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2. JUSTIÇA RETRIBUTIVA E JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RECURSOS SOCIOEDUCATIVOS

2.1 A forma Retributiva de cultivar a Justiça

No campo do direito penal é praticada a chamada justiça retributiva, que é pautada em dois pilares: a atribuição de culpa e a punição pela falta cometida. A socioeducação também lida com o direito penal, em alguma medida, visto que atua com infrações ao código penal, o crime considerado ato infracional. Caminhos jurídicos que estão enraizados no cerne da estrutura social, de acordo com um ideal de se alcançar relações justas, parecem não responder de fato a esse propósito.

No terreno jurídico, uma pessoa que tenha cometido um ato, considerado crime, e que seja imputável penalmente, ou seja, não goze de nenhuma especificidade que a absolva de tal responsabilidade, sendo julgada, cumprirá uma pena, pagará pelo erro cometido. Nesse contexto fica atribuída a culpa, que atestada legalmente, deve ser punida. A punição segue um princípio de proporcionalidade, em que se tenta medir qual pena corresponde ao dano cometido, sendo geralmente mensurada em termos de tempo.

Howard Zehr (2008), em seu livro “Trocando as Lentes”, nos convida a um caminho de descoberta da estrutura e da história da justiça retributiva, apontando que ela está baseada na determinação da culpa e na punição como resposta. O estabelecimento da culpa é feito em relação ao Estado. Como apontamos anteriormente, o jovem-adolescente atendido pelo DEGASE é considerado “infrator”, a culpa dele então foi ter desrespeitado as regras estabelecidas no código penal. Sendo assim, ele cometeu uma falta em relação ao Estado, entidade que preserva as regras comuns e determina que práticas são aceitáveis ou reprováveis na manutenção da ordem.

O autor nos orienta, em sua escrita, em direção à compreensão crítica sobre a justiça retributiva, nomeada por ele em alguns momentos justiça moderna, e a todo momento situada enquanto proposta de justiça que tem sua origem no contexto ocidental. Defende que a proposta retributiva nasce com a inquisição, visto que ali a corte concentrou o poder sobre a gestão de conflitos, substituindo as pessoas nessa esfera de negociação, e “a punição passou a ter precedência sobre os acordos” (ZEHR, 2008, p. 104). E, nesse contexto, “as prisões constituíam uma forma de dosar a punição em unidades de tempo, oferecendo uma aparência de racionalidade e ciência à aplicação da dor” (ibdem, p. 114)

Abdalla (2013), citando Foucault (2000), traz-nos uma compreensão sobre o sentido do castigo e a mudança de perspectiva da dor física para a punição pela disciplina, um outro tipo de dor:

Foi, portanto, o tempo em que se produziam novos dispositivos disciplinares com arranjos múltiplos. A disciplina, desse modo, foi sendo paulatinamente dissociada da ideia de suplício e de outras técnicas de punição consideradas cruéis, porque castigavam o corpo. Um desses dispositivos foi a criação da figura do infrator, associada à ideia de pena e punição. Para Foucault (2000c), a nova ideia de disciplina se encontrava vinculada à produção dos corpos dóceis, à definição dos recursos para o bom adestramento e ao panoptismo. (ABDALLA, 2013, p. 121)

O crime é assim cometido contra o Estado de direitos. O dano deixa de ser entendido como uma “violação de pessoas e relacionamentos” (ZEHR, 2008, p. 174) passando a ser uma violação das regras previstas no código penal, ou seja, uma abstração.

Quando identificamos algo como um crime, vários pressupostos básicos contribuem para formar nossa reação. Nós presumimos que: 1. A culpa deve ser estabelecida. 2. Ajustiça deve vencer. 3. A justiça passa necessariamente pela imposição de dor. 4. A justiça é medida pelo processo. 5. A violação da lei define o crime. (ibdem, p. 63)

Estamos falando de crime, punição, culpa e justiça. E nessa seara, o significado de justiça está mais pautado na retribuição com dor, não mais a física, por meio do cumprimento do “merecido castigo” que é a pena, ao dano causado à ordem coletiva. As pessoas punidas, penalizadas, sofrem um castigo que responde a algumas necessidades: sentir vergonha por estar em desacordo com o considerado “normal”; sofrer em consequência do mal cometido; rever suas atitudes e reestabelecer o respeito às regras, aos códigos sociais e servir de exemplo à sociedade para que outras pessoas não queiram passar por aquela situação.

Na prática retributiva, as partes não são convidadas a resolver seus problemas, a “corrigir as coisas”; culpado e vítima passam a ter um papel secundário durante o processo que é gerido e definido pelo Estado. O responsável pelo ato cometido não é convidado a tomar posicionamentos nem atuar em relação ao que cometeu. A partir do momento em que se define a culpa, outros decidem por ele o que melhor deve ser feito. Junta-se a esta constatação a provocação feita pelo autor de que as vítimas também não são cuidadas nesse processo, não tendo, portanto, suas necessidade ouvidas. Isso nos leva a compreender que o princípio de justiça de inspiração hebraica, pautado em “corrigir as coisas”, parece não estar sendo praticado, não estamos resolvendo, e parece que estamos promovendo novos problemas, também deixados sem solução.

Por outro lado, o dito culpado, suposto autor da infração, pode não necessariamente ser julgado pelo que de fato aconteceu. O autor sinaliza que em um procedimento jurídico

importa que as regras do jogo sejam cumpridas, importam mais os procedimentos do que os fatos reais. “A justiça retributiva é o que temos. Ela talvez não faça o que precisa ser feito, nem o que seus adeptos alegam que ela faz, mas ela „funciona‟ no sentido de que sabemos como operá-la” (ZEHR, 2008, p. 202).

Nesse sentido as circunstâncias em que a infração se deu e como se encontram as pessoas após o dano cometido parece não serem levadas em consideração, já que as necessidades das pessoas, em ambas as partes, não são consideradas. As relações interpessoais, as situações socioeconômicas, raciais e de gênero com a qual estavam envolvidas as partes não integram o julgamento, como se não estivéssemos falando de pessoas. Porém essas singularidades, essa experiência sociopolítica e cultural que nos fazem enquanto seres humanos, definem situações e gradam níveis de igualdade no acesso a direitos e no exercício pleno da cidadania. Quem comete um crime está infringindo a lei, passa a ser culpado, perde a credibilidade, passamos a não confiar mais nessa pessoa, suas atitudes e falas passam a ser invalidadas e ela passa a ser nomeada criminosa. Por outro lado, quem o sofre é silenciado, deixado de lado, não precisa mais fazer parte do processo e recebe como resposta ao sofrimento vivido a pena atribuída ao dito criminoso.

Zehr (2008) defende a ideia de que o “paradigma retributivo é uma forma específica de organizar a realidade” (ibdem, p. 83) e ainda afirma que dentre os problemas, conflitos e falta que cometemos cotidianamente, poucos são os casos que chegam às vias legais. A proposta do autor é ampliar nosso olhar e provocar uma relativização sobre a eficácia do sistema penal e o modo como sociedades ocidentais têm, em geral, lidado com o que considera crime. Nessa perspectiva de questionamento sobre a pequena quantidade de faltas que cometemos e que não levamos à apreciação judicial, afirma-nos que temos no cerne de nossas sociedades diversas estruturas e linguagens para efetivar a justiça e para lidar com a quebra de regras. Zehr (2008, p. 182) chega a afirmar que a “retribuição em geral deixa um legado de ódio” e dentre todas as opções experimentadas, configura-se como a menos eficaz na construção de um efetivo sentido de justiça.

Existem formas louváveis de resolução de uma quebra de regra como conversas, acordos, pedidos de desculpas e outras menos louváveis como linchamentos, chantagens, vingança, etc. Podemos ponderar que a justiça retributiva é uma maneira interessante de lidar com as faltas, pois tira o poder de decisão da esfera privada, que pode ser arbitrária, excessiva e muito violenta. O autor, pontua que a vingança ou as formas mais depreciativas de justiça não eram as práticas mais utilizadas. Zehr pontua que na proposta retributiva é retirado das pessoas a autonomia, o poder de intervenção e decisão no tratamento do caso, uma prática que

não contribui no processo de responsabilização e transformação. Na cena da resolução de conflitos, que se deram entre pessoas, o Estado entra na defesa da suposta vítima, sem nem mesmo ouvir suas necessidades, desejos e dificuldades e destitui com a mesma força o poder de ação, autoria e capacidade do acusado, que passa a ser definido a partir de seu crime, seu “erro”.

Complementando as reflexões sobre justiça retributiva, recorremos aqui a Joaquim B. Barbosa Gomes (2001), em especial a sua obra “Ação afirmativa e princípio constitucional da igualdade” em que questiona o princípio da igualdade previsto no artigo 5º da Constituição Federal. A ideia de que “todos são iguais perante a lei” (BRASIL, 1989), tratada pelo autor como “dogma liberal da igualdade formal”, dificulta e por vezes inviabiliza “a proteção e a defesa dos interesses das pessoas socialmente fragilizadas e desfavorecidas” (GOMES, 2001, p. 4). O autor subsidia a reflexão sobre as políticas afirmativas para contrapor esse postulado de igualdade, entendendo que tratar desiguais de forma igual só contribui para manter e ampliar as desigualdades já existentes. A igualdade formal é, assim, um instrumento de reprodução de desigualdades sociais em que pessoas sofrem e são oprimidas por sua identidade racial, de gênero ou sua condição econômica, habitacional, etc. Somos todos diferentes, não iguais, possuímos necessidades, características e condições de vida muito diversas e elas, geralmente, não são levadas em consideração no decorrer de um procedimento jurídico. Pensando que grande da população carcerária e socioeducativa goza de baixa condição econômica e é, em sua maioria, negra, geralmente habitante de territórios periféricos e com baixa escolaridade, podemos nos questionar sobre as consequências da justiça retributiva.

Nesse sentido, a justiça retributiva tem sido questionada em relação à eficácia na inibição do crime e, tendo em vista o vertiginoso crescimento dos dados de encarceramento no Brasil e as degradantes condições de permanência nas prisões que as pessoas encarceradas experimentam, parece não contribuir para uma real reabilitação. Ao contrário, podemos ponderar que esta prática que afasta vítima e “criminoso” contribui para ampliação das desigualdades, reforço de estereótipos e agravamento da sensação de medo. Uma experiência retributiva que produz medo e não promove justiça. Haja visto o número de carros blindados, os aparatos de alta segurança em casas, os condomínios fechados, o pavor que nutrimos em relação às crianças, em especial às negras, quer seja no ponto de ônibus da estação Central do Brasil, quer dentro dos ônibus que vêm da praia em direção à zona norte da cidade do Rio em dias de sol ou nas paradas dos semáforos. O viés retributivo tem contribuído para nutrir um medo em relação a nossa infância e a nossa juventude negra.

No campo da socioeducação, a dinâmica da justiça é exercida com base em alguns pilares da justiça retributiva; no entanto, o objetivo fim do processo socioeducativo deve ser pedagógico. O objetivo de uma pena é punir e disciplinar; o objetivo de uma medida socioeducativa seria, nesse sentido, educar. E, nesse sentido, Abdalla (2013) nos relembra que a

educação interdimensional no trabalho com os adolescentes em conflito com a lei, proposta pelo autor Antônio Carlos Gomes da Costa e buscada pelo DEGASE, parte do pressuposto de que a educação é a comunicação intergeracional do humano, envolvendo conhecimentos, sentimentos, crenças, valores, atitudes e habilidades na constante troca entre educador-socioeducador e educando-adolescente infrator. (ABDALLA, 2013, p. 104)

A autora segue discutindo a socioeducação e pontua que existe uma “contradição entre o que a instituição realmente faz com os adolescentes em conflito com a lei e aquilo que oficialmente deveria fazer” e considera esta contradição como sendo “a face mais perversa de atuação do Estado contra esses sujeitos excluídos de sua própria existência” (ibdem, p. 107- 108).