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3. A EMERGÊNCIA DE SABERES NO COTIDIANO SOCIOEDUCATIVO ATRAVÉS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

3.1 Rodas de Conversa: IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos

3.1.7 Encontro extra (13/10/2016)

Nesse dia recebemos em uma sala da Escola de Gestão Socioeducativa duas jovens- adolescentes do PACGC, as duas que iriam ao Seminário. O objetivo do encontro era ajudá- las na construção de suas falas. Iniciaram pontuando os temas que gostariam de relatar, tais como o respeito. As duas leram textos que haviam preparado e conversamos sobre eles. Recomendamos a DandaLua contar sobre como é ser mãe e estar privada de liberdade, focando no tema “maternidade”, que já havia relatado em encontros e Isidora no tema “respeito”, pensando na sociedade em geral, na relação que desejava vivenciar no cotidiano dentro e fora da unidade socioeducativa, o que já estava expresso em seu texto. As duas saíram com papel para continuarem escrevendo tudo o que gostariam de falar.

Após essa primeira conversa convidamos as duas a relatarem um pouco de suas histórias de vida para que avaliássemos se esse poderia ser um caminho interessante para as falas no Seminário. DandaLua inicia seu relato cronologicamente pontuando diversos momentos de sua trajetória de vida, inclusive trazendo algumas explicações sobre o porquê de sua experiência ter sido como foi. Essa atitude parece coerente com a passagem por um grande número de instituições e períodos de permanência nas ruas. A experiência nesse campo de atuação nos permite estabelecer essa relação. Em geral isso acontece quando se dá entrada em uma instituição. Como ela relata ter passado por diversas instituições, já experimentara muitas vezes essa narrativa e, fatalmente, absorveu algumas interpretações e análise de profissionais por quem foi acompanhada.

Relata ter sido colocada pra fora de casa ainda criança, por volta de onze anos, quando a mãe estivera com novo companheiro, um relato comum a muitas jovens-adolescentes que passam pelo SSE e que reverbera na fala de Isidora.

Em julho durante a realização de atividades comemorativas ao dia da mulher negra latino-americana e caribenha, organizado na unidade socioeducativa de semiliberdade, CRIAAD Nilópolis, um colega agente socioeducativo, em cargo de gestão, relata essa situação com assombro, pontuando ser algo recorrente – mães que por medo de perder os companheiros, segundo ele, abrem mão da relação com suas filhas.

Importantes reflexões foram anunciadas acerca da temática de gênero através de várias formas. Essa temática se apresentou na fala sobre a maternidade interrompida de jovens- adolescentes mães, privadas de liberdade e também nas falas de Davenga, quando em diversos momentos sinalizava sentir falta de uma presença materna idealizada. A mesma temática surgiu na fala de muitos, quando pontuaram uma mudança na relação com familiares, no

contexto da privação de liberdade, entre outras. Para além dessa relação de gênero ligada diretamente ao contexto familiar, muitas questões foram levantadas sobre as relações de casal, tais como traição, violência, subserviência, expectativas e frustrações, homoafetividade e a transitoriedade entre as identidades. O campo do gênero é um vasto tema que merecia um tratamento diferenciado, que não soubemos dar. E nesse sentido parece-me que as técnicas de Justiça Restaurativa e Comunicação Não-Violenta precisam ser aprofundadas, precisamos ter mais conhecimento para lidar com o acolhimento dessas temáticas que vão emergindo e que tiram o foco do que era previsto, mas sinalizam temáticas fundamentais.

Há momentos muito fortes no relato de DandaLua: um é quando ela conta ter apanhado de forma abusiva da mãe e parece sentir no corpo as dores, aponta marcas e chega a fazer a postura em que ficou durante um tempo por conta das pancadas, assim como pontua situações desagradáveis com a mãe, também cita um momento em que esta a defendeu de forma voraz, faz um relato complexo em que essa relação com a mãe é de descaso e ao mesmo tempo de uma presença forte.

DandaLua interrompeu relato de Isidora no momento em que a esta conta ter saído de casa por causa da nova relação de sua mãe e é nesse momento que conta ter vivido essa mesma situação. Isidora rapidamente coloca que o relato agora é da vida dela, tomando a palavra novamente e o foco da conversa, dizendo que sempre foi muito extrovertida e brincalhona e sentia que aquilo criava problemas/ ciúmes na mãe, foi morar na casa da Tia e acontece o mesmo, daí ela vai pra rua. Relata período de seis a sete meses nas ruas. Nada muito linear. Conta de relações sexuais e prostituição por volta dos doze anos de idade, fala de navios, prostituição com a tripulação de navios turísticos, relata que tinha os seus casos certos e que o primeiro uso de cocaína faz com um desses casos, passa a gostar muito, com certo recuo diz que fazia uso de drogas para se sentir pertencente ao grupo, se sentir feliz, “da galera”, ter amigos, ser bem quista, tem uma fala crítica, mas não parece ter ultrapassado totalmente essa necessidade. O envolvimento com a venda de drogas também é presente, relata uma amiga, que parece ser sua referência de muitas experiências, acolheu-a e também a inseriu em um mundo que não era para sua idade.

Estávamos em uma sala em que profissionais entravam regularmente para busca de materiais, mas isso não as intimidava. Apesar de me causar incômodo, elas continuavam imperturbáveis, não se preocupavam com as passagens nem com as pessoas. Isso me fez pensar que o sigilo é uma questão que faz mais parte do meu universo do que do delas, que elas se sentiam em confiança e à vontade para conversar comigo e confiavam na situação em

que eu as colocaria. Essa questão de sigilo e segredo faz parte de qual universo, o que precisam esconder?