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2. JUSTIÇA RETRIBUTIVA E JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO RECURSOS SOCIOEDUCATIVOS

2.2 A Justiça Restaurativa

Howard Zehr (2008) resgata a perspectiva bíblica do perdão e faz referência ao significado hebraico da palavra “justiça”, em que “fazer justiça é corrigir as coisas” (ZEHR, 2008, p. 130). “Corrigir as coisas” como forma de cuidar das relações, segundo o autor, parece ser a proposta que respalda a Justiça Restaurativa, em processo de consolidação dentro do campo da justiça criminal. Trata-se de uma abordagem em que “a punição não deve ser o foco da justiça” (ibdem, p. 197) e que apresenta uma radicalidade em relação ao praticado.

Como vimos anteriormente, a culpa e a punição são as bases da justiça retributiva, abordagem preponderante da justiça criminal ou penal. Já a justiça restaurativa é orientada pela responsabilização e pela tentativa de reconciliação. O autor nos propõe a seguinte definição para a Justiça Restaurativa, em que:

o crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança (ibdem, p. 170). O autor abandona a palavra “crime” e no lugar adota a palavra “erro”. Ao longo do texto, a palavra mais usada por ele é “conflito”, apesar de argumentar que em determinadas situações conflito pode parecer uma minimização do dano vivenciado. Ficaremos com essas duas possibilidades: erro e conflito. Vale enfatizar que ao longo do trabalho, temos

relativizado os termos “infrator”, “violador”, “criminoso”, assim como “ato infracional” e “crime”, colocando essas palavras entre aspas ou as antecedendo do vocábulo “dito” ou “suposto”. Estamos, sobretudo, questionando a possibilidade de um jovem-adolescente ser autor exclusivo de uma infração legal, quando sabemos que jovens-adolescentes atendidos pelo sistema socioeducativo vivenciam, em sua grande maioria, relações socioeconômicas fragilizadas e desfavoráveis. Ao atribuirmos culpa à parte mais frágil, como discutido anteriormente, contribuímos para agravar as fragilidades, ou seja julgando desiguais de forma igual. De acordo com as reflexões de Gomes (2001) e Zehr (2008), essa abordagem acaba por reforçar estereótipos que só servem para afastar as pessoas e nutrir seus sentimentos de repulsa e/ou medo.

A Justiça Restaurativa vem promover outra linguagem. Howard Zehr não a defende como um novo paradigma de justiça, mas aponta para uma abordagem diferenciada. Essa mesma justiça apresenta uma resposta diferente ao problema, à crise do sistema penal, em que a punição não tem promovido uma resposta satisfatória, não tem resolvido os problemas. Muito pelo contrário, tem causado problemas tão ou mais graves que o conflito inicial. Nesse sentido, a perspectiva restaurativa é eleita como uma possível solução dentro da situação atual. Dominic Barter, consultor em Justiça Restaurativa e Comunicação Não-Violenta (CNV), que esteve presente no DEGASE durante o ano de 2016 na implantação da Justiça Restaurativa, repete em suas falas que a “solução mora lá onde existe o problema e não fora dele”.

Zehr (2008) fala de Justiça Restaurativa em termos de valores diferenciados, visões alternativas, princípios e experiências. Para olhar de outro modo a justiça criminal, precisaremos começar “tirando o crime de seu pedestal abstrato” (ZEHR, 2008, p. 170). Nesse sentido, não se trata de “novas tecnologias de punição”, mas sim de encontrar formas de resolver as coisas, ou pelo menos tentar. Como vimos anteriormente, a justiça retributiva não tem ajudado a resolver os conflitos, tampouco tem melhorado a vida das pessoas que sofreram o conflito.

A palavra “restaurar”, na língua portuguesa, significa: “obter de novo a posse ou o domínio de (coisa perdida) (...), reparar (...), reestabelecer (...), começar outra vez (...)” (FERREIRA, 2004). Em latim restaurare significa “voltar a colocar de pé, reestabelecer”14. Geralmente esse vocábulo é usado para designar restauração de coisa material, como um

prédio, um monumento, uma obra de arte; mas, no campo da justiça, estamos falando de pessoas e relações.

Na proposta de Justiça aqui apresentada, o que se propõe a reparar, reestabelecer, colocar de pé novamente, são as pessoas e os relacionamentos. Podemos questionar que relacionamento será reestabelecido, já que na maioria das situações não havia relacionamento anterior ao conflito de fato. O relacionamento pode muitas vezes ser estabelecido no momento do conflito e, fatalmente, a partir de uma experiência traumatizante ou indesejada que gera hostilidade entre as partes. O relacionamento que se estabelece por bases negativas e degradantes é passível de ser revertido a partir do momento em que as pessoas se encontram, quando têm a oportunidade de se ouvir e encontrar juntas um novo caminho para aquele encontro conflituoso. Também é uma possibilidade de readquirir a confiança na pessoa, no ser humano.

O autor acena para uma forma diferenciada de significar o conflito e, sobretudo, quem o causou, ao qual nos filiamos, anunciando que pode ser “uma forma de gritar por socorro e afirmar sua condição de pessoa” (ZEHR, 2008, p. 171). Estamos, assim, considerando que o suposto ofensor pode ser também vítima de uma série de situações conflituosas e que sua atitude seria, assim, uma resposta, um grito que já não pode mais silenciar. Faz-nos recuperar a perspectiva bíblica que pontua a equiparação entre danos e conflitos das mais diversas ordens, não os hierarquizando ou criando meios de punir uns e não outros. A ideia é que toda situação conflituosa possa ser cuidada e que ocupe o mesmo patamar de importância. Apesar de não explorar o tema de forma aprofundada, acena para o fato de injustiças estruturais serem geradoras de mais injustiças.

As Rodas de Conversa e a participação nos Seminários, que serão detalhadas no terceiro capítulo, têm caráter restaurativo porque, a este sujeito, considerado infrator pela justiça retributiva, é dada a oportunidade da fala, da escuta e da participação em espaços em que se pensa e fala sobre ele. Consiste em uma prática que busca estabelecer diálogos internos a instituição como preparação para a realização de diálogos externos em que é possível expressar quem de fato são e, ao mesmo tempo, quebrar alguns esteriótipos, reduzir distâncias.

Quando Joaquim B. Barbosa Gomes (2001) discute o princípio constitucional de igualdade, está questionando a promoção e não a redução de injustiças no cerne da Carta Magna. A discriminação por raça ou sexo, dois vieses abordados pelo autor, em que “a pessoa é tratada de maneira desigual, menos favorável” (GOMES, 2001, p. 20), quando proibida por lei, não deixa de existir por essa razão, não sendo de fato reconhecida ou cuidada. Não há

desencorajamento real da ação discriminatória, já que a vítima precisa provar ter sido discriminada. Esses procedimentos são rigorosos e opressões e não são comprovadas facilmente. Por outro lado, acena para outra possibilidade de conceber a discriminação, uma possibilidade em que se promovem as partes mais fragilizadas, historicamente vitimadas, que seria a “discriminação positiva ou ação afirmativa” (ibdem, p. 22). Nesse caso, “cuida-se de dar tratamento preferencial, favorável, àqueles que historicamente foram marginalizados” (ibdem, p. 22). Poderíamos falar de Justiça Restaurativa, ele assim o cita, justiça redistributiva ou restauradora, em que o objetivo é “corrigir uma situação de desigualdade historicamente comprovada” (GOMES, 2001, p. 22).

Zehr (2008, p. 176) afirma que se “o crime é um ato lesivo, a justiça significará reparar a lesão e promover a cura”. E aponta também que justiça é uma necessidade humana básica. No conflito, todas as partes precisam vivenciar essa cura, esse cuidado, além da comunidade envolvida direta ou indiretamente no ato. A proposta de justiça é aqui pautada por uma proposta de reconciliação. Nesse modelo de justiça, o Estado deixa de ocupar o papel da vítima, somos convidados a abandonar a tendência da “sociedade moderna” de “delegar a solução de nossos problemas a especialistas” (ibdem, p. 192). Sugerimos que os “especialistas” assumam a função de mediadores para promover os encontros entre as partes e a comunidade, facilitando a reconciliação e a reparação do dano.

Nesse sentido as partes são convidadas a assumir suas responsabilidades e têm autonomia para escolher a melhor forma de resolver as coisas. É nesse sentido que se fala de obrigações: na Justiça Restaurativa são identificadas obrigações, no sentido de corrigir o que está danificado, quebrado, o que foi violado, não em relação ao Estado, mas no âmbito das relações entre as pessoas. Pode ser que a vítima seja sim quem tenha, em uma leitura retributiva, sofrido o dano (roubada, agredida etc.), ou pode ser que ela não seja a única, e que, como diz Zehr (2008), aquele dano tenha sido um ato libertador, um grito, uma liberação de um sofrimento há muito carregado, e nesse caso, o suposto autor, responsável pelo dano, apresente necessidades importantes até então ignoradas ou silenciadas. A proposta de restaurar o que precisa ficar de pé novamente, reestabelecer o que foi quebrado, pode implicar necessidades para além do que aconteceu naquele determinado momento. Isso não invalida nem deslegitima a necessidade de se reconhecer o ato danoso, a agressão, a escolha por uma atitude reprovável, raivosa e/ou violenta e que precisará ser assumida e encontrar também a sua restauração.

Podemos destacar que no espaço das Rodas de Conversa a proposta a princípio estava pautada na ideia de falar, dar espaço para que jovens-adolescentes cumprindo medida socioeducativa de internação pudessem compartilhar o que era significativo para eles. O ato infracional não era necessariamente um tema abordado durante os encontros, entre eles esse não era o tema de interesse, isso não era a coisa mais relavante, os assuntos trazidos pelo grupo girava em torno das relações amorosas e familiares, das relações com a cidade, isso os mobilizava, preocupava.

A Justiça Restaurativa está propondo encontros em que as pessoas são convidadas a falar sobre o conflito vivenciado, como vivenciaram a situação e como estão se sentindo em relação ao ocorrido. A fala das pessoas tem muita importância, todos terão direito a compartilhar suas visões sobre o conflito, terão tempo e serão ouvidas em suas experiências. A escuta na Justiça Restaurativa geralmente é uma escuta qualificada, escuta empática, ativa, compassiva ou autêntica, é um ato central nessa proposta. O ato de falar, ter direito, tempo, não ter sua fala direcionada, julgada, depreciada é a escuta como ato de acolhimento, em que se verifica a compreensão do que foi dito pela outra pessoa, uma escuta que cuida, em que se ouvem os sofrimentos e as necessidades de cada uma das partes.

É como se macro e micro estivessem caminhando juntos. Ao mesmo tempo que se está corrigindo aqui uma briga de crianças por um brinquedo e este brinquedo é quebrado, está-se cuidando das duas partes, quem quebrou o brinquedo, o detentor do brinquedo e a sua capacidade de lidar com escolhas, perdas, ganhos, necessidades, faltas, responsabilidades na relação com o outro. Defende-se a proposta de tentar olhar para cada um sem tomar partido, sem defender um em detrimento do outro, sem eleger uma dor como mais importante ou legítima, ajudando os dois a colocarem para fora seus sofrimentos e a se ouvirem. Essa prática faz com que os dois encontrem uma solução e, em alguns momentos, possam até mesmo se reconciliar. Howard Zehr (2008) também fala de perdão, sendo assim, perdoar-se.

O autor apresenta outras experiências de justiça, tais como a justiça bíblica, a justiça comunitária e, inclusive, a justiça restaurativa, já praticadas e que correspondem à ideia de justiça por ele defendida. Essas experiências que se deram ao longo da história são apresentadas como incremento à proposta de Justiça Restaurativa.

A experiência denominada VORP (Programa de Reconciliação Vítima Ofensor – em inglês VORP), no Canadá e nos Estados Unidos da América (EUA), comprova que conflitos vêm sendo mediados por uma proposta que não está pautada na punição. No VORP, as partes são convidadas a se escutarem, a explicarem a forma como viveram aquele momento, a se

responsabilizarem por seus atos, inclusive a comunidade, e a travarem um acordo para que as relações possam ser cuidadas. Essa é uma prática bastante difundida nos EUA e no Canadá, que encontra uma clara relação com instituições religiosas e conquistam um espaço como uma abordagem possível dentro da justiça criminal.

Nesse encontro a responsabilização é parte importante, mas não só a responsabilização pelo ato penalmente considerado como “infração”, uma responsabilização individual. Como diria Howard Zehr (2008, p. 197) “é doloroso assumir responsabilidades”. Nesse caso a responsabilidade não ocupa o lugar da punição, mas pode ter o mesmo peso ou maior. Entretanto, ela não será exclusiva à parte supostamente causadora do dano ou conflito. Todas as responsabilidades devem ser assumidas, inclusive aquelas da sociedade em relação às partes. Sendo o Estado corresponsável pela negação dos Direitos Humanos às partes deve ser acionado para ressarcir os danos provocados por sua omissão

Em palestra15 divulgada em redes sociais, o autor aponta três princípios-chave da justiça restaurativa – “necessidade, obrigações e engajamento” – e aponta três valores: “respeito, responsabilidade e relacionamento”. Um breve resumo da Justiça Restaurativa apresentado pelo autor conjuga esses valores e princípios:

“1. O crime viola pessoas e relacionamentos; 2. a justiça visa identificar necessidades e obrigações; 3. Para que as coisas fiquem bem; 4. A justiça fomenta o diálogo e o entendimento mútuo; 5. dá às vítimas e ofensores papéis principais; 6. é avaliada pela medida em que responsabilidades foram assumidas, necessidades atendidas, e cura (de indivíduos e relacionamentos) promovida.” (ZEHR, Howard, 2008, p. 199)

Na descrição feita pelo autor de conflitos que foram tratados nos EUA e no Canadá, pela abordagem proposta pelo VORP (Programa de Reconciliação Vítima Ofensor – em inglês VORP), dão-nos uma ideia de como funciona concretamente a Justiça Restaurativa. As partes envolvidas diretamente no conflito são convidadas a participar dessa abordagem, cientes de que vivenciarão, quando possível, um encontro. São preparadas para tal experiência, na perspectiva de uma busca de reconciliação e, durante esse processo, a escuta ocupa papel importante. A escuta das necessidades das partes, das dores, de como viveram o conflito são acompanhadas por alguém que faz o papel de mediador. Esses encontros também visam ao envolvimento da comunidade que, direta ou indiretamente, tenha sofrido com aquele conflito. Todas as partes são convidadas a partilhar suas experiências e a reconciliação pode

15 Howard Zehr's Definition of Restorative Justice.UNCG Peace and Conflict Studies Department.(4‟49). Versão

tomar a forma de um acordo construído coletivamente, do qual as partes ficam responsáveis pelo cumprimento, sendo acompanhadas durante toda a sua duração.

Pode ser que não se chegue a uma reconciliação e o autor expressa que esse objetivo não deve ser perseguido a qualquer custo, mas que ele é desejável. Porém só será significativo, provocando reais mudanças, quando aflorar diretamente das partes envolvidas. Zehr (2008) desaconselha que acordos e reconciliações sejam provocados e, sendo assim, os resultados desses encontros não serão necessariamente punitivos, no sentido retributivo do termo, mas a punição com dor, o encarceramento, não estão de todo descartados. Simplesmente, esta não será a única, nem a escolha prioritária.

A justiça restaurativa possui sua esfera de atuação jurídica e não jurídica; está, pois, comprometida com o reestabelecimento geral das relações e interações, comprometida com o sentido amplo da palavra “justiça”, que não se restringe ao legal, aos documentos e práticas jurídicas, mas com a proposta de resolver as coisas, as relações, as situações, as condições de vida e assim por diante.