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2 MORALIDADE ADMINISTRATIVA: UMA CONTROVÉRSIA BRASILEIRA

2.2 A RELEITURA BRASILEIRA DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA

2.2.3 Moralidade X Legalidade

A doutrina brasileira mostra-se dividida entre a independência, complementariedade ou sobreposição entre os princípios da moralidade e da legalidade.

A corrente que advoga a superposição da legalidade sobre a moralidade segue o pensamento de Márcio Cammarosano (2006, p. 24-25, 81-83 e 114), segundo o qual não se pode admitir que a moralidade referida na Constituição diga respeito às regras da moral comum retiradas do corpo social, visto que o objetivo maior do direito seria a segurança jurídica, alegadamente incompatível com o caráter mutável e fluido das disposições morais. Ademais, admitir que as regras jurídicas poderiam ser determinadas pelas regras morais seria um esvaziamento da função do legislador. Por essa razão, violar a moralidade administrativa seria violar o direito, uma questão de legalidade, na medida em que a só violação de preceito moral não juridicizado não implicaria invalidade do ato.

Mostram-se adeptos desse entendimento, tributando a definição de moralidade administrativa à de legalidade, Maria Goretti Dal Bosco e Celso Antônio Bandeira de Mello: a

primeira ressalta a superação da doutrina de Hauriou, e o segundo aduz que a moralidade é um reforço à legalidade, conforme se observa dos trechos infra:

(...) a visão de moralidade, oferecida pela doutrina de Maurice Hauriou, está superada, e dá lugar, modernamente, à idéia de que a moralidade se acha acautelada pela lei nos termos por ela estabelecidos. No Direito Administrativo, como em qualquer outro ramo de Direito, a Moral só vale na medida em que, sendo recebida pela norma jurídica e como conteúdo desta, passe a beneficiar da sanção peculiar da ordem jurídica, em lugar de ficar limitada às suas sanções peculiares (reprovação das consciências). (DAL BOSCO, 2004, p. 98)

Quanto a nós, também entendendo que não é qualquer ofensa à moral social que se considera idônea para dizer-se a ofensiva ao princípio jurídico da moralidade administrativa, entendemos que este será havido como transgredido quando houver violação a uma norma de moral social que traga consigo menosprezo a um bem juridicamente valorado. Significa, portanto, um reforço ao princípio da legalidade, dando-lhe um âmbito mais compreensível do que normalmente teria. (MELLO, 2013, p. 123)

A segunda corrente, seguida por juristas eminentes como Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (2012), Marçal Justen Filho (1995), Manoel de Oliveira Franco Sobrinho (1993), Weida Zancaner (2001) e Maria Sylvia Di Pietro (2001), afirma que a moralidade possui conteúdo próprio, autônomo, extraído dos valores éticos existentes na sociedade, os quais comporiam latentemente os preceitos legais. Tal pensamento é ilustrado pelos trechos a seguir:

“(...) pode perfeitamente ocorrer que a solução escolhida pela autoridade, embora permitida pela lei, em sentido formal, contrarie valores éticos não protegidos diretamente pela regra jurídica, mas passíveis de proteção por estarem subjacentes em determinada coletividade. [...]

Por isso mesmo, a discricionariedade administrativa, da mesma forma que é limitada pelo Direito, também o é pela Moral; dentre as várias soluções legais admissíveis, a Administração Pública tem que optar por aquela que assegure o mínimo ético da instituição.” (DI PIETRO, 2001, p. 161-162)

“Hão de dizer que a legalidade é um fenômeno de normatividade legal. Mas não é bem assim. As dúvidas podem atingir até a própria manifestação da vontade. Uma vez que na formação da vontade há um fator maior de interesse social e de natureza jurídica. A questão da vontade, não obstante ser psicológica, envolve condicionamentos de licitude e de comportamento, de conduta e de procedimento legal permitido.

Nesse fator de maior interesse, o fator constitucional determinante, está o sentido da moralidade, isto é, um sentido de direito que excede o próprio conceito de legalidade. Uma vez que o poder administrativo, como direito de decidir, agir e ordenar, está rigorosamente cingido, nas sociedades políticas, à lei e à moral.” (FRANCO SOBRINHO, 1993, p. 84)

Para essa última corrente, defender a amplitude e a dignidade normativa do princípio da moralidade não implica favorecer uma regência estrita do ordenamento jurídico pelo regramento moral, uma derrogação de normas jurídicas por regras morais ou mesmo um atuar em desprezo das normas positivas e em atenção a conceitos morais intrínsecos (moralidade íntima). A defesa da autonomia da moralidade importaria, sim, a incidência de

parâmetros morais na orientação finalística da conduta do agente (MOREIRA, 2008, p. 101), todavia, reconhecendo que o princípio da moralidade é um princípio jurídico “em branco”, uma vez que seu conteúdo não se exaure em comandos concretos e definidos, mas contempla a determinação da “observância de preceitos éticos produzidos pela sociedade, variáveis segundo as circunstâncias de cada caso”. (JUSTEN FILHO, 1995, p. 50)

No entanto, por vezes, os doutrinadores evitam defender a existência de uma superposição entre legalidade e moralidade, tentando conciliar a importância de ambos os princípios, formando uma terceira corrente que ora enfatiza o viés da legalidade enquanto juridicidade – ideia que congrega a noção de legalidade, legitimidade e moralidade, conforme defendido por Diogo de Figueiredo Moreira Neto (2014)36 –, ora salienta a posição da moralidade e da legalidade como superprincípios, tal qual sustentado por Márcia Noll Barboza (2002)37.

Situando-se nesse terceiro escopo conciliador da importância dos princípios da moralidade e da legalidade, merece destaque, mais uma vez, o posicionamento de José Guilherme Giacomuzzi, que se posiciona, em termos práticos, quanto à interpretação jurídica do instituto da moralidade administrativa. Sem pretender negar-lhe autonomia própria ou descartá-la como cânone interpretativo do direito, o autor assevera que todo esforço de desvincular a ideia de moralidade administrativa da de legalidade, emprestando à moralidade um sentido subjetivo no controle dos móveis do agir administrativo ou do exame dos fatos, motivos ou objeto do ato, será vão quando se interpreta o princípio da legalidade em sentido lato ou substancial. (GIACOMUZZI, 2013, p. 146-147)

Para conceituar a legalidade substancial, Giacomuzzi (2013, p. 124) remete à teoria do italiano Renato Alessi38, segundo o qual a substância da legalidade não estaria na causa do ato administrativo – nem, portanto, na intenção do agente – mas no interesse público concreto, termo extrínseco oferecido pela lei com o fim de limitar, para a tutela tanto do

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“O princípio da juridicidade, como já o denominava Adolf Merkl, em 1927, engloba, assim, três expressões distintas: o princípio da legalidade, o da legitimidade e o da moralidade, para altear-se como o mais importante dos princípios instrumentais, informando, entre muitas teorias de primacial relevância na dogmática jurídica, a das relações jurídicas, a das nulidades e a do controle da juridicidade O princípio da juridicidade corresponde ao que se enunciava como um „princípio da legalidade‟, se tomado em sentido amplo, ou seja, não se o restringindo à mera submissão à lei, como produto das fontes legislativas, mas de reverência a toda a ordem jurídica” (MOREIRA NETO; FREITAS, 2014, p. 5)

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“O quadro por nós figurado, assim, é o de um superprincípio – o princípio da moralidade administrativa – que, em posição elevada, ilumina e reforça todos os demais princípios do regime jurídico administrativo, inclusive o da legalidade, que também ocupa posto elevado, aparecendo como exigência de conformidade ao direito. De acordo com esse quadro, portanto, ambos os imperativos se colocam como superprincípios no regime jurídico administrativo, a ele conferindo qualidade formal e substancial.” (BARBOZA, 2002, p. 123)

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citado interesse público como dos indivíduos, o poder de ação da Administração Pública de uma maneira mais estrita que o poder de ação do sujeito privado no direito privado. Assim, o uso de todo poder de ação administrativa estaria subordinado, por lei, à existência concreta de um interesse público na medida, na natureza e no grau determinado pela norma.39

Dessa forma, para José Guilherme, compreendendo-se a legalidade de uma forma ampla e atentando-se para sua realização a partir do alcance do interesse público concreto em cada ato administrativo, conforme a teoria de Renato Alessi, seria inútil buscar uma definição particular para a moralidade administrativa, uma vez que seu escopo repousaria justamente no controle da finalidade do ato administrativo – desvio de finalidade – para além da legalidade formal, em nada acrescentando à legalidade substancial daquela forma conceituada.

Tal posicionamento, porém, recorde-se, vai de encontro ao que o próprio Hauriou afirmou em seu “Précis de droit administratif et de droit public”, tomando-se a legalidade substancial enquanto o espírito da lei. Segundo o publicista francês, “o espírito da lei é o limite a impor aos direitos no interesse da justiça; o espírito da moralidade é a diretiva a impor aos deveres no interesse do bem; há uma distância entre o que é justo e o que é bom”, portanto, afirma ser “evidente que a moralidade administrativa ultrapassa a legalidade e, por consequência, o desvio de poder ultrapassa em profundidade de ação a violação da lei”. (HAURIOU, 1927, p. 419-420)

Tais controvérsias entre a ideia inicial da moralidade administrativa, frente à legalidade, e seus diversos desenvolvimentos na doutrina jurídica colocam em cheque a existência de um consenso mínimo acerca do conteúdo e da construção de sentido da moralidade administrativa, hábil a proporcionar a segurança jurídica de sua aplicação.