20º Congresso Brasileiro de Sociologia 12 a 17 de julho de 2020
UFPA – Belém, PA
Desigualdades de gênero e raça nas ocupações e grupos de atividade no trabalho por conta própria no Brasil
Thaís de Souza Lapa (UFSC) e Juliana Grigoli (UFSC) Resumo
Esse paper discute as características da desigualdade de renda nas ocupações e atividades informais e por conta própria no Brasil, especialmente naquelas que refletem divisão sexual do trabalho. Baseia-se em pesquisa realizada em 2020 com base em dados da PNAD-C, cujo levantamento entrecruzou dados das faixas de renda e ocupações dos trabalhadores com suas distribuições de gênero e raça. Foi possível observar que entre as ocupações por conta própria mais frequentes há uma nítida segregação de gênero e de renda, sendo as ocupações melhor remuneradas ocupadas por homens brancos, enquanto as mulheres, sobretudo negras, predominam na base da pirâmide ocupacional. Tais resultados expressam desigualdades estruturais do mercado de trabalho e sublinham que a persistência da divisão sexual do trabalho desigual reproduz, também entre os “conta própria”, padrões de subordinação da classe trabalhadora feminina e sobretudo negra, sobrerrepresentada em ocupações pior valorizadas e remuneradas. O enfoque interseccional-consubstancial adotado permite observar, deste modo, que o conjunto de trabalhadores por conta própria não conforma um todo homogêneo.
Palavras-chave: trabalho por conta própria - informalidade - interseccionalidade - desigualdades no mercado de trabalho
1 Introdução
Este paper apresenta parte dos resultados da pesquisa “Informalidade e discriminação racial e de gênero no trabalho ‘por conta própria’ no Brasil”, realizada em 2020 por equipe do Laboratório de Sociologia (LASTRO-UFSC)
1. O
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Esta pesquisa recebeu apoio da Fundação Perseu Abramo.
estudo procurou compreender, em perspectiva interseccional
2, a morfologia socioeconômica dos 24,3 milhões de trabalhadores por conta própria no Brasil - tanto formais como informais
3. Para tal, utilizou dados da PNAD-C
4e se fundamentou, também, nas reflexões a respeito da longa trajetória da estrutura de desigualdades no mercado de trabalho brasileiro (Gonzalez, 2020[1979,1982], MOURA, 2019[1988]). A relevância do enfoque analítico interseccional se deve ao fato deste privilegiar o enovelamento destas dimensões como heuristicamente necessário para a compreensão (e desnaturalização) das posições e condições de trabalho da classe, atravessada pelas estruturações de sexo e raça. A divisão sexual do trabalho, conceituação desenvolvida por Kergoat e Hirata (2003), é chave analítica para se refletir em maior profundidade, a partir dos dados levantados, sobre sua imbricação com a divisões racial e social do trabalho - cujas características particulares no Brasil advém de processos de longa duração decorrentes da formação social do país, marcada pelo escravismo colonialista.
No Brasil, os trabalhadores por conta própria formam um grupo social majoritariamente masculino (63%, contra 37% de mulheres), em boa medida porque o emprego doméstico, ao ocupar outra parcela da população mais pobre, é quase inteiramente feminino. Os negros são maioria entre os conta própria, 55%
(10% de pretos e o restante de pardos), dez pontos percentuais a mais que os brancos. Outras identidades de cor-raça somam pouco mais de 1%.
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Há diferenças entre as conceituações interseccionalidade e consubstancialidade, que não serão aprofundadas neste texto, cuja preocupação é privilegiar o enfoque analítico que imbrica as dimensões de classe, gênero e raça das relações sociais, compreendidas como relações de poder que se co-produzem e se recobrem parcialmente, sendo, portanto, base material estrutural das divisões de trabalho (social, sexual, racial). Ao longo do texto, utiliza-se “perspectiva interseccional”
(ou similares) como forma simplificada de nomear um campo de reflexões mais amplo e cujas dissonâncias escapam ao propósito do texto. Sobre o assunto, ver Hirata (2014) e Galerand e Kergoat (2018).
3 A maior parte dos trabalhadores por conta própria atua na economia informal - 77%, contra 23%
que têm CNPJ, quase todos estes como Microempreendedor Individual (MEI).
4 Utilizou-se os microdados da PNAD-C do terceiro trimestre de 2019. Foram selecionados/as
Tabela 1. Composição dos conta própria por gênero e raça.
Raça/Gênero Percentual/conta própria
Homem Negro 35,5%
Homen Branco 27,3%
Mulher Negra 19,7%
Mulher Branca 17,6%
Fonte: Relatório da Pesquisa Informalidade e discriminação racial e de gênero no trabalho ‘por conta própria’ no Brasil. MICK, 2020.
Quase metade dos conta própria tem renda baixa, inferior a R$ 1.000,00 por mês (48%). Apenas 7% têm renda superior a R$ 4.001,00. Nos estratos intermediários, 30% têm renda entre R$ 1.001,00 e R$ 2.000,00 e 15%, entre R$ 2.001,00 e R$ 4.000,00, as faixas formando uma pirâmide. Como procuraremos demonstrar, as mulheres negras se concentram nas faixas de renda mais baixa, enquanto os homens brancos ocupam os quadrantes de renda mais alta.
Tabela 2. Variações por faixa de Renda.
Raça/gênero Até R$ 2 mil R$ 2 mil a R$ 4.000,00 Mais de R$ 4 mil
Homem Negro 37,3% 32% 20%
Homen Branco 22,9% 39,9% 50,2%
Mulher Negra 22,9% 9,5% 5,7%
Mulher Branca 16,9% 18,5% 24,1%
Fonte: Relatório da Pesquisa Informalidade e discriminação racial e de gênero no trabalho ‘por conta própria’ no Brasil. MICK, 2020.
Observados deste modo, contudo, os dados pouco revelam a respeito dos contornos mais específicos da divisão sexual do trabalho entre os “conta própria”.
É ao desagregar os trabalhadores segundo suas ocupações principais que
podemos visualizar os segmentos em que mulheres - homens - negros/as -
brancos/as tendem a se concentrar ou a ser minoritários. Procuraremos apresentar
esta distribuição e demonstrar como se relaciona a formas de divisão sexual
(atravessadas pela racial) do trabalho que, longe de serem um fenômeno novo, reiteram a reprodução de desigualdades históricas no mercado de trabalho do país.
Antes de apresentar tais dados, abordaremos elementos que ajudam a traçar o quadro de tais desigualdades históricas.
2. A longa trajetória do gênero e da raça do trabalho informal brasileiro
A maior parte dos trabalhadores por conta-própria brasileiros são informais (quase 80%), sendo que entre o restante, boa parte são microempreendedores individuais (MEIs). Este dado remete à reflexão sobre as configurações do trabalho informal brasileiro, compreendido não como um traço predominante em toda a história do trabalho livre nacional. Mais do que isso, como herança dos tempos de sociedade escravocrata e patriarcal.
Moura (2019[1988]) é assertivo ao narrar a história da transição para o trabalho livre no país como um processo deliberado de afastamento dos negros das ocupações modernizantes da sociedade capitalista emergente, produzindo um imobilismo social que perdura até nossos dias. Segundo o autor, foi à luz das políticas de branqueamento da população promovias pelas classes dominantes que criou-se o “mito da incapacidade do negro para o trabalho” (MOURA, p. 98);
um mito reiterado por parte considerável de autores do pensamento social brasileiro para justificar o emprego de imigrantes europeus brancos na nascente indústria, por exemplo.
Moura explica, contudo, que durante todo o tempo em que o escravismo
existiu, “o escravo negro foi aquele que esteve presente em todos ofícios, por mais
diversificados que fossem” (idem). Eles eram “ourives, alfaiates, padeiros,
marceneiros, tanoeiros, metalúrgicos, etc”). Segundo o autor, foi devido a
mecanismos e fundamentações racistas dinamizados no contexto capitalista, que
os antes “bons escravos” passam a ser estereotipados e considerados “indolentes,
cachaceiros, não persistentes no trabalho”, ao mesmo tempo em que constrói-se o
modelo do branco como sendo o trabalhador ideal, “superior” e compatível com as
necessidades do capitalismo nascente. (MOURA, 2019 p. 99). Tais ideias
reforçavam o argumento de que a população negra tratava-se de uma mão de obra eternamente não qualificada e não aproveitável.
Assim, por meio de mecanismos repressores ou reguladores, foi se conformando uma divisão social do trabalho que coincidia com uma divisão racial na qual “Tudo aquilo que representava trabalho qualificado, intelectual, nobre, era exercido pela minoria branca, ao passo que todo subtrabalho, o trabalho não qualificado, braçal, sujo e mal remunerado era praticado pelos escravos, inicialmente, e pelos negros livres após a Abolição” (MOURA, 2019, p. 103). Essa seria a base de uma divisão racial desigual que perdurava até o período dos escritos de Moura, nos anos 1980, e que perdura também até o presente. Uma divisão que é fruto da não democratização nem das relações sociais, nem das relações raciais no país.
Para Gonzalez (2020 ([1979], p. 58), se a população negra, de modo geral, foi excluída no processo de desenvolvimento e relegada à condição de massa marginal, predominando no desemprego, nas ocupações “refúgio” em serviços, nos trabalhos ocasionais, intermitentes, por temporada, a situação das mulheres negras dentro deste contexto teve um destino ainda mais peculiar.
Gonzalez (2020[1979] salienta que embora o número de pessoas negras escravizadas tenha sido sobretudo masculino, o sistema não suavizou o trabalho da mulher negra, que atuou fundamentalmente como trabalhadora do eito e como mucama
5. Sua condição de “mucama” dentro do regime escravista desenha os contornos do seu posterior predomínio na “prestação de serviços domésticos junto às famílias de classe média e alta da formação social brasileira”. Gonzalez (2020[1982], p. 2018) é categórica ao afirmar que “a empregada doméstica de hoje não é muito diferente da ‘mucama’ de ontem”. Ainda segundo ela, o mesmo poderia se dizer da vendedora ambulante, da servente ou da trocadora de ônibus de hoje e da “escrava de ganho” de ontem.
A falta de perspectivas para a mulher negra brasileira se construiu de forma generalizada; explica Gonzalez (2019, p. 57-58) que ela pouco penetrou tanto nas atividades industriais, onde “o processo de seleção racial favoreceu muito mais a operária branca ou ‘morena’ do que a negra”, como em setores burocráticos de
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