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A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA

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FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

LÍVIA DE SOUZA VIDAL

A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO:

ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA

Niterói/RJ 2017

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE EDUCAÇÃO

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO

LÍVIA DE SOUZA VIDAL

A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: ANÁLISE DE UMA EXPERIÊNCIA

Dissertação apresentada ao Programa de

Pós-Graduação em Educação, da

Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra em Educação.

Linha de pesquisa: Diversidade, Desigualdades Sociais e Educação.

ORIENTADORA: Prof.ª Dr.ª Iolanda de Oliveira.

Niterói/RJ 2017

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Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá

V649 Vidal, Livia de Souza.

A justiça restaurativa no sistema socioeducativo: análise de uma experiência / Livia de Souza Vidal. – 2017.

157 f. ; il.

Orientadora: Iolanda de Oliveira.

Dissertação (Mestrado em Educação) – Universidade Federal Fluminense, Faculdade de Educação, 2017.

Bibliografia: f. 151-157.

1. Socioeducação. 2. Justiça restaurativa. 3. Roda de conversa. 4. Raça. I. Oliveira, Iolanda de. II. Universidade Federal Fluminense. Faculdade de Educação. III. Título.

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A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO: análise de uma experiência

LÍVIA DE SOUZA VIDAL

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação, da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestra em Educação.

Linha de pesquisa: Diversidade,

Desigualdades Sociais e Educação.

Aprovada em 22 de fevereiro de 2017.

BANCA EXAMINADORA

Prof.ª Dr.ª Iolanda de Oliveira (Orientadora) Universidade Federal Fluminense (UFF)

Prof.ª Dr.ª Vilma Aparecida de Pinho Universidade Federal do Pará (UFPA)

Prof.ª Dr.ª Janaína de Fátima Silva Abdalla Faculdades Gama e Souza (FGS)

Prof. Dr. Elionaldo Fernandes Julião Universidade Federal Fluminense (UFF)

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AGRADECER

Aprendi nesses últimos tempos que escrever é um ato físico. Venho tentando dar corpo a algumas ideias, experiências, sentir meu corpo nesse exercício de sentar, silenciar e encadear palavras, aceitando a dança que se faz entre ordem-desordem-confusão. Aprendi que nossas ideias (nossas mesmo, coletivas), aquelas que tomam forma e encontram palavras, são mesmo uma fusão de pensamentos, atos e sentimento não são apenas meus, fundem-secom, fazem-se com e eclodem – como desabrocha uma flor, que é feita de terra, água, sol, ar, para além de pétalas, caule, folhas e colorido. E o mais importante: que errar, algo que aprendi com a pedagogia, é o único caminho da expressão. Mas, como resisto a ele, estou aprendendo, e só tem sido possível permitir o erro à medida que encontro guias que me ensinam a confiar e sustentar comigo a beleza do erro.

Agradeço ao universo pelo movimento, pela circulação de informações e trocas e pelas pérolas presentes – guias que tenho encontrado na caminhada da vida.

Nesse sentido, ser Mulher de Pedra, ser negra, mulher, amar outra mulher negra, ser brasileira, carioca, frequentar as bordas, ser borboleta – ora casular, ora esvoaçante –, são marcas que minha pele não deixa calar. Marcas impressas em meu corpo e me fazem caminhar, dão forma e ritmo a meu movimento. Assim como algumas pessoas e instituições que pelo caminho vão lapidando meu olhar. Evoco aqui a força, a beleza e a potência de algumas dessas em forma de reverência:

À Prof.ª Dr.ª Iolanda de Oliveira, gratidão pelo olhar profundo que parece me transpassar, pelo acolhimento, pelo tempo, pela afirmação: “Vamos Conseguir!”. Agradeço também ao PENESB e a todo seu grupo de pesquisadores, em especial a Gracyelle, Lindalva e Elson pelo carinho.

À Leila e Sérgio só posso dizer obrigada por me pôr nessa caminhada!

À companheira Roberta, espero um dia saber retribuir. Obrigada por esse exercício de descoberta, grata pela linda parceria!

Obrigada, Thais, Kéo, Vaanée e René, carinho é pouco perto do alimento que me inspiram. Família!

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Ao DEGASE sou grata por aceitarem e apoiarem minha aventura investigativa. Agradeço em especial à equipe da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire pelo total apoio, em especial à pessoa de Janaína Abdalla.

A Elionaldo Julião agradeço o carinho e incentivo, que mesmo quando eu já tinha me desviado da academia, veio soprar a meus ouvidos tramas que só hoje posso definir.

Gratidão a Ruth Torralba por nossos cura-encontros-vertigem em que Fiar Com o outro tem sido o aprendizado!

À Natacha Nicaise, eterna entusiasta e incentivadora da vida acadêmica, obrigada! A Dominic Barter, Sissi Mazetti e Adriana Bassi por tornarem meu ano de 2016 um mergulho e uma descoberta em que a prática profissional foi alimentada de forma singular por um colorido brilhante e poético.

À Ana Flávia e aos queridos parceiros de Jogos em Cena, com vocês praticar o erro tem sido uma alegria!

Agradeço à política de incentivo à pesquisa e, sobretudo, ao apoio da CAPES. Pouso essas palavras em forma de oferenda a todas e todos, nomeados aqui ou não, corresponsáveis pelo fluir de gestos, atos e pensamentos que aqui os convido a descobrir.

“As oferendas devem ser absorvidas por outra faculdade – o coração, a alma, a intuição, ou como você quiser chamar – e respeitadas, nutridas, incorporadas.”

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“Um direito que poucos intelectuais se preocupam em reivindicar é o direito à errância, à vagabundagem.”

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VIDAL, Lívia de Souza. A justiça restaurativa no sistema socioeducativo: análise de uma experiência. 2017. 157p. Dissertação (Mestrado em Educação) – Faculdade de

Educação, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2017.

RESUMO

O presente trabalho consiste em analisar a experiência das Rodas de Conversa como prática socioeducativa à luz dos princípios da Justiça Restaurativa e Comunicação Não-Violenta. Essa experiência valorizou o potencial e o protagonismo de jovens-adolescentes, ao buscar ultrapassar os rótulos e a identidade fechada de “infrator”, ao procurar “identificar suas necessidades”, “fomentar o diálogo e o entendimento” e comprometida em promover a “cura” (ZEHR, 2008, p. 199) de relações que foram quebradas no momento do ato “infracional” ou que já estavam quebradas anteriormente. Essa foi uma experiência realizada durante o ano de 2016, com um universo de vinte e três jovens-adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação no estado do Rio de Janeiro, envolvendo uma unidade feminina e uma masculina. O exercício de fala e de escuta, exercitados ao longo de treze encontros, culminou na participação de representantes do grupo de jovens-adolescentes, na condição de palestrantes, em dois seminários realizados pelo DEGASE, direcionados a profissionais e pesquisadores. Nesses espaços, os jovens-adolescentes compartilharam suas experiências e percepções sobre a socioeducação. A presente investigação buscou evidenciar os saberes que emergem desta prática transformadora, com ênfase na promoção humana dos seus destinatários.

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VIDAL, Lívia de Souza. The restorative justice in the socioeducational system – analyses of na experience. 2017. 157p. Dissertation (Master in Education) – Faculdade de

Educação, University Federal Fluminense, Niterói, 2017.

ABSTRACT

The following work consists in investigating the contribution of restorative justice in order to educate teenagers and young people rehabilitating at DEGASE (Department in charge of socio educational actions in the State of Rio de Janeiro). Being the retributive justice the current practice in the scope of the socio educational process, arises in 2016 in this same institution, the proposal of an experience based on the principles of restorative justice moving on in a exceptional way from the traditional practice to a pedagogical work that migrates from the punitive character to the restoration of the relations with those who were penalized directly or indirectly because of their actions that put them in the “offender” situation. Following the orientation of the restorative policy, talk groups were held with young people, who also participated in two seminars promoted by the institution and open to the general public. In this research, it is intended to highlight the knowledge that emerges from this practice, insisting on the human aspect for those who are involved.

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LISTA DE SIGLAS

AMSEG Assessora às Medidas Socioeducativas e ao Egresso

CAI-BR Centro de Atendimento Integrado de Belford Roxo

CECEL Coordenação de Cultura Esporte e Lazer

CECIP Centro de Criação da Imagem Popular

CEDECA Centro de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente

CEMSE Coordenadora de Execução de Medidas Socioeducativas

CENSE Centro de Socioeducação

CNJ Conselho Nacional de Justiça

CNMP Conselho Nacional do Ministério Público

CNV Comunicação Não-Violenta

CREAS Centro de Referência Especializado de Assistência Social

CRIAAD Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente

CSINT Coordenação de Segurança e Inteligência

CSIRS Coordenação de Saúde

DEGASE Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro

DH Direitos Humanos

DIESP Diretoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas

DIPED Divisão de Pedagogia

ECA Estatuto da Criança e do Adolescente

EJLA Escola João Luiz Alves

ESGSE Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire

FUNABEM Fundação Nacional de Bem Estar do Menor

JR Justiça Restaurativa

LDB Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional

MEC Ministério da Educação

MP Ministério Público

MSE Medida Socioeducativa

NEAB-ND Núcleo de Estudos Afro-brasileiros no Novo DEGASE

ONU Organização das Nações Unidas

PACGC Professor Antônio Carlos Gomes da Costa

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PIA Plano Individual de Atendimento

PPI Projeto Pedagógico Institucional

SGD Sistema de Garantia de Direitos

SDH Secretaria Especial de Direitos Humanos

SEEDUC Secretaria de Estado de Educação

SIAD Sistema de Identificação de Adolescentes

SINASE Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo

SSE Sistema Socioeducativo

UNICEF Fundo das Nações Unidas para a Infância

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LISTA DE FIGURAS

Figura 01 - Mapa das unidades socioeducativas do DEGASE por municípios no estado do

Rio de Janeiro ... 35

Figura 02 - Organograma Estrutura Administrativa do DEGASE- 2013...39

Figura 03 - Roda de Conversa, data 05/09/2016 ... 98

Figura 04 - Roda de Conversa, data 05/09/2016 ... 105

Figura 05 - Roda de Conversa, data 05/09/2016 ... 109

Figura 06 - Roda de Conversa, data 10/10/2016 ... 113

Figura 07 - Roda de Conversa, data 10/10/2016 ... 122

Figura 08 - Roda de Conversa, data 17/10/2016 ... 127

Figura 09 - IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos, data 20/10/2016 ... 132

Figura 10 - IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos, data 20/10/2016 ... 134

Figura 11 - Roda de Conversa, data 07/11/2016 ... 138

Figura 12 - Roda de Conversa, data 07/11/2016 ... 140

Figura 13 - Roda de Conversa, data 21/11/2016 ... 142

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LISTA DE TABELAS

Tabela 01 - Unidades de Semiliberdade por cidade, sexo e capacidade. ... 36

Tabela 02 - Unidades de privação de liberdade do DEGASE por município, ... 37

Tabela 03 - Jovens-adolescentes do Rio de Janeiro em privação de liberdade por ano ... 42

Tabela 04 - Total de Jovens-adolescentes cumprindo MSE no DEGASE ... 43

Tabela 05 - Nível de escolaridade de jovens-adolescentes por sexo no DEGASE em 2015. ... 43

Tabela 06 - Participantes das Rodas de Conversa por idade, ato infracional, escolaridade e cor/raça ...94

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SUMÁRIO 1 1.1 1.2 1.3 1.4 1.5 1.6 1.7 2 2.1 2.2 2.3 2.4 2.5 2.6 2.7 2.8 2.9 2.9.1 2.9.2 2.10 3 3.1 INTRODUÇÃO ...

O DEGASE COMO INSTITUIÇÃO SOCIOEDUCATIVA ... A consolidação da política socioeducativa do DEGASE ... O que é uma Medida Socioeducativa (MSE)? ... O DEGASE e sua estrutura de funcionamento... Estruturas que compõem o DEGASE ... Perfil Estadual dos Jovens no SSE ... População atendida no DEGASE ... Perfil dos Jovens-adolescentes do DEGASE ...

JUSTIÇA RETRIBUTIVA E JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RECURSOS SOCIOEDUCATIVOS ... A forma Retributiva de cultivar a Justiça ... A Justiça Restaurativa ... Vestígios de Justiça Restaurativa em “sociedades aldeadas” ... Modelos de justiça restaurativa ... A Comunicação Não-Violenta e a Justiça Restaurativa ... Justiça Restaurativa no Brasil e no Mundo ... Pensando a Socioeducação a luz das discussões apresentadas sobre Justiça ... JR e o pensamento educacional ... A Justiça Restaurativa no DEGASE...

Primeiro momento: processos de formação continuada ... Segundo momento: programa de Justiça Restaurativa no DEGASE ...

Pesquisa-Ação Existencial e Justiça Restaurativa ...

A EMERGÊNCIA DE SABERES NO COTIDIANO

SOCIOEDUCATIVO ATRAVÉS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA ... Rodas de Conversa – IV Seminário de Formação dos Operadores

Socioeducativos ... 13 27 28 30 33 34 39 41 42 47 47 51 57 59 61 65 67 69 72 72 74 78 81 93

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3.1.1 3.1.2 3.1.3 3.1.4 3.1.5 3.1.6 3.1.7 3.1.8 3.2 3.2.1 3.3 3.3.1 3.3.2 3.3.3 3.4 3.4.1 4 O primeiro encontro (05/09/2016) ... O segundo encontro (12/09/2016) ... O terceiro encontro (19/09/2016) ... O quarto encontro (26/09/2016) ... O quinto encontro (03/10/2016) ... O sexto encontro (10/10/2016) ... Encontro extra (13/10/2016) ... Sétimo encontro (17/10/2016) ...

IV Seminário de Formação de Operadores ...

Fechamento das Rodas de Conversa (24/10/2016) ...

Rodas de Conversa – III Seminário Internacional Socioeducativo ...

O primeiro encontro de retomada (07/11/2016) ... O segundo encontro de retomada (21/11/2016) ... O terceiro encontro de retomada (28/11/2016) ...

III Seminário Internacional Socioeducativo ...

Finalização ...

CONSIDERAÇÕES SOBRE SABERES EM CONSTRUÇÃO ...

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 97 104 106 112 117 120 125 127 131 136 137 137 141 142 143 145 147 151

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INTRODUÇÃO

“É inútil determinar se Isidora deva ser classificada entre as cidades felizes ou infelizes. Não faz sentido dividir as cidades nessas duas categorias, mas em outras duas: aquelas que continuam ao longo dos anos e das mutações a dar forma aos desejos e aquelas em que os desejos conseguem cancelar a cidade ou são por elas cancelados.”

(Italo Calvino)

A presente pesquisa emerge de práticas pedagógicas a partir da minha atuação profissional compondo o corpo técnico do Departamento Geral de Ações Socioeducativas do Estado do Rio de Janeiro (DEGASE)1. Tais práticas dialogam com minhas experiências anteriores, em especial, com o período de graduação. Pedagoga no DEGASE desde 2012, atuei nos dois primeiros anos no acompanhamento de jovens-adolescentes que cumpriam medida socioeducativa de internação2 na Escola João Luís Alves (EJLA). Posteriormente passei a compor a equipe da Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire (ESGSE), que tem como missão principal a formação dos profissionais do DEGASE.

Em meu processo de formação, tive experiências que me fizeram adentrar por um universo que neste momento trago para o mundo acadêmico. Conhecer o DEGASE, saber onde e como são atendidos os jovens-adolescentes que cumprem medidas socioeducativas e me relacionar com os profissionais que atuam nesta política ampliou meu olhar sobre a cidade, sobre a juventude, particularmente a negra, e sobre a efetividade das políticas públicas dirigidas aos sujeitos nesta fase da vida. Nesse sentindo, parece-me que ainda será feita uma prática socioeducativa de positivação das potencialidades dos socioeducandos, na qual seja estabelecido um real diálogo com o propósito de investir na ampliação de suas experiências e de seu repertório ético e estético, a fim de consolidar valores que deem sólida sustentação a um projeto de vida salutar, visando à eliminação da criminalidade de seu leque de opções e à participação na construção de um projeto de sociedade baseado nos princípios da empatia, da solidariedade e da justiça social.

Desde a primeira etapa da minha formação acadêmica, graduação em Pedagogia, as favelas e seus moradores foram alvo de interpelações e curiosidade de minha parte, momento em que se iniciou uma relação com a Maré. Oriunda de outra periferia da cidade do Rio de

1 Instituição responsável pela execução das Medidas Socioeducativas de Internação e de Semiliberdade aplicadas

a jovens-adolescentes a quem se atribui envolvimento com a prática de ato infracional.

2

O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê sete diferentes tipos de Medidas Socioeducativas aplicáveis a adolescentes, de doze a dezoito anos de idade, que tenham praticado um crime, nomeado neste contexto ato infracional (ECA, Art. 103 a 125).

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Janeiro, Pedra de Guaratiba, pude de algum modo vivenciar experiências fora do eixo Centro – Zona Sul da cidade, considerado o cartão postal, onde se concentra a maioria dos equipamentos de cultura, educação, esporte e saúde, sem, no entanto, deixar de frequentá-lo. Visitávamos regularmente avós paternos que viviam na Tijuca (bairro classe “A” da zona norte) e avós maternos no Jardim Botânico (bairro classe “A” da zona sul), além de visitarmos espaços culturais com frequência, em decorrência de ser filha de artistas. Por outro lado, o bairro de Pedra de Guaratiba, apesar de periférico, e em minha infância ainda ser considerado integrante da região rural do Rio de Janeiro, não era afetado pelo “olhar criminalizante” e precarizado que experimentam os moradores de “espaços populares” no Rio de Janeiro, principalmente estigmatizados e frequentemente identificados como responsáveis pela violência urbana.

Abriremos um breve parêntese que nos permitirá compreender o que estamos entendendo por “olhar criminalizante” de livre inspiração nos escritos de Souza e Silva, (2003), Barbosa (2005) e Coimbra (2006). A pesquisadora Cecília Coimbra (2006) utiliza o termo “criminalização da pobreza” e o aborda a partir de um duplo viés científico e territorial. O viés científico resgata teorias racistas, dentre elas, a eugenia – teoria que toma vulto no início do século passado –, mas consolida relações deflagradas pelos estados-nação, em especial a exploração humana em sistema de escravidão, utilizando a mão de obra dos povos negros africanos. Teóricos eugenistas demonstram, das formas mais diversamente absurdas, uma hierarquia entre raças e defendem que os negros são os mais inferiores nessa escala. Segundo Coimbra, essa ideia se articula com o movimento higienista e com o tratado das degenerescências. O segundo viés trazido por Coimbra (2006), derivado do primeiro, aborda a “instituição/naturalização de territórios perigosos” – relação estabelecida entre criminalidade e pobreza. Nesse contexto, são efetivadas remoções de populações com à “eliminação das favelas sob a ótica da „ordem social‟, „segurança‟ e „higiene da cidade‟”.

No livro o “Espetáculo das Raças” de Lilia Schwarcz (1993), constatamos que a eugenia subsidia e orienta uma série de políticas públicas no Brasil das quais ainda vivemos os efeitos. Dentre estas, podemos citar: a construção das principais instituições de justiça, saúde e educação; a remoção de populações pobres dos centros urbanos; vacinação compulsória; a decretação de leis proibindo a dita “vadiagem”, prática de capoeira, práticas religiosas não católicas, o samba; dentre outras.

Voltando aos relatos do meu tempo de graduação, em que participei, na iniciação científica, do grupo de pesquisa nomeado “Educação e Trabalho em Favelas Cariocas”, coordenado pelo Prof. Dr. Diógenes Pinheiro, visitei alguns espaços, como o Chapéu

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Mangueira, Pavão Pavãozinho, Maré, entre outros, até então conhecidos apenas através dos noticiários. A relação que faço entre o meu território, as favelas e outros territórios nomeados “espaços populares” – termo que agrupa conjuntos habitacionais, periferias, entre outros –, segundo Souza e Silva et al (2008), é de que são territórios menos prestigiados no discurso que condecora a cidade do Rio de Janeiro com o título de “Cidade Maravilhosa” e, por conseguinte, são menos privilegiados na divisão dos recursos públicos e, consequentemente, na garantia do acesso a bens e a direitos humanos de modo geral. O discurso criminalizante associa a violência aos moradores desses espaços, sem considerar a omissão do Estado nesses territórios, dando margem à presença de grupos criminosos que afetam gravemente a vida dos moradores dos espaços populares. Lamentavelmente, esta situação compromete o processo de formação da adolescência e da juventude que, vivendo neste ambiente, a despeito de experiências positivas, invisibilizadas pelo discurso midiático que os moradores geralmente incorporam, são confrontados incessantemente com situações insuportáveis. Estes, tendo diante de si o mundo do crime, são passíveis de envolvimento, são vítimas de uma experiência de destituição de direitos em que a banalização da vida se faz presente.

A minha história não dialoga com essa violenta experiência. Entretanto, o descrédito/ desprestígio do potencial local se faz presente, ainda que de outra maneira, e interfere na construção das relações sociais e construção de identidades.

Em minhas incursões aos espaços populares, tive um primeiro contato, mesmo que de forma indireta, com o tráfico de drogas, armas, vi jovens homens altamente armados e compreendi, através de algumas leituras e experiências, que “o juízo subjacente é que todos os jovens da periferia são potencialmente criminosos” (SOUZA E SILVA e BARBORA, 2005, p. 59). Em contrapartida, convivi com jovens universitários moradores daqueles espaços que, assim como eu, estavam buscando refletir, compreender e valorizar outras linguagens ali existentes a partir de investigações sobre a sua própria realidade, projeto que veio a dar origem ao hoje conhecido Observatório de Favelas, situado na Maré.

Neste percurso, faz parte importante da minha formação o contato estabelecido com a riqueza e com tantas possibilidades existentes nas favelas: projetos sociais, agenda cultural diversificada, comércio local ativo, com soluções econômicas criativas, a proximidade entre famílias e vizinhos, ruas ocupadas etc. As práticas mencionadas e muitas outras além dessas, via de regra, não são reconhecidas nem valorizadas pela grande mídia e pelo poder público. Essa proximidade e construção de olhar crítico me permitiram identificar em meu próprio território potencialidades e experiências antes não valorizadas.

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jovens-adolescentes internos, tive a oportunidade de atuar na unidade socioeducativa3 Escola João Luís Alves (EJLA), que atende jovens-adolescentes que cumprem medida socioeducativa de internação e está situada na Ilha do Governador. Naquele período, foi possível avaliar que as ações pedagógicas na socioeducação4 estão, em geral, voltadas para a escolarização e a preparação para o mundo do trabalho, apesar de existirem muitas atividades culturais e oficinas complementares, “secundarizando o pleno desenvolvimento da pessoa e o preparo para o exercício da cidadania” (SAVIANI, 2010, p. 387). Já naquele momento pensava que era essencial oferecer mais ferramentas para que os jovens-adolescentes pudessem explorar suas potencialidades e se descobrir, chegando ao pleno exercício de cidadania que, segundo Saviani, seria “conduzir cada indivíduo até a condição de ser capaz de dirigir e controlar quem dirige”.5

A atuação pedagógica então girava em torno do incentivo à escolarização, mesmo que o meu desejo e a proposta de trabalho tendessem a uma prática diferenciada, ou melhor, a uma prática escolar que fosse além do ensino de conteúdos e da progressão pouco ou nada comprometida com os processos de construção, transformação e relação humana. Em outros termos: uma prática escolar que certamente estaria mais próxima de uma investigação dos reais desejos e predisposições dos jovens-adolescentes. Porém, ao acompanhar as avaliações do judiciário quanto à medida socioeducativa, que podia ser de manutenção, progressão ou extinção da medida, entendiam-se que elas estavam fortemente pautadas na escolarização pró-forma e não em um processo de escolarização que garantisse, de fato, um processo de construção de pensamento crítico, compromisso com o seu próprio processo de transformação e melhoria, assim como com o bem comum, em que se pudesse compreender como parte fundamental das relações sociais e ser responsável por sua transformação. Além da evolução do processo jurídico do adolescente e do processo socioeducativo serem orientados por uma participação satisfatória em um processo de escolarização pró-forma, também se avaliavam a participação e/ ou conclusão em processos de formação para o mundo do trabalho. Entretanto, sem um verdadeiro investimento nos jovens-adolescentes, no humano, em suas capacidades e potencialidades, estes propósitos ficam esvaziados de sentido. Do ponto de vista da educação progressista, que olha o ser em sua integralidade, podemos avaliar que o trabalho deixava a desejar e não estava de acordo com o paradigma do sujeito integral, proposto pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que pauta, em seu

3 Unidade socioeducativa ou unidade de atendimento nomeia o espaço físico onde é executada a política

socioeducativa.

4

A socioeducação surge a partir do ECA como uma política de natureza pedagógica que visa ao atendimento de jovens-adolescentes a quem se atribui envolvimento com a prática de ato infracional, ou seja, práticas ilícitas.

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terceiro artigo, assegurar “todas as oportunidades e facilidades, a fim de lhes facultar o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e dignidade” (BRASIL, 1990). O número elevado de jovens-adolescentes, acompanhados por cada profissional, oferece pouca oportunidade para o trabalho eminentemente pedagógico, atendendo quase que exclusivamente a exigências burocráticas de rotina.

A situação relatada me faz repensar o acompanhamento técnico e a escuta profissional que eu era capaz de oferecer naquele momento, não raro sendo “atropelada” por exigências burocráticas, tais como: as ferramentas utilizadas no cotidiano do atendimento técnico, o relatório, o Plano Individual de Atendimento (PIA) e relatórios técnico da pedagogia.

Hoje compreendo as entrevistas iniciais com os jovens-adolescentes e suas famílias como atos de violência, pelo menos da forma como vinham sendo realizadas, visto que, por maior sensibilidade e disponibilidade que tentava ativar naqueles momentos, o compromisso em recuperar a maior quantidade de informações, história de vida, experiências de formação e escolarização, em um breve espaço de tempo, não configurava uma relação humanamente suportável. Essa situação desconsidera pessoas que são constantemente convocadas a fazer relatos de suas histórias de vida, sendo frequentemente apontadas como responsáveis pelas mazelas sociais, em um contexto social que pouco lhes oferece estruturas de cuidado.

Em outubro de 2014, recebi o convite para trabalhar na Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire (ESGSE)6, o que foi uma oportunidade de estar em contato com as unidades socioeducativas de modo diferenciado, conhecer as diversas unidades do estado do Rio de Janeiro, conhecer abordagens diferenciadas, propor e construir trabalhos de formação em serviço junto com os colegas.

Pensando sobre a dinâmica de trabalho no DEGASE, a mudança de ambiente e setor de trabalho, como no meu caso, é uma prática institucional saudável. Penso que a carga de informações violentas com as quais lidamos cotidianamente nas unidades socioeducativas foi suavizada com a mudança setorial que privilegia agora reflexões e construção de saberes sobre a prática, desde que seja dentro de uma proposta voluntária e restaurativa. Inclusive o trânsito entre o trabalho realizado na ponta e na gestão da política socioeducativa poderia reduzir distâncias e impulsionar um comprometimento diferenciado.

Minha chegada à ESGSE culminou com a criação do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros no Novo DEGASE (NEAB-ND) e do Grupo de Trabalho que investigava as abordagens com as famílias e com o aprofundamento de temáticas como sexualidade, gênero

6 Oficialmente criada em 2001, através do Decreto nº 29.113, a Escola de Gestão Socioeducativa funciona como

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e justiça restaurativa. Todas essas experiências garantiram a melhoria da qualidade de trabalho, permitiram a inclusão do tema relações raciais, com a criação de espaços de formação e mobilização em torno da temática. Parar para refletir e olhar para o Departamento que atende a uma grande maioria de jovens-adolescentes negros e que possui boa parte do seu corpo profissional, sobretudo dentre os agentes socioeducativos, também negro, é essencial.

A proposta de acolhimento de famílias – Casa Mãe Mulher – existente na unidade socioeducativa Centro de Atendimento Integrado de Belford Roxo (CAI-BR), foi importante para que eu repensasse a minha abordagem. A Casa Mãe Mulher foi efetivada por atuantes no atendimento religioso nas unidades. Dentre elas está Sandra Santos, profissional do DEGASE, sem reivindicar uma identidade religiosa. Essa proposta realiza um real acolhimento das famílias, que consiste em colocar uma casa a sua disposição, evitando longas horas de espera, ao abrigo do sol ou da chuva, com alimentação, em local de espera adequado, com mudas de roupa para troca, em caso de necessidade, ou seja, com dignidade. A Casa é o local onde são acolhidas e recebidas as famílias dos socioeducandos, sem custo, sem nenhum questionamento sobre a sua situação e/ou acusação por suposta responsabilidade.O que pode parecer pouco, na verdade, é bastante revolucionário, em vista do que acontece nos dias de visita, na entrada da maioria das unidades, que não oferecem essa estrutura.

As temáticas de sexualidade, gênero e justiça restaurativa, que já vinham sendo abordadas nas formações realizadas pela ESGSE, foram aprofundadas entre 2015 e, principalmente, em 2016. As duas primeiras a partir da pesquisa Sexualidade e Adolescência na Contemporaneidade, coordenada pela Profa. Dra. Anna Paula Uziel, iniciadas em 2015, e abrangendo quatro unidades do DEGASE situadas em Bangu, na Ilha do Governador e na Baixada Fluminense. A abertura para a discussão de temáticas como a diversidade de gênero e sexualidade tem provocado a reflexão sobre identidades dentro do DEGASE, se pensar a necessidade de afeto e experiências sexuais que permanecem na invisibilidade e a inclusão de jovens-adolescentes trans7.

Em 2016, a Justiça Restaurativa toma um direcionamento diferenciado, extrapolando o espaço de formação teórica promovido pela Escola de Gestão Socioeducativa Paulo Freire, em que a dimensão prática e experiência se dá no DEGASE. A Justiça Restaurativa está em processo de consolidação no campo jurídico brasileiro como uma abordagem alternativa às práticas punitivas ainda em voga que configuram a Justiça Retributiva ou Criminal e que

7 Uma abreviação da palavra “transexualidade”, conceito discutido no cerne dos estudos de gênero, que diz

respeito à transitoriedade, ou melhor dizendo, à reivindicação de maior liberdade para a construção da identidade de gênero das pessoas, questionando a atribuição imediata de uma identidade de gênero que toma como critério o corpo e os órgãos sexuais da pessoa.

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também se evidenciam na socioeducação.

Nesse contexto, inscreve-se a iniciativa das Rodas de Conversa, experiência em análise neste documento. As Rodas foram realizadas em paralelo ao Programa de Justiça Restaurativa (JR) do DEGASE, ainda em construção, e percebemos que um diálogo estreito foi tecido com os princípios da Justiça Restaurativa.

A presente análise de experiência que traz para o campo acadêmico as Rodas de Conversa resulta de um processo que se inicia como prática profissional e é identificado ao longo do processo como experiência cientificamente legítima. Um estudo que emerge da experiência profissional e dialoga profundamente com a perspectiva metodológica de pesquisa-ação existencial proposta por Barbier (2004). A princípio o trabalho de pesquisa era direcionado para a investigação das potencialidades de jovens-adolescentes da unidade de internação feminina que cumpriam medida socioeducativa por ato infracional análogo a tráfico de drogas. Nossa hipótese inicial era que no processo socioeducativo no DEGASE as potencialidades e capacidades experimentadas no espaço de sociabilidade e interação cotidiano das jovens-adolescentes fora da unidade socioeducativa eram pouco valorizadas.

Entendemos ser a pesquisa-ação existencial a metodologia que melhor dialoga com as Rodas de Conversa, pois esta metodologia visa à transformação de uma dada realidade, mas essa transformação não é imposta nem colocada à revelia das pessoas envolvidas, muito pelo contrário, é no cerne das relações entre pesquisador e pesquisados, em um movimento mútuo de implicação e transformação, que ela emerge e se instaura. Barbier (2004), afirma que “não se trata tão-somente de uma pesquisa sobre a ação ou para a ação, mas de uma pesquisa em ação” (BARBIER, 2004, p. 81) em que todos se transformam. A noção de pesquisa-ação é qualificada como existencial, pois engloba duas dimensões pouco prestigiadas nos estudos sociais, mas que perpassam as relações sociais travadas no cotidiano: a dimensão do sagrado e a dimensão afetiva. E nesse sentido a proposta é que, pesquisadores e pesquisados, cada um possa ao longo do processo “tornar-se autor de seu próprio desenvolvimento espiritual no sentido amplo do termo” (ibdem, p. 115).

As Rodas de Conversa trazem dentro do DEGASE a oportunidade de experimentar as técnicas de escuta sensível, do protagonismo horizontal e compartilhado, da responsabilidade compartilhada, presentes tanto na pesquisa-ação existencial quanto na Justiça Restaurativa. E, nesse sentido, propõe-se uma prática socioeducativa em que seja estabelecido um real diálogo com os jovens-adolescentes de forma horizontal e criam-se pontes para uma relação verdadeira em que se sintam confortáveis para se expressar.

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engloba algumas abordagens metodológicas dentro de uma perspectiva qualitativa, tais como: análise de documentos e análise de dados; revisão bibliográfica e trabalho de campo, garantindo-nos um estudo empírico, que são as Rodas de Conversa.

As Rodas de Conversa foram realizadas com um universo de vinte e dois jovens-adolescentes em situação de privação de liberdade no DEGASE, de setembro a dezembro de 2016. E essa experiência pedagógica e restaurativa possibilitaram a participação de parte desse universo de jovens-adolescentes – como palestrantes – na programação de dois seminários organizados para profissionais e pesquisadores da política socioeducativa. Dessa experiência trazemos a descrição das atividades realizadas, trechos de falas dos pesquisados e fotografias dos encontros, registros produzidos por eles. O uso de material iconográfico neste trabalho se inscreve como uma oportunidade de dar a conhecer o corpo, o gestual, dar a conhecer a linguagem e a expressão corporal paralisada e fotografada como linguagem que compôs o universo daqueles encontros. Fotografavam-se mutuamente, ao longo dos encontros, e a partir das imagens também conseguimos nos aproximar da atmosfera que era composta naquele espaço-tempo.

Barbier (2004) nos traz ao conhecimento a noção de “pesquisador coletivo” e defende que sua prática pode e deve, no contexto da pesquisa-ação existencial, ser uma escrita coletiva,

o pesquisador profissional aceita desde o início os inconvenientes do sistema: o relatório não é apresentado sob uma forma rigorosamente acadêmica. Encontrar-se-ão trechos mais pessoais, às vezes ingênuos, ao lado de elementos descritivos e teóricos. A dimensão iconográfica pode ganhar bastante espaço no relatório: desenho e poemas são suscetíveis de nele encontrar lugar. Isso pode se chocar com “o hábito universitário” do pesquisador profissional que terá a tendência a pensar que isso não é sério, pois parece muito lúdico e nada demonstrativo em relação a seus colegas. (BARBIER, 2004, p. 105-106).

O uso das fotografias ainda nos dá a oportunidade de, nos limites deste documento, trazer um universo de coautoria. Barbier defende bastante o sentido de autorização, também vivenciado nas palestras proferidas pelos jovens-adolescentes. A autorização seria como uma consequência essencial da pesquisa-ação existencial, pois a autorização traz à cena a oportunidade de sermos todos autores, o protagonismo compartilhado, cada um ser uma liderança, ser reconhecido na sua singularidade e ter sua participação elevada à autoria/autonomia naquele espaço tempo. As fotografias revelam seu olhar, sua linguagem em relação ao processo realizado.

No atendimento socioeducativo essas experiências e essa riqueza também ficam invisíveis em função de uma prática que tende a olhar somente o “ato infracional” e reproduzir o equivocado olhar criminalizante em direção aos jovens-adolescentes. A

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invisibilidade da diversidade existente em cada território, o discurso que deprecia uma população por sua raça, pelo fato de ela morar em tal ou qual lugar, a concentração de investimentos públicos na parte nobre da cidade, corroboram para o esquecimento das pessoas, um descuido que não contribui para que as pessoas trilhem seus caminhos na busca de soluções coletivas para os problemas comuns, por exemplo, o da violência urbana que assola a todos de formas diversas.

Para falar de juventude-adolescência na cidade, de juventude-adolescência e criminalidade e de juventude-adolescência e protagonismo na socioeducação, faz-se necessário resgatar essa história pessoal-social, pois foi naquele momento da vida que pude sistematizar e compreender o quão grandioso é positivar algumas experiências vividas e compartilhar ferramentas que permitam ao outro repensar sua realidade de forma crítica.

Trabalhamos preferencialmente com os seguintes autores: Howard Zehr (2008) que orienta a proposta na perspectiva de conceituar Justiça Restributiva e Justiça Restaurativa (JR), com vistas à construção de práticas que nos permitam, de fato, “resolver as coisas”; Joaquim Barbosa Gomes (2001) os permitiu discutir o princípio da igualdade e medidas jurídicas e políticas públicas para promover a efetivação deste princípio.

Entretanto, é preciso afirmar que as Rodas de Conversa não foram inicialmente entendidas como campo de pesquisa. Por isso relatamos aqui memórias de uma prática que nos propomos a analisar à luz da Justiça Restaurativa, como uma proposta pedagógica que se inscreve no campo da pedagogia progressista, segundo Georges Sniders (apud OLIVEIRA e SACRAMENTO, 2016) e dialoga com a comunicação não-violenta, criada por Marshall Rosemberg, conceitos que trataremos no segundo capítulo.

Ressaltamos o reconhecimento do vasto campo de estudos na educação sobre didática e currículo que poderia certamente dialogar com a perspectiva da Justiça Restaurativa, estudos sobre Pedagogia Progressista e/ou transformadora. Entretanto, é no campo socioeducativo que as Rodas de Conversa, inspiradas em práticas Restaurativas, são realizadas. Sendo assim, centramo-nos nos estudos jurídicos para melhor dialogar com o campo socioeducativo investigado e dedicamos o primeiro capítulo a apresentação desse campo. Ficamos em dívida com a educação no sentido de dar a saber os encontros e desencontros entre a Justiça Restaurativa e a Pedagogia Progressista, um diálogo saudável, que merece ser aprofundado.

A Justiça Restaurativa é uma proposta que constitui alternativa ao sistema tradicional de justiça baseado em parâmetros punitivos e retributivos, em que o “autor” de ato infracional deve ser punido de acordo com o “crime” praticado com o objetivo de dissuadir a prática de

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novos atos. Na contramão desta proposta, podemos resgatar as falas de Dominic Barter8 sobre a JR, que pretende “restaurar as relações que foram descuidadas a partir da quebra de uma regra social” e que propõe um deslocamento grande, já que na justiça tradicional o acusado é punido e a vítima, abandonada no processo. As práticas restaurativas propõem círculos em que ambas as partes têm a oportunidade de se expressar e cuidar das relações que foram quebradas.

Inspiradas pela Justiça Restaurativa e pela Pedagogia Progressista, que orientam nossa formação e atuação pedagógica, eu e a pedagoga do DEGASE, Angélica Barbosa, lotada na Divisão de Pedagogia (DIPED), construímos uma proposta de atividade com jovens-adolescentes intitulada Rodas de Conversa, em que a promoção da escuta, a troca de ideias, a partir do confronto de visões e maneiras de se relacionar com o mundo foram estimuladas, visando à participação e à valorização da fala do grupo em dois Seminários institucionais que abordavam temas sensíveis à socioeducação. Durante o período de agosto a dezembro de 2016, estivemos envolvidas na construção e realização dessa atividade que nos propusemos a investigar. Um extenso relato desse trabalho está presente no terceiro capítulo deste documento.

Entendemos que se faz necessário tecer algumas considerações sobre o que estamos entendendo por juventude e adolescência. Reunimos algumas reflexões apoiadas em teóricos por nós considerados. O sociólogo Pierre Bourdieu (2002), em 1978, quando questionado sobre juventude, em contexto francês, afirmou que “le réflexe professionnel du sociologue est de rappeler que les divisions entre les âges sont arbitraires” (BOURDIEU, 2002, p. 143) (“o reflexo profissional do sociólogo é relembrar que as divisões entre as idades são arbitrárias” - livre tradução da autora). O DEGASE se inscreve em um contexto no qual é proposto um recorte etário em que se define e estabelece para quem é construída a política socioeducativa, para jovens-adolescentes. No processo de construção dos conhecimentos aqui apresentados, propomos o uso conjunto dos conceitos juventude-adolescência, pois entendemos que o termo “adolescente” garante o público específico atendido e “juventude” amplia para uma carga de experiências que extrapolam as frequentemente atribuídas a este recorte etário.

E a partir dessa afirmativa, o teórico vem discutindo os interesses sociais dessa definição, da divisão entre idades, questionando a quem isto interessa. E aponta que cada campo possui suas definições de juventude e velhice, configurando divisões, determinando uma ordem, impondo limites definidos, não sem disputas no campo social.

8As falas do especialista mencionadas foram proferidas em encontros de formação teórico-práticas no DEGASE,

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No senso comum, juventude pode ser reconhecida como uma categoria que representa o que é bom, o novo, fresco, possui algumas características que são endeusadas, como o tônus físico, a vitalidade, etc. Permanecer jovem, inclusive, se tornou um objetivo perseguido nos últimos tempos, em que se descobre a cada dia novas tecnologias para prolongar essa etapa da vida. Ao contrário, o envelhecimento se apresenta nessa lógica como um corpo que vai perdendo dinâmica e credibilidade na esfera social.

Tomando outro viés, juventude também permeia uma ideia corrente de uma fase de vida relacionada à transição, compreendida como a etapa anterior à maturidade, que carrega alguns signos negativos como rebeldia, “dominada por oscilações, perturbações, conflitos e confronto com questões existenciais mais diversas” (SIMÃO, 2013, p. 211), definições que podem ser atribuídas à adolescência, período compreendido dentro do recorte etário de juventude. Como podemos analisar, não existe consenso sobre as categorias em análise, “juventude” e “adolescência” são conceitos em disputa.

Mário Volpi, coordenador do Programa Cidadania dos Adolescentes do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) no Brasil, em palestra no DEGASE, em março de 2016, atenta para o fato de o sistema socioeducativo (SSE) ainda exercer uma “ação correcional repressiva e assistencial caritativa” na efetivação de uma política que deveria ser pautada no aprofundamento do projeto pedagógico e afirma ser urgente “ouvir os adolescentes”. Em sua explanação, apresenta três dimensões da adolescência: a interação, em que jovens-adolescentes têm necessidade de estabelecer relações para além de suas famílias e da instituição escolar, ampliando seu repertório social; a construção da autonomia; e a construção de identidade. Essas são dimensões que estão em consonância com o relatório da UNICEF sobre a Situação da Adolescência Brasileira de 2011, que defende a importância de se privilegiar uma

percepção ampliada sobre os importantes processos cognitivos, sociais, psicológicos, relacionais, participativos, de construção de identidade e autonomia, de interação e da diversidade de formas de viver essa fase da vida para reconhecer o direito de ser adolescente (UNICEF, 2011, p. 143).

Nesse sentido, o autor defende que é necessário que jovens-adolescentes tenham direito a essas experiências e aponta para a relação recorrente entre direito e dever, afirmando que direito está relacionado à responsabilidade, não a dever; e o dever, no caso, está relacionado a autoritarismo, obrigação e à ditadura. Uma explanação riquíssima que propõe pensar o público do DEGASE, e as/os jovens-adolescentes de fato em relação a sua humanidade, com acesso aos Direitos Humanos (DH).

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No campo socioeducativo, o recorte etário determina quem será atendido pela política. No entanto, para além de definições homogeneizantes que a priori conceituam quem é este ou aquele ser humano, podemos recuperar, no contexto dessa investigação, informações históricas. Podemos inclusive inscrever essas categorias dentre os questionamentos pautados por Bourdieu (2002), de modo a nos ajudar a construir uma percepção sobre adolescência e juventude, no campo investigado.

O recorte etário com que lida a política socioeducativa foi estabelecido em legislação, no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que surge em momento de redemocratização e dialoga com a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Trata-se de um marco legal que vem resguardar, em especial, aqueles que precisam e devem ser protegidos com prioridade absoluta na sociedade e que estavam expostos a situações irregulares tais como: abandono, abuso, trabalho forçado, entre outros. O mesmo documento que protege não se furta a possibilidades de responsabilização daqueles a quem se atribui a delinquência e a desordem social e precisam assim ser disciplinados, corrigidos, educados. O mesmo documento protege quem antes estava descoberto, mas não se furta de punir aqueles que não usufruíram da proteção e, em consequência, cometeram as impropriamente denominadas “infrações”.

Em contexto brasileiro, especificamente o carioca, o geógrafo Mário Pires Simão (2013) apresenta um estudo sobre jovens moradores de favelas e suas ações, criações e comunicações e afirma que os estudos sobre juventudes são importantes para que possamos ir além das tipologias homogeneizantes apresentadas, propondo uma leitura para além da interpretação linear da vida que segue o “ciclo ternário” (SIMÃO, 2013, p. 211), sustentado pela ideia de passado, presente e futuro. O autor chama atenção para uma visão mais complexa de juventude e, a partir de seu interesse geográfico, evidencia diferença na ocupação e experimentação da cidade e estuda esse corpo jovem no espaço e suas experiências culturais.

O autor destaca que a juventude investigada não é absorvida como a juventude sonhada, que destacamos anteriormente, como pode ser e é o caso, em outros contextos. À juventude moradora de favelas atribui-se uma visão depreciativa, carregada pela imagem da falta apresentada por Souza e Silva & Barbosa (2005), em que os discursos midiatizados sobre as favelas enfatizam todas as características negativas do que nomeia espaços populares, as favelas, comparando esses territórios com bairros que gozam de serviços de base (esgoto, eletricidade, entre outros). Esse discurso é também utilizado para medir outras diferenças, tais como, os arranjos familiares, o acesso a bens culturais, o envolvimento com ações criminosas, entre outras. Esse jovem é facilmente encontrado em contexto socioeducativo.

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Em sua pesquisa, Simão (2013) pôde acompanhar trajetórias de jovens que se opõem a essa construção, da “falta”, que estão produzindo conteúdo em seus espaços, relacionando-se culturalmente com e na cidade, que se organizam politicamente, inclusive valorizando seus territórios.

Os termos adolescência e juventude são usados no campo em referência às documentações legais, formulações políticas que se estabelecem no Brasil com o objetivo de resguardar a humanidade e a integridade dessa etapa da vida. Entretanto, carregam outras leituras menos ou mais abrangentes. Optamos pelo uso de “juventude” pela sua abrangência e sua relação mais evidente com as implicações sociais e “adolescência” com categorizações biológicas e psíquicas, além de desenhar o grupo etário atendido pela política socioeducativa. Seguindo as proposições de Simão (2013), podemos atentar para a ideia de que juventude não é um estado vivido de forma homogênea e apreendido socialmente de maneira unicamente positiva, e, sendo assim, precisamos olhar cada ser, cada grupo, de forma singular. O mesmo pensamento se aplica quando utilizamos o termo “adolescência”.

Entretanto, as análises dos dois autores nos ajudam a pensar que, para além dessa proteção, definimos uma maneira de ver, determinamos ou prescrevemos, “manipulamos aspirações”, como diz Bourdieu (2002), em relação a esse grupo. A escola parece ser um espaço em que essas aspirações, expectativas da sociedade em relação à juventude se evidencia. Os professores, diretores, políticos, desenham, prescrevem, determinam caminhos entendidos como irremediáveis e essenciais para a construção da vida produtiva, para a vida em sociedade. Mas parece que os alunos estão reivindicando outra proposta. Os não jovens, nesse caso, gozam de poder na construção de projetos de futuro que estão para além da experiência apresentada ou vivida pelo educando.

Em decorrência das análises apresentadas e considerando que os sujeitos desta pesquisa não apresentam em seus comportamentos as características biológicas, psíquicas e sociais de maneira fragmentada, e sim como um todo na complexidade de suas experiências, utilizaremos neste trabalho a expressão “juventude-adolescência”, com o propósito de tratar esses sujeitos em sua totalidade.

Carrano (2002), em estudos anteriores a Simão (2013), investiga acerca dos jovens na cidade de Angra dos Reis, recolhe encontros significativos e expõem conteúdos criados em uma dinâmica cultural que se desenha na vida noturna da cidade por meio das trocas entre os jovens. Faz esse exercício diverso, repensa o espaço da escola e, ao mesmo tempo acredita que esta instituição deve sintonizar-se “com a busca dos sentidos culturais e a compreensão das necessidades e desejos da juventude” (CARRANO, 2002, p. 213). Apresenta-nos leituras

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de uma juventude que não se enquadra em uma determinada faixa etária, mas que experimenta uma sociabilidade ativa e potente nos espaços da cidade, produzindo conteúdos e conhecimento que, segundo o autor, a escola não deveria ignorar, tal como o espaço da festa, como um espaço do imprevisível, em que relações são tecidas e alimentadas.

Será que a juventude atendida nas unidades socioeducativas apresenta uma experiência homogênea, que tem a ver com a da infração por eles cometida? Ou com o descumprimento das regras estabelecidas pela sociedade? Ou será que estamos mais uma vez diante de uma leitura diferenciada das regras, das aspirações e dos pré-conceitos forjados no cerne de uma sociedade? Parece-nos que o estudo que aqui se apresenta, pautado na adolescência-juventude, que cumpre medida socioeducativa de internação no Estado do Rio de Janeiro, busca colher experiências significativas latentes nas relações sociais do público atendido.

Do alto da laje também os jovens podem ter o que chama de “visão” de sua comunidade. E eles desejam, sobretudo, “passar a visão” do que é isso e romper com os ditos recorrentes e as representações sensacionalistas e distorcidas de sua realidade. A laje alimenta o pertencimento. Dela sentem a que pertencem e estabelecem domínio do que lhe é pertencido. (SIMÃO, 2013 p. 219).

Nossas reflexões sobre adolescência-juventude se iniciam aqui com um dos trechos finais da tese de Simão, que nos remete a um vocabulário e a uma experiência que se assemelham a dos jovens-adolescentes com os quais realizamos esse estudo, no campo socioeducativo. Essas reflexões e reivindicações de uma fala e de uma presença que se quer qualificar pauta também nosso interesse em reconhecer as trocas significativas e ir para além da caracterização da pessoa pela “infração” cometida, buscando assim novas maneiras de se relacionar, pautadas na valorização de conhecimentos positivos dos socioeducandos.

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1. O DEGASE COMO INSTITUIÇÃO SOCIOEDUCATIVA

A política socioeducativa vem se organizando há alguns anos, tendo em vista o atendimento de jovens-adolescentes que tenham praticado ato considerado infracional. Como veremos adiante, essa política não é recente, assim como não é recente a prática de infração por parte de adolescentes. E nesse campo a resposta aos delitos cometidos por jovens-adolescentes sempre fora o encarceramento; as casas correcionais estiveram presentes em nossa história desde o período imperial, como um espaço que, além de receber adultos, também tinha como usuários jovens-adolescentes.

O formato atual, com uma política específica desenhada para um recorte etário, que leva em consideração a ideia de um processo de maturação diferenciado, de acordo com a faixa etária da pessoa, consolida-se no início do século XX. O recorte etário, acompanhado da construção da ideia de infância e, posteriormente, adolescência e juventude, veio redesenhar a política, impondo uma abordagem diferenciada aos nomeados menores de idade, ou seja, aqueles que ainda não alcançaram a maioridade penal9, mas que tenham sido flagrados infringindo a lei, nascendo, assim, a política hoje nomeada socioeducativa.

Atualmente, sob a perspectiva inaugurada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), a socioeducação é orientada pela “proteção integral da criança e do adolescente” (BRASIL, 1990, Art. 1º). Trata-se de uma visão que compreende a pessoa em suas dimensões “física, mental, moral, espiritual e social” (ibdem, Art. 3º). Na socioeducação essa compreensão aponta para a garantia do acesso aos direitos (educação, segurança e justiça, saúde e assistência social) e para o respeito à “condição peculiar (...) do adolescente como pessoa em desenvolvimento” (ibdem, Art. 6º), visando superar a institucionalização assistencialista ou aquela pautada essencialmente na punição e na disciplina.

Segundo as diretrizes nacionais apresentadas pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA) para implementação do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), os programas de atendimento socioeducativo deverão buscar a prevalência da ação socioeducativa sobre os aspectos meramente sancionatórios e punitivos que durante décadas caracterizaram as instituições responsáveis pelos jovens-adolescentes envolvidos na prática de ato infracional:

As medidas socioeducativas possuem em sua concepção básica uma natureza sancionatória, vez que responsabilizam judicialmente os adolescentes, estabelecendo

9 A partir dos dezoito anos de idade, as pessoas podem ser julgadas criminalmente por seus atos, passando a ser

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restrições legais e, sobretudo, uma natureza sociopedagógica, haja vista que sua execução está condicionada à garantia de direitos e ao desenvolvimento de ações educativas que visem à formação da cidadania. Dessa forma, a sua operacionalização se inscreve na perspectiva ético-pedagógica. (BRASIL, 2006, p. 17)

A lei do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), Lei de nº 12.594/2012, institui e regulamenta a execução de medidas socioeducativas em âmbito nacional, de acordo com a perspectiva anunciada pelo ECA e pelo CONANDA. Sendo assim, as medidas socioeducativas devem visar ao alcance dos seguintes objetivos:

I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível incentivando a sua reparação;

II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento de seu plano individual de atendimento; e

III - a desaprovação da conduta infracional efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de privação de liberdade ou restrição de direitos, observando os limites previstos em lei. (BRASIL, 2012, Art. 1º - § 2º).

Essas medidas possuem uma gradação sancionatória e socioeducativa, de responsabilização aplicada somente a adolescente sentenciados em razão do cometimento de ato infracional e que deve corresponder a gravidade do ato ilícito que se equipare a crime ou contravenção penal, como previsto no Art. 112 do ECA (BRASIL, 1990).

Essa gradação de complexidade na intervenção socioeducativa se inicia na: “I- advertência; II- obrigação de reparar o dano; III- prestação de serviço à comunidade; IV- liberdade assistida; V- inserção em regime de semiliberdade; VI- internação em estabelecimento educacional (internação)” (BRASIL, 1990, Art. 112).

Pelo próprio conteúdo das medidas, as ações que as compõem devem sempre envolver o contexto social em que se insere o adolescente, isto é, a família, a comunidade e o Poder Público devem estar necessariamente comprometidos para que se atinja o fim almejado de inclusão desse adolescente.

O DEGASE executa as duas últimas, que dizem respeito, respectivamente, a restrição e a privação de liberdade.

1.1 A consolidação da política socioeducativa do DEGASE

O DEGASE foi criado em 1993, no Rio de Janeiro, a partir do Decreto nº 18.493, de 26/01/93, dentro de um contexto histórico de mudanças na política voltada para infância e juventude no Brasil. Herdeiro de algumas dependências da Fundação Nacional de Bem-Estar do Menor (FUNABEM), órgão federal, o DEGASE ocupou prédios já existentes. O Centro Brasileiro para Infância e Adolescência (CBIA) participou, em âmbito nacional, da destituição

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da FUNABEM, acompanhando no Rio de Janeiro o surgimento do DEGASE, respaldado pelo então Ministério do Bem-Estar Social, com o objetivo de assegurar o cumprimento do ECA.

Em meio ao período de redemocratização, respaldado pelas políticas voltadas para os Direitos Humanos, o DEGASE, como as demais instituições que estavam sendo redesenhadas, defendeu uma proposta de mudança e superação das práticas anteriores em seu caráter punitivo. Realiza o primeiro concurso para composição do corpo profissional em setembro de 1994.

Ao longo dos últimos vinte e dois anos, o DEGASE realizou obras de readequação institucional (construção de novas unidades e reforma de unidades já existentes). O DEGASE investe em políticas de formação continuada, assim como na formulação de documentos institucionais orientadores do trabalho socioeducativo, planejamentos e projetos.

Somente em 2007, como podemos acompanhar na pesquisa publicada por Lopes (2015), houve atribuição de orçamento específico para a execução da política socioeducativa, no Estado do Rio de Janeiro, para o DEGASE, orçada em R$ 13 milhões (treze milhões), sendo então seguidas as exigências estabelecidas no SINASE e no ECA. Pode-se dizer que a construção da nova política socioeducativa se aprofunda neste momento.

Dentre as ações nos últimos dez anos, destacam-se: a reforma geral da unidade Centro de Atendimento Integrado de Belford Roxo (CAI-BR), em 2007; reforma de dez unidades de semiliberdade e duas de internação entre 2010 e 2011.

A Escola João Luiz Alves, unidade de internação situada na Ilha do Governador, prédio que data do início do século passado e que faz parte da herança lograda pela FUNABEM, sofre reformas, recebendo divisão de antigos dormitórios grandes, que acolhiam número importante de jovens-adolescentes, que são transformados em alojamentos com capacidade para atender até quatro jovens-adolescentes com lavabos em seu interior.

Em 2012, a unidade de internação feminina é inaugurada após passar por adequação total de seu espaço físico, deixando de ser chamada Educandário Santos Dumont, passando a ser denominada Centro de Socioeducação Professor Antônio Carlos Gomes da Costa (CENSE PACGC).

Respondendo ao projeto de regionalização da medida de privação de liberdade, realizado a partir de 2013, foram construídas unidades nas cidades de Volta Redonda e Campos dos Goytacazes. O projeto inicial previa ainda a construção de mais duas unidades de internação, uma no município de São Gonçalo e uma na Região dos lagos, ainda não realizado. O ECA define que o jovem-adolescente privado de liberdade tem direito a “permanecer internado na mesma localidade ou naquela mais próxima ao domicílio de seus

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pais ou responsável;” (BRASIL, 1990, Art. 123 - VI).

A sistematização e a produção de documentos institucionais importantes, concomitante à atribuição do orçamento, iniciaram-se em 2006 com o fomento à produção de projetos políticos pedagógicos das unidades socioeducativas. Documentos institucionais foram consolidados após 2007, tais como o Projeto Pedagógico Institucional (PPI) e o Plano de Atendimento Socioeducativo do Governo do Estado do Rio de Janeiro (PASE) em 2010, e o Caderno de Alinhamento Estratégico em 2011.

O ano de 2008, segundo Lopes (2015), foi um momento de significativas transformações no Departamento, em que a autora cita fatos que parecem adensar o processo de consolidação da política socioeducativa e evidenciam resistências. Destacam-se a realização de duas grandes pesquisas10 no interior do Departamento, a inauguração de novo

espaço físico da Escola de Gestão Socioeducativa, que recebe neste ano o nome Paulo Freire, reforma da unidade socioeducativa CAI-BR, construção do alinhamento estratégico institucional com formação coordenada pelo renomado Professor Antônio Carlos Gomes da Costa. Em meio a essas ações tão positivas, podemos destacar situações menos louváveis, tais como, rebelião com fuga, resultando na morte de um jovem-adolescente na EJLA e a autorização de aquisição e uso de equipamentos de armas não letais.

Vale destacar que o DEGASE integra, neste mesmo ano de 2008, a partir do mês de junho, a estrutura da Secretaria de Estado de Educação (SEEDUC). Após ter passado por diversas estruturas entre 1994 e 2008, passa a integrar a SEEDUC, o que em princípio pode ser analisado como um movimento de fortalecimento do caráter educativo da política socioeducativa. No Brasil o DEGASE ainda é o único órgão socioeducativo a compor uma Secretaria de Educação. Podemos observar que na prática o DEGASE atuou de forma autônoma e que nos últimos três anos um diálogo mais efetivo vem sendo construído. Entretanto, essa organização institucional tem permitido afirmar e defender a finalidade educativa e dar solidez a esta.

1.2 O que é uma Medida Socioeducativa (MSE)?

O ECA define ato infracional como análogo ao “crime ou contravenção penal” (BRASIL, 1990, Art. 103) e explica que, por serem crianças e jovens-adolescentes

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A pesquisa “Pescadores de Homens: o Perfil da Assistência Religiosa do Rio de Janeiro”, realizada pelo Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER), e a pesquisa sobre “Perfil das Relações Humanas e Institucionais do Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro”, realizada pelo próprio DEGASE.

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“penalmente inimputáveis” (ibdem, Art. 104), a prática de ato infracional por pessoas que possuem entre doze anos (completos) até os dezoito anos de idade é passível de cumprimento de MSE. Fica especificado que a MSE corresponderá à “gravidade da infração”.

O DEGASE não determina quem deve cumprir uma MSE, quanto tempo fica e quando será liberado do Sistema Socioeducativo. Essa avaliação é feita em conjunto pela Defensoria Pública, pelo MP e pelo juizado. No Artigo 106 do ECA figura que “Nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade jurídica competente” (BRASIL, 1990).

Nesse sentido o DEGASE se responsabiliza pelo jovem e pelo atendimento que melhor corresponda a seu processo de desenvolvimento e proteção integral, de acordo com prerrogativas previstas em leis para a política socioeducativa. Podemos citar notadamente a Lei do SINASE (BRASIL, 2012) determina que:

Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:

I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto;

II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de auto-composição de conflitos;

III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas;

IV - proporcionalidade em relação à ofensa cometida;

V - brevidade da medida em resposta ao ato cometido, em especial o respeito ao que dispõe o art. 122 da Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente);

VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente;

VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida;

VIII - não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria ou status; e

IX - fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo. (BRASIL, 2012).

E podemos destacar algumas especificidades da MSE de internação, contexto no qual se encontram os participantes das Rodas de Conversa. Essa medida deve ser executada em instituição educacional e:

(...) só poderá ser aplicada quando:

I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;

II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;

III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta (BRASIL, 1990, Art. 122)

Referências

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