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A Comunicação Não Violenta e a Justiça Restaurativa

2. JUSTIÇA RETRIBUTIVA E JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RECURSOS SOCIOEDUCATIVOS

2.5 A Comunicação Não Violenta e a Justiça Restaurativa

A comunicação que compartilha o “melhor de si” pode ser apreciada na abordagem nomeada Comunicação Não-Violenta (CNV), que destacaremos a seguir.

O norte americano Marshall Rosemberg, doutor em psicologia clínica, organizou em 1963 nos EUA uma proposta de comunicação baseada no ideal de um mundo em que as

necessidades das pessoas sejam atendidas, por meio do estímulo de relações baseadas na compaixão. Parte da ideia de que somos naturalmente compassivos e questiona porque pessoas se mantêm conectadas a compaixão mesmo em situações adversas, enquanto outras se desconectam dela. Em suas investigações percebeu que a linguagem e o uso das palavras tinham grande influência nesse contexto. Inspirado na ideia de não violência, de Gandhi, afirma ser este um “estado compassivo natural quando a violência houver se afastado do coração” (ROSEMBERG, 2006, p. 22) e constrói bases que nos ajudam a manter nossa fala e nossa escuta conectadas a essa entrega ao coração.

A CNV é baseada em quatro componentes: observação, sentimento, necessidades e pedido. Afirma que a CNV “fortalece a capacidade das pessoas se conectarem compassivamente consigo mesmas e com as outras, de compartilharem recursos e resolver conflitos pacificamente” (ibdem, p. 283). Podemos entender isso a partir de suas discussões sobre cada um dos quatro componentes. Rosemberg (2006) defende que precisamos estar conscientes de cada um deles diante de uma situação, tudo que é contrário considera comunicação alienante da vida.

A CNV propõe que há uma comunicação e uma linguagem que favorece a compaixão e nos conecta ao coração. Nessa proposta nos é proposto olhar o que está acontecendo sem fazer julgamentos moralizantes ou comparar com outra situação aquilo que está sendo vivido, apenas observar. Certamente teremos necessidade em atribuir um juízo de valor, sabemos o que é bom ou ruim para nós mesmos, mas Rosemberg (2006) faz ressalvas de quando queremos impor nossos padrões aos outros. Observar parece simples, mas geralmente estamos condicionados ao julgamento, ou seja, a uma “comunicação alienante da vida (que) nos prende num mundo de ideias sobre o certo e o errado” (ibdem, p. 38). Nesse sentido, analisamos o outro com base em nossos próprios valores, exigindo o comportamento que nos parece mais adequado e desvalorizando a sua maneira de reagir à vida. Podemos usar padrões externos para julgar nossas próprias ações, querer reagir à vida de acordo com padrões estabelecidos sem perceber o que nos condiz. Observar sem julgar, primeiro componente da CNV, apresenta de início um desafio marcante para nossas práticas diárias.

O segundo componente é o sentimento. O autor nos desafia a identificar e nomear nossos sentimentos diante do que observamos (como nos sentimos?). Pontua que pouco somos convidados a expressar nossos sentimentos no cotidiano. Em geral, quando somos convidados a expressar como nos sentimos diante de uma situação, expressamos nosso julgamento, despejamos nossas críticas, mas não expressamos nossos sentimentos. Expressar o que estamos sentindo geralmente é atribuído à fragilidade, e isso não queremos demonstrar;

opinamos mais facilmente do que expressamos nosso sentir: estou sentindo medo, sinto raiva etc.

As necessidades vêm junto com os sentimentos. Observamos a situação e identificamos como estamos sentindo, responsabilizamo-nos por nossos sentires, e o que fazemos desses sentimentos nos pertence, são nossas escolhas. Já entendemos que julgar o outro não é um caminho interessante para a CNV. Culpar o outro ou a situação por nossos sentimentos, assim como interpretar, criticar, também seriam atalhos alienantes de comunicação. O autor nos convida a escutar nossas necessidades e escutar as necessidades do outro, as necessidades que não estão sendo atendidas em determinada situação. O caminho é aceitar a responsabilidade de nossos sentires. O que os outros fazem ou dizem faz aflorar em nós o que profundamente sentimos e necessitamos. E sustenta a ideia de que temos algumas necessidades universalmente compartilhadas, tais como: “autonomia, celebração, integridade, interdependência, necessidades físicas, lazer e comunhão espiritual” (ROSEMBERG, 2006, p. 86-87).

Um alerta importante é que no caminho de responsabilização por nossos sentimentos precisamos estar atentos para as seguintes situações: a “escravidão emocional” – em que nos responsabilizamos pelo sentir do outro; o “estado ranzinza” – marcado por uma suposta indiferença ao sentir e as necessidades alheias; e a “libertação emocional” – que seria uma situação mais equilibrada, nos responsabilizamos por nossos sentimentos e buscamos atender nossas necessidades sem subjugar o outro, e percebemos que não somos responsáveis pelo que o outro sente. Entretanto a proposta defende o cultivo da empatia e da solidariedade, não podemos carregar, resolver, solucionar ou saciar por nossa vontade e desejo as necessidades alheias, mas podemos colaborar, ouvir, estar disponíveis e apoiar a caminhada de construção de uma comunicação não-violenta das pessoas com as quais nos relacionamos.

Rosemberg (2006) faz uma observação interessante a respeito das necessidades:

Não me surpreende saber que existe consideravelmente menos violência em culturas nas quais as pessoas pensam em termos das necessidades humanas do que em outras nas quais as pessoas se rotulam entre “boas” ou “más” e acreditam que as “más” merecem ser punidas. (ROSEMBERG, 2006, p. 40).

Como podemos acompanhar a CNV está totalmente conectada à proposta de JR. Atender as necessidades alheias, os padrões de sentimento e expressão alheios, seguir cartilhas de certo ou errado parece causar mais problemas que o contrário. O autor está nos autorizando a ouvir e a entrar em contato com nossas reais necessidades, para além das estratégias sociais que determinam o que deve ou não ser feito. Os padrões restringem nossa

expressão, nossa liberdade de escolha, nossa capacidade de nos conectar com o que verdadeiramente sentimos e por consequência saciar nossas necessidades. E nesse contexto cita o jornalista francês George Bernanos (apud ROSEMBERG, 2006, p. 45).

os horrores que já vimos, os horrores ainda maiores que logo veremos, são sinal não de que os homens rebeldes, insubordinados e indomináveis estejam aumentando, em número no mundo todo, e sim de que aumenta constantemente, o numero de homens obedientes e dóceis. (BERNANOS apud ROSEMBERG, 2006, p. 45).

O quarto componente da CNV é o pedido. Observamos, responsabilizamo-nos pelo que sentimos, identificamos nossas necessidades, “o que gostaríamos de pedir ao outro para enriquecer nossas vidas”. O autor defende que nossos pedidos serão mais facilmente atendidos quanto mais claros eles forem. Para tanto, nos aconselha a formular pedidos de forma positiva e direta. Alerta que exigências e imposições revestidas de pedido, que impliquem culpa e punição, terão menos sucesso no sentido de atender nossas reais necessidades.

Os quatro componentes da comunicação não violenta atuam tanto no campo da nossa expressão – nomeada pelo autor de “autoexpressão com honestidade” – quanto na relação com o outro, que seria a relação de “receber com empatia”. E a empatia que se precisa estabelecer na comunicação não violenta com o outro também exige que nos debrucemos sobre os quatro componentes da CNV. Define empatia como a “compreensão respeitosa do que os outros estão vivendo” (ibdem, p. 133), uma escuta que se faz com os ouvidos, com o intelecto e com a alma, que exige um esvaziamento de todos os sentidos, de todas as ideias pré-concebidas, que requer concentração e plena atenção na mensagem do outro. Aponta que geralmente reagimos ao que nos é dito, a uma reclamação, a uma confissão. Citando Holley Humphrey, elenca reações que geralmente não promovem empatia: “dar conselho, competição de sofrimento, ensinamento, consolo, contar uma história, encerrar o assunto, solidarizar-se, interrogar, explicar-se ou corrigir” (apud, ROSEMBERG, p. 135). E, nesse sentido, indica que o caminho adequado para receber com empatia e manter a empatia na relação é parafrasear, que seria uma forma de dar um retorno confirmando com a própria pessoa se entendemos e ouvimos suas reais necessidades, deixando que ela diga o que sente e o que precisa.

A Comunicação Não-Violenta apresenta contribuições para o campo da justiça restaurativa, mesmo sabendo que o campo da psicologia é um campo vasto e que possui saberes específicos ousamos destacar componentes da CNV compartilhados por Rosemberg (2006) com um público leigo das teorias específicas. Na justiça restaurativa, como vimos

anteriormente, as partes são convidadas a falar sobre o que aconteceu, e falar sobre isso implica inclusive compartilhar seus julgamentos, mas ter a oportunidade de confrontar sua versão com a do outro, identificar o que de fato aconteceu e observar o fato. As partes também são convidadas a compartilhar o que sentiram e a pontuar suas necessidades. Os acordos e as negociações, por meio de consenso, dar-se-ão a partir dos pedidos de ambas as partes. Sendo assim entendemos que essas duas referências teórico-metodológicas dialogam e se complementam.

Fica mais explícita essa interlocução quando apontamos que Dominic Barter, responsável pela supervisão das práticas restaurativas realizadas no DEGASE durante o ano de 2016, acompanhando e formando profissionais durante o ano, conduz formações sobre CNV no Brasil, além de ter trabalhado no projeto CNV, criado por Marshall Rosemberg, e ser revisor técnico do livro “Comunicação Não Violenta: Técnicas para aprimorar relações pessoais e profissionais” aqui apresentado.