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Cadências infernais no modo operatório da mariscagem do Sururu

A pesca do sururu pode ser feita no arenoso da praia, em particular nas pedras onde ele se fixa, e no manguezal. O modo operatório e os riscos variam em função destas duas localizações diferentes.

O ciclo do trabalho de coleta do sururu na praia arenosa onde ele ocorre se inicia com as atividades de mariscagem na praia, durante as marés baixas diárias, e con- tinua com a limpeza do mesmo na residência, até o preparo final do produto a ser entregue ao atravessador.

Esta relação com o tempo da primeira parte da jornada na praia: dura em média 4 a 6 horas diárias; depende do ciclo das marés e de outras intempéries, como chuva, como foi descrito anteriormente.

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As etapas do ciclo de atividades da coleta do sururu são: 1) Procura e localiza- ção do marisco com os olhos na praia arenosa: Trata-se de uma busca que exige concentração e esforço visual, pois o sururu, como todos os mariscos, dispõe no mecanismo biológico de defesa de predadores denominado de mimetismo. Com esse mecanismo de defesa de predadores, se parecem com pequenas pedras do ter- reno arenosa das praias e, o olhar treinado das marisqueiras deve identificá-los para partir para a segunda etapa que é a coleta. Esta atividade envolve grande concen- tração e movimentação dos olhos com rapidez para localizar o marisco em meio ao seu mimetismo natural e às diversas interferências da excessiva luminosidade; 2) Retirada do marisco das pedras na areia da praia: Esta etapa se inicia após a loca- lização dos mariscos. Com o instrumento em uma das mãos que porta uma colher ou uma faca, acomodada com um pedaço de pano enrolado para proteger a mão e faz uso da força para pressionar e retirar o sururu que se encontra preso nas pedras e areia. Isto requer muito esforço/força principalmente para desprendê-lo das pedras quando estas estão presentes e aderidas ao marisco. Além do esforço, esta atividade exige movimentos repetitivos, em que a marisqueira força várias vezes a rocha em que o marisco se encontra preso. Este esforço envolve movimento de todo membro superior, concentrado no respectivo ombro para pressionar a concha e propiciar as condições para bater na rocha até liberar o marisco. Verificamos que há a necessi- dade de uma média de 10 movimentos de batida nas rochas para a retirada de cada sururu. A variação destes movimentos pode ser para mais ou para menos em função da aderência do marisco na rocha. Para mais, quando o coleta ocorre no arenoso da praia, pois a areia solta facilita os movimentos de raspagem e localização do marisco, e podem ser realizados com velocidade bastante acelerada (em cadência infernal); 3) Armazenagem do marisco na mão: Para economizar movimentos, a marisqueira armazena cada marisco que coleta na mão esquerda e vai enchendo o balde que fica na mão direita.

Observou-se em todos os movimentos para a coleta do sururu no arenoso e nas rochas, sua quantificação. O cálculo das retiradas de mariscos por minuto e por hora de trabalho resultou no seguinte: A quantidade de movimentos no ciclo de coleta do

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de marisco de concha pequena). Estas atividades alcançam em torno de 17 coletas de sururu por minuto. O total de atividades repetitivas de raspagem do arenoso da praia por minuto encontrado foi, em média, de 170 movimentos. Isto significou um total aproximado de 10.200 movimentos repetitivos por hora, com esforço (Foto 7). Trata-se de “cadências infernais” verificadas nessas atividades, cujo ritmo se mantém em função das exigências de sobrevivência da pescadora devido à miséria social.

Foto 7 - Movimentos com esforços repetitivos na coleta do marisco

Fonte: elaborado pelos autores.

Área de raspagem da areia para a procura do sururu e sarnambi: a área define o resultado da ação dos movimentos repetitivos do braço direito, enquanto o outro, segura a panela de armazenagem da coleta; Há um pequeno esforço físico para retirar a areia e esforço visual para identificar o marisco que se confunde com a cor da areia (mimetismo de defesa do marisco).

Movimentos repetitivos e o esforço na retirada do chumbinho:

17 retiradas de sururu por minuto. Cada retirada do marisco envolve, em média, 10 movimentos repetitivos; Isto significa aproximadamente 170 movimentos repetitivos com esforço por minuto; 10.200 movimentos

por hora (1ª. Parte da jornada de 5 a 6 horas, em que não está incluída da limpeza do marisco feita na

residência da marisqueira);

Para atividades de digitação, a NR 17 estabelece o limite de 8.000 toques por hora, em jornadas de 6 horas, com pausa prescrita de 10 minutos para cada 50 minutos trabalhados.

Esse ritmo ocorre com a raspagem de um arenoso com pouca aderência e isso facilita a rapidez dos movimentos. Em áreas em que o arenoso é mais espesso, o número de movimentos é mais reduzido, porém com mais esforço. Em outras comu- nidades pesqueiras, encontramos ocorrência, para o sururu, de aproximadamente 80 a 90 movimentos nas atividades de raspagem do arenoso, o que leva a uma mé- dia de 5.100 (conforme verificado na análise feita em cinco outras comunidades de

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pescadores) movimentos por minuto. Tratava-se de um arenoso próximo a região de mangue com exigência da maior esforço na retirada do sururu. De toda forma, evidencia-se com isto, uma atividade repetitiva com esforços concentrados nos mem- bros superiores, o que caracteriza risco para síndromes decorrentes de esforços re- petitivos ou LER/DORT.

As pausas passivas na coleta do sururu ocorrem quando se esgota a coleta de mariscos em uma área do arenoso da praia e a marisqueira se desloca para outras áreas ainda não exploradas. Não há pausas indicadas na tradição oral. Em função da sua autonomia no trabalho, fruto da ausência de divisão de trabalho e hierarquia, a marisqueira poderia estabelecer uma pausa para o descanso ou pausa para asse- gurar a melhoria das dores em função de posições de riscos ergonômicos existentes na coleta dos mariscos.

Enquanto a mão funciona com reservatório provisório de mariscos, o cotovelo é mantido firme na coxa, flexionando a coluna, (no caso das marisqueiras destras, o cotovelo esquerdo se apoia no joelho esquerdo, mantendo a respectiva mão livre para acumular mariscos). Esta postura transforma o braço oposto ao que realiza os movimentos repetitivos da coleta de mariscos em uma espécie de bengala, com a finalidade de dar suporte ao tórax em flexão e a cabeça.

Esta posição é mantida de forma intermitente durante toda a jornada, em com- posição com os momentos em que a marisqueira esgota a retirada no marisco no local e deambula a procura de novos nichos para coleta. Esta é uma postura comum observada em todas as atividades de coleta tradicional de mariscos, com crianças e adultos. Trata-se de uma postura antálgica (Fotos 7 e 8) de proteção da coluna e consequente redução da dor decorrente da flexão lombar. Resulta da experiência secular das marisqueiras na busca da redução do esforço concentrado na coluna lombar que se mantém em flexão durante quase toda a jornada. Este é um exemplo de conhecimento tradicional que corresponde às indicações técnicas da atualidade, e são estudadas pela disciplina da ergonomia. (PARAGUY, 2005) A antropo-ergono- mia ou a ergonomia resultante da cultura popular pode ser observada com outros saberes e práticas tradicionais, a exemplo do uso do chapéu de abas largas em todas

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Foto 8 - Postura típica da pescadora na coleta do marisco na praia e trabalho precoce. Ilha de Maré, Ba, 2007

Fonte: elaborado pelos autores.

Postura típica da atividade de mariscagem: – Coluna em flexão

– Membros inferiores ligeiramente abertos, em V, para aproximar os MMSS da areia;

– Mão direita segura o instrumento – faca – e mantém movimento repetitivo com esforço para retirar o sururu das rochas (para marisqueira destra); – Braço esquerdo cata o marisco desprendido da rocha

e, em seguida, descansa o tórax apoiando no joelho do mesmo lado (veja na figura seguinte);

– Concentração visual na identificação do marisco em função do mimetismo.

– Flexão permanente da coluna, com esforço concentrado na região lombar. - Tensão muscular persistente e esforço também concentrado no ombro.

Foto 9 - No manguezal a concentração da sobrecarga na coleta de mariscos no arenoso da praia

Fonte: elaborado pelos autores.

Vetor do sentido da força muscular para descolar o sururu preso ao galho: ombro; articulação... e punho são as articulações mais exigidas; além da coluna lombar mantida sempre em flexão.

Postura antálgica para proteção da coluna por meio do apoio do cotovelo no joelho:

O cotovelo esquerdo (para marisqueira destra) apoia no joelho unilateral;

– Há a redução da carga física, composta do tórax e cabeça, que incide na coluna lombar.

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Com o passar dos anos, esta postura pode levar à formação de cicatrizes na face anterior da coxa e posterior do tornozelo correspondente. Verificamos que esta pos- tura é mantida no cotidiano da vida laboral e, com isso, o local de contado do cotove- lo com o joelho gera lesões na pele, que se tornam crônicas em função da persistência da postura no trabalho e cicatrizam. No início das atividades de mariscagem relatam dores e edemas nos locais, com o tempo, acostumam-se e com micro lesões e estas resultam em fibrose ou cicatriz. São geralmente duas cicatrizes com formato quase sempre circular, sendo uma no joelho da região de contato com o cotovelo e outra no cotovelo do respectivo antebraço de suporte. Estas cicatrizes são mais frequentes em pescadoras marisqueiras obesas, e foram verificadas pela equipe em marisqueiras de diversas regiões pesqueiras da Bahia e do Nordeste. Na Bahia, estas lesões são chamadas pelas próprias pescadoras de “carimbo da marisqueira”, uma cicatriz típica que marca o corpo da profissão, como pode ser visto na (Foto10).

Foto 10 - “Carimbo da marisqueira”

“Carimbo da marisqueira”: Lesão cicatricial resultante de contato cutâneo entre cotovelo e joelho decorrente de anos de trabalho na postura antálgica acima descrita;

Esta lesão cicatricial da pele é mais frequente em marisqueiras obesas.

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Entretanto, essa postura não protege completamente a coluna, pois não afasta o risco de patologias. Os trabalhos realizados durante longos anos da vida laboral associado à intensidade decorrente da necessidade de sobrevivência condicionam a persistência de risco elevado para enfermidades da coluna vertebral.

A etapa de colocação dos mariscos em baldes fecha o ciclo geral da coleta deste marisco. Depois vem o transporte até o local de limpeza, que geralmente se dá nos quintais das residências das marisqueiras. Após a lavagem do marisco no mar, a ma- risqueira coloca o balde no ombro ou na cabeça, sustentando entre cinco a dez quilos, a depender da produção da coleta, e caminha por vinte a trinta minutos até o local de limpeza. O sururu necessita de preparo, caracterizado como pré-cozimento, para a sua venda ou armazenamento para consumo próprio. Este ciclo de atividades leva aproximadamente 5 a 8 horas diárias, e consiste em uma segunda jornada de trabalho. Para o ciclo do preparo do sururu observou-se a lavagem do marisco no mar para a retirada da areia e outros resíduos presentes; outra lavagem, mais apurada, pode ser feita na residência em função das condições dos mariscos.

O cozimento do marisco se dá em fogões à lenha (Foto 6). Primeiro, há num pré- -cozimento, sem temperos, com o objetivo de propiciar as condições para a retirada das conchas dos mariscos, armazenamento e congelamento do sururu.

O corte da lenha implica em outro esforço da estrutura muscular e articular dos membros superiores que aditam aos realizados nas outras tarefas. No corte da lenha, outros riscos aparecem: picadas de animais peçonhentos, insetos, fragmentos nos olhos e ferimentos em geral.

Após o pré-cozimento o sururu é aberto, retirado de sua concha com uma pequena faca. Trata-se de um movimento circular até a abertura da concha para a retirada do sururu. Em média, a marisqueira realiza 28 aberturas de conchas por minuto. São três as atividades recorrentes: a abertura das conchas, a retirada do sururu e a colocação no balde. Dessa maneira, realiza-se um total de movimentos repetitivos com as mãos e os braços neste ciclo da limpeza e desconcha do sururu em que se calculou média de 84 movimentos por minuto correspondendo à média de 5.040 movimentos repetitivos por hora. Este trabalho pode durar entre 5 a 8 horas em função da quantidade de mariscos e isso significa 25.200 a 50.000 movimentos na jornada diária. Verificamos que algumas marisqueiras hábeis podem alcançar uma

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média de 10.000 movimentos repetitivos por hora, acumulando a excessiva quan- tidade de aproximadamente 75.000 movimentos na jornada.

O exemplo da extração do sururu mostra uma condição de sobrecarga de movi- mentos repetitivos em grande intensidade. Por essse motivo, deve ser uma ativi- dade causal do trabalho na verificação de nexos em portadores de lesões músculos esquelíticas ou LER/DORT diagnosticadas em pescadoras e pescadores artesanais, especialmente para os que realizam atividades de coleta e limpeza de mariscos.

Trabalho prescrito tradicionalmente e o trabalho