema, e um agir negativo, na interdição da prática de qualquer ato que se afaste de tais valores. (GARCIA, 2002, p. 156)

Existe, pois, um elevado grau de abstração e dispersão do conteúdo de um princípio dentro do ordenamento jurídico. Tal circunstância dificulta que se identifique se ou quando há violação a um princípio específico. Para Juarez Freitas (in JORGE et al, 2010, p. 356), para ser considerada, dita violação deve ser grave ao ponto de atingir o âmago do

princípio violado, o qual precisa ser alvejado, não remota ou mediatamente, mas em seu círculo eficacial próprio.

Acerca do princípio da moralidade administrativa, já se aduziu que ele segue a feição dada à moralidade dentro do direito, passando a ser aceito como critério de conduta a ser efetuado em total consonância com o conteúdo axiológico dos direitos fundamentais, numa forma logicamente coerente de estabelecer a conexão entre as esferas do político, do moral e do jurídico. (CADEMARTORI, 2008, p. 173) Contudo, não se pode considerá-lo malferido em virtude de qualquer ofensa à chamada “moral social” (sob qualquer hipótese unívoca). Para que se considere transgredido esse princípio, é necessário que haja violação a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem juridicamente valorado. (MELLO, 2013, p. 123)

Percebe-se que a violação à moralidade enquanto princípio remete-se inevitavelmente aos valores consagrados no ordenamento jurídico que o abriga, nos bens jurídicos albergados por cada sistema normativo, a partir dos direitos e garantias fundamentais juridicamente reconhecidos. Dessa forma, o estudo do alcance e da violação do princípio em exame aponta a relevância de se fazer uma digressão acerca das normas que protegem a moralidade em nosso sistema normativo.

Sabe-se, porém, que a moralidade administrativa é um conceito indeterminado, pois não se encontra definido na Constituição nem nos diplomas que o regulamentam – nem poderia estar, sob o risco de se deliberadamente limitar sua abrangência, propositadamente larga. Todavia, o fato de esse princípio não ter uma definição taxativa não significa que ele pode ser invocado sob os auspícios de cada aplicador do direito.

García de Enterría explana essa diferença fundamental, que para ele representa um dos aportes mais importantes da ciência jurídica alemã dos últimos tempos: a distinção entre discricionariedade e indeterminação dos conceitos jurídicos. Os conceitos indeterminados ou normas flexíveis – boa-fé, ordem pública, bons costumes, fidelidade, respeito, coação irresistível, entre outros – são consubstanciais a toda a técnica jurídica e sua indeterminação decorre do fato de que a medida concreta para sua aplicação em um caso particular não resolve ou determina com exatidão a própria lei que os previu ou de cuja aplicação trata. Porém – e isso é essencial –, sua incidência no caso concreto não admite meios termos, e.g., ou se agiu com boa-fé ou não, ou se preservou a ordem pública ou não, de modo a supor uma única solução justa a cada caso. (GARCÍA DE ENTERRÍA, 1962, p. 171)

Por outro lado, a discricionariedade parte do pressuposto de que há uma pluralidade de soluções justas possíveis ao seu exercício, sendo todas essas passíveis de escolha pelo administrador. Dessa forma, o poder discricionário perfaz um processo volitivo de discricionariedade ou de liberdade de eleição entre indiferentes jurídicos, diferentemente do conceito indeterminado, que, dada sua perspectiva de alcançar a solução justa, deve ser aplicado por referência a critérios de valor ou de experiência, a serem ponderados juridicamente, segundo o sentido da lei que o prevê e as consequências reais de sua aplicação. Portanto, a constatação de se um conceito jurídico indeterminado se aplica ou não a cada caso perfaz um juízo de ponderação, aplicação e interpretação da lei e de subsunção às categorias de um dado concreto, sendo, assim, um processo regulado, nunca discricionário. (GARCÍA DE ENTERRÍA, 1962, p. 172)

Já se explanou que a ideia de moralidade administrativa nasceu no mundo jurídico visando controlar a intenção do agente, quando refletida em finalidades metajurídicas irregulares do ato administrativo. Porém, observa-se na doutrina grande disparidade de opiniões, remissões, comparações e conceituações acerca da moralidade administrativa, frequentemente reduzida a um posicionamento subjetivo sobre o que seja “moral” no contexto da sociedade contemporânea.

Pode-se dizer, portanto, que focar a aplicabilidade do princípio em tela apenas num exame subjetivo da finalidade do ato administrativo significaria reduzir o alcance de sua previsão constitucional, uma vez que põe em risco a confiabilidade de sua aplicação – e, consequentemente, a segurança jurídica sobre os atos que implicam sua violação e ensejam a respectiva sanção. Por outro lado, sendo a moralidade um conceito indeterminado por natureza, defini-lo taxativamente implicaria também reduzir sua abrangência, uma vez que cada caso suscita uma determinada solução justa e defini-lo a partir de um viés específico, por exemplo, as categorias de vícios nos elementos do ato administrativo, pode levá-lo a não cumprir sua função principiológica de standard interpretativo, nem sua finalidade original de controle da intenção do agente público para além de critérios legalmente postos.

Apesar de tantos contrapontos, ainda cumprindo sua condição de conceito indeterminado conforme a exegese de García de Enterría, a interpretação sobre a satisfação da moralidade administrativa no caso concreto demanda que se encontre uma solução justa adequada. Trata-se de um conceito que busca respostas, assim como o próprio direito. Toca o campo subjetivo do poder administrativo mas não pode se resumir a análises subjetivas do

arbítrio do julgador nem a conceitos objetivos estreitos, sob pena de lhe ferir a aplicabilidade casuística.

Desse modo, parece-nos que o labor de identificar a violação à moralidade administrativa se amolda mais à busca de critérios e balizamentos objetivos que de análises subjetivas ou definições taxativas, a fim de instruir o jurista e o cidadão na interpretação casuística desse princípio. Eis o grande desafio da doutrina, legislação e jurisprudência – pelo visto, apenas – brasileiras: perquirir sobre a possibilidade de condicionantes objetivas para a identificação do respeito ou da violação à moralidade dos atos administrativos; isto é, para além da ontologia do conceito, encontrar-lhe balizamentos de aplicação prática.

2.3.3 As diferentes feições da moralidade administrativa na Constituição Cidadã e as