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20º Congresso Brasileiro de Sociologia. 12 a 17 de julho de UFPA Belém, PA. CP09 - Sociologia da arte

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20º Congresso Brasileiro de Sociologia 12 a 17 de julho de 2021

UFPA – Belém, PA

CP09 - Sociologia da arte

Avivar o velho e atiçar o novo: algumas reflexões sobre a realização de festivais de cinema em cidades do interior nordestino

Beatriz Souza Vilela

UFBA - CAPES

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Avivar o velho e atiçar o novo: algumas reflexões sobre a realização de festivais de cinema em cidades do interior nordestino

Ao deslocar meu olhar para as cidades do interior observei, o que parece ser uma tendência, entre algumas cidades já reconhecidas por um tipo de turismo cultural 1 : o investimento na realização de festivais de cinema. É o caso de cidades como Goiás Velho e Pirenópolis, em Goiás; Vitória da Conquista e Cachoeira, na Bahia; Muqui, no Espírito Santo; Tiradentes, Diamantina e Ouro Preto em Minas Gerais; Jaraguá do Sul, em Santa Catarina; Penedo, em Alagoas; Taquara e Triunfo, em Pernambuco, e muitas outras cidades.

Mesmo com pouca e até mesmo nenhuma tradição com a cultura cinematográfica, essas cidades inventaram um novo formato de expectação cinematográfica com esses eventos audiovisuais.

A partir da minha inserção no campo cinematográfico 2 , notei que além do circuito formado pelos grandes festivais, já consagrados no calendário do cinema brasileiro, como:

o Festival de Cinema de Gramado, Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, Mostra Internacional de Cinema de São Paulo; há também um circuito de festivais de menor porte, desenvolvido nas cidades citadas acima, que tem ganhado força na última década. Ao que parece, essa tendência de festivais de cinema em cidades do interior é parte de um processo de expansão dos festivais de cinema no Brasil.

De acordo com o levantamento realizado pelo Painel Setorial dos Festivais Audiovisuais e o Kinofórum, sobre o número de festivais de cinema no país, em 1999 tinha apenas 33, em 2006 havia 132, em 2011 eram 141, já em 2014 esse número saltou para 250 e em 2015 alcançou a marca de 318 festivais. Em 16 anos os festivais de cinema cresceram cerca de 964%. Conforme Paulo Correia (2018), em sua pesquisa sobre a geografia dos festivais, até 2018 o Nordeste se apresentava como a segunda maior região que concentra festivais, ficando atrás do Sudeste. Em 2018, por exemplo, o Nordeste fechou o ano com 90 mostras e festivais, 15 a mais que em 2017. Foi nesse cenário que o Circuito Penedo de Cinema (2011), o Festival de Cinema de Triunfo (2009) e o Cachoeira Doc (2010) foram criados.

1

relacionado ao patrimônio arquitetônico, a cultura popular, a gastronomia, a história e a geografia.

2

Sou realizadora audiovisual: curadora da Mostra Quilombo de Cinema de Negro de Alagoas

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Muito antes da realização dos festivais de cinema Penedo, Triunfo e Cachoeira já investem na atividade turística relacionada ao turismo cultural. Triunfo está localizada no Vale do Pajeú, no sertão pernambucano, a 1.200 m acima do mar, com uma forte produção de cachaça, a cidade possui museus relacionados ao cangaço e a cultura popular.

Considerada monumento nacional, Cachoeira foi tombada pelo IPHAN e ficou reconhecida como cidade heróica dada a sua participação na luta pela independência da Bahia e do Brasil.

Já Penedo, ancora-se nos registros da presença holandesa e na passagem de D. Pedro II e sua comitiva pela cidade. Apesar dessas diferenças, as cidades possuem aspectos em comum, como: um conjunto arquitetônico tombado em seus centros históricos, tradições festivas importantes para os calendários das cidades e o investimento no cinema enquanto recurso (YÚDICE,2004) ou seja, a cultura cinematográfica passou a ser incorporado na agenda econômica e política para incrementar o turismo cultural que eles já ofertavam.

Com isso, seus patrimônios culturais parecem ter ganhado novos usos. Ao pensar sobre como se estabelecem as relações entre os centros históricos e seus usos turísticos, Maria Augusta Wanderlei (2015) em sua dissertação sobre o processo de tombamento e as estratégias de utilização turística do centro histórico de Natal, aponta que há uma complementaridade entre o turismo e o patrimônio cultural, um depende do outro. O patrimônio precisa se sustentar financeiramente, e o turismo precisa de um atrativo para se manter. Desse modo, o turismo direcionado para a cultura, parece ter se tornado uma estratégia para suportar os alto custos de recuperação e manutenção desses lugares. Afinal, os centros históricos constituem expressões identitárias indispensáveis para esse tipo de atividade turística. Desse modo, os festivais incorporam os destinos turísticos em suas programações.

Conforme o relato de um cineasta alagoano formado pela UFRB, Ulisses Arthur, o Cachoeira doc, costumava a ser realizado do mês de setembro, o mês do caruru e de Cosme e Damião. Assim, na sessão de abertura era servido para todo público caruru. Para Ulisses, o festival se misturava com as comemorações da data religiosa, o profano e o sagrado caminhavam juntos, no cinema.

Destarte, se pode observar como o elemento da diferença atua como um símbolo de

distinção entre os festivais. Em diálogo com essa observação, Noélia Araújo Vila e Trindad

Domingues Vila (2012), ao investigarem o Festival Internacional de San Sebastián,

perceberam que os festivais de cinema se transformaram, em algumas cidades, em um

elemento potencializador que incrementa o número de turistas e engendra uma nova imagem

da cidade como destino turístico, pois eles passam a ser um tipo de evento que, a partir de

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novas experiências ofertadas pela programação dos festivais, oferece uma diversificação das alternativas de cultura e lazer das cidades.

Transformações sócio históricas da expectação cinematográfica:

Em minha pesquisa de doutorado tenho investigado como a expectação cinematográfica propiciada pelos festivais de cinema apresentou novas formas de experienciar a cidade e se relacionar com a cultura, a identidade e o desenvolvimento, a partir de três experiências audiovisuais desenvolvidas no Nordeste: O Cachoeira Doc, O Circuito Penedo de Cinema e Festival de Cinema de Triunfo 3 . Deste modo, no presente texto quero trazer uma reflexão construída a partir das informações coletadas ao longo desse primeiro ano de investigação, meu foco aqui será como essa nova forma de experienciar a cidade desaguou em um debate público sobre a reativação dos cinemas de rua enquanto equipamentos culturais fundamentais para as sociabilidades das cidades.

Assim, o título desse trabalho traz um jogo de metáforas, que evidencia o movimento de transformação da expectação cinematográfica nessas cidades. Se por um lado os festivais de cinema, enquanto o novo, avivaram os antigos cinemas de rua; esses ambientes de exibição, que outrora eram vistos como o velho, tornaram-se o espaço das novidades, das produções contemporâneas do cinema brasileiro. ´´Avivar o velho e atiçar o novo´´. A frase é de autoria de Gilberto Gil, e está presente no Plano Cultural do Desenvolvimento Nacional, onde Gil enfatizou a democratização das políticas culturais, na consolidação e na ampliação dos direitos culturais e da cidadania cultural:

Avivar o velho e atiçar o novo, porque a cultura brasileira não pode ser pensada fora desse jogo, dessa dialética permanente entre a tradição e a invenção, numa encruzilhada de matrizes milenares e conformações e tecnologias de ponta (PCDN,2006).

Os festivais de cinema realizados nas cidades de Penedo (AL), Triunfo (PE) e Cachoeira (BA) acontecem há quase uma década 4 , respectivamente nos meses de agosto, setembro e novembro. Com uma programação voltada exclusivamente para o cultivo do cinema brasileiro independente, o Circuito Penedo de cinema, o Cachoeira Doc e o Festival

4

Circuito Penedo de Cinema (2011), Cachoeira Doc (2009) e Festival de Cinema de Triunfo (2008).

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de Cinema de Triunfo dão tela a uma produção cinematográfica que não chega aos grandes circuitos de exibição, como as salas de cinema dos shoppings e os canais de tv aberta. Com diferentes propostas curatoriais 5 os festivais realizam mostras competitivas, debates com realizadores, atividades de formação audiovisual, discussão de trabalhos acadêmicos e produção de críticas cinematográficas. E para além das atividades mediadas pelo cinema, os festivais também incentivam que os participantes dos eventos a experienciarem a cultural local. O que chamou a atenção nesses três cenários, foi como os festivais em questão contribuíram com a reabertura dos antigos cinemas de rua.

Assim, para compreender as transformações sócio-históricas das sociabilidades dos cinemas de rua, optei pela abordagem sócio-histórica, proposta por Norbert Elias (1994;2000). Conforme a compreensão do autor, as figurações consistem em redes de interdependências humanas moldadas por formas específicas, onde a partir de suas inclinações ou necessidades, os indivíduos relacionam-se uns com os outros. Dado ao seu caráter dinâmico, as figurações podem ou não manter uma constância de direção. Constância ou alteração dependem do equilíbrio de forças na estrutura social. Tenho observado os festivais de cinema enquanto uma figuração que ascendeu na última década e apresentou novas formas de expectação cinematográfica.

Nesse sentido, essa ferramenta teórico-metodológica me fez perceber que para compreender a ascensão de uma nova forma de expectação cinematográfica nessas cidades é fundamental observar o papel da memória nesse processo. Aqui me refiro a memória individual e coletiva das sociabilidades dos antigos cinemas de rua. Conforme a reflexão de Milena Gusmão (2010) a memória é mediada pelos processos de aprendizagem, e diz respeito a estocagem dos saberes vinculados pela linguagem, como também aos mecanismos de transmissão de conhecimento entre gerações e também de contextos de significação.

No que se refere á dinâmica sócio-histórica que constitui o cinema, torna-se necessário apurar o olhar para perceber relação entre anterioridade e posterioridade, chamando a atenção para o elo de reciprocidade e complementariedade entre o que foi realizado por gerações anteriores e o que

5

Apesar de exibirem filmes nacionais há diferenças entre os três eventos: o CachoeiraDoc é um festival de

documentários, o Circuito Penedo de Cinema abarca três festivais: a Mostra de Cinema Ambiental Velho

Chico, o Festival de Cinema Universitário e o Festival do Cinema Brasileiro e o Festival de Cinema de Triunfo

possui uma mostra específica para os filmes pernambucanos.

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posteriormente se constituiu, a partir de aprendizados inter-geracionais (GUSMÃO, 2010, p. 160).

É com esse propósito que lanço meu olhar para essa relação entre anterioridade e posterioridade da expectação cinematográfica nas cidades do interior. A partir dessa relação, destaco a reabertura das antigas salas de exibição, como uma ação que se constituiu, desse elo.

Atiçar o novo e avivar o velho:

Se nas capitais e nas cidades maiores a falência dos cinemas de rua contrastou com a ascensão dos cinemas nos shoppings, nas cidades interioranas ela contrastou com a ausência de um espaço voltado para a exibição de filmes. Essas cidades não vivenciaram essa substituição, nelas a sala não saiu da calçada e foi pra o segundo piso. A fruição cinematográfica coletiva proporcionada pelos cinemas de rua deixou de fazer parte das sociabilidades das cidades, foram os festivais de cinema que retomaram a expectação cinematográfica, após um hiato de quase três décadas. Conforme os moradores de Penedo, lá por exemplo, durante os anos setenta e oitenta chegou a ter três salas de exibição em funcionamento: o Cine Penedo, o Cinema São Francisco e o Cinema do Círculo Operário, mas a partir dos anos noventa todos fecharam as portas. Com isso, ir ao cinema tornou-se um hábito distante, um momento nostálgico, uma lembrança, uma imagem da memória.

Em sua pesquisa sobre o parque exibidor formado pelos antigos cinemas de rua, na Tijuca, a segunda Cinelândia carioca, a pesquisadora Thalita Ferraz (2012) destaca que o ritual da expectação coletiva na cidade mudou, das dinâmicas das calçadas para as dinâmicas dos shoppings. Para Ferraz, o ritual de expectação cinematográfica diz respeito a um conjunto de ações que se repetem todas vezes em que os espectadores frequentam as salas:

a chegada ao cinema, a fila, o momento da espera, a compra do bilhete, a estada na sala.

Notamos que novos paradigmas orientam as sociabilidades desempenhadas nesse equipamento inovado. Há novas linhas e vetores nos processos de socialização em torno do ambiente de projeção cinematográfica[...] (FERRAZ, 2012,p.211).

A partir dessa compreensão da autora, quero enfatizar que os festivais de cinema

apresentaram um novo ritual de expectação cinematográfica, bem diferente do ritual dos

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cinemas de rua. O Cachoeira doc, teve sua primeira edição realizada, dentro da UFRB, no Centro de Artes, Humanidades e Letras em parceria com o curso de Cinema e Audiovisual.

Com o tempo, as exibições do Cachoeira Doc passaram a acontecer na praça 25 de julho, que fica em frente ao cinema Cachoeirano. Já o Circuito Penedo de Cinema, começou como um Festival de cinema universitário, com projeções realizadas no Teatro 7 de setembro e na Orla do Rio São Francisco, passando a ocupar a calçada do Teatro, posteriormente ele passou a contar com uma estrutura de uma tenda, o cine tenda, aproximando a experiência da tradicional sala escura. Nas duas cidades os festivais iniciaram suas atividades sem um espaço físico apropriado para tal, pois as antigas salas de cinema estavam fechadas. Apenas em Triunfo o festival já começou dentro de um cinema propriamente, no cine teatro Guarany.

Imagem 1: cinema na praça, cachoeiradoc/2015

Fonte: https://cachoeiradoc.com.br/2015/

Imagem 2: Cinema no Centro Histórico, Circuito Penedo de Cinema/2015

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Fonte: https://penedo.al.gov.br/2015/10/31/penedo-sedia-a-5a-edicao-do-festival-de-cinema- universitario-de-alagoas-entre-os-dias-3-e-7-de-novembro

É importante frisar que, após um número considerável de edições dos festivais é que eles passaram a ocupar os cinemas. Conforme ressaltei mais acima, novas linhas e vetores deram novos significados a essa fruição coletiva.

Imagem 3: Cine Teatro Cachoeirano, Cachoeira DOC,

Fonte:https://www.facebook.com/media/set/?set=a.878844142190337.1073741868.865553723519379&type

=3

Imagem 4: Cine São Francisco, Circuito Penedo de Cinema

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Fonte: https://voceacontece.com.br/fotos/754

Estamos diante de uma configuração completamente diferente daquela dos cinemas de rua dos anos oitenta. Mesmo com os cinemas de rua reabertos, outros discursos passaram a mobilizar essa expectação cinematográfica. Sobre esse aspecto observei quatro elementos que demarcam as diferentes linhas e vetores das sociabilidades nesses dois períodos distintos: o acesso aos cinemas, a programação, a frequência e a relação com a cidade:

1) O acesso aos cinemas: é importante ressaltar que os cinemas de rua, consistiam em um tipo empreendimento ´´o negócio da exibição´´. Assim, para assistir um filme era necessário pagar pelo custo da sessão, que podia variar a depender do tipo de cinema, do horário da sessão, do dia. Já com os festivais de cinema, o espectador tem acesso livre as salas, com o intuito de democratizar o acesso a cultura cinematográfica, o ingresso é custeado por outro tipo de fomento 6 .

2) a programação: Em minha pesquisa de mestrado, analisei as programações fílmicas dos cinemas de rua, e observei que durante os anos oitenta havia um predomínio de filmes estrangeiros nos cinemas de rua (VILELA,2017). Com os festivais de cinema pode-se afirmar que houve uma mudança radical na programação, pois há um empenho em difundir o cinema nacional e local, constituindo um novo complexo de visualidades, tal como infere Nicholas Mirzoeff (2016),

3) a frequência: Se nos anos oitenta os cinemas de rua funcionavam praticamente todos os dias da semana, com várias sessões ao longo do dia, com os festivais apenas durante uma vez no ano as cidades recebem as atividades cinematográficas. Desse modo, a frequências as salas de exibição deixaram de fazer parte do cotidiano da cidade, para tornarem-se anual.

4) e relação com a cidade: Com os novos significados atribuídos a prática de ir ao cinema, notei que há uma maior iniciativa dos gestores públicos que o equipamento cultural faça parte das sociabilidades do turismo local, o uso não fica voltado apenas para os moradores.

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Iniciativa das universidades federais através da ação de extensão, editais públicos ou privados voltados para

setor audiovisual com foco na produção de eventos e patrocínios de empresas.

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Se para Thalita Ferraz (2012) a passagem dos cinemas de rua para os shoppings acarretou em uma padronização do hábito e uma perda da singularidade das experiências, nas cidades do interior parece que ocorreu o inverso. Destaco que nas cidades do interior, apesar da estrutura do festival também possuir uma padronização do formato do evento audiovisual, é possível destacar um forte investimento na valorização da singularidade da experiência a partir da cultura local. Apesar das semelhanças, cada festival busca diferenciar a experiência que ele pode proporcionar, com o intuito de torna-la autêntica. Por exemplo, Triunfo está localizada no Vale do Pajeú, no sertão pernambucano, e lá há uma forte tradição de manifestação popular dos caretas. Assim, essa manifestação popular torna-se o diferencial desse festival.

Imagem 5:

Fonte: http://www.cultura.pe.gov.br/canal/audiovisual/12o-festival-de-cinema-de-triunfo/

Sobre esse aspecto Tete Mattos (2017) ressalta que os festivais de cinema fazem uso de sua territorialidade como um elemento de distinção. Ao mesmo tempo em que eles precisam ser similares, há também uma necessidade de apresentarem uma singularidade, e fazem isso através dos elementos culturais considerados autênticos e únicos:

Só para citarmos alguns exemplos: o Festival de Cannes e a Riviera francesa, o Festival de Veneza e a cidade-museu, a Mostra de Cinema de Tiradentes e a cidade colonial, o Festival do Rio e a cidade maravilhosa. Soma-se a isso às inúmeras atrações culturais que a localidade pode oferecer:

museus, arquitetura, vida noturna, restaurantes, etc, que

irão contribuir como valores agregados e influenciar a

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posição do Festival no circuito global (MATOS,2017, p.8).

Nestor Garcia Canclini (2012) infere que na segunda metade do nosso século, com a transnacionalização da economia e as tecnologias da comunicação, a cultura-mundo tornou- se um grande espetáculo multimidia, espalhando por todo o globo mitos inteligíveis para todos os espectadores, independentemente do nível de cultura, educação, economia e política. Com isso, ganhou força uma desfolclorização da mensagem, uma desterritorialização da arte. No entanto, Canclini observa que também há em curso movimentos de reterritorialização que buscam afirmar o local por meio dos processos de comunicação de massa engendrando diferentes formas locais de enraizamento.

Nesse sentido, os festivais de cinema parecem caminhar com esse propósito, de criar possibilidades para a ampliação de um movimento de reterritorialização do cinema. Desse modo, é possível destacar um novo segmento do turismo cultural, o turismo cinematográfico, que atrai um nicho de turistas interessados em experiencializar a cultura local e usufruir de atividades cinematográficas oferecidas pela cidade. Alguns festivais brasileiros já se destacam por impulsionarem esse tipo de turismo, como Gramado e Tiradentes. Não basta realizar um festival de cinema como ocorre em outras cidades, é preciso fazer um festival que ressalte a identidade local. Consonante a essa ideia, Renato Ortiz (2015) observou que é necessário compreender como os segmentos mundializados preservam a diferença.

A caminho de uma contra visualidade?

Será que os festivais de cinema, ao atiçar as produções locais, também abriram possibilidades para um novo diálogo visual nessas cidades? Tendo em vista que a mudança na expectação cinematográfica não ocorreu apenas no formato da recepção, mas também na programação fílmica. Afinal, a expansão desses festivais de cinema também possibilitou a difusão das produções contemporâneas do cinema brasileiro independente, garantindo a circulação de um tipo de filme, que geralmente não é exibido nas mídias hegemônicas.

Conforme a reflexão desenvolvida por Maria Carolina Vasconcelos (2014) o cinema

independente consiste em uma categoria heterogênea e relacional, é heterogênea pois

representa um conjunto diverso e não coerente de práticas fílmicas, e é relacional porque não

se limita a um conceito essencializado ou absoluto, ele é definido a partir das suas relações

com outras representações. Maria Carolina (2014) destaca alguns elementos que diferem um

filme do tipo cinema independente do cinema industrial, como as possibilidades de

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organização do trabalho e da produção, as instâncias de legitimação e reconhecimento e as formas de financiamento e o orçamento, para a autora essas três dimensões representam um conjunto de práticas e valores que expressam outro modo de se relacionar com o fazer cinematográfico.

Conforme Christian Leon (2012), se observamos de modo sócio-histórico nossa relação com a imagem podemos notar que a forma como olhamos para as imagens ao nosso redor é tributária de uma concepção culta aristotélica e renascentista. Nosso olhar é colonizado desde antes do surgimento da imagem em movimento, e mesmo com os dispositivos audiovisuais, da primeira modernidade, os processos de colonialidade e de captura do outro continuaram. Para Leon, essa colonialidade do ver é uma reconceitualização das tecnologias coloniais de poder na era da reprodutibilidade técnica da imagem. Ao reproduzirem as imagens a cosmologia do colonizador também é reproduzida, de modo que nosso imaginário e nossa memória também são colonizados, constituindo em nós as representações do mundo deles, que passam a governar nossos corpos, nossos afetos e a nós mesmos.

Joaquim Barriendos (2011) também endossa esse debate e destaca que o nosso imaginário visual é colonizado pelo cinema. O que ele chama de um regime visual eurocêntrico, refere-se ao fato de sempre os mesmos corpos, as mesmas narrativas e os mesmos padrões estéticos figuram na tela. Se pararmos para fazer uma rápida análise fílmica dos filmes mais famosos da história do cinema perceberemos que eles carregam em suas narrativas três níveis de colonização: o epistemológico, o ontológico e o corpocrático. De modo que o outro sempre ocupa o lugar do selvagem, numa posição inferior, fazendo com que ele também se torne invisível.

Logo, o cinema continua reproduzindo as hierarquias entre a modernidade e a

colonialidade. Os países do primeiro mundo, continuam sendo os transmissores, e os países

do terceiro mundo, os receptores. Partindo dessas reflexões, ainda continuo me indagando

seriam os festivais de cinema do interior, um movimento disruptivo, cuja ação permite traçar

uma crítica decolonial ao formato de produção e as representações do cinema-mundo

hegemônico? É necessário investigar ainda mais essa chave, pois os filmes independentes

que circulam nesses festivais em sua grande maioria estabelecem um outro modo de

realização e até mesmo outra proposta estética, conectadas a sua territorialidade, as questões

urgentes de seu tempo e de seus corpos, será que com isso eles também estão construindo

uma crítica ao cinema dominante?

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Breves conclusão de um trajeto inconcluso:

O aumento do número de festivais de cinema, aqui no Brasil, abre espaço para discutir as novas configurações tramadas pela era do globalismo, do cinema-mundo, das economias da cultura e como esses novos arranjos sociais impactam nas produções simbólicas de novos sensos de pertencimento, pois é em meio a expansão desse cenário que novos mercados culturais estão alterando as identidades coletivas. E isso está relacionado a forma como a cultura passou a ser vista. Deste modo, vejo que é fundamental investigar os festivais fora das capitais e dos grandes centros urbanos, quero reivindicar o olhar para os festivais do interior, para esses cinemas das margens.

Finalizo esse texto com mais questões do que conclusões. Busquei construir uma

reflexão sobre como os festivais de cinema possibilitaram que os antigos espaços de exibição

fossem avivados, criando condições para atiçar as produções cinematográficas locais e uma

nova forma de experienciar a cidade. Dando força para um movimento de reterritorialização

do cinema. Ainda é necessário um levantamento mais minucioso com a cor local de cada

cidade, que me permita estabelecer com mais propriedade um marco comparativo entre as

três experiencias audiovisuais em questão: O circuito Penedo de Cinema, O cachoeira Doc

e o Festival de Cinema de Triunfo, mas por ora acredito que as questões-descobertas

construídas durante esse percurso de escrita são cruciais para a continuação da investigação.

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