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Exames médicos preventivos para doenças do trabalho em pescadores no SUS e o papel da Estratégia de Saúde

da Família

A legislação prevê para o trabalhador assalariado a realização de cinco tipos de exames médicos para prevenção de doenças do trabalho e respectiva definição da condição de capacidade de saúde para o exercício das atividades. São os exames médicos de: admissão; periódico; de retorno ao trabalho; de mudança de função e o de demissão. Para o pescador e sua condição de trabalhador artesanal (capítulo 1), diferentemente do assalariado, ele não tem “admissão” nem “demissão” no traba- lho em função de não haver contrato de trabalho entre empregador e empregado. A investigação realizada por Rosa e Mattos (2010) junto aos pescadores artesanais do Estado de Guanabara informa haver sentimento de desemprego para 62% de entrevistados. Neste caso, entende-se o desemprego referenciado na exclusão do mercado formal de trabalho, pois na condição de artesão não existe o desemprego e sim a crise de venda do produto que pode levar à paralisia das atividades. No traba- lho artesanal tradicional o pescador ou pescadora inicia seu aprendizado do ofício geralmente quando criança e se insere nos afazeres profissionais sem condições ou informações sobre riscos e possibilidades de acesso aos serviços de saúde capazes de realizar exames médicos preventivos de natureza ocupacional.

O pescador ou marisqueira também não muda de função na sua vida profissional, desde quando participa de todas as etapas do processo de trabalho, ou seja, realiza todas as funções e se expõe a todos os riscos da profissão. Não há, por consequência,

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outras formas de afastamento do trabalho, comuns para o assalariado. Dessa ma- neira, da longa experiência da saúde do trabalhador empreendida ao assalariado no Brasil e no mundo o tipo de exame preventivo que poderia ser aplicado ao pescador artesanal para prevenção de doença do trabalho seria o exame periódico. Este pode- ria ser realizado anualmente ou a cada dois anos, a depender da idade do pescador. Para a realização dos citados exames preventivos nos assalariados, a legislação prevê situação em que médias e grandes empresas são obrigadas, a depender do grau de risco, a organizar Serviços Especializados em Segurança e Medicina no Trabalho (SESMT). Independentemente do porte das empresas, há a obrigação de implantar Programa de Controle Médico em Saúde Ocupacional (PCMSO), dentre outros, com a finalidade de realizar os cinco exames de prevenção de doenças do trabalho citados anteriormente. Por esse motivo, caberia ao SUS estruturar tais exames, fundados no direito universal à saúde e na obrigação do Estado em garanti-lo.

A Estratégia de Saúde da Família (ESF) ou Programa de Saúde da Família (PSF) do SUS tem ampliado o acesso à atenção básica em saúde nas comunidades pesquei- ras, principalmente naquelas localizadas em regiões distantes dos grandes centros urbanos. Dessa forma, torna-se importante orientar os profissionais da ESF sobre os riscos profissionais dos pescadores artesanais e, simultaneamente, indicar tipos de investigações médicas nos exames clínicos que podem ter o caráter de prevenção de doenças do trabalho. Do ponto de vista operacional, o exame médico periódico de natureza ocupacional pode ser praticado pelos médicos da ESF. Este exame deve envolver a investigação pré-clínica de doenças profissionais, com a investigação de sinais e sintomas precoces de doenças do trabalho, associada à realização de exames de imagens, como o indicado para mergulhadores para a prevenção das doenças descompressivas (Quadro 1).

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Quadro 1- Síntese sobre condições de riscos para doenças do trabalho nas atividades de pesca artesanal de mariscos

Riscos/ classificação Atividades e situações de riscos descrita Possíveis agravos à saúde (doenças e acidentes do trabalho) Práticas preventivas culturais e indicadas tecnicamente Calor/radia- ções solares/ luminosidade

– Exposição ao Sol; infravermelho - Atividades de pesca artesanal para coleta de mariscos; risco presente em todas as formas de pesca do marisco, tanto no arenoso da praia quanto na pesca no mangue. Na pesca do marisco no arenoso da praia, a luminosidade aumenta em função:

a) a luminosidade direta se soma aos reflexos da luz na água do mar e no arenoso molhado. b) Há necessidade de esforço ocular

para identificar os mariscos que dispõem de mimetismo para se defenderem de predadores.

– Hipertermia, queimaduras cutâneas, insolação, desidratação, síncope, cãibras relacionados à exposição ao calor e ao sol;

– Neoplasias, como o câncer cutâneo - relacionado à exposição à radiações ultravioleta. – Envelhecimento precoce da pele Distúrbios da visão relacionados ao trabalho marítimo: hipertrofia ou atrofia das glândulas lacrimais; catarata; queratites; conjuntivites.

– Utilizar chapéu de palha com abas largas; – Utilizar protetor solar; – Utilizar roupas de algodão

que permitam a evaporação do suor, e que protejam inclusive membros superiores e inferiores; da mesma forma, evitar uso de roupas em poliéster ou plásticos sobre o corpo; – Utilizar sombreiros;

construir áreas sombreadas para processamento dos mariscos;

– Retirar as crianças da exposição solar com o suporte de creches e escolas para que as mães possam deixá-los em segurança enquanto trabalham; – Uso de óculos escuros

sempre que as atividades de pesca e extração de mariscos permitirem.

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Exposição a altas pressões atmosférias

Mergulho para pesca em geral, principalmente para a pesca da lagosta, polvo (não foram objeto de estudo no presente trabalho)

Doenças descompressivas; barotraumas; Labirintite ou Vertigem; Hipoacusia – Treinamento dos pescadores, fornecimento de equipamentos de proteção, além de proibição de formas irregulares de mergulho com suporte de ar comprimido improvisado, como se verifica com o uso de bujões de gás;

– Controle médico para avaliar condições de aptidão e acompanhamento das atividades de mergulho (feito por médico do trabalho com formação em medicina hiperbárica) Umidade/lama

do manguezal

– Atividade de pesca e mariscagem com permanência na água do mar, especialmente à beira-mar; no arenoso da praia úmido; e no mangue, quando é comum se infiltrarem na lama até a cintura para coleta do caranguejo; em situações especiais, a busca do caranguejo faz com que a marisqueira mergulhe até o pescoço no lamaçal.

– Irritação da pele pelas atividades de manuseio de mariscos, arenoso, manipulação de madeira, galhos das plantas dos manguezais, uso de instrumentos de corte...

Dermatites relacionadas à umidade e outras dermatofitoses; e dermatomicoses; onicomicoses e distrofia ungueal profissional (OIT, 2008)

Infecções no trato gênito- urinário (contato frequente com lama e água que gera atritos, irritações, inflamações e infecções).

Dermatite de contato por irritação primária/alérgica (OIT, 2008);

“Estigma profissional das mãos” (OIT, 2008, p. 12.20) decorrente de traumas e micro traumas concentrados no uso das mãos com esforço, irritantes, perfurantes por longo tempo.

– O uso de equipamentos de proteção individual como óculos de proteção, luvas adequadas, botas especiais, meias e calça para o trabalho sob condições de imersão em água e lama.

Exposição às intempéries; umidade/ chuvas, frio

Atividade de pesca e mariscagem com permanência na água, na praia e em áreas de mangue.

Tuberculose e outras infecções das vias aéreas superiores e inferiores; gripes; resfriados; faringites; artralgias.

104 | SOFRIMENTO NEGLIGENCIADO Riscos biológicos, especialmente relacionados ao trabalho no mangue: vírus, bactérias, fungos, protozoários, ovos e larvas de verme em geral

– Atividade de pesca e mariscagem com permanência na água e em áreas de mangue.

– Local de trabalho: mangue, praias, com possibilidade de contato permanente com águas e lama contaminadas pelos diversos tipos de agentes biológicos.

– Contato e manipulação frequente de crustáceos e moluscos (caranguejos, camarões, ostras...) – Algumas áreas de manguezais estão

poluídas pelos dejetos orgânicos oriundos de esgotos sanitários de regiões metropolitanas.

– Doenças infecciosas e parasitárias; tuberculose; leptospirose; tétano; dengue; hepatite A; dermatofitose; candidíase; verminoses, amebíases e outras patologias associadas à falta de saneamento e a poluição orgânica do mangue e praias. – Rinites, dermatites alérgicas, asma profissional decorrente de sensibilizações às

substâncias alérgicas presentes nos crustáceos e moluscos (OIT, 2008).

– (Idem)

– Melhoria das condições de higiene e saneamento do ambiente

– Combate à poluição – Educação sobre os cuidados

de higiene pessoal e ambiental

Riscos químicos – Deslocamento em barco movido a motor de explosão.

– Exposição aos fumos e monóxido de carbono resultante da queima de lenha para o pré-cozimento de mariscos.

– Uso de querosene e óleo Diesel como repelente de mosquitos. Trata-se de práticas de proteção contra picadas de mosquitos existentes nos manguezais, fundamentadas no desconhecimento dos riscos dos produtos e na precariedade econômica para compra de repelentes vendidos no mercado. – Exposição a produtos químicos

originários de indústrias próximas, que contaminam áreas

de manguezais.

– Possibilidades de doenças respiratórias alérgicas como asma, rinites. O monóxido de carbono, embora presente em toda queima incompleta, não parece constituir risco em função da realização do pré-cozimento em ambientes abertos, geralmente nos quintais das residências. – Câncer de pele; dermatites de

contato.

– Uso de repelentes em lugar do querosene e óleo Diesel – Uso de fogões com chaminés

apropriadas para exaustão da fumaça

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Riscos ergonômicos

Esforço físico Levantamento e movimentação de peso excessivo (pescado; equipamentos de pesca; transporte manual de mariscos; barco; etc.); Transporte de baldes contendo mariscos resultantes da extração diária;

– Patologias da coluna e do aparelho locomotor em geral; Afecções musculoesqueléticas (LER/DORT) como síndrome do túnel do carpo, tendinites relacionadas ao esforço excessivo durante longos períodos (OIT, 2008);

– Patologias da coluna em geral e lombalgias. – Traumas e enfermidades dentárias (OIT, 2008) ‒ Movimentos repetitivos; esfor- ços repetitivos; monótonos; au- sência de pausas

– Fiação e tecelagem artesanal de rede de pesca; manutenção mecânica de equipamentos; etc. – Movimentos repetitivos, com

esforço físico nas diversas atividades, como: cavar o arenoso da praia em busca dos moluscos; idem para golpear as rochas onde se fixam mariscos; golpear arbustos do manguezal em que se fixam os mariscos; limpeza dos mariscos para o pré-cozimento; retirada de alguns mariscos das suas conchas de proteção (exoesqueleto) para pré-cozimento.

– LER - Lesões por Esforços Repetitivos (DORT), a exemplo:

Tenossinovites e Tendinites, Síndrome do Túnel do Carpo, Síndrome Cervicobraquial, Radiculopatias Cervicais, dentre outras. ‒ Pausas, descanso semanal e outras condições de pro- teção à saúde

– Não há pausas inscritas na tradição do trabalho artesanal;

– Não há descanso semanal remunerado;

– As pausas e descansos semanais se estabelecem pelas condições do tempo.

– Fadiga;

– LER - Lesões por Esforços Repetitivos (DORT), a exemplo:

Tenossinovites e Tendinites, Síndrome do Túnel do Carpo, Síndrome Cervicobraquial, Radiculopatias Cervicais, dentre outras.

106 | SOFRIMENTO NEGLIGENCIADO Esforço físico e movimentos repetitivas na ati- vidade de remo em canoas

Canoa a remo e/ou à vela são utilizadas para deslocamento para áreas de pesca ou coleta de mariscos. A atividade de remo pode chegar a 2 ou 3 horas por dia, a depender da localização das áreas de pesca.

– LER - Lesões por Esforços Repetitivos (DORT), a exemplo: Tenossinovites e Tendinites, Síndrome Cervicobraquial, Radiculopatias Cervicais, dentre outras. ‒ Trabalho em pé por tempo prolongado

Trabalho em pé nas atividades de pesca ou em situações de observação e análise das condições de pesca

– Varizes de membros inferiores

‒ Condições de risco ergonômico para crianças em fase de desenvolvimento psicomotor.

Trabalho precoce de crianças em atividades de pesca e mariscagem que envolve condições de risco ergonômico no trabalho.

– Deformidades ósseas relacionadas ao trabalho das crianças e adolescentes; ‒ Posturas com concentração de esforços em regiões do corpo: coluna lombar ‒ Lombalgias de esforço ‒

Patologias do trabalho reconhecidas pela Portaria do Ministério de Saúde Fonte: Relatório de pesquisa da Faculdade de Medicina e do SESAO – UFBA.

Os exames médicos periódicos de natureza ocupacional podem ser associados aos periódicos para a saúde, indicados para programas preventivos de doenças in- feciosas e parasitárias e crônico-degenerativas, como diabetes, hipertensão arterial, câncer de colo de útero, de mama, de próstata, dentre outros. Dessa forma, pode se configurar, para o pescador e pescadora artesanal, uma prática de realização de exames médicos preventivos de doenças do trabalho em comunhão com o que se faz em exames periódicos para proteção da sua saúde como um todo.

Para construir essa possibilidade, torna-se fundamental que os profissionais da ESF tenham sistema de referência e contra referência estruturada na área de atenção à saúde do trabalhador, da mesma forma que dispõe de referências para outras es- pecialidades como cardiologia, nefrologia, dentre outros. Para isso, há a necessidade

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Trabalhador (Nusat) ou Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerest) voltados para as comunidades de pescadores. Mais ainda, organizar suporte de serviços ambulatoriais de referência para o diagnóstico, tratamento, reabilitação e a aplicação de protocolos para o nexo causal de doenças do trabalho. Na Bahia, o Serviço de Saúde Ocupacional (Sesao) do Hospital Universitário Professor Edgard Santos (Hupes) da Universidade Federal da Bahia tem servido como referência para o diagnóstico, tratamento e reabilitação de doenças do trabalho em pescadores ar- tesanais. No entanto, a perspectiva de organizar exames médicos periódicos junto à ESF encontra-se ainda em proposição.

Síntese sobre principais riscos de doenças do trabalho nas