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2. JUSTIÇA RETRIBUTIVA E JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RECURSOS SOCIOEDUCATIVOS

2.4 Modelos de justiça restaurativa

A leitura das práticas como o círculo de cinzas descritas no livro de Sobonfu Somé (2003) nos provoca indagações sobre como funciona na prática a Justiça Restaurativa. O VORP, citado por Zehr (2008), é uma experiência que permite nos aproximarmos dessa efetivação, pois sabemos que as partes envolvidas em um conflito se encontram e são convidadas a uma proposta de construção de um acordo, a partir de um consenso, quiçá uma reconciliação. Lançaremos mão de algumas especificações propostas por Kay Pranis (2010), que coordenou a Justiça Restaurativa no Departamento Correcional de Minessota, entre 1994 e 2003, atuando agora como consultora. E complementaremos a compreensão sobre essa prática com base nos estudos de Marshall Rosemberg (2006), divulgados no livro “Comunicação Não-Violenta: técnicas para aprimorar relações pessoais e profissionais”.

Sobonfu Somé (2003) compartilha uma descrição detalhada que nos permite estar lá e entrar em contato com as práticas de resolução de conflito em uma aldeia Dagara. Por meio de seus escritos, podemos imaginar o ritual do círculo de cinzas. Sabemos da presença do conselho e da comunidade, descreve-nos onde senta a pessoa, uma das partes envolvidas no conflito, que solicitou o círculo, que ela convida a outra parte a sentar-se com ela, que é proposta uma fala sem julgamento e que, além disso, pessoas da comunidade podem se pronunciar e apoiar o processo de resolução. Somé (2003) também qualifica o conflito como uma oportunidade, como uma dádiva, como uma abertura para algo que não estava sendo cuidado e que precisa ser ouvido. Múltiplas informações são compartilhadas e podemos construir esse universo.

Os casos do VORP relatados no livro “Trocando as lentes” visam sustentar a eficácia e a validade de processos restaurativos no cerne da justiça criminal, e a escrita de Zehr alcança

esse propósito de modo contundente. Neste documento temos pistas de como acontece a Justiça Restaurativa no âmbito penal, mas nos faltam elementos para que possamos compor e concretizar os procedimentos que levam a “corrigir as coisas”.

Kay Pranis (2010) possui alguns escritos sobre círculos restaurativos que pontuam de modo sistematizado e prático uma forma de vivenciar práticas restaurativas no campo da justiça e pontua que os processos restaurativos “são utilizados também depois da condenação como parte do processo de cura ou reintegração à comunidade” (PRANIS, 2010). Fica claro que a experiência restaurativa pode acontecer antes, durante ou depois de um processo jurídico e em diversos formatos.

Em palestra no Brasil em 2010, para a “Justiça para o Século 21”, elenca tipos possíveis de práticas circulares e como funciona a dinâmica, segundo sua abordagem, e afirma que “o círculo é um espaço intencional concebido para apoiar os participantes permitindo que tragam à tona o „melhor de si‟” (PRANIS, 2010). Nomeia o procedimento restaurativo de círculo e pontua que existem diversos tipos de círculo. Concentrar-nos-emos neste primeiro momento naquele que corresponde à resolução de conflito no âmbito jurídico, nomeado de Círculos de Construção de Paz. Para iniciar sua descrição sobre o Círculo de Construção de Paz, faz referência aos princípios da JR assinalados por Zehr (2008) e recapitula os seguintes pontos: “foco no dano, identificação das obrigações, envolvimento de todos os afetados pela ofensa, utilização de um processo inclusivo e colaborativo” (PRANIS, 2010, p. 3).

Os Círculos de Construção de Paz prescindem do reconhecimento da existência do conflito e da participação voluntária ou consentida das partes. Isso se dá em encontros preparatórios, na experiência praticada no DEGASE, descrita adiante, foram nomeados pré- círculos e devem ser vividos por cada uma das partes envolvidas, com o intuito de prepará-las para o Círculo. Os Círculos de Construção de Paz são compostos pelas partes envolvidas diretamente no conflito, por apoiadores de cada parte nomeados por elas, membros da comunidade, por membros relevantes do sistema judicial e por facilitadores.

O Círculo tem como fundamento estrutural “valores que nutrem bons relacionamentos com os outros”, sendo assim, os participantes do círculo partilham valores que cultivam e consideram que podem contribuir ao longo do processo no cultivo de relações saudáveis. Os Círculos são realizados com base em alguns elementos estruturais: o estabelecimento de orientações – o próprio grupo reunido no círculo estabelece as regras de como deve acontecer aquele encontro; o uso do bastão da fala – um artifício utilizado neste tipo de prática para apoiar a fala e a escuta qualificada; a cerimônia – ritos que marcam o início e o término do círculo; a partilha de histórias – falas que permitem que as partes se vejam umas as outras em

sua humanidade e se envolvam com o processo; a presença do guardião/facilitador – “monitora a qualidade da interação” e a tomada de decisão consensual. Além disso, apresenta as características centrais, que são: o formato físico circular com o espaço livre dentro dele, que visa enfatizar a igualdade entre os participantes – “não há onde se esconder no círculo”–; e a liderança compartilhada, o facilitador/guardião está ali para cuidar do propósito daquele encontro, ajudar as pessoas a cultivar os valores por elas destacados, mas a liderança, as tomadas de decisão, a partilha ela circula entre as pessoas, circulando assim as responsabilidades, todos são responsáveis por aquela dinâmica.

Kay Pranis (2010) ainda destaca a existência de diversos modelos de círculo que podem funcionar a partir dos fundamentos, elementos e formato estruturais apresentados ou com leves alterações, citando os seguintes modelos: celebração, diálogo, aprendizado, construção do senso comunitário, compreensão, reestabelecimento, apoio, reintegração, tomada de decisão grupal, conflito, sentenciamento. Esses modelos, como podemos supor, podem acontecer no âmbito da justiça criminal e para além dela. Dentre os modelos citados destacaremos sua breve apreciação sobre o círculo de diálogo:

os participantes exploram uma questão ou tópico específico a partir de muitas perspectivas diferentes. Os círculos de diálogo não buscam consenso sobre a questão. Permitem que todas as vozes sejam ouvidas respeitosamente e oferecem aos participantes diversas visões para estimular sua reflexão. O Círculo de Diálogo não está voltado para um participante em especial. Em geral não requer preparação individual nem muito trabalho de bastidores (PRANIS, 2010, p. 14).

Pranis (2010) nos fala de comunicação grupal em que as pessoas compartilham o “melhor de si”, na perspectiva de nutrir valores que estimulem bons relacionamentos durante a dinâmica do Círculo, mas amplia a proposta circular afirmando que essa comunicação pode influenciar outras esferas da vida daquelas pessoas. Afirma ainda, que:

Não é suficiente usar a Justiça Restaurativa para os jovens transgressores. A filosofia de assumir a responsabilidade e corrigir os erros tem aplicação em todas as esferas da vida. É de suma importância utilizar abordagens restaurativas dentre os adultos das agências que trabalham com os jovens e com a comunidade como um todo. (PRANIS, 2010, p. 17).