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O ciclo das marés e a influência lunar no trabalho e na saúde

Para entender o ciclo de trabalho das atividades de mariscagem e da pesca arte- sanal em geral é necessário conhecer aspectos essenciais sobre os movimentos das marés. Estas podem ser definidas como o movimento de fluxo e refluxo das águas do mar junto à costa e ocorre quase duas vezes por dia em relação ao período de rotação da terra, combinado com as variações do ciclo lunar.

O sol exerce uma força gravitacional sobre a terra e este mesmo fenômeno ocor- re com a lua em relação à terra. A lua exerce influência gravitacional maior do que o dobro do sol, apesar de ser bem menor, em função da sua proximidade da terra. Quando o sol, a lua e a terra estão em posição linear (a lua entre o sol e a terra ou a terra entre a lua e o sol), há uma concordância das forças gravitacionais que se

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somam e a influência nas marés aumenta. A força gravitacional atrai a água dos oceanos, ocasionando variações que resultam nas marés. Portanto, as variações das posições da lua e do sol comandam as marés e compõem seus ciclos que, por sua vez, comandam o cotidiano do trabalho dos povos costeiros que vivem da pesca.

Segundo as informações oficiais da Marinha, as características gerais da maré na costa brasileira são de regime predominantemente semidiurno. A amplitude da maré varia de 0,5m (micro maré) no sul a 7m (macro maré) no norte, com registro de ocorrência máxima e pontual de 11m na estação do Igarapé do Inferno (AM), predominando o regime de meso maré. Esta variação da altura das águas determina o espaço geográfico de trabalho nas superfícies de areia nas praias e nos manguezais; e em todos os ciclos de atividades das marisqueiras.

A medida do ciclo das marés, a hora da enchente e da vazante se faz com um equipamento denominado ábaco, o qual não existe nas comunidades pesqueiras da região. Neste sentido, o conhecimento sobre o tempo de trabalho ocorre em função da regra dos dezesseis avos: quer na 1ª e 6ª hora de enchente ou vazante a altura da maré é de 1/16 dessa amplitude; na 2ª e na 5ª de 3/16 e na 3ª e 4ª hora de 4/16 da amplitude, nos lugares de marés regulares.

As principais influências dos ciclos lunares sobre as marés, importantes para a determinação dos ciclos de trabalho, são: maré-morta que ocorre durante os quartos crescentes e minguantes e resultam em marés de fraca elevação e baixa maré; maré- -viva: nas fases da lua nova e cheia resultam em marés ou preamares de grande altu- ra e baixa-mares, sendo esta caracterizada pelas marisqueiras como “maré grande”, exatamente pela propensão a se constituir em grandes superfícies de trabalho.

Figura 1 - Representação da variação das marés e influência da lua

Lua Cheia

Lua Nova

“Alinhamento” Sol - Terra - Lua

Sol

Trajetória da Lua

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As marés de quarto-crescente e quarto–minguante correspondem à fase interme- diária em termos de efeitos sobre as marés e as superfícies de área de mariscagem na praia e no mangue, conforme figura abaixo.

Figura 2 - Efeito do Sol sobre as marés quando a Lua encontra-se em Quadratura com relação ao Astro-Rei

Fonte: Universidade de São Paulo (2000). Crescente

Minguante

“Alinhamento” Sol - Terra - Lua

Sol

Trajetória da Lua

Trajetória do Centro de Massa

As marisqueiras caracterizam bem a “maré grande”, que ocorre concomitante à lua cheia ou lua nova; a “maré menor” que ocorre na lua crescente ou minguante. Na lua nova e cheia há, portanto, um grande acréscimo do espaço de arenoso nas praias e nas áreas de manguezais, com incremento da frequência de mariscos. As po- pulações de pescadores conhecem esses movimentos jornaleiros, semanais, mensais e sazonais e suas influências nos ciclos reprodutivos dos peixes e mariscos.

No que se referem à saúde, as “marés grandes” intensificam o trabalho, pois am- pliam a extensão da coleta, resultando no aumento das atividades repetitivas no extrativismo e na consequente limpeza dos mariscos. É importante considerar que o período do ciclo das marés não varia com as fases da lua, mas o espaço de trabalho sim; por isso, nas fases de maior variação das marés há um aumento da intensidade e do ritmo das tarefas para aproveitar a maior ocorrência e visibilidade de mariscos. São estas duas fases da lua que as marisqueiras chamam de “condição de lua”, que indicam também maior intensidade de trabalho, cujo efeito pode ser verificado na exacerbação de sintomas de dores e exaustão, típicos de LER.

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O tempo do ciclo das marés influencia o grau de prevalência de espécimes de peixes comestíveis e determina o fluxo e refluxo de mulheres e homens (os que não estão na pesca neste período) no trabalho da praia e do mangue. Com chuva, sol intenso, doenças ou outras intercorrências, a própria mariscadeira poderia gerir seu tempo de trabalho e reorganizar as atividades, estabelecer pausas e se proteger das adversidades. Mas, como descrito, ocorre uma pressão do tempo natural como limitante. Esta pressão se soma à condição de miséria social que impõe a necessida- de de aceleração do trabalho para manter a sobrevivência. “E mesmo quem já tem costume se sente cansada, mas não tem jeito, a gente precisa” (CR).

Estas são, portanto, as características centrais do tempo natural que determinam o tempo social nas atividades da pesca artesanal e, consequentemente, a vida social e a saúde das comunidades pesqueiras. As observações de mariscagem na praia are- nosa e no manguezal evidenciaram esta relação.

A jornada varia em função do tipo de mariscagem a ser realizada. Há três gran- des modos operatórios na pesca do marisco realizada na região, mas não significam divisões de trabalho, pois a marisqueira ou mariscadeira realiza todas as tarefas dos procedimentos de pesca. Estas divisões estão relacionadas aos locais de trabalho e tipo de marisco a ser coletado, que são: Pesca do marisco na “maré” ou na praia, realizada na coleta de mariscos como sururu, sarnambi, ostra e chumbinho; Pesca do marisco nos manguezais, para a coleta das diversas espécies de mariscos nos ecossis- temas típicos, especialmente o caranguejo, aratu, siri, ostra, sururu e outros. Pesca do marisco nas partes rasas da costa, em águas rasas, onde são pescados mariscos como rala-côco, peguari, tapú e camarão.

A diferença marcante no tipo de mariscagem se estabelece essencialmente entre a pesca no mangue e na praia. Mesmo que a mariscadeira tenha a intenção de pescar um tipo de marisco, a situação pode mudar em função da variação da demanda do mercado, como ocorrem na semana santa, feriados etc. em que outros tipos são mais valorizados pelo mercado.

Para todas as formas de mariscagem acima citadas há uma jornada geral de tra- balho associada ao ciclo das marés e da influência da lua, além de aspectos relativos

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O início das atividades de mariscagem muda em função da variação da maré de um dia para o outro. Essa variação estabelece a diferença de uma hora, que se dis- tancia com a semana, mês, até recomeçar em ciclo lunar. Nesse sentido, não há uma jornada fixa, com a hora de início e fim determinada como nas atividades laborais cronometradas pelo tempo artificial – “hora de relógio” expressão comum na Bahia para enfatizar o uso do tempo artificial. Esta condição exige da marisqueira uma flexibilidade nos seus outros afazeres domésticos, para que os mesmos possam se adaptar à variação diária das marés.

Sururu? Esse nós temos que esperar, depende da maré. Na laje, as mulheres estão tirando, quando a Maré vaza; o bichinho fica em cima da laje. Quando ele abre pra nós enxergar melhor, ele fica estalando. Já o de mangue não. Ele fica debaixo da lama. (Marisqueira da Comunidade de Bananeiras)

Durante a semana, não há descanso remunerado, o que adiciona a caracteriza- ção de modalidade de trabalho artesanal. As marisqueiras e pescadores relataram realizarem o descanso semanal não remunerado geralmente no domingo à tarde. Necessariamente, estabelecem-se períodos de descanso passivo em função das varia- ções temporais, em particular nos períodos de chuvas, que se intensificam durante o inverno no Recôncavo Baiano.

Não há tradição de descanso nos feriados, exceto quando coincide com festas religiosas locais, além das festas tradicionais, como natal, ano novo, carnaval.

Sinteticamente o tempo de trabalho se constitui em: jornada diária, as ativida- des de mariscagem nas praias e mangues por 5 a 6 horas/dia; Entre 1 a 2 horas de deslocamento da residência para o local de mariscagem; atividades de transporte de mariscos, limpeza e pré-cozimento dos mesmos; 3 a 6 horas/dia; atividade de corte de lenha para pré-cozimento do marisco; Uma hora por dia; Total de 8 a 12 horas/ dia. Ainda devem-se computar as atividades domésticas realizadas nos intervalos da mariscagem, como: lavar roupas, cozinhar, limpar a casa, cuidar das crianças etc. Segundo a expressão de uma marisqueira, ela “descansa enquanto assiste a novela e nesse momento aproveita para catar siri ou descascar camarão”.

A jornada de trabalho semanal pode variar entre 60 horas, quando há o des- canso no domingo, e 70 horas por semana, sem considerar o trabalho doméstico.

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O trabalho noturno ocorre apenas na pesca no mar, porém não é rotina no trabalho de mariscagem. O mimetismo dos mariscos impede a sua coleta à noite e em dias chuvosos.