Inverno
Por Isabel Pereira dos SantosNo poste da paragem está afixado um pequeno quadro com o percurso e o horório do autocarro.
Personagens : 1 HOMEM
1 MUHER
Ouvem-se alguns acordes do «Inverno» das «Quatro estações» de Vivaldi. Está a chover.
O HOMEM, abrigado debaixo de um guarda-chuva está parado perto da paragem de autocarros,. A MULHER aproxima-se e pára ao lado do HOMEM. A MULHER tenta proteger a cabeça da chuva, com uma pequena mala de mão. O Homem continua imóvel. Aos poucos a MULHER aproxima-se dele acabando por se abrigar debaixo do guarda-chuva. Subtilmente o HOMEM afasta-se um pouco. A MULHER volta a aproximar-se e a instalar-se debaixo do guarda-chuva.
MULHER
Que tempo ! Ora chove, ora faz sol !
Silêncio. O HOMEM olha para a MULHER e sorri, sem saber o que responder.
MULHER
Chuva e vento… Vento e chuva. Um horror ! Uma pessoa nem sabe o que deve vestir... HOMEM
Nesta altura do ano já se sabe… MULHER
Já se sabe… HOMEM
«Um céu pouco nebulado» eram as previsões meteorológiacas para hoje… Um céu pouco nebulado»! ( Pausa longa. Indignada ) Então, isto é «um céu pouco nebulado» ? HOMEM
Também anunciaram que havia a «possibilidade de aguaceiros dispersos ao fim da tarde»…
MULHER
( Apontando para o céu ) Ah ! Então para si, isto é um «agaceiro disperso» ? Vá… Agora cala-se…
HOMEM É o Inverno… MULHER
( Penteia-se com as mãos ) Já reparou bem o estado em que estou ? Já viu os meus cabelos ? Sabe quanto me leva agora o meu cabeleireiro por um simples «brushing»? HOMEM
Efectivamente, não faço a mínima ideia… MULHER
( Continua a pentear-se com as mãos ) Estou mesmo a ver a minha figura… Os meus cabelos não suportam a humidade, ficam… ( Com uma certa ansiedade ) Vá, já agora, diga, seja franco… ( Bandei-a a cabeça ) Como é que estou ? Como estão os meus cabelos ?
HOMEM
Estão… Não estão mal… Nada de especial… MULHER
«Nada de especial» ! Pois… O problema não é dele ! Se fosse ele que estivesse aqui, com os cabelos molhados, não falava assim, com tanta ligeireza, mas como sou eu ! Que isto hoje, já se sabe, eu nem sei porque é que ainda mantenho certas ilusões sobre a humanidade…
HOMEM
Olhe que não, não é isso… Eu até… MULHER
Ninguém se preocupa com os outros… É o «salve-se quem puder», o reino do individualismo...
HOMEM
Desculpe. Não foi com essa intenção que eu... MULHER
Foi, foi ! Que eu posso ser tudo menos parva … Julga que eu não vi já o seu jogo? HOMEM
Jogo ? MULHER
( Continua..) Como percebeu que eu não me deixo enrolar, agora dá o dito por não dito ! Enfim, não é para admirar, as pessoas dizem tudo e o seu contrário, segundo as conveniências.
HOMEM
Calma ! Calma ! Vamos lá ver… Isto aqui há qualquer coisa que não bate certo. Eu estava aqui…
MULHER
( Pega bruscamente no cabo do chapéu de chuva e inclina-o mais do seu lado ) Segure a sombrinha como deve ser, por favor !
HOMEM
Ó minha senhora, por favor, digo eu ! Eu seguro a sombrinha como toda a gente... MULHER
Não me venha com desculpas preguiçosas ! Estou a começar a perceber o estilo… Para quê esforçar-me para fazer melhor se posso fazer como os outros… Pois! É exactamente assim que os mediocres se justificam… Ainda pensam todos que têm um Império por conta, que não precisam de trabalhar ! Segurar na sombrinha como deve ser ? Qual quê … Dá muito trabalho ! Querem é poder estar todos de barriga para o ar ! Uns inúteis ! Uns inúteis que nem sequer sabem segurar num miserável guarda-chuva ! Depois queixam-se dos espanhóis … (Brusca ) Incline mais o guarda-chuva, homem ! Ainda não percebeu que o vento vem daqui, do meu lado ?
HOMEM
( Inclina um pouco mais o guarda-chuva ) Este guarda-chuva é pequeno, é fracote, não foi feito para abrigar assim um monte de gente…
MULHER
Um monte de gente ? Olha para ele ! Meu caro, que eu saiba, aqui só se encontram duas pessoas… Eu e um incompetente, que nem sequer sabe como segurar num guarda-chuva…
Ó minha rica senhora, minha rica senhora ! Vamos lá com calma… Eu também tenho os meus problemas e não estou…
MULHER
( Interrompe ) E já agora fica a saber que amanhã não vou trabalhar... HOMEM
Olhe que as as previsões para amanhã são óptimas… MULHER
Subida de temperatura ? HOMEM
Acentuada subida de temperatura. Céu limpo. Vento em geral fraco, predominando do quadrante leste nas regiões do Norte e soprando temporariamente moderado de noroeste ao fim da tarde no litoral.
MULHER
Tinha de ser… Amanhã um sol radioso e eu em casa, com uma gripe horrível. O trabalho a acumular-se em cima da minha secretária, a produtividade da empresa afectada.. E de quem é a culpa ? ( Pausa ) … De quem é a culpa ?
HOMEM
Não percebo onde é que quer chegar … MULHER
Não percebe… Não quer perceber. Acha que essa história da culpa é um conceito judaico-cristão completamente ultrapassado pelo neoliberalismo ambiente. E pronto, lá estou outra vez à chuva… Isto é preciso uma paciência… ( O HOMEM inclina mais o guarda-chuva ) E cada vez chove mais ! Que horas são ?
HOMEM
( Olha o relógio) Quatro e cinco... MULHER
…«Possibilidade de aguaceiros dispersos ao fim da tarde». Que eu saiba às quatro horas estamos a meio da tarde e não «ao fim da tarde» ! É por isso que este país não avança. Dizem não importa o quê… Uma falta de rigor impressionante. E quem paga ? Paga o cidadão honesto. Pago eu, que sou parva porque ainda acredito nas pessoas, e fui trabalhar sem guarda-chuva porque tinha lido que hoje ia estar um «céu pouco nebulado»… Acha graça ?
HOMEM
Não, de forma nenhuma… MULHER
Não pense que me engana ! Eu bem vi à pouco o seu sorriso, quando me disse : ( imita o HOMEM ) «Ah ! Mas também avisaram que havia «possibilidade de aguaceiros dispersos ao fim da tarde»…
HOMEM
Era só uma simples informação... MULHER
Não se faça desentendido : era uma crítica. No fundo, você estava a querer insinuar que eu não tenho razão nenhuma para me estar a lamentar e que, afinal, eu sou tal e qual como esses que andam por aí, a queixar-se do governo e da falta de subsídios. HOMEM
Eu sei lá se a senhora se lamenta ! Eu nem sequer a conheço ! Uma destas… Eu aqui sossegado, à espera da minha boleia…
MULHER
O quê ? Espere aí… Está à espera da sua boleia ? Qual boleia ? Sim… Não está à espera do autocarro ?
HOMEM Não. MULHER
Mas isto aqui é uma paragem de autocarros… HOMEM
Fique sabendo que isto é uma paragem de autocarros para as pessoas que esperam um autocarro. Para todos os que – desculpe lá! - não esperam um autocarro, isto é uma esquina de rua, um passeio, um ponto de encontro, uma praceta… o que quiser! E que eu saiba não é proíbido estar parado perto das paragens dos autocarros...
MULHER
Não precisa enervar-se. Era só uma pergunta. Eu pensei que como temos que partilhar o guarda-chuva - que aliás, você nem sequer consegue segurar como deve ser – sempre podiamos aproveitar para conversar um bocadinho, de uma forma mais ou menos civilizada. Mas infelizmente, hoje em dia, as pessoas já não sabem conversar… Mas sabem exigir mais dinheiro e pedir mais férias e queixar-se dos colegas e das condições de trabalho. Que eu já os estou a ver amanhã a falar mal de mim, porque amanhã, claro, eu não vou poder ir ao escritório, santa paciência, amanhã eu vou estar
quem é a culpa ? HOMEM
Não sei… MULHER
A culpa não é minha. A culpa é desses incompetentes da meteorologia que dizem não importa o quê. A culpa é sua, que nem sequer sabe pegar num guarda-chuva. Eu já lhe disse, mas não serve de nada… Ai… e o autocarro que não vem. Estes transpostes públicos, cada vez pior... Mas o que é que uma pessoa vai fazer, de carro não é melhor, com os engarrafamentos cada vez maiores, a gasolina sempre subir, falta de lugar para estacionar… ( Pausa ) Então, não está a espera do autocarro ?
HOMEM
Não. Estou à espera de um colega. Ele dá-me uma boleia até casa. MULHER
Sorte. Há gente com sorte. Um colega que lhe dá uma boleia e o deixa à porta de casa ! Só eu não tenho colegas desses. Os meus colegas! Deixa-me rir… Uns egoistas, incapazes de um gesto de simpatia. Eu apanho o autocarro e depois ainda tenho que andar a pé pelo menos dez minutos até chegar a casa… Um horror ! E cada vez chove mais...
Preocupado, o HOMEM consulta o relógio…
HOMEM
É… Cada vez chove mais. Importa-se de segurar só um bocadinho no guarda-chuva ? Só enquanto eu dou um toque ao meu colega…
A MULHER pega no guarda-chuva.
HOMEM
Obrigado… ( Compõe um número. Longo tempo de espera)
MULHER
Ninguém responde ? HOMEM
( Guardando o telemóvel) Está desligado... Deve estar aí a chegar... MULHER
Ou esqueceu-se de si. Não me admirava nada… Ou então, está para aí, na conversa, e pronto… Que você esteja aqui, à espera, à chuva, isso não não tem importância. É
assim… Nínguém pensa nos outros. Salve-se quem puder ! E cada vez pior... (
Subitamente vë o autocarro ao longe ) Ah ! Lá vem ele ! ( Contente ) Então, boa tarde. ( Sorri. Dá-lhe uma palmadinha amigável no braço )
Desce o passeio, com o guarda-chuva.
HOMEM
O meu guarda-chuva… MULHER
Ah, sim !… Com a pressa… (Estende, timidamente, o guarda-chuva mas arrepende-se e recupera-o ) Esse tal colega… Ai… como é que ele se chama ?
HOMEM O Antunes… MULHER
Pois… O Antunes leva-o mesmo até à porta de casa, não é ? HOMEM
(…) MULHER
Enquanto eu, ainda tenho que andar da paragem do autocarro até casa. Pelo menos uns dez minutos… Não sei se está a ver… Com o frio, a chuva…
HOMEM
Estamos no Inverno… MULHER
Ainda bem que percebe. Porque, olhe, se não estivesse a chover desta maneira, eu pronto, até lhe dava o guarda-chuva, mas enfim… Há limites…. Não me pode exigir uma coisa dessas, não tem o direito ! ( Olha para a rua, na direcção do autocarro ) Seria quase… Não sei se está a ver… uma violência… Ah, finalmente ! (A MULHER faz o sinal de paragem ao autocarro.)
HOMEM
Mas o guarda-chuva é meu…
O autocarro afasta-se. O HOMEM fica só, à chuva.
HOMEM
Levou o guarda-chuva, o meu guarda-chuva… ( Vai até à estrada, olha na direcção que o autocarro tomou... Grita e gesticula cada vez mais frustrado ) Ei ! O meu
guarda-chuva ! ( Longa pausa ) Amanhã aquele gajo paga-mas. Amanhã, ele vai ver. Ai vai, vai. A culpa é toda dele, aquele Antunes. Um merdas daqueles. Mas ele nem sabe com quem se meteu. Comigo não se brinca... Uma luz assinala que um táxi livre se aproxima ) Táxi !
A luz desce lentamente… Música : o «Inverno», das Quatro estações, de Vivaldi.