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Sofrimento negligenciado : doenças do trabalho em marisqueiras e pescadores artesanais

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Reitor

João Carlos Salles Pires da Silva

Vice-reitor

Paulo Cesar Miguez de Oliveira

EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Diretora

Flávia Goulart Mota Garcia Rosa

Conselho Editorial

Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Niño El Hani Cleise Furtado Mendes

Dante Eustachio Lucchesi Ramacciotti Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo

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Salvador, Edufba, 2014

Paulo Gilvane Lopes Pena

Vera Lúcia Andrade Martins

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2014, autores

Direitos dessa edição cedidos à Edufba. Feito o Depósito Legal

Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009.

Capa e Projeto Gráfico

Ana Carolina Matos

Foto da Capa

Uendel Galter

Revisão

Equipe da Edufba

Normalização

Maria Creuza Ferreira da Silva

Sistema de Bibliotecas – UFBA

Editora filiada à

Editora da UFBA

Rua Barão de Jeremoabo, s/n – Campus de Ondina 40170-115 – Salvador – Bahia

Tel.: +55 71 3283-6164

Sofrimento negligenciado : doenças do trabalho em marisqueiras e pescadores artesanais / Paulo Gilvane Lopes Pena, Vera Lúcia Andrade Martins, (Organizadores) . - Salvador : EDUFBA, 2014.

352 p.

ISBN 978-85-232-1275-9

1.Pescadores - Maré, Ilha da (BA) - Condições sociais. 2. Pescadores - Avaliação de riscos de saúde. 3. Doenças profissionais. 4. Lesões por esforços repetitivos - Prevenção. 5. Acidentes de trabalho. 6. Promoção da saúde. I. Pena, Paulo Gilvane Lopes. II. Martins, Vera Lúcia Andrade.

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De sal e lama: guerreiras

Enquanto houver Mar,

Deus das Águas, Águas de Dádiva, Tenho como andar.

Andar a vida Com toda dor, Com todo andor.

Sim, meu Doutor, são muitos os riscos, No sal do mar ou na lama do mangue, Labutar com mariscos.

Meu Branco, pra pôr na mesa De casa ou rua teu bom petisco, Com alegria e fé, eu me arrisco. De sal e lama, Guerreira. Na canção da Maré, teu nome é Marisqueira.

Ronaldo Ribeiro Jacobina

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Agradecimentos

Nosso agradecimento a todos que contribuíram com os projetos que permitiram a realização desse livro, e que são muitos, estamos profundamente gratos.

Particularmente, agradecemos:

Ao professor Eduardo José Faria Borges dos Reis pelo incansável suporte e pre-sença generosa, solidária e constante em todas as etapas dos estudos e projetos que subsidiaram a elaboração desse livro;

Ao secretário de Saúde Jorge Solla pelo apoio financeiro institucional e reconhe-cimento da importância desse trabalho junto aos pescadores e marisqueiras;

À ex-coordenadora do Serviço de Saúde Ocupacional (Sesao) do Hospital Univer-sitário da Universidade Federal da Bahia, Ana Maria Moinhos Nogueira, e ao atual coordenador Camilo José Carvalho de Souza, assim como toda equipe desse serviço que vem assumindo, cada vez mais, consideráveis avanços na atenção à saúde do trabalhador na Bahia.

Nosso profundo agradecimento aos pescadores e marisqueiras, sujeitos dessa ação conjunta, que nunca deixaram de nos estimular, contribuir e colaborar incondicio-nalmente. Ajudou-nos a trazer à cena seus sofrimentos e iniquidades no contexto de uma profissão simultaneamente bela, tradicional, rica em crenças, ritos, saberes e valores, porém desconsiderada no seu cotidiano de trabalho realizado em ambientes inóspitos permeados de graves riscos para a saúde.

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Sumário

Prólogo Introdução

i

ambiente inóspitoe riscos deacidentes edoenças ocupacionaisde umacomunidade pesqueira deilha

demaré

,

bahia

Pescador e pescadora artesanal

estudo sobre condições de trabalho e saúde em Ilha de Maré, Bahia Sara Emanuela Mota e Paulo Gilvane Lopes Pena

Condições de trabalho da pesca artesanal de mariscos e riscos para LER/DORT em uma comunidade pesqueira de Ilha de Maré, BA

Paulo Gilvane Lopes Pena, Maria do Carmo Soares de Freitas

Riscos de doenças do trabalho relacionadas às

atividades de pesca artesanal e medidas preventivas

Paulo Gilvane Lopes Pena e Vera Lúcia Andrade Martins 13

17

31

53

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Acidentes do trabalho nas atividades de pesca artesanal de mariscos

Ana Isabela Ramos Feitosa e Paulo Gilvane Lopes Pena

Manguezal

um lugar sagrado e ameaçado pela contaminação em Ilha de Maré Maria do Carmo Soares de Freitas

ii

ambiente inóspito edor

:

práticas ambulatoriaise lesões por esforços repetitivos

(

ler

)

emmarisqueiras

Modelo de gestão participativa em um serviço de saúde do trabalhador

uma experiência de assistência para pescadores artesanais/marisqueiras

Vera Lúcia Andrade Martins, Paulo Gilvane Lopes Pena, Jacqueline Menezes Seixas; Thais Mara Dias Gomes, Yuri Dantas Martins,

Marta Cristina Calazans Guimarães

Protocolo sobre LER/DORT em pescadoras e pescadores artesanais nas atividades de mariscagem

Vera Lúcia Andrade Martins, Paulo Gilvane Lopes Pena, Thais Mara Dias Gomes, Jacqueline Menezes Seixas, Maria Cecília Pinho, Iara Maria Lemos

A eletroneuromiografia como instrumento de apoio e diagnóstico das LER/DORT

o caso das pescadoras artesanais do entorno da Baía de Todos os Santos

Maria Cecília Pinho 133

157

181

197

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Avaliação de atividade elétrica de grupos musculares importantes na prevenção de LER/DORT em

marisqueiras

Thais Mara Dias Gomes, Vera Lúcia Andrade Martins e Jacqueline Menezes Seixas

Doenças do trabalho em marisqueiras segundo

casuística do Serviço de Saúde Ocupacional do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (HUPES), Bahia

Vera Lúcia Andrade Martins, Rita de Cássia Franco Rêgo, Paulo Gilvane Lopes Pena, Thais Mara Dias Gomes, Jacqueline Menezes Seixas, Rita Franco Rêgo

Previdência Social, Segurados Especiais e Marisqueiras

Carlos Eduardo Soares de Freitas, Leonardo Santana Marques, Daniela Vieira de Melo, Ariíne Guimarães Bomfim, Karolinne Nogueira Carneiro e Fabrício Santos Silva

iii

experiênciasexitosas ea voz das marisqueiras

I Fórum de Participação e Controle Social em Saúde do Trabalhador para os profissionais da pesca artesanal

Vera Lúcia Andrade Martins e Paulo Gilvane Lopes Pena

Ação itinerante em saúde ocupacional para pescadoras artesanais-marisqueiras da Bahia

relato de uma experiência

Jacqueline Menezes Seixas, Thais Mara Dias Gomes, Yuri Andrade Martins, Lílian Lessa Andrade, Maria Solange de Jesus Tavares e Luís Alberto Adorno

Saúde ocupacional

o olhar das pescadoras artesanais

Elionice Conceição Sacramento e Maria José Pacheco 241 255 271 291 305 323

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Lideranças femininas em comunidades da pesca artesanal

saúde, comunicação, direitos e igualdade Yuri Dantas Martins

Sobre os autores 333

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13

Prólogo

Ciência para servir à sociedade

Este livro revela e reflete uma atuação de extrema relevância desenvolvida pelo Serviço de Saúde Ocupacional (Sesao) do Hospital Universitário da Universidade Federal da Bahia que teve sua origem na demanda de atendimento à saúde que comunidades pesqueiras desse Estado expressaram em evento de caráter interins-titucional e intersetorial realizado em Salvador.

Convidado para escrever a apresentação desta obra, o que faço com emoção e en-tusiasmo, quero assinalar ao leitor alguns pontos que a caracterizam como relevante e inédita: é resultante de um tipo de pesquisa em serviço que busca se aproximar adequadamente das demandas, da linguagem e do contexto de vida dos trabalhadores e trabalhadoras; por causa dessa experiência marcada pela presença em campo, os textos aqui apresentados geram um tipo de conhecimento que se produz na refle-xão sobre a prática e retorna potencializando a qualidade e a adequação do serviço; cria e consolida instrumentos apropriados de diagnóstico de saúde das pessoas que trabalham na pesca artesanal de mariscos, sendo o principal, o protocolo de LER, validado não apenas tecnicamente, mas também, intersubjetivamente; e não menos importante, consagra um padrão de ação interdisciplinar e interprofissional como práxis de atuação universitária. É claro que os textos aqui descritos também levantam indagações e aí também está o seu valor como um tipo de ciência que se volta para a solução de problemas da vida prática. Falarei brevemente sobre cada um desses pontos.

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14 | SOFRIMENTO NEGLIGENCIADO

A estratégia seguida pelo Sesao ao acolher essa demanda dos trabalhadores e trabalhadoras da pesca artesanal ressalta o empenho de diversos profissionais em contribuir com respostas apropriadas à situação de saúde de uma das populações mais carente de estudos e mais descuidada por instâncias públicas. No Sistema Único de Saúde, os pescadores e pescadoras artesanais praticamente não encontram um atendimento médico que, ao menos, diagnostique as doenças que adquirem e que estão relacionadas a sua atividade laboral.

Por isso, são de extrema relevância as informações que esta obra traz, funda-mentadas numa experiência de interação e intersubjetividade dos pesquisadores e profissionais de saúde com os trabalhadores e as trabalhadoras. Por causa dessa disposição hermenêutica e, ao mesmo tempo, tecnicamente adequada, os textos aqui publicados revelam uma apropriação ímpar de conhecimentos produzidos em pes-quisas e na prática do Serviço sobre a problemática em questão. E constituem uma amostra ilustrativa do avanço que pode ser atingido em ambulatórios universitários e serviços comprometidos com a atenção à saúde dos trabalhadores.

O livro contém relatos do admirável e exemplar trabalho desenvolvido em vá-rias comunidades pesqueiras do litoral da Bahia e é pautado pela preocupação em identificar, diagnosticar e responder às necessidades de cuidados de saúde de uma população numerosa e submetida a um alto grau de exploração. Os profissionais que aí atuam têm como ponto de partida uma observação e avaliação cuidadosa das con-dições de vida, do processo e da jornada de trabalho e dos riscos ergonômicos, sendo um dos seus focos o diagnóstico de casos suspeitos de LER e o comprometimento do sistema nervoso periférico. A partir desse diagnóstico, eles propõem condutas preventivas da LER apropriadas a esse grupo social e promovem o tratamento e a reabilitação dos lesionados.

Em estreita aproximação com a realidade desse grupo social, os profissionais elaboram um protocolo para diagnóstico específico de LER apropriado ao trabalho artesanal dos pescadores e pescadoras e fundamentado na experiência clínica de estabelecimento de nexo ocupacional. Essa contribuição é fundamental, uma vez que o protocolo estabelecido pelo Ministério da Saúde para o reconhecimento de LER

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PRÓLOGO | 15

dos consultórios e ambulatórios, oferecendo subsídios para se estabelecer um mar-co regulatório e seguir os procedimentos processuais necessários que garantam os direitos securitários da Previdência Social aos doentes da pesca artesanal. Isso sig-nifica, por parte dos pesquisadores, propiciar meios para que se respeite, ao menos, o direito desses trabalhadores e trabalhadoras a serem reconhecidos na condição de segurado especial como cidadãos doentes, já que eles não tiveram o direito à saúde no trabalho realizado.

Esse trabalho consagra uma prática multiprofissional excepcional e pouco comum. O próprio protocolo de investigação diagnóstica para casos suspeitos de LER integra a contribuição dessas áreas profissionais e as potencializa com a experiência de vida desses trabalhadores das águas. Responde-se, assim, de forma contundente ao desejo expresso por uma marisqueira: “para entender, diagnosticar e tratar nossos problemas

é importante adentrar nosso mundo, conhecer nossa particularidade, nos escutar com atenção, contextualizar nossas dores”. Nas suas narrativas também está presente a

contaminação dos manguezais e o perigo que isso significa para a saúde dos que se alimentam e sobrevivem do mangues. Elas e eles, mesmo na alegria do trabalho, se sentem, ao mesmo tempo, ameaçados, sem orientação e menosprezados pelas auto-ridades públicas que não controlam as emissões de poluentes químicos e domésticos e que atingem seu modo de existir.

Uma das atividades mais importantes desenvolvidas dentro do referido projeto e precisa ser destacada é a ação itinerante organizada pelo Sesao para atendimento às comunidades de pescadoras artesanais, sobretudo marisqueiras. É mais uma es-tratégia de aproximação e de adequação à realidade. Criada pelas equipes multipro-fissionais de pesquisadores, ela facilita o acesso às ações de assistência especializada e de prevenção de doenças e acidentes do trabalho para os que moram em regiões distantes da capital e contempla além do atendimento inicial, o deslocamento para a realização de exames especializados.

Desta forma, eu diria que o conteúdo deste livro oferece uma excelente contri-buição aos serviços de atenção à saúde do trabalhador para cumprir a sua missão de dar apoio matricial para o desenvolvimento das ações de saúde do trabalhador na atenção primária em saúde. E, nesse sentido, a experiência do Serviço aqui narrada

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16 | SOFRIMENTO NEGLIGENCIADO

constitui referência para se criar formas de apoio a programas como o da Estratégia de Saúde da Família.

Não poderia concluir sem mencionar o grande desafio que é implementar ações de vigilância, nos moldes que entendemos esse tipo de intervenção na área de saúde do trabalhador. Nesse sentido, a experiência narrada nesta obra é fundamental e até didática. Ela vai ao contexto, aproxima-se da vida dos trabalhadores e trabalhadoras, avalia o processo de produção, realiza o diagnóstico de saúde e clínico dos trabalha-dores e trabalhatrabalha-dores, cria protocolos apropriados de atendimento e atua frente aos agravos. Por isso mesmo, como diz o poeta, “quando falo de minha aldeia falo do mundo” ela se torna uma referência passível de apropriação muito mais abrangente do que seu escopo local e suscita desafios, dentre os quais um é primordial: que mu-danças num processo de trabalho tão peculiar e específico poderiam ser propostas e consolidadas sem ferir o estilo de vida e a vontade dos trabalhadores e trabalhadoras de continuarem a ser pescadores e pescadoras artesanais?

Por todos os aspectos e desafios aqui introduzidos, recomendo fortemente a lei-tura desta obra, sobretudo a pesquisadores, profissionais de saúde e estudantes que se preocupam em criar uma sociedade mais justa, mais saudável e mais inclusiva.

Carlos Minayo Gomez

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17

Este livro contempla sujeitos sociais invisíveis nas esferas clínico-epidemiológica e institucional da saúde do trabalhador. Como se pescadores artesanais e, sobretudo, pescadoras no trabalho de extração de mariscos fossem abrigadas de riscos de aci-dentes e doenças do trabalho. A situação de negligência e desamparo institucional não se explica pela reduzida quantidade desses trabalhadores, pois, contrariamente, os dados oficiais indicavam em 2009 haver aproximadamente 833 mil pescadores registrados no país1, concentrados principalmente nas regiões Norte e Nordeste.

Organizações não governamentais adiantam que esse número pode chegar ao dobro do oficial, considerando o alto grau de informalidade típica das atividades desses povos das águas que sobrevivem cultuando tradições ocupacionais milenares.

Esse quadro expressivo dessa categoria profissional no país se amplia na esfera global, quando se trata da pesca artesanal no mundo. Nesse âmbito, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima um contingente de 25 a 34 milhões de ho-mens e mulheres, envolvidos na pesca, sendo aproximadamente 75% artesãos. Ao considerar que vivem nas regiões mais pobres do planeta, a ausência de proteção à saúde é generalizada.

1 BRASIL. Ministério da Pesca e Aquicultura. Anuário Estatístico da Pesca, Brasil 2008-2009. Brasília: Ministério da Pesca e Aquicultura, 2003.

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18 | SOFRIMENTO NEGLIGENCIADO

Entretanto, não é essa a situação de invisibilidade encontrada na pesca indus-trial, estruturada nos moldes produtivos modernos, cujos riscos para saúde dos trabalhadores são bem delineados pelas publicações científicas e técnicas existentes. A medicina do trabalho tradicional está institucionalizada há mais de 40 anos para o regime de trabalho assalariado regido pela CLT e a saúde do trabalhador completou 24 anos em que foi organizada no SUS. Contudo, não se conhecem experiências de proteção à saúde e aos agravos profissionais para os pescadores artesanais e são raras as práticas para os 6,8 milhões de artesãos que persistem excluídos do direito à saúde no trabalho.

As atenções das políticas institucionais tardam em descortinar a situação de saú-de saú-de mulheres, homens, jovens, idosos e crianças que passam longos anos da sua vida submetidos aos ciclos dos oceanos, das marés e lua trabalhando no extrati-vismo de mariscos imersos na lama de manguezais, nas águas de rios e mares, nos arenosos das praias. São seres anfíbios, na expressão de Josué de Castro, pioneiro no estudo das condições de trabalho nos manguezais de Recife, ou “mangue-girls” e “mangue-boys” na expressão moderna do saudoso “Chico Science”. São, sobretudo, trabalhadores que resgatam modos de sobrevivência oriundos das culturas extrati-vistas com tradições centenárias, sobreviventes da escravidão, que portam saberes oriundos dos primórdios do trabalho humano.

Ocupam espaços de natureza exuberante, mas não delimitam seus territórios de coleta de marisco e pesca. Não delimitam individualmente ou coletivamente e, por isso mesmo, poderão se tornar trabalhadores sem mar diante do desenvolvimento turístico, da especulação imobiliária ou ainda da ocupação de áreas de mariscagem para cultivo de mariscos por grandes empresas, de forma semelhante ao que ocorreu com os agricultores familiares sem terras. O risco da perda do espaço de trabalho para territórios privados, com o expurgo de pescadores artesanais dos seus espaços seculares de sobrevivência torna ainda mais complexo as condições de determinação dos processos saúde/doença, que se adicionam às condições precárias relativas aos processos saúde/doenças do trabalho.

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INTRODUÇÃO | 19

fronteiras dos limites humanos do sofrimento, do esforço físico e da submissão aos riscos de agravos à saúde. Situação que não raramente os levam à morte. Podem ser acometidos por patologias reconhecidas oficialmente como doenças do trabalho e sofrem das mais variadas formas de acidentes. Apesar disso, não dispõem de atendi-mento médico capaz de diagnosticar doenças relacionadas ao trabalho, não possuem centros de reabilitação profissional muito menos suportes para ações de prevenção dos acidentes e doenças relacionadas ao trabalho. Mais ainda, como são segurados especiais da Previdência Social, as marisqueiras e pescadores não usufruem o direito de se afastar do trabalho com a seguridade necessária para garantir a recuperação dos acometidos por doenças e acidentes graves, mesmo para assegurar benefícios securitários concedidos comumente para as categorias de trabalhadores assalariados. A bibliografia sobre o tema é escassa e inexistente sobre doenças e acidentes do trabalho em pescadoras marisqueiras. A temática da saúde do trabalhador artesanal em geral é pouco explorada na medicina do trabalho e na esfera da saúde do tra-balhador, concentrando-se nos relatos históricos do médico Bernadino Ramazini, pioneiro em descrever sistematicamente doenças do trabalho para 54 profissões artesanais, dentre elas, o ofício de pescador e suas respectivas doenças profissionais relacionadas à pesca tradicional marítima e fluvial e não na extração de mariscos. Mais recentemente foram encontrados estudos pontuais sobre categorias artesãs ou de profissionais autônomos presentes no cotidiano do trabalho como pianistas, pintores, dentre outros. Em se tratando de políticas públicas, a situação se repete e falta prioridade necessária no campo da saúde do trabalhador para desenvolver ações dirigidas a essas profissões sem assistência preventiva e curativa diante dos agravos que são vítimas.

Em 2004, perante o desenvolvimento de ações de professores da Escola de Nutri-ção da UFBA, se verificou a necessidade de desenvolver ações de educaNutri-ção em saúde em comunidades de pescadores situadas em Ilha de Maré, distrito de Salvador, com a participação de professores da Faculdade de Medicina. Dos debates com os pesca-dores, surgiram questionamentos sobre os agravos típicos das condições dramáticas de trabalho presentes, especialmente, nas atividades de mariscagem. Destes ques-tionamentos surgiu em 2005 um projeto de pesquisa interdisciplinar voltado para

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o estudo das doenças e dos acidentes do trabalho nas atividades de mariscagem em várias comunidades pesqueiras do litoral da Bahia.

Em 2007 o relatório de pesquisa divulgado foi contundente quanto à diversi-dade e a gravidiversi-dade de riscos ocupacionais presentes no cotidiano do trabalho das marisqueiras. Além de exposição aos riscos conhecidos, chamou a atenção o ritmo acelerado de trabalho com excessiva carga de movimentos com esforços repetitivos associados ao desenvolvimento de Lesões por Esforços Repetitivos ou LER. Da análi-se ergonômica realizada, além de outras condições, verificou-análi-se que havia cadências infernais em várias atividades de extração de mariscos, com número de movimentos nas extremidades dos membros superiores podendo alcançar a média de 10 mil mo-vimentos por hora, equivalente ao encontrado nas funções de digitação nos serviços modernos. A cata de determinados mariscos, as posturas tradicionais, a retirada das conchas, dentre outras atividades estavam associadas a queixas comuns de dores, muitas vezes insuportáveis, edemas, deformidades, dormências, perda da capacidade funcional dos membros superiores.

A primeira parte do livro apresenta esta pesquisa sobre condições de trabalho e saúde dos pescadores artesanais em uma comunidade pesqueira em Ilha de Maré, distrito de Salvador. O estudo desenvolveu uma linha de investigação centrada na busca do conhecimento dos riscos de acidentes e doenças do trabalho.

O resultado da pesquisa sensibilizou profissionais do Serviço de Saúde Ocupacio-nal (Sesao) do Hospital Universitário da UFBA que estruturaram práticas de diag-nóstico, tratamento, reabilitação e emissão de relatórios de natureza securitária para casos de incapacidades voltados especificamente para as atividades de extração de mariscos. Organizaram-se para atender aos pescadores artesanais, em especial pescadoras marisqueiras com suspeita de acometimento de Lesões por Esforços Re-petitivos (LER). Os resultados dessa prática inédita no país encontram-se reunidos na segunda parte do livro e se expressam em informações como a disponibilidade para o público da primeira casuística disponível de LER em pescadoras marisqueiras artesanais. O serviço estruturou método de identificação de suspeitos nas próprias comunidades de pescadores e modos de atendimentos no Sesao de forma a garantir

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INTRODUÇÃO | 21

Esse processo não seria possível sem a elaboração de um protocolo de diagnóstico específico de LER voltado para o trabalho artesanal, na medida em que o protocolo existente divulgado pelo Ministério da Saúde concentra-se no trabalho assalariado industrial ou de serviço.

As populações de pescadores artesanais possuem tradição de lutas sociais, porém sem o empoderamento necessário para participação efetiva no controle social do SUS e muito menos na saúde do trabalhador. Neste, o controle social se concentra nas representações sindicais e não contemplam adequadamente as categorias artesanais, em especial os pescadores artesanais. Essa situação justifica também a falta de visi-bilidade dos agravos relacionados à saúde como ocorre com as categorias industriais e de serviços. Por isso a segunda fase do processo realizada no Sesao teve a parti-cipação de representantes das comunidades de pescadores no planejamento, cujas falas estão contempladas ao final do livro como homenagem às mulheres pescadoras que participaram como agentes centrais no planejamento, gestão e consolidação das atividades de saúde ocupacional realizadas.

Os resultados conjuntos da pesquisa e da atenção médica no Sesao propor-cionaram uma rica experiência, inédita no país, especialmente no que se refere ao diagnóstico de LER e estabelecimento de nexo ocupacional para configurar direi-tos previdenciários.

Nessa perspectiva, a primeira parte do livro traz a caracterização do trabalho do pescador como artesão, portador de saberes e práticas construídas milenarmente. Isso configura uma forte identidade no trabalho com rica tradição cultural. Discute referenciais teóricos para definir a condição de artesão e aspectos sobre direitos relativos à saúde do trabalhador junto à previdência social. No primeiro capítulo, descrevem-se de modo detalhado a metodologia do projeto de pesquisa, que reuniu estratégias articuladas do campo das ciências humanas, como a abordagem etno-gráfica, a ergonomia e a higiene do trabalho para compreender as condições e os processos de adoecimento dos pescadores artesanais.

O segundo capítulo apresenta resultados das análises das condições de trabalho da pesca artesanal de mariscos e riscos para LER em uma comunidade pesqueira de Ilha de Maré, BA. Os estudos identificaram riscos ergonômicos nesses trabalhadores autônomos decorrentes de movimentos de esforços repetitivos que se configuram

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como verdadeiras cadências infernais, submetidos a ritmos extenuantes e jornadas prolongadas subjugadas à intensificação do ritmo de trabalho autoimposto pela miséria extrema, e não de gerências inóspitas como ocorre nos modos tayloristas de organização do trabalho assalariado.

O capítulo três amplia a análise de riscos para além das LER e considera o leque de possibilidades de ocorrência de aproximadamente trinta patologias relacionadas ao trabalho na pesca artesanal, dentre as 200 enfermidades reconhecidas atualmente pelo Ministério da Saúde e da Previdência Social. Em particular, desenvolve-se um conjunto de proposições em que tenta aproximar os aspectos positivos dos avanços no campo da prevenção, diagnóstico e reabilitação da medicina do trabalho, ergo-nomia, higiene do trabalho e demais áreas da saúde do trabalhador junto aos assa-lariados, de modo a subsidiarem aplicações em pescadores artesanais como prática da Estratégia de Saúde da Família. Trata-se de proposição para que o SUS conceba assistência integral nas esferas preventivas e curativas considerando a categoria trabalho e os processos de adoecimento como parte essencial das práticas de saúde, especialmente em comunidades carentes e geralmente isoladas, semelhantes aos pescadores artesanais. O resultado se expressa na proposição de exames médicos periódicos preventivos típicos para o trabalho artesanal da pesca, que podem se unir aos exames periódicos indicados para diversas outras práticas preventivas, a exemplo das consultas para a prevenção de cânceres, exames neonatais, acompanhamento de crianças e adolescentes e outros. Esses exames fomentariam uma verdadeira pro-posição da saúde integral ao apropriar-se da categoria trabalho em compro-posição com a noção de família. Todos esses exames poderiam ser realizados na atenção básica, sobretudo nas unidades de saúde da família, com suporte em centros de referências em saúde do trabalhador para casos complexos.

O capítulo quatro apresenta os resultados das investigações que permitiram constituir o leque de possibilidades dos acidentes de trabalho nas atividades de pesca artesanal e extração de mariscos. Descreve os principais riscos verificados nas avaliações das condições de trabalho e chama a atenção, em especial, para os riscos decorrentes de animais marinhos peçonhentos e medidas preventivas possíveis de

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INTRODUÇÃO | 23

O capítulo cinco encerra a primeira parte do livro apresentando resultados da investigação de significados dos ambientes de trabalho, os manguezais, para as pes-cadoras marisqueiras de Ilha de Maré. O mangue se expressa no universo simbólico das famílias de pescadores de diversas formas, mas sempre caracterizado com algo sagrado, maternal, fonte da sobrevivência e, por isso mesmo, protegido por entida-des que ali habitam. A percepção da contaminação dos manguezais e o perigo que significa para a saúde dos que alimentam e sobrevivem do mangue estão presentes nas narrativas das pescadoras.

Na segunda parte do livro, discutem-se essencialmente o diagnóstico das Lesões por Esforços Repetitivos ou LER, nas esferas clínica e epidemiológica, ergonômica, reabilitação, suporte jurídico e controle social. Caracteriza-se, no desenrolar dos capítulos, a comunhão entre o desenvolvimento de serviços ambulatoriais multipro-fissionais para diagnóstico, tratamento e reabilitação de pescadores e marisqueiras com LER articulados ao direito previdenciário. Nessa parte, há a síntese de proto-colos clínicos orientados para o trabalho artesanal e extrativista para o diagnóstico de LER e, principalmente, orientações concretas, com exemplos de casos clínicos e relatórios técnicos atendidos no Sesao para o encaminhamento à Previdência Social para o reconhecimento dessas patologias em pescadores e marisqueiras.

O capítulo seis da sequência do livro trata exatamente da experiência desenvolvi-da em torno de um modelo de gestão participativa na organização desenvolvi-das atividesenvolvi-dades do serviço de saúde do trabalhador. Nele se discorre sobre as estratégias metodológicas que levaram a identificação de marisqueiras com suspeitas de doenças do trabalho como a LER e a organização de formas de gerenciar encaminhamentos para exames complementares nos casos identificados como necessários. Todo esse procedimento envolve deslocamento de equipes para regiões muitas vezes de difícil acesso, assim como a construção de logísticas próprias para deslocamento de centenas de pesca-dores para realizar exames em Salvador, no Sesao/Hospital Universitário.

O capítulo sete sintetiza uma inédita experiência clínica do Sesao na apresentação do protocolo de diagnóstico de LER/DORT em pescadoras e pescadores artesanais nas atividades de mariscagem. Trata-se de adequação dos procedimentos clínicos definidos tecnicamente para diagnósticos das LER/DORT e consequente reconhe-cimento previdenciário para os casos com indicação de afastamento do trabalho,

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24 | SOFRIMENTO NEGLIGENCIADO

considerando as especificidades das condições dos pescadores artesanais, especial-mente a condição de autônomo desses trabalhadores. Nos anexos, são encontrados descrições de casos clínicos e exemplos de relatórios de nexos causais para encami-nhamento de portadores de LER com incapacidades à perícia médica da previdência.

No capítulo oito, agregam-se as estratégias clínicas adotadas para a realização de importante exame complementar para diagnósticos de casos suspeitos de LER com acometimentos do sistema nervoso periférico. Nesse sentido, traz a experiência do serviço de neurologia ocupacional do Sesao sobre o uso da eletroneuromiografia como instrumento de apoio, diagnóstico e prognóstico.

O capítulo nove traz uma abordagem fisioterapêutica com resultados da avalia-ção da atividade elétrica de grupos musculares importantes na prevenavalia-ção de LER em marisqueiras. Com o suporte de eletromiógrafo de superfície, apresentam-se estudos sobre atividade muscular em situações típicas do trabalho de extração de mariscos na perspectiva de melhorar condutas preventivas ergonômicas com o apoio da biomecânica.

Há uma descrição de casuística importante e inédita de LER/DORT em pescadores marisqueiras atendidos no Sesao no capítulo dez. São 120 casos atendidos até 2008 e outros 215 em 2009. Destes, aplicou-se o protocolo associado à investigação das condições de saúde, perfazendo um total de 335 casos descritos em seus aspectos gerais, com informações importantes sobre alguns riscos relativos à hipertensão e diabetes e, sobretudo, dados clínicos específicos dos tipos de LER e respectivas frequências em atividades de extração de mariscos.

O capítulo onze contém uma revisão da literatura jurídica sobre o tema dos direi-tos securitários de segurados especiais em que se discute a situação particular dos pescadores artesanais. Este é um ensaio jurídico importante sobre marco regulatório de benefícios e procedimentos processuais para dar suporte às condutas legais de garantias de direitos de pescadores junto à Previdência Social. Da mesma forma do observado na área médica, as referências bibliográficas na área jurídica são escas-sas no que se refere aos trabalhadores artesanais e inexistentes quando se trata de marisqueiros. Por isso, esse capítulo traz formulações e orientações inéditas sobre

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INTRODUÇÃO | 25

A terceira parte do livro tem o objetivo de apresentar ações técnicas e opiniões sobre saúde de lideranças das comunidades de pescadores. São práticas técnicas e sociais exitosas realizadas ao longo da experiência do Sesao junto às comunidades de pescadores, cuja conclusão se realiza por meio da voz das marisqueiras. Simulta-neamente se conhece e faz uma homenagem à sabedoria dessas mulheres, essenciais para a construção da saúde do trabalhador no mundo da pesca artesanal.

Nesse sentido, o capítulo doze relata a experiência do I Fórum de Participação e Controle Social em Saúde do Trabalhador da Pesca Artesanal, que teve como objetivo consolidar o processo de planejamento das atividades articulando instituições como Previdência Social, Secretaria Estadual de Saúde, Ministério da Saúde, Bahia Pesca, além de organizações da sociedade civil. Esse Fórum resultou no planejamento das ações do Sesao e no atendimento às comunidades pesqueiras.

Outro relato de experiência encontra-se descrito no capítulo treze. Trata-se da ação itinerante em saúde do trabalhador organizada pelo Sesao para atendimento de pescadoras artesanais/marisqueiras com suspeitas de LER nas suas comunidades. Ao considerar a longa distância entre as comunidades pesqueiras e a cidade de Salvador, onde se situa o Sesao, houve a necessidade de deslocar equipes multiprofissionais para realizar exames nas comunidades de pescadores. As atividades contemplaram a prevenção de doenças e de acidentes do trabalho, além de avaliar condições de tra-balho para fundamentar relatórios técnicos na possibilidade de casos de invalidez a serem encaminhados à previdência social. Foi realizada uma investigação preliminar das condições de trabalho e de riscos de doenças em pescadores artesanais ribeirinhos da região de Juazeiro, situado a 500 quilômetros de Salvador. Esta pode ser consi-derada uma rara experiência na área de saúde do trabalhador feita até então, com deslocamento temporário de profissionais para regiões longínquas com objetivo de atuarem em práticas preventivas e de diagnóstico em doenças do trabalho.

Os capítulos quatorze e quinze finalizam o livro apresentando concepções e opi-niões dos representantes de comunidades pesqueiras que desempenharam papel fundamental no desenrolar das atividades realizadas no Sesao. Destacou-se a par-ticipação de lideranças femininas das comunidades, em função do marcante caráter de gênero inerente às atividades de extração de mariscos. Avaliações, perspectivas e sonhos, envolvendo a busca da superação do grau de marginalização da profissão

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e da necessidade de reafirmar a valorização social dessas trabalhadoras que querem continuar como pescadoras marisqueiras, com dignidade, visibilidade no reconhe-cimento de agravos, na disponibilidade das diversas estratégias preventivas e no reconhecimento dos direitos securitários, como em qualquer outra profissão.

A construção da saúde do trabalhador envolve o conhecimento da multiplicidade de mundos do trabalho inseridos na complexidade da sociedade brasileira. Nesse aspecto, as práticas da Saúde do Trabalhador devem adotar abordagens inclusivas de categorias tradicionais desprovidas de mecanismos de pressões sociais e vulneráveis no mundo contemporâneo. E a pesca artesanal representa um dos mais laboriosos e fascinantes desafios. Trata-se de homens, crianças e principalmente mulheres expos-tas aos mais variados riscos e a processos de adoecimento sem acesso à proteção da saúde dos trabalhadores. São categorias em condições de pobreza, sem saneamento básico, precárias condições de saúde e educação, excluídas do mundo informático, dentre tantas carências. No entanto resistem com a manutenção de modos de traba-lho tradicionais perante a hegemonia da sociedade industrial e terciária, mobilizando saberes que denotam conhecimentos milenares que até então vem assegurando a sobrevivência dessa categoria de profissionais das águas.

Os métodos e técnicas de análise dos riscos das práticas de epidemiologia, vi-gilância em saúde, higiene do trabalho, ergonomia, e dos agravos na clínica e na reabilitação profissional, dentre outros, são os mesmos utilizados para o trabalho artesanal. No entanto, os resultados dessas ações podem ser insignificantes na pre-venção, cuidado e promoção da saúde se não considerar a precisa avaliação das par-ticularidades dos processos de trabalho artesanal, seus determinantes socioculturais e ambientais, os valores subjetivos e os saberes inscritos nas tradições culturais que permitem a sobrevivência de modos de vida seculares.

Este livro reflete as problemáticas da saúde do trabalhador pescador trazendo aproximações fundadas em experiências de trabalho de campo nas áreas de extra-ção de mariscos. Foram realizadas práticas clínicas para diagnósticos precisos de patologias como as LER/DORT, formulações de relatórios para concessão de direitos previdenciários na esfera da saúde do trabalhador, e apresentou-se a triste situação

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INTRODUÇÃO | 27

Estamos na era de profundas revoluções tecnológicas, é verdade. No entanto, parcelas consideráveis da nossa população sobrevivem tradicionalmente na produção pesqueira em ambientes inóspitos, em meio as condições muitas vezes limítrofes de sobrevivência. Os instrumentos de trabalho são milenares em muitas situações, no entanto, há mobilização de saberes e valores que têm garantido a preservação secular dessas comunidades, que não conhecem o desemprego. Esta é outra situação pecu-liar e importante de categorias artesanais que possuem a capacidade de assegurar permanentemente a inserção produtiva com o denominado auto emprego. Assim, com profundo conhecimento da natureza dos mares, manguezais, artes instrumen-tais, mercado para sobrevivência, e sustentada por meio de redes socioculturais de solidariedade, esses trabalhadores podem trazer preciosas lições para esse mun-do moderno. No entanto, esse diálogo deve começar pelo entendimento de que as marisqueiras e pescadores são cidadãs e cidadãos que trabalham dignamente, que necessitam assegurar o reconhecimento ao Direito à Saúde do Trabalhador, condição inscrita no cotidiano de qualquer outra categoria industrial ou terciária.

Enquanto isso não se realiza, persistem o sofrimento e o adoecimento negligen-ciados pelas políticas institucionais e pela produção do conhecimento, para os quais esperamos cooperar com a presente publicação.

Paulo G. L. Pena Vera L. A. Martins

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Ambiente inóspito e riscos de acidentes e

doenças ocupacionais de uma comunidade

pesqueira de Ilha de Maré, Bahia

I

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Introdução

O conhecimento do modo de vida e trabalho dos pescadores artesanais é essencial para entender processos de agravos à saúde, assim como as condições de prevenção, diagnóstico, tratamento e reabilitação dos portadores de enfermidades decorrentes do trabalho. Mais ainda, o estudo da literatura, dos dados disponíveis e a escolha de estratégia metodológica adequada para imersão nos territórios de pesca e marisca-gem permitiram a apropriação desta profunda contradição: categorias profissionais que sobrevivem há milênios ainda não conquistaram o direito efetivo à saúde, em especial à saúde do trabalhador. Esse capítulo primeiro trata dessas aproximações teóricas e metodológicas para desvelar os determinantes e contextos do trabalho artesanal na pesca em que foram realizadas pesquisas e ações assistenciais de saúde tratadas nesse livro.

Pescador e pescadora artesanal

estudo sobre as condições de trabalho e saúde

em Ilha de Maré, Bahia

Sara Emanuela Mota Paulo Gilvane Lopes Pena

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A investigação da literatura especializada na esfera das relações entre trabalho e saúde no Brasil e no mundo indica escassez de estudos referenciados em pescadores. No Brasil, Rosa e Matos (2010) fizeram pesquisa quantitativa e qualitativa sobre a saúde e riscos em cem pescadores artesanais na Baía de Guanabara e descreveram: informalidade e condições precárias de vida e desilusão com a profissão; jornada excessiva entre 8 a 12 horas no mar; trabalho noturno; acidentes relacionados ao trabalho como afogamentos, picadas de insetos e animais peçonhentos; queixas de agravos à saúde relacionados ao trabalho como dores articulares e na coluna verte-bral, além de outras queixas sem relações diretas com o trabalho. Dall’Oca (2004) estudou no Estado do Mato Grosso do Sul uma amostra de 60 pescadores artesanais ribeirinhos de um universo de 4.880 e encontrou, dentre outros resultados, 50% de queixas referidas de dores diversas de natureza neuromusculares, porém não houve verificação de nexos com o trabalho. Na literatura internacional os estudos geralmente se referenciam em pescadores industriais e formais típicos das condições de países desenvolvidos.

Estaríamos, por decorrência, diante de uma categoria de trabalhadores expressiva no Brasil e nos países em desenvolvimento da Ásia, África e América Latina sem riscos expressivos de acidentes e doenças do trabalho? Evidentemente que não, ainda mais se considerarmos as dificuldades econômicas, tecnológicas, culturais, ins-titucionais, jurídicas, ambientais, dentre outras, incontestavelmente escassas para a proteção à saúde em atividades realizadas em ambientes inóspitos, envolvendo riscos muitas vezes letais e de difícil controle.

As estatísticas institucionais sobre acidentes e doenças do trabalho indicam si-tuação semelhante à encontrada na revisão bibliográfica. Em 2007 passou a vigorar nova forma de reconhecimento de acidentes e doenças do trabalho pela Previdência Social, denominada de Nexo Técnico Epidemiológico Previdenciário (NTEP). Houve o reconhecimento por meio do NTEP de expressivo número de 159.786 doenças do trabalho registradas em 2007, com ou sem Comunicação de Acidente de Trabalho (CAT). (BRASIL, 2010) Na Bahia, em 2006, para as doenças do trabalho, registraram--se 2.605 casos, sendo que em 2007, as notificações com CAT reduziram para 1.543,

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o direito ao seguro acidentário previdenciário, entretanto essa categoria não está incluída nesses dados, simplesmente pela ausência de acesso aos serviços de saúde ocupacional existente associado ao desconhecimento médico das doenças do traba-lho importantes nessa categoria.

Diante dessa situação, as consequências podem ser expressivas, porém perma-necem invisíveis epidemiologicamente, desconhecidas pelos profissionais de saúde, ignoradas pelo sistema previdenciário ou mesmo sem significados na esfera do saber desses “povos das águas”, como se identificam algumas de suas lideranças. Quais são as doenças e acidentes relacionados ao trabalho na pesca artesanal, particularmente para as pescadoras de mariscos e quais são os motivos dessa invisibilidade? Estas são as questões centrais com respostas inscritas na primeira parte desse livro, que resultaram de pesquisa inédita realizada em comunidades de pescadores artesanais na Ilha de Maré, município de Salvador.

Trata-se de estudos iniciais, cuja finalidade foi conhecer, por meio de estratégias de investigação variadas, porém articuladas, da esfera socioantropológica, ergonô-mica e clínica do trabalho, os riscos, doenças e acidentes relacionados ao trabalho da pesca artesanal, em especial, das pescadoras marisqueiras. Essa tarefa gerou a de-manda de conhecimento das principais doenças relacionadas ao trabalho não apenas na esfera da análise do trabalho e do diagnóstico clínico, mas, necessariamente, das formas processuais de estabelecimento de nexos causais de natureza previdenciária para assegurar direitos de pescadoras artesanais com incapacidade para o trabalho, até o presente raramente praticado no universo securitário do país. Os principais resultados são apresentados em cinco capítulos na perspectiva de colaborar com o conhecimento dessa problemática da saúde do trabalhador da pesca artesanal e constituir novos horizontes de mudança dessa exclusão de direitos relacionados à saúde do trabalhador.

O pressuposto inicial da investigação realizada considera que as relações entre o trabalho da pesca artesanal e a saúde, particularmente a saúde do trabalhador, não se limitam à esfera biomédica da patologia e de medidas preventivas no campo da saúde. As doenças e acidentes do trabalho são eventos essencialmente condiciona-dos pelo modo de realização do trabalho nas dimensões sociocultural e histórica. Para a compreensão de tais fenômenos na totalidade, há necessidade de se fazer um

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esforço de natureza médico, social e cultural para entender modos particulares de ocorrência dessas doenças e formas de prevenção que, necessariamente, dependem de modificações nas práticas tradicionais no exercício do trabalho.

O trabalho, o pescador artesanal e seu processo de trabalho

O primeiro aspecto a considerar nesse empreendimento, refere-se ao entendi-mento sobre trabalho e saúde no campo do direito. Constantes no artigo sexto da Constituição Federal de 1988, os direitos à saúde e ao trabalho são entendidos como direitos sociais, portanto, “direitos que tendem a realizar a equalização de situações sociais desiguais”. (SILVA, 1998) Desta forma, inscrevem-se no exercício desafiador da busca de garantia de condições iguais em uma sociedade capitalista, que se ca-racteriza justamente pela geração e manutenção de relações desiguais de produção.

O conceito de trabalho, enquanto atividade exclusivamente humana, assume a di-namicidade e complexidade próprias dos seus sujeitos e, ao longo da história, adquire múltiplos significados. Etimologicamente, a palavra “trabalho” significa “tortura”. Na Idade Média, a palavra “trabalho” de origem latina “tripãlium”, significava três paus para manejar bois e cavalos e tinha o objetivo de dominar e até torturar esses animais. (BLOC; WARTBURG, 1996) Nesse sentido, a origem do termo está ligada ao sofri-mento, passando a significar atividades humanas destinadas a escravos e camponesas.

Na atualidade, evidencia-se essa relação de sofrimento com agravos encontrada na origem da palavra trabalho e das condições de risco, cujo alerta foi apresentado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), que estimou em 2002, para todo o planeta, a ocorrência de aproximadamente 270 milhões de acidentes de traba-lho com 330 mil mortes; em que 160 milhões de pessoas contraíram doenças do trabalho. No entanto, afirma-se outro pressuposto essencial: o trabalho pode ser entendido e praticado em uma perspectiva de construção da saúde, de processos de enriquecimento biopsíquico, social, cultural e em condições de sustentabilida-de ecológica. O trabalho, central na vida humana, posustentabilida-de sim condicionar qualidasustentabilida-de

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autoestima. Essas condições são possíveis para dar suporte ao trabalho dos pesca-dores artesanais.

Todo trabalho é realizado por meio de fases sucessivas e articuladas de ativida-des mais ou menos complexas. Para isso, pode-se recorrer a um conceito central denominado de “processo de trabalho”. O processo de trabalho é composto por: uma atividade adequada a um fim, isto é, o próprio  trabalho; a matéria a que se aplica o trabalho, ou seja, o objeto de trabalho; e os meios de trabalho, a saber, o instrumental de trabalho. (BRAVERMAN, 1980)

Uma análise do processo de trabalho identifica facilmente os fluxos que se su-cedem na produção de um bem ou serviço, normas técnicas de atuação, cargas de trabalho, tipos e variações dos riscos para a saúde, nas diversas etapas. O primeiro aspecto a ser observado para fins de análise de um processo de trabalho deve ser a relação de trabalho, identificada por meio do tipo de contrato existente (BRA-VERMAN, 1980) se trabalho formal com carteira assinada ou atividade autônoma, artesanal, agrícola familiar ou de outro tipo. Em seguida, deve ser observado o objeto do trabalho ou a matéria prima e como ocorre sua transformação por meio da ação dos meios de produção até que saia o produto final.

Neste estudo são analisadas relações de trabalho artesanal. Para fins de caracte-rização, a produção artesanal clássica é marcada pelo trabalho familiar, realizado por homens, mulheres e crianças, com poucas modificações em relação ao método praticado durante milênios. Baseia-se em conhecimentos empíricos, adquiridos em família e transmitidos aos demais membros pelos mais velhos da comunidade. Resulta de uma atividade produtiva de caráter individual, com baixa divisão técnica, em que o artesão, em geral, é o proprietário dos seus instrumentos de trabalho, e sobrevive da venda do produto do seu trabalho.

O artesão não é assalariado e sendo assim, não se submete às leis de contrato de trabalho existentes entre empregador e assalariado, a exemplo da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) no Brasil; submete-se, quando existem, às leis de ordenação do trabalho artesanal e às regras das corporações de ofícios existentes formalmen-te ou não. O arformalmen-tesão controla a concepção e a execução do seu trabalho, deformalmen-tendo o “saber-fazer” (know-how) constituído de conhecimentos e domínio de métodos aplicados em todas as etapas do processo de produção. Há, portanto, uma unidade

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entre concepção e execução do trabalho, em que se observa a ausência de hierarquias gerenciais que separam o trabalho intelectual do manual.

A produção artesanal baseia-se na aplicação de saberes tradicionais. Max Weber (2003), ao estudar protestantes e católicos da sociedade alemã do século XIX, notou que os católicos participavam em menor proporção dos trabalhos especializados da indústria moderna. A despeito da mão de obra fabril ter sido arregimentada entre jovens artesãos, entre os diaristas católicos predominava uma forte tendência a permanecer em suas oficinas, chegando a tornarem-se mestres artesãos. Sobre isso, tem-se que a ideologia católica ao infundir seus fiéis a satisfazer, em primeiro lugar, seus deveres tradicionais, seria a principal responsável pela menor participação dos católicos na moderna vida de negócios alemã, em relação aos protestantes.

Weber (2003) afirma ainda ter se desenvolvido no Ocidente uma forma diferen-te de capitalismo, baseado na organização capitalista do trabalho livre (ao menos formalmente) voltada para um mercado regular e não para as oportunidades espe-culativas de lucro. Para este autor, o desenvolvimento da moderna organização racio-nal das empresas capitalistas não teria sido possível sem dois fatores importantes: a separação dos negócios da moradia da família, fato que domina completamente a vida econômica e, estritamente ligada a isso, uma contabilidade racional, essencial-mente dependente da ciência moderna, em especial, das ciências naturais baseadas na matemática e em experimentações exatas e racionais.

A perda da hegemonia da produção artesanal ocorreu com a revolução industrial, gerando efeitos perversos de inibição e sujeição do ser humano ao meio técnico, com atrofia ou anulação de qualidades individuais. (MORIN, 1994) A predominância do método industrial não significou, contudo, a eliminação do trabalho artesanal, prin-cipalmente nos países receptores de tecnologias. Inúmeras práticas artesanais estão presentes na nossa realidade como agricultura familiar, vendedores ambulantes, fabricadores de farinhas etc. As atividades de pesca, em destaque, podem também ser classificadas enquanto prática de produção artesanal.

No Brasil, a maior parte do trabalho artesanal ocorre no setor informal da eco-nomia. Como não há o contrato de trabalho típico, os artesãos não desenvolveram

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a observância pelo empregador da prevenção dos riscos de acidentes e doenças do trabalho por meio de Normas Regulamentadoras, pois geralmente não há emprega-dor, diferentemente do ocorre com o trabalhador assalariado. Para este, há relações formais com o empregador por meio de contrato regido pela CLT, onde se aplicam os regulamentos citados em situações que envolvem contratos de trabalho. Nesse sentido, o artesão geralmente se encontra absolutamente sem assistência à saúde no trabalho e, por isso, deveria ser objeto da prioridade da ação do Estado nos pro-gramas de proteção à saúde do trabalhador no Sistema Único de Saúde (SUS).

O artesão, em geral, não tem direito ao seguro acidentário. A Constituição Federal de 1988, contudo, conferiu este direito ao pescador artesanal em regime de economia familiar, através do artigo 11, da Lei 8.213 de 24 de julho de 1991. Para esses arte-sãos, entretanto, os significados de tais mudanças nas suas relações com as doenças e os agravos inscritos nas normas securitárias ainda não são estudados, dificultando orientações aos procedimentos que promovam a aplicação do direito alcançado.

A pesca artesanal representa uma importante modalidade de trabalho no país. Da-dos oficiais do Ministério da Pesca e Aquicultura indicam existir mais de 833.205 mil pescadores artesanais no Brasil em 2009. (BRASIL, 2011) Informações extraoficiais sugerem que esse número pode chegar a mais de um milhão de pessoas sobrevivendo da pesca artesanal. Atuam em aproximadamente 3,5 milhões de quilômetros qua-drados de mar e quase 9.000 quilômetros de litoral, incluindo reentrâncias e ilhas, que estão entre os maiores do mundo. As áreas em que se praticam a pesca enco-brem grande parte do território nacional, sendo que a maior parte da modalidade de pescador artesanal se concentra nos estados do Nordeste, que representa 47% do total. A Bahia possui um número expressivo de 105.455 pescadores artesanais. (BRA-SIL, 2009) Destes, um contingente significativo desenvolve atividades parciais ou dedicam-se exclusivamente às atividades de pesca artesanal do marisco.

A pesca extrativa consiste na retirada de organismos aquáticos da natureza, po-dendo ser em escala artesanal ou industrial. A pesca industrial é realizada por gran-des companhias e caracterizada pela utilização de embarcações de maiores porte e autonomia, dotadas de sofisticados equipamentos de navegação e detecção de car-dumes e de ampla mecanização. As relações de trabalho nesta categoria industrial são, em geral, assalariadas. De acordo com a Classificação Brasileira de Ocupações

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(CBO), o pescador industrial é um trabalhador com carteira assinada, com ensino fundamental concluído, que para o exercício pleno de suas atividades precisa de curso básico de até 240h/aula, sendo contratado nos termos do artigo 429 da CLT. O trabalho é supervisionado, realizado em equipes, e pode ocorrer em ambientes abertos ou fechados, sem horário determinado.

A pesca artesanal, por outro lado, caracteriza-se total ou parcialmente por regime produtivo de subsistência com emprego de embarcações de médio e pequeno porte e equipamentos sem nenhuma sofisticação, não havendo, em geral, remuneração pelo trabalho desenvolvido. Neste tipo de contrato social, o valor do trabalho está contido na entrega do produto ou no serviço prestado, que é vendido ou trocado por outro equivalente no mercado. Os pescadores artesanais são identificados na CBO sob o título de pescadores polivalentes, contemplando catadores de caranguejo e siri, catadores de mariscos, pescadores artesanais de lagostas e pescadores artesanais de peixes e camarões. Não há requisito de escolaridade, com aprendizado sendo de-senvolvido na prática. Realizam pesca artesanal e captura de crustáceos, tornando o pescado pronto para comercialização e consumo. O trabalho acontece em equipe, sem supervisão. As atividades são realizadas a céu aberto, durante o dia. Os pesca-dores artesanais, durante o desenvolvimento de sua atividade laboral, permanecem em posições desconfortáveis, expostos à variação climática e ferimentos inerentes à coleta dos pescados e mariscos. A Figura a seguir ilustra o processo de trabalho do pescador artesanal:

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Figura 1 – Processo de trabalho do(a) pescadora artesanal

Objeto de trabalho

(ou matéria prima) Meios/ divisão/organização do trabalho

Produto final fabricado:

Pescados e mariscos disponíveis na natureza.

- Processo técnico rudimentar de coleta/pesca do objeto de trabalho: peixes e mariscos;

-Instrumentos rudimentares utilizados na extração - O (a) pescador(a) é o proprietário dos instrumentos de trabalho

- Organização do trabalho: trabalho familiar com baixa divisão técnica (em geral: homens pescam e mulheres mariscam).

- Não há assalariamento do pescador; ele (a) sobrevive da venda do produto do seu trabalho. - Saber tradicional, adquirido informalmente. - Presença do trabalho precoce e tardio.

Pescados e mariscos prontos para a comercialização e consumo.

Fonte: elaborado pelos autores

O pescador artesanal não é um assalariado. Ele não vende a sua capacidade de trabalho em troca de salário mensal. O que vende é o produto do seu trabalho: o peixe e/ou marisco. Não dispor de salário resulta em profundas diferenças com outras categorias de trabalhadores assalariadas, inclusive relativos às suas relações com a prevenção de riscos ocupacionais. Como o pescador não recebe salários, não dispõe também de equipamentos de proteção individual, equipamentos de proteção coletiva, realização de exames médicos na admissão e nos periódicos, dentre outras obrigações legais dos empregadores para com seus assalariados. O pescador artesanal é autôno-mo não apenas em relação à sua remuneração, mas quanto à proteção a sua saúde. Nesse sentido, o contrato que existe no trabalho do pescador se estabelece com a venda do produto ao consumidor ou atravessador. Do preço desse produto vendido, o pescador deveria dispor de quantia para aquisição de equipamentos de proteção contra acidentes e doenças do trabalho, realização de exames médicos clínicos e ocupacionais e demais medidas protetoras. No entanto, diante da precariedade dos recursos obtidos com a pesca artesanal, não existe essa perspectiva na atualidade sem efetivo apoio do Estado.

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O setor pesqueiro artesanal concentra-se em duas grandes atividades, segun-do Pacheco (2006): a pesca e a mariscagem. Nesse sentisegun-do, o objeto de trabalho do pescador artesanal são peixes comestíveis e crustáceos como camarão, lagostas, dentre outros e mariscos como siris, caranguejos (crustáceos) e moluscos bivalves como ostras, e mariscos nos ambientes marinhos e fluviais. Em síntese, esta ativi-dade representa modaliativi-dades de ativiativi-dades milenares, originárias das formas mais tradicionais das sociedades humanas, pois sempre envolveu o uso de instrumentos simples de trabalho.

Essa natureza onde se pesca e marisca é objeto universal de trabalho humano. Todas as coisas que o trabalho apenas separa de sua conexão imediata com seu meio natural constituem objetos de trabalho, fornecidos pela natureza. (MARX, 1978) Os peixes ou mariscos constituem objeto de trabalho do pescador e podem ser con-siderados com matéria-prima. Temos desta forma que toda matéria-prima é objeto de trabalho, mas nem todo objeto de trabalho é matéria-prima. O objeto de trabalho só é matéria-prima depois de ter experimentado modificação efetuada pelo trabalho.

Os mariscos são encontrados em ambientes especiais existentes nos arenosos de praias, mangues e estuários dos rios. Nestes, ocorre a mistura entre as águas marinhas salgadas e as águas doces, sob o domínio de marés em movimentos que somam quatro vezes por dia. Nessa dinâmica, revolucionam nutrientes que circulam em abundância e favorece o desenvolvimento de ovos e larvas de milhões de animais invertebrados, peixes ou mesmo animais terrestres e aves. A vegetação nessas áreas é típica e dominada por arbustos dos mangues, perfeitamente adaptados à variação da salinidade, das marés e ao terreno alagadiço constituído de lama. Com a baixa das marés, suas raízes ficam suspensas e sob esta condição criam-se espaços que permitem o deslocamento dos pescadores nas atividades de mariscagem. Em cada região de mangue, ocorre apenas de uma a três espécies dessas árvores, em meio a quatro tipos descritos. São os mangues, considerados um verdadeiro berçário da vida aquática, que precisam de conservação para evitar o desaparecimento de inú-meras espécies vítimas da poluição decorrente da falta de saneamento básico ou de natureza agroindustrial, da pesca predatória, especulação imobiliária e turística,

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O Brasil tem uma das maiores extensões de manguezais do mundo, onde se cons-tituem também locais de trabalho dos pescadores e pescadoras que sobrevivem da extração de mariscos.

Apesar de disponíveis na natureza, os mariscos e peixes apreendidos pelas im-pressões sensoriais dos pescadores não estão apenas na natureza física. Esse objeto de trabalho é também abstrato, assim como a natureza é abstrata, segundo Milton Santos. (2000) As áreas de manguezais, arenosos e praias e mares dispõem de peixes e mariscos que se expressam na dimensão subjetiva dos sujeitos pescadores, como meios de sobrevivência, associados aos mitos, crenças, ritos, valores, saberes trans-mitidos historicamente por gerações e gerações. Desse modo, preservam as práticas do trabalho artesanal da pesca em cada região e saberes em universo de significa-dos, muitos deles importantes não apenas para a preservação dos ambientes, mas que podem colaborar na proteção contra riscos desses ambientes desafiadores para condições de trabalho humanamente suportáveis.

Do ponto de vista econômico, o objeto de trabalho representa o alimento vivo na forma de dezenas de espécies comestíveis de mariscos e peixes. Ao se tornarem disponíveis para a alimentação, transformam-se em valor de uso e adquirem impor-tante significado como aporte proteico/calórico para sobrevivência das populações de pescadores. Ao serem disponibilizados para o mercado de alimentos, transformam-se em valor de troca e são comumente vendidos a preços irrisórios para atravessadores.

O meio de trabalho, por sua vez, refere-se ao conjunto de instrumentos, práti-cas, prescrições e condições em geral que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto. Os meios de trabalho medem o desenvolvimento da força humana de trabalho e, além disso, indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho. Na pesca artesanal, de acordo com a CBO, são meios de trabalho: anzol; cabos e cordas; cavadeira, grapuá, cortadeira; embarcações de pequeno e médio porte; faca e facão; gaiolas e covos; gelo; redes; remo; e repelentes.

O conceito de processo de trabalho é complexo e a sua aplicação em atividades do trabalho artesanal clássico deve imprimir considerações teóricas, particularidades e problemáticas diversas quando comparados ao processo de trabalho industrial. Apesar de se caracterizar como trabalho artesanal clássico, esta modalidade sobrevive em

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um contexto capitalista contemporâneo, em que o produto do trabalho, no caso o marisco ou o pescado extraído, é vendido ao atravessador por preços reduzidos, e se destinam ao mercado consumidor.

Sob tais contextos socioculturais e espaciais se conformam ambientes de riscos predominantemente naturais para a saúde dos pescadores artesanais. A compre-ensão dos modos da ocorrência de doenças e acidentes relacionados ao trabalho da pesca artesanal nesses ambientes se constituiu no foco da investigação realizada em comunidades pesqueiras, com estratégias metodológicas a serem descritas a seguir.

Metodologia

O presente estudo de abordagem etnográfica assumiu, portanto, o objetivo de conhecer as condições de trabalho e compreender os significados das doenças re-lacionadas ao trabalho de pescadores e marisqueiras na comunidade de Bananeira, situada em Ilha de Maré-Ba, na perspectiva de orientar as populações envolvidas para a busca de melhorias das condições de trabalho e saúde.

A metodologia para formação do contexto para conhecimento do processo de trabalho foi essencialmente do campo da sociologia e da antropologia, de natureza qualitativa, de estudo de caso da comunidade de Bananeiras. Trata-se de metodo-logia centrada na abordagem etnográfica em busca do conhecimento em profundi-dade do objeto de estudo, ou seja, procurando constituir uma descrição densa das relações entre condições de vida e trabalho e das doenças e acidentes frequentes nas atividades de pesca e marisco.

Compôs a proposta metodológica a realização de uma “descrição densa” da Ilha e dos modos de vida e trabalho de seus habitantes. Para isso, foram utilizadas en-quanto técnicas qualitativas de captação de informações a observação participante, a entrevista e a história oral. (FREITAS, 2003; GEERTZ, 1989) Para Haguete (1987) essas técnicas possuem limitações em si, as quais podem ser amenizadas ou corrigi-das quando da comparação entre as informações coletacorrigi-das pelos distintos métodos.

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A pesquisa foi realizada entre agosto de 2005 a dezembro de 2007, em uma comu-nidade de pescadores artesanais habitantes de Ilha de Maré, município de Salvador. A exceção das épocas de chuvas frequentes, entre março e junho, as visitas à comu-nidade foram semanais. A população afrodescendente da ilha é formada, essencial-mente, de famílias de pescadores artesanais e mariscadeiras, as quais apresentaram seus testemunhos sobre a vida e o trabalho. Foram entrevistados 27 mulheres e três homens, todos trabalhadores extrativistas de mariscos no manguezal, nos arenosos das praias e nas suas unidades domésticas; todos colaboraram com a pesquisa de modo voluntário, após a apresentação dos objetivos em reuniões com a comunidade. Ademais, realizaram cinco reuniões com grupos de pescadores e pescadoras maris-queiras com objetivo de validar modos operatórios das atividades de mariscagem em todas as fases do processo, relatos de sintomas de doenças e ocorrências de acidentes do trabalho, visitas sistemáticas aos locais de extração dos mariscos nas praias, espe-lho d´água e nos manguezais da região para observação das atividades de trabaespe-lho. Finalmente, fotos e filmagens realizadas com orientação técnica para verificação de condições de trabalho e atividades foram feitas e apresentadas nas comunidades para redefinir significados na perspectiva das marisqueiras. Os nomes dos sujeitos citados nas narrativas do presente texto são fictícios para preservar o sigilo.

Os instrumentos de pesquisa foram definidos em estudo piloto junto aos infor-mantes marisqueiras e pescadores da comunidade de Bananeiras, com o objetivo de realizar uma aproximação inicial do campo de estudo, aperfeiçoamento das técnicas de entrevistas e treinamento dos entrevistadores. Em uma etapa posterior, foram formados dois grupos focais com aproximadamente 10 participantes cada, centrados nas experiências com técnicas diferentes de atividades de marisco e pesca, a exem-plo das práticas diferenciadas da mariscagem em mangue ou nas praias envolvendo riscos diferentes para a saúde dos trabalhadores.

Este estudo utilizou enquanto recursos técnicos roteiros para entrevistas, roteiros para as observações participantes e padrões de conduta para a formação dos grupos focais. A análise foi aprofundada junto aos portadores de agravos à saúde, orien-tados pelos aspectos centrais dos objetivos, ou seja, do significado de experiências referentes às condições de trabalho e agravos à saúde. Houve um aprofundamento na busca de informações sobre atividades tradicionais, tipificadas como processo de

Referências

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