P.º n.º R.P. 113/2010 SJC-CT Locação financeira. Resolução do contrato.
Cancelamento do registo. Título.
PARECER
1. O ... S.A. vem interpor recurso hierárquico da decisão de recusa do cancelamento de inscrição de locação financeira (prédio n.º .../…, da freguesia e concelho de …), correspondente ao pedido efectuado a coberto da ap. ..., de …/…/…, e instruído com carta registada com aviso de recepção emitida pelo referido Banco em ... de ... de …, na qual foi aposto o aviso postal de impossibilidade de entrega à locatária por mudança do destinatário para morada desconhecida.
2. O cancelamento foi recusado por insuficiência do título, dado não ter sido demonstrado que o destinatário recebeu a carta, e por não se mostrarem comprovados os poderes «dos eventuais representantes do locador que subscreveram a declaração de resolução».
3. Nas alegações de recurso, que aqui se dão por reproduzidas, os argumentos essenciais são os seguintes:
Quanto à insuficiência do título
a) Segundo o artigo 14.º do contrato de locação financeira «as notificações ou comunicações entre Locador e Locatário serão consideradas válidas e eficazes se forem efectuadas para os respectivos domicílios ou sedes sociais tal como identificados neste contrato ou que, posteriormente, sejam informados, por escrito, à outra parte»;
b) A comunicação da resolução do contrato é válida e eficaz, porquanto foi efectuada para a sede da locatária que consta no contrato e no registo comercial, e a recorrente não foi notificada de nenhuma alteração da sede social por parte do locatário.
Quanto à falta de prova dos poderes de representação dos signatários da carta
c) A carta que instruiu o pedido de registo cumpre o disposto no n.º 2 do artigo 17.º do
Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º
30/2008, de 25 de Janeiro, «correspondendo a um documento ad probationem, i.e.,
documento destinado apenas a fazer prova do acto», pelo que não está sujeita às
exigências legais de forma ad substanciam, como sucede no registo provisório de aquisição de um direito ou de constituição de hipoteca voluntária, antes de titulado o negócio, no qual é exigido o reconhecimento presencial da assinatura do declarante.
4. No despacho a que se refere o n.º 1 do artigo142.º-A do Código do Registo Predial (CRP), a decisão de recusa é sustentada mediante remissão para os fundamentos, de facto e de direito, indicados no despacho inicial.
Apreciação do mérito
1. De acordo com o n.º 2 do artigo 17.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, introduzido pelo Decreto-Lei n.º 30/2008, de 25 de Fevereiro, para o cancelamento do registo de locação financeira com fundamento na resolução do contrato por incumprimento é documento bastante a prova da comunicação da resolução à outra parte nos termos gerais.
1.1. Donde, dizendo o contrato de locação financeira dos autos que:
a) O contrato pode ser resolvido «em caso de incumprimento de qualquer uma das obrigações do Locatário se este, interpelado para o efeito, por carta registada com aviso de recepção, não suprir a sua falta no prazo de trinta dias a contar da data de emissão daquela notificação» (ponto 1 do artigo 11.º das Condições Gerais);
b) A resolução «far-se-á por simples declaração do Locador dirigida ao Locatário, por carta registada com aviso de recepção» (ponto 3 do artigo 11.º das Condições Gerais.
c) E «as notificações ou comunicações entre Locador e Locatário serão consideradas válidas e eficazes se forem efectuadas para os respectivos domicílios ou sedes sociais tal como identificados neste Contrato ou que, posteriormente, sejam informados, por escrito, à outra parte» (artigo 14.º das Condições Gerais);
1.2. A extinção do registo desta locação financeira pode operar em face de carta registada com aviso de recepção enviada ao locatário, na qual se contenha a declaração do locador acerca dos pressupostos e da efectivação da resolução, não sendo, por isso, necessário demonstrar a licitude da resolução, seja através do assentimento da outra parte, seja por via judicial.
1.3. Perante a justificação dada no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 30/2008, a alteração
legislativa introduzida em matéria de cancelamento de registo visa esclarecer que o
cancelamento do registo da locação financeira é independente de qualquer tipo de acção judicial intentada para a recuperação da posse do bem locado, por isso, torna-se agora claro que é desnecessária a propositura de qualquer acção judicial para cancelamento desse registo, que se pode efectuar pelas vias administrativas normais.
1.4. Embora tenhamos dificuldade em compreender a alteração legislativa como
«interpretação autêntica» e, portanto, como esclarecimento ou clarificação dos termos em que o registo podia ser cancelado
1, certo é que, diante do disposto no artigo 17.º, já não se afigura pertinente dizer que a extinção do registo depende da apresentação da decisão proferida no procedimento cautelar a que alude o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95.
1.5. E também não se pode dizer que ao conservador seja admitido o controlo de legalidade da extinção do contrato de locação financeira segundo os parâmetros definidos no artigo 68.º do CRP, que sempre implicariam a prova da licitude da resolução, pois o artigo 17.º/2 do Decreto-Lei n.º 149/95, ao fixar o documento suficiente para o registo, acaba por reconduzir o juízo de qualificação aos aspectos formais e à consideração da extinção do vínculo em termos definitivos: o cancelamento da locação financeira passa a ter fundamento na declaração resolutiva, não no contrato validamente resolvido.
1.6. Conquanto o preceito legal contido naquele artigo 17.º/2 também se aplique a casos em que o contraente inadimplente seja o locador e, por conseguinte, quando a
«desobrigação» provenha do locatário, para nós, a alteração legislativa não fez senão deslocar do tribunal para o registo «um factor de eficiência e de celeridade destinado a evitar o arrastamento de situações litigiosas e os correspondentes prejuízos económicos derivados de situações de imobilização de bens»
2, e veio favorecer, sobretudo, os casos
1
Com efeito, não se afigura que, neste aspecto, a lei fosse obscura ou oferecesse grande resistência interpretativa; o cancelamento do registo era feito ou com a intervenção de ambas as partes – locador e locatário – ou em face da decisão cautelar a que alude o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, da qual se recolhiam as condições necessárias à recolocação do bem no mercado: livre disposição dos bens, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 21.º/6 e 7.º, e cancelamento do registo de locação financeira, enquanto condição indispensável à transmissão livre de ónus ou encargos.
A menos que se pretenda dizer que o cancelamento do registo dependia apenas do exercício do direito potestativo extintivo, mas, se assim era, mal se compreendia o âmbito material do procedimento cautelar previsto no artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95.
2
Cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, 3.ª edição revista e actualizada, p. 328, a
propósito da regulação da providência judicial a que alude o artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, com os
contornos legais anteriores ao Decreto-Lei n.º 30/2008, sublinhando o facto de o legislador ter optado por
proporcionar ao credor um instrumento de natureza jurisdicional que, malgrado a sua natureza provisória,
acabava por conduzir, na prática, a resultados definitivos que, em princípio, apenas deveriam emergir dos
meios comuns, e assinalando a variabilidade dos termos do pedido, que podia ser restrito ao cancelamento
em que, a despeito da entrega do bem (e, portanto, da recuperação do uso e da fruição), ao locador faltavam as condições necessárias à sua livre disposição, em virtude da subsistência tabular do contrato de locação financeira e da falta de intervenção do titular inscrito da locação financeira no pedido de cancelamento
3.
1.7. E se a opção legislativa não significa conferir à parte que sofreu o incumprimento um poder de acertamento sobre a ineficácia do contrato que, designadamente, inviabilize o contraditório, ou retirar à outra parte o direito de ver discutida em tribunal a licitude da resolução, é, todavia, inegável que a posição do locatário pode agora ser arredada do registo mediante simples prova da comunicação da resolução por parte do locador.
1.8. Antecipa-se, assim, nas tábuas os efeitos da extinção do contrato e, deste modo, o efeito a que tenderia a acção, principal ou cautelar, interposta pelo locatário – a plena disponibilidade dos bens -, já não por efeito do apuramento judicial, ainda que provisório, dos pressupostos de ordem substantiva, com eventual acautelamento da posição do locatário mediante audição do requerido e ou prévia prestação de caução por parte do requerente, mas, simplesmente, através da prova de que se exerceu o direito potestativo à resolução do contrato
4.
2. O que, todavia, pesa nos autos é a questão de saber se foi apresentada prova da comunicação da resolução à outra parte, ou seja, se o envio de carta registada com aviso de recepção dirigida à sede da locatária indicada no contrato e no registo comercial permite considerar a eficácia da declaração resolutiva, apesar de a carta ter sido devolvida com a indicação de que o destinatário se mudou sem deixar nova morada.
2.1. Considerando o disposto no artigo 436.º do CC e o clausulado contratual, verifica-se que a resolução em apreço opera ope voluntatis, pelo que bastaria a declaração escrita do locador levada ao conhecimento ou ao poder da locatária (presunção juris et de jure
judicial do registo, caso o locatário tivesse procedido à entrega espontânea do bem.
3
Se o locatário não proceder à restituição do bem, mesmo com o registo de locação financeira cancelado, o locador sempre terá de recorrer à providência cautelar a que alude o artigo 21.º para recuperar o uso e fruição da coisa, poderes fundamentais para a recolocação do bem no mercado e a realização dos negócios jurídicos a que alude o artigo 7.º.
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Esta opção legislativa, imbuída de um espírito de simplificação e de celeridade, não deixa de colocar o problema do desequilíbrio na relação entre as partes e as questões atinentes à impossibilidade de recuperação integral da situação preexistente em casos de resolução ilícita, que antes justificavam a intervenção judicial.
Sobre soluções jurídicas aventadas no passado e que passavam por fortalecer a posição do locador em matéria
de cancelamento do registo e de «recuperação» do bem, cfr. Rui Pinto Duarte, Quinze Anos de Leis sobre
Leasing – Balanço e Perspectivas, in Escritos sobre Leasing e Factoring, Principia, Publicações Universitárias e
Científicas.
do conhecimento), mediante carta registada com aviso de recepção (forma convencionada), para a resolução produzir os seus efeitos.
2.2. Diante do disposto no n.º 1 do artigo 224.º do CC, uma declaração recipienda ou receptícia, como é a declaração resolutiva, torna-se eficaz logo que chega ao poder do destinatário ou é dele conhecida, valendo, pois, os critérios da recepção e do conhecimento para a sua eficácia
5.
2.3. Porém, segundo o disposto no n.º 2 do mesmo artigo, e como medida de protecção do declarante, é também considerada eficaz a declaração que só por culpa do destinatário não foi por ele oportunamente recebida: a declaração é tida como eficaz apesar de não ter chegado ao poder, quando isso foi culposamente impedido pelo destinatário
6.
2.4. Ora foi isso que aconteceu no caso em análise, em que só não se logrou obter o conhecimento da declaração resolutiva porque a locatária se ausentou para parte incerta, deixando de responder na morada correspondente à sua sede social e, portanto, no seu domicílio (artigo 12.º/3 do CSC).
2.5. E não valerá a pena cogitar a possibilidade de a locatária ter alterado a sede para outro local, e disso ter dado conhecimento por escrito ao locador, porquanto tal alteração teria de estar patenteada no registo comercial, e não está, e mal se concebe que o locador, conhecendo a nova morada, não tivesse zelado pela eficácia da declaração resolutiva e insistisse no envio da carta para a morada antiga.
3. Entendemos, por isso, que é de afastar a recusa por falta de prova do recebimento da declaração por parte da locatária, sobrando analisar apenas o problema atinente à comprovação dos poderes dos signatários da dita declaração, que também se inclui nos motivos de recusa.
3.1. O recorrente funda a impertinência da recusa no facto de a carta consubstanciar um documento ad probationem e constar em papel timbrado do locador, não sendo, por isso, exigível a forma ad substanciam correspondente ao reconhecimento presencial da assinatura do declarante
7.
5
Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, 4.ª edição com a colaboração de Henrique Mesquita, pp. 213/214.
6
Heinrich Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, p. 451.
7
Acrescenta-se a estes argumentos o facto de nenhum dos inúmeros pedidos de cancelamento formulados nos
mesmos termos pelo recorrente ter sido recusado com os fundamentos constantes da decisão impugnada,
procurando retirar-se deste facto um argumento de demérito da decisão recorrida.
3.2. Mas, na nossa opinião, a recorrida não colocou um problema de forma ou de formalidades
8, antes pretendeu certificar-se de que a declaração foi emitida pelo Banco, parte no contrato, e, para o efeito, só a prova da qualidade e os poderes para o acto dos signatários da carta permitiriam asseverar a autoria do documento
9.
3.3. O Banco, ora recorrente, é em si mesmo um sujeito de direito, mas, como pessoa colectiva que é, precisa de pessoas físicas que manifestem a sua vontade, externamente, e designadamente intervenham, em seu nome, na extinção das relações jurídicas de que o Banco seja sujeito, e a verdade é que, em regra, uma declaração, como é a de resolução de um contrato de locação financeira, só será juridicamente imputável ao Banco se tiver sido proferida, em seu nome, por um representante orgânico (artigo 409.º/1 e 4 do CSC) ou por um representante voluntário (artigo 391.º/7 do CSC)
10.
3.4. Ora é precisamente essa qualidade de representantes dos signatários que falta conhecer, e é a relação subjacente ou fundamental (representação orgânica ou representação voluntária) que lhe está associada e que indica a extensão do agir representativo que importa conhecer, seja, consoante o caso, através do reconhecimento
Ora, como já se disse no processo R. P. 244/2008 SJC-CT, o princípio da legalidade ínsito no artigo 68.º do Código do Registo Predial demanda que a apreciação da viabilidade do pedido de registo seja feita em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, e não à imagem da interpretação dos factos e do direito efectuada noutros serviços, ou por outros qualificadores, perante casos do mesmo tipo.
Tal não significa que, no interesse dos cidadãos e das empresas, não se deva favorecer a uniformidade de decisões, mas, obviamente, este desiderato obtém-se, normalmente, a partir de orientações interpretativas ou de despachos superiores, destinados a ser aplicados a todos os casos de um mesmo tipo, e não através de um conjunto de decisões proferidas a propósito de concretos pedidos de registo que deva valer como uma espécie de «fonte de direito» ou de critério normativo de casos futuros, ou, sequer, como indício de acerto de qualificação, como que formado por «maioria».
8
Convém notar que as formalidades especiais observadas na resolução em apreço não se justificarão apenas em face da necessidade de fazer prova do facto no registo, mas porque assim o exigia o acordo das partes vertido no artigo 11.º das Condições Gerais do contrato de locação financeira (forma convencional).
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O exercício do direito potestativo à resolução do contrato pertence à pessoa colectiva; visa produzir efeitos numa dada relação jurídica; e é consubstanciado numa declaração a terceiro, logo, não se confunde com um acto de mero expediente a que baste o uso de papel timbrado para prova da genuinidade da sua autoria ou da sua proveniência.
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