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CONSIDERAÇÕES SOBRE SABERES EM CONSTRUÇÃO

“A falta de comunidade deixa muitas pessoas com maravilhosas contribuições a fazer sem ter onde desaguar seus dons, sem saber onde pô-los.” (Sobonfu Somé)

A inquietação em relação às potencialidades ignoradas/silenciadas, de jovens- adolescentes, no cotidiano tanto socioeducativo quanto em seus territórios, mobilizou o trabalho das Rodas de Conversas realizado ao longo do ano de 2016. Uma intuição persistente orientou a atividade, a de que era preciso ofertar um tempo e espaço de escuta e criatividade para que os jovens-adolescentes pudessem expressar quais são suas capacidades e se conectar com suas potencialidades no contexto socioeducativo. Essa proposta vinha acompanhada de um exercício de despojamento de preconceitos e de olhares estigmatizantes, habitualmente atribuídos ao público atendido pelo DEGASE, não raro qualificados infratores, delinquentes, e, no vocabulário não oficial, vagabundos. Entendemos que precisam e merecem ser olhados, ouvidos e cuidados/atendidos como jovens-adolescentes em processo de desenvolvimento, tratamento humano.

Alguns dados respaldam desse exercício supracitado: o grupo participante das Rodas de Conversas revelam características como a cor da pele, pertencimento racial, em maioria negra, o território no qual residem e/ou se identificam, periférico, indicavam uma realidade socioeconômica desprivilegiada, entre outras características. Esses dados revelam uma parte importante da população brasileira que ainda não gozou de políticas públicas de cuidado, apoio e retribuição das marcas de desigualdades promovidas em nossa construção social e política. Entendo que esta política precisa ser feita, e de diversas formas.

A socioeducadora Tânia Mara, pedagoga atuante no CRIAAD Penha, investigadora de Justiça Restaurativa, o DEGASE apresenta diversas experiências bem sucedidas, funciona como um “laboratório permanente de práticas restaurativas”. Isso quer dizer que práticas similares às Rodas de Conversas são promovidas regularmente na instituição por diversos profissionais. Iniciativas políticas e profissionais que ainda não foram transformadas em política pública, mas que indicam alternativas ao modelo retributivo punitivista. Iniciativas que permanecem no campo de experiências pontuais e isoladas. “O princípio da socioeducação é restaurativo”, ela diz. E o presente trabalho dá a conhecer uma experiência pedagógica realizada no cotidiano socioeducativo que nos permite estudar, investigar e compreender uma prática socioeducativa comprometida com a educação transformadora, livremente inspirada em princípios de Justiça Restaurativa e da Comunicação Não-Violenta.

Nesse sentido, é coerente a análise da experiência das Rodas de Conversas à luz da pesquisa-ação existencial, proposta por René Barbier (2004), pois essa metodologia nos permitiu compreender a realidade antes de explicá-la. O sensível correspondeu ao eixo central de compreensão e a ciência serviu “de instrumento de mudança social” (BARBIER, 2004, p. 53). Barbier defende que o

desenvolvimento coletivo supõe necessariamente que nada está previsto, assegurado, de antemão, exceto a aceitação rogeriana de uma crença (sempre submetida à dúvida metódica) em um crescimento do ser humano, tanto no plano individual como no grupal. Esse ponto introduz a P-AE. na assunção da negociação e do conflito, considerado mais criador do que destruidor, na necessidade de um reconhecimento ao mesmo tempo da mediação e do desafio na dinâmica da pesquisa (BARBIER, 2004, p. 71).

E nesse processo de estudo sobre uma experiência profissional identificamos que a proposta caminhou e trouxe contribuições importantes para o campo da socioeducação. Entendemos que essas teorias podem contribuir para uma mudança profunda na abordagem e direcionamento de um trabalho realmente comprometido com o humano que nos habita, com o processo de desenvolvimento e permanente construção. A escuta, uma escuta qualificada e cuidadosa, que evidencia ao ser falante, jovem-adolescente, que ele não está sozinho, que tem alguém ali interessado e conectado ao seu sentir é de um valor essencial. Rosemberg (2006) afirma que “quando nos concentramos em tornar mais claro o que o outro está observando, sentindo e necessitando, em vez de diagnosticar e julgar, descobrimos a profundidade de nossa própria compaixão” (ROSEMBERG, 2006, p. 22).

Nas Rodas de Conversa, buscamos exercitar essa proposta, a escuta como uma prática de acolhimento, amorosidade e cuidado, dentro de uma proposta de aprendizado que se estabelecia através da troca e muito alimentada por estímulos diversos. E nesse sentido a proposta traz grandes contribuições, quando evidenciamos após os encontros que ter contemplado linguagens de interesse do grupo: filmes, músicas e fotografia foi relevante e estimulou a participação, sentiram-se respeitados e contemplados naquela proposta. Buscamos promover um espaço de livre expressão, em que se sentissem à vontade para comunicar suas verdades.

Nesse sentido, entendíamos que pensar o tema “território” e os estigmas que demarcam a relação com a favela/ periferia/ espaços populares na cidade era central na relação e nas trocas no contexto das Rodas de Conversa, já que o tema alimenta parte importante das experiências de jovens-adolescentes na cidade. E esse „pensar‟ foi tecido a partir de intervenções não-verbais, sensíveis e racionais. O tema foi trazido quando prestigiamos filmes em que o território periférico era cenário, convidamos moradoras para

intervir a partir de suas experiências criativas e potentes, prestigiamos a música funk. A experiência de proximidade física e relação visual com o tráfico de drogas, com o conflito armado, anunciam violações diversas que são vivenciadas como normalidade e ainda não foram combatidas pelo poder público. Essas violações constroem as pessoas que vivem em territórios periféricos e pautam seus modos de vida, seja na proteção, esquiva e medo ou na participação e usufruir do mesmo.

Jovens-adolescentes que cumprem medida socioeducativa reivindicam sua filiação a uma ou outra rede criminosa territorializada. E, através desta filiação, são criadas redes de solidariedade e/ou de rivalidade entre os jovens no interior das instituições socioeducativas. E nesse contexto a territorialidade e o pertencimento/identidade a tal ou tal rede criminosa territorializada é entendido pela instituição como uma experiência que precisa ser cuidada. E nas Rodas de Conversas também caminhamos com vista a compreender esse horizonte de relações não reforçando ele, mas buscando construção de redes de solidariedade a partir de outras vias.

Outros temas de relevância para o grupo que mereceriam maior atenção e que julgamos não ter explorado a contento foram os temas: das relações, das relações entre gênero, da maternidade, da assimetria na relação amorosa, da violência conjugal, da infidelidade, da falta da mãe, do desamparo emocional, da alienação parental, e tantos outros temas mais. O terreno da intimidade, da família, foram sinalizados pelos jovens-adolescentes de diversas formas, como uma urgência, uma necessidade a ser cuidada. E deixamos a desejar nesse campo.

Colocando-me não como autora do projeto realizado com jovens-adolescentes internos, mas como investigadora, buscando exercitar um distanciamento, necessário à reflexão crítica e que nos permita tecer algumas considerações, impropriamente denominadas “Conclusão sobre as Rodas de Conversas”, apontaremos algumas pontuações. Esta foi uma excelente iniciativa no sentido de apontar a necessidade de romper com o caráter retributivo de justiça, que orienta a política socioeducativa, que comprovadamente não dá conta de transformar os conflitos constatados, nem de ampliar experiências para que os sujeitos se tornem mais críticos e engajados nos problemas que os cercam.

Vale destacar que a experiência trilhada que propôs colocar jovens-adolescentes na situação direta de protagonismo e fala, em espaço ampliado tendo como interlocutores e ouvintes profissionais de diversos níveis da execução da política socioeducativa, ainda que de forma incipiente, promoveu o encontro, a expressão, a escuta, a fala e em alguma medida o cuidado com uma das partes envolvidas no conflito. A lógica da Justiça Restaurativa promove

o cuidado com as partes envolvidas em um conflito, trazendo a cena jurídica a figura da vítima, geralmente alijada do processo, e pauta essa estrutura. A Justiça Restaurativa se consolida como uma cena que contempla a vítima. As Rodas de Conversas vêm na contramão desta estrutura dando luz e buscando construir um repertório de trabalho em que a parte que recebe atenção é o chamado autor do ato.

Sendo assim, o conflito abordado no âmbito deste trabalho toma um sentido amplo, em que somos levadas a escolher em nossa sociedade, cuidar dos problemas coletivos, isolando, confinando e retirando do jogo social o suposto promotor do ato infracional. Buscamos cuidar das relações, ampliando as análises baseadas na dicotomia culpado-vítima, tirando o foco do ato infracional, avançando para uma ideia de que precisamos olhar para a infração e perceber as necessidades não cuidadas que dela emergem. A iniciativa descrita, ainda que com carga horária extremamente reduzida, imprimiu uma ação positiva no sentido de provocar outra maneira de olhar e relacionar-se com os socioeducandos privados de liberdade.

Esse processo de estudo e investigação nos permitiu tecer entrelaces teóricos que substanciam a prática restaurativa no cotidiano socioeducativo e, assim, a experiência das Rodas de Conversas. Entretanto, faz-se necessário avançar e aprofundar essa experiência restaurativa e pedagógica e, assim, contribuir para a qualificação do trabalho socioeducativo. A Justiça Restaurativa possui um viés judicial, em que são abordados os atos infracionais cometidos, com o objetivo de cuidar das relações quebradas, no contexto de uma comunidade, entre autor do ato e a pessoa que o sofreu. Entretanto as práticas restaurativas, regidas pelos mesmos princípios, necessidades, obrigações e engajamento, podem ser utilizadas com os mais variados grupos e/ ou com uma das partes envolvidas em um conflito. No contexto das Rodas de Conversas, promovemos um espaço de escuta e cuidado específico para jovens- adolescentes, cumprindo medida socioeducativa de internação, buscando ir além das dicotomias, agressor/vítima, e rótulos, ato infracional, no sentido de promover a cura, o respeito, criar um ambiente de responsabilidade e autorização em que os relacionamentos fossem cultivados de modo saudável.