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3. A EMERGÊNCIA DE SABERES NO COTIDIANO SOCIOEDUCATIVO ATRAVÉS DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

3.2 IV Seminário de Formação de Operadores

No dia vinte de outubro de dois mil e dezesseis, as e os jovens-adolescentes que participaram das Rodas de Conversa, duas representando a unidade feminina e dois representando a unidade masculina, chegaram em um mesmo transporte. Os profissionais da unidade feminina optaram por manterem as jovens-adolescentes algemadas durante todo o trajeto, o que não aconteceu com os da unidade masculina. Os quatro vieram acompanhados por agentes e um representante da direção da unidade masculina.

Ao chegarem ao prédio do MP, entraram pela porta de trás, entrada do estacionamento. Foram recepcionados por um grupo de agentes da CSINT e do MP; eu também os esperava, assim como uma das outras pedagogas. Paula esperava Orfeu, que viria de casa e entraria pela porta da frente. Escolhemos estar na porta esperando o momento de sua chegada como forma de garantir um acolhimento agradável para eles, e foi essencial ter feito isso.

No momento da espera identifiquei com os agentes um local onde poderiam se trocar e os esperei com as roupas, já que vinham com uniforme das unidades. E assim tiveram a oportunidade de se vestirem antes de entrar no salão principal do evento. As roupas couberam perfeitamente. As meninas quando vestiram reclamaram, falaram que não se sentiam à vontade, que ficariam mais à vontade com um shortinho e barriguinha de fora etc. Ao entrarem na sala principal do evento, fizeram uma reflexão sobre a roupa dizendo que ali estavam se sentindo bem vestidas, o vestido naquele estilo combinava com o local.

No dia anterior fui buscar roupas masculinas emprestadas, calças jeans e blusas de algodão, na casa do meu cunhado, para Davenga e Donatelo; os sapatos vinham das unidades. A roupa das adolescentes, que a princípio estava definida com os profissionais da unidade, parece que não estariam disponíveis. Então, na manhã do evento, antes que chegasse o grupo de jovens-adolescentes, telefonei para uma amiga, que mora na Lapa, próximo da sede do Ministério Público, local onde estávamos, trabalha com moda e fui até sua casa com o motorista e carro da ESGSE buscar roupas emprestadas. Ela me cedeu dois vestidos que vestiram perfeitamente bem em Isidora e DandaLua.

No salão de recepção anterior ao auditório havia um lanche e uma exposição de banners. Demos uma volta, deixamos os quatro livres para explorarem aquele local e se alimentarem à vontade. Fizemos self. Os agentes socioeducativos que os acompanhavam os conduziram ao auditório. Ainda estava acontecendo uma palestra quando chegaram e, logo ao fim daquela mesa redonda, seríamos nós.

Antes de iniciarmos conversei com a promotora Janaína Pagan, com quem dividiríamos a mesa. Compartilhei como havia sido a preparação, como foram conduzidas as Rodas de Conversa. Em um momento dentro do auditório, Janaína me procurou para entender como ficaríamos sentados, já que a mesa em cima do tablado nos parecia algo formal demais. Pelo avançar da hora, já passava de meio dia, entendemos que levaria tempo deslocar a mesa e trazer para frente somente as cadeiras. Propus que ficássemos à frente da mesa oficial em um estreito espaço e que improvisássemos de acordo com o que parecesse mais intimista naquele espaço. Essa improvisação nos deixou à vontade para sentar sobre a mesa oficial e na beira do tablado.

Figura 9- IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos, data 20/10/2016

Fonte: ASCOM36

A Figura 8, registro de profissionais de comunicação do DEGASE, está posta aqui para que possamos materializar de algum modo a participação de jovens-adolescentes no IV Seminário de Operadores Socioeducativos. O sentar informal foi construído de forma a garantir uma proximidade entre nós e conseguir de alguma forma nos aproximar das trocas informais e calorosas vivenciadas nas Rodas de Conversa no DEGASE. Entendi que a novidade do espaço, do lugar de fala, do uso de um microfone em espaço tão formal poderiam ser componentes inibidores e que era necessário potencializá-los nessa experiência tão nova.

Toda informalidade foi apoiada pela Promotora Janaína Pagan, que compunha a mesa conosco.

Fomos convidados a ocupar a mesa: a Promotora Janaína Pagan, Mônica Cunha, coordenadora do Movimento Moleque37, Angélica, eu, Isidora, DandaLua, Orfeu, Davenga e Donatelo. Abri a mesa saudando os presentes, falei sucintamente em que contexto surgia a participação de jovens-adolescentes no IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos e como havíamos trabalhado para chegar até ali. Após, passei a palavra para Angélica, que relatou brevemente como foram as Rodas de Conversa e falou de sua participação. Tentamos passar a apresentação em slides, preparados para o momento, mas acabamos por desistir e privilegiar aquele momento de troca entre nós.

Passo a palavra para a Promotora, que saúda a oportunidade de estar vivenciando aquele momento. Paula Vargens é convidada para compor a mesa junto conosco e faz contribuições em alguns momentos. Temos dois microfones e vamos nos revezando para falar. No primeiro momento vou incentivando a fala deles, depois eles ficam bastante à vontade e vou somente ajudando para que contemplem a fala de cada um.

Donatelo, ao chegar, dizia que não iria falar nada. Perguntei se gostaria de ficar conosco no tablado, mesmo sem falar, ele diz que não, mas no momento mesmo chamamos seu nome, vejo que ele vem em nossa direção, depois me desconecto da sua chegada. Ele não consegue vir até o tablado, quando o questionamos o porquê, ele alega que foi interrompido por algum profissional.

Passo a palavra para as e os jovens-adolescentes, intercalando suas falas. DandaLua inicia e lê o discurso que havia preparado e que se iniciava pelo relato sobre a maternidade e sobre a dificuldade que é estar privada de liberdade nesta situação. Uma grande parte do público se emociona com a fala dela.

Isidora lê seu texto que fala muito sobre respeito; ela havia pontuado uns três itens pra falar e foi lendo o seu texto, defendendo que precisam ser respeitados.

Orfeu, um tanto assustado e desconfortável, ainda se adaptando ao fato de não estar mais privado de liberdade, agradece à equipe técnica, agradece aos profissionais do DEGASE, faz uma fala polida e institucional, bem menos autônoma do que ele costumava fazer nos encontros. Ele fala sobre o território, o local de moradia só oferecer coisas ruins, um discurso em que se coloca muito na posição de único responsável pelos caminhos que foi percorrendo.

Faço uma provocação sobre ter outras oportunidades na infância, ele fica um tanto perdido e não entende do que eu estou falando. E junto com a plateia fazemos a reflexão sobre como aquela postura de auto-culpabilização era recorrente, e que eu usava um termo inapropriado: “oportunidades”, “o que é isso?”.

Convidamos a mãe de Orfeu que o acompanhara e ela tem uma fala belíssima, expressando sua experiência de vida, suas dificuldades, mãe de cinco filhos, trabalhando à noite em um hospital, vive com um companheiro que não é o pai de Orfeu, enfim, uma vida de desafios para uma mãe negra. E finaliza pedindo ajuda, pede ajuda, pois enfatiza que aquele é um momento muito bonito e importante, mas não sabe como dará conta de seu filho, está em busca de apoio para lidar com aquela situação em seu cotidiano.

Figura 10- IV Seminário de Formação dos Operadores Socioeducativos, data 20/10/2016

Fonte: ASCOM

A fala de uma mãe, troca de afetos, a postura à vontade de corpos que na condição de privação de liberdade são convidados a protagonizar em um espaço de formação para profissionais e pesquisadores. A tentativa de tecer e cuidar dos participantes estão estampadas nos gestos, na troca de carinho entre os dois socioeducandos, e no olhar atento das jovens- adolescentes. O cuidado ficou registrado na Figura 9.

Retomamos o tema da revista feita por policiais nos ônibus que iam ou voltavam da praia em dias ensolarados na cidade do Rio de Janeiro, em especial na linha de ônibus 474,

em algum momento remetendo mais uma vez à questão da culpabilização. Relatamos que as revistas, segundo eles, em nossos encontros já foram apontadas como culpa de quem anda vestido igual favelado. Davenga, com sua fala mais brincalhona, conta de sua companheira muito mais velha que ele e fala que sobre o tema do ônibus 474 e das incursões policiais que impedem as pessoas de chegarem até a praia, diz não sofrer com isso porque mora em Cabo Frio, próximo à praia e lá “é tranquilinho, se eu quero ir na praia é só ir”.

Isidora, durante todo o momento fica extremamente à vontade com o microfone, passa a palavra para as pessoas; mais ao final das nossas falas passa a palavra para o público, sente- se totalmente à vontade e encarna ali uma presença de apresentadora com total intimidade e familiaridade com a situação, como se fosse algo corriqueiro para ela viver tal situação.

Mônica Cunha relata sua experiência de ser mãe de um jovem-adolescente que já esteve no DEGASE e agora falecido, morto aos vinte anos, e se solidariza com a fala da mãe de Orfeu. Em sua fala, Mônica pontua já conhecer DandaLua de outras instituições. Quando se emociona em seus relatos, DandaLua vem em sua direção para abraçá-la, em um gesto forte de carinho.

Ao final da mesa fui parada por uma psicóloga que trabalha no MP que me saudou e parabenizou por tudo, inclusive pela ousadia de ter sentado e provocado que todas e todos se sentassem na mesa oficial deste lugar tão formal e austero.

Após o evento sentimos que a Roda de Conversa causou um impacto muito positivo no DEGASE, recebíamos elogios de pessoas que nem mesmo estiveram no evento.

A abertura de um espaço de diálogo, de um ponto de contato para que possamos de fato conhecer quem são os jovens-adolescentes com quem trabalhamos, entender que, apesar de haver semelhanças em suas trajetórias, suas dores são singulares.

O espaço das Rodas de Conversa parece ter sido uma oportunidade de vivenciar uma experiência que fugiu do olhar exigente e disciplinador da instituição, e o olhar estigmatizante e preconceituoso de alguns, que além do compromisso educativo, reproduzem relações opressoras.

Serei tão cautelosa quanto Zehr (2008), quando ele pontua que não se trata de um novo paradigma, o autor não inscreve a Justiça Restaurativa em um outro paradigma, pois entende que essa proposta nasce e é concretizada dentro de estruturas ainda retributivas. Sendo assim, é preciso reconhecer que não podemos falar de relações de igualdade, estávamos em uma instituição que atua com uma proposta pedagógica e também punitiva, mas a relação que fomos tecendo e que se expressou no Seminário era de cuidado e respeito. A escuta ficou bem marcada, eles estavam à vontade para falar de forma autônoma, demonstrando liderança. Foi

um grande desafio provocar que eles se sentissem à vontade conosco em um espaço de trocas e compartilhar essa vivência, buscando valorizar seu protagonismo, liderança, potencialidades, diferenças, linguagens e saberes.

Barbier (2004), ao explicar o que ele está entendendo por participação pontua que,

nada se pode conhecer do que nos interessa (o mundo afetivo) sem que sejamos parte integrante, “actante” na pesquisa, sem que estejamos verdadeiramente envolvidos pessoalmente pela experiência, na integridade de nossa vida emocional, sensorial, imaginativa, racional. É o reconhecimento de outrem como sujeito de desejo, de estratégia, de intencionalidade, de possibilidade solidária (BARBIER, 2004, p. 70-71).

3.2.1 Fechamento das Rodas de Conversa (24/10/2016)

Havia onze jovens-adolescentes, sendo cinco da unidade feminina e seis da unidade masculina. O encontro tinha um propósito de compartilharmos a experiência vivida com todo o grupo e confraternizarmos juntos, já que aquele seria o último encontro da Roda de Conversa.

Visionamos as fotos do evento e imagens da apresentação power point que havíamos preparado para o Seminário, mas acabamos não passando. Falamos sobre como tinha sido o Seminário, cada um contou um pouco do que lembrava, contamos que Isidora tinha sido uma exímia apresentadora, falamos da presença de Orfeu e sua mãe. Davenga contou sua fala durante o Seminário, de que eu dava conselhos para eles nas Rodas de Conversa e que eu o desmenti naquele momento, conta de forma irreverente. DandaLua me abraça e diz “só você mesmo pra fazer a gente viver isso dentro do DEGASE”, e seguimos com relatos, trocas de impressões e percepções do que tinha sido vivenciado.

Em Roda, fizemos a entrega de uma lembrança, um livro de poesias escritas por jovens-adolescentes no DEGASE em 2011. A proposta dessa entrega foi compartilhar algo que pudesse ficar como lembrança daquele espaço e exercitar com eles a troca de afetos. Propus que passássemos o livro de mão em mão, eu colocava o nome da última pessoa da roda e o livro circulava com uma caneta, para quem desejasse deixar uma mensagem, um recado, uma dedicatória, até que a pessoa recebesse o livro como um presente de todo o grupo. Essa roda durou um tempo, muitos dispersaram durante o processo, mas grande parte cobrou sua dedicatória e participou da atividade até o fim.

Donatelo que até então tinha se mantido silencioso ao longo de todas as Rodas, naquele dia estava mais falante e lisonjeado com a experiência vivida. Apesar de não ter

enfrentado o espaço da fala frente ao público, esteve lá, vivenciou aquele momento e participou a seu modo do Seminário.

Ouvimos música, cantamos juntos, recitei uma poesia feminista da Eliza Lucinda (Aviso da Lua que menstrua). E ficamos ali um tempo até que o encontro terminou. Fizemos um lanche bem gostoso com biscoitinhos, refrigerante, suco, guloseimas que haviam sobrado do Seminário.

Após o IV Seminário, imaginamos que tudo teria terminado ali, fizemos uma reunião de avaliação entre as três pedagogas, as demais profissionais que contribuíram para o trabalho foram convidadas, mas não puderam estar presente. Pontuamos pontos positivos como: uso da máquina fotográfica, acesso a novas mídias, sala multiuso e com possibilidade de trabalho em diversos formatos, grande círculo. Programamos fazer visitas às duas unidade para dar uma devolutiva para as equipes técnicas sobre a participação do grupo. A devolutiva não foi possível devido à carga de trabalho excessiva.

George Fox, coordenador da CECEL, falou algumas vezes sobre a importância da continuidade da proposta, apontando como dinâmica trabalhar temas com os socioeducandos do cotidiano. Falamos da repercussão positiva e avaliamos que o propósito do trabalho não era ser uma fermenta para as unidades, mas de fato uma metodologia de trabalho que proporcionasse uma construção de um espaço de experimentação, relacionamento e descoberta de si e do outro, compartilhamento de ideias e expressão espontânea, acreditando que tudo isso nos permite um terreno fértil ao encontro com nossas potencialidades e capacidades.

No intervalo de uma semana, recebemos o convite para que a Roda de Conversa participasse do III Seminário Internacional Socioeducativo, um reconhecimento institucional importante.

3.3 Rodas de Conversa: III Seminário Internacional Socioeducativo38