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HISTÓRIAS

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MARCELLO SALVAGGIO

Histórias

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A Viagem de Owain

Por um anônimo autor irlandês do século XIII

Véspera de Pentecostes, muitos estavam reunidos na cidade, tanto valentes cavaleiros como mulheres, damas e donzelas, de bastante boa linhagem. Isso deixava feliz o rei, que os honrou e mandou servi-los da melhor maneira, tardando a se dar conta da ausência de dois entre seus melhores cavaleiros: Owain e Morholt.

Mandou chamar seu senescal, isto que era hora de noa, e perguntou-lhe se sabia por onde andavam.

- Não sei, senhor.- Disse ele.- Há muito tempo que não os vejo.

O rei sabia que eram grandes amigos, que nunca se separavam. Decidiu enviar para procurá-los seu condestável, que muito cavalgou até alcançar, na hora de prima do dia seguinte, após passar a noite sob o amparo dos caridosos monges brancos de uma ermida, uma torre na floresta. Parecia abandonada, mas ao se aproximar dela notou armadas três tendas coloridas e muito ricas, à frente de cada qual havia um par de escudos e um par de lanças. Por fim, reconheceu o estandarte de Morholt.

- Deve estar por aqui ao menos um de nossos cavaleiros.- Disse ele.

Havia uma mulher em uma das tendas, que estava dormindo, mas que despertou ao ouvir o relinchar do cavalo do condestável do rei.

Então saiu, pensando que fosse um dos homens de Morholt.

Ele, assim que a viu, desmontou e pôs em terra sua lança e

seu escudo, para depois amarrar seu cavalo a uma estaca. Se

abaixara as armas, era porque não possuía más intenções, e por

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isso pôde ela, que era muito cortês, perguntar-lhe sem medo:

- Quem sois, cavaleiro, e o que desejais?

- Sou o condestável do reino e desejo, senhora, saber onde se encontra o senhor Morholt. E vós quem sois?

- Senhor, sou sua prima e esposa de um de seus cavaleiros, com os quais ele saiu em busca do cavaleiro Owain.

- E por qual razão?

- Porque sucedeu, senhor, algo terrível.

- O que exatamente, senhora?

- O senhor Morholt descobriu, para grande vergonha de sua casa, que sua esposa se deu a conhecer ao cavaleiro Owain, que ele sempre tanto prezou.

- Ai, Deus! E o que mais foi feito?

- O senhor Morholt decapitou a mulher e teria feito o mesmo com o cavaleiro Owain se este não tivesse fugido.

- Mas que grande desgraça!

- Deveras, senhor, a maior das desgraças que alguma vez se abateu sobre este reino.

- Muito obrigado, senhora, por me informáreis.

- Direi depois a meu marido e ao senhor Morholt que aqui estivestes.

E nisto o condestável deixou o local para falar ao rei sobre a grande desgraça que se dera.

*

Passa agora o conto a falar de Owain, que embora bravo

cavaleiro era também muito cheio de vícios. Tanto que, ao crer

despistados Morholt e seus homens, que pretendiam puni-lo

por seu adultério, e Owain bastante temia especialmente seu

amigo de outrora, pois melhor cavaleiro não havia em toda a

Irlanda, deteve-se, na aldeia a que chegou, em uma taverna.

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Desejava beber, convencido de que necessitava de vinho para recuperar suas forças.

Não eram, porém, as forças do corpo que lhe faltavam, e sim as da alma, tanto que permaneceu na taverna, entre os bêbedos e os vagabundos, da hora sexta à de vésperas, até que, quando enfim saiu, um homem bom, vestido com uma garnacha, apareceu para adverti-lo:

- Ireis montar assim vosso cavalo, trôpego como estais? Temo que não será necessário o inimigo, que outrora foi vosso amigo, para dar um fim à vossa vida.

- Quem sois e o que sabeis a meu respeito?- Indagou o cavaleiro, voltando-se com surpresa ante semelhante maravilha.

- Sei o que me foi dito pelos anjos, que mo disseram para vos advertir e vos guiar.

- Guiar-me de que maneira?

- Para longe da morte, senhor. E não falo apenas da morte do corpo, que cedo ou tarde apodrece, mas da morte da alma.

- Isto para alguns pode parecer loucura, mas a mim assusta.

- Senhor, não sou dotado de clerezia nem tenho o donaire dos cavaleiros, mas confio na estima que tem por mim Jesus Cristo.

Então, ignorando os risos dos bêbedos que os observavam, deixaram a aldeia cavaleiro e ermitão, dirigindo-se à floresta onde o homem bom dizia ter residência. Não iriam porém para sua morada, e sim para uma gruta da qual Owain notou que provinham gritos horrendos.

- Que maravilha é esta, senhor?- Perguntou o cavaleiro.

- Senhor, cá se encontram as portas do Purgatório.

Owain avançou, impelido por superior vontade. Ficou para

trás o homem bom. O cavaleiro andou até parar diante de um

poço. Hesitou diante deste, vendo abaixo coisas terríveis. Até

que escutou a voz:

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- O que fazeis aqui?

Era um demônio. Owain não conseguiu persignar-se. Apenas pensava em seus pecados. De maneira que o demônio, sem receio, derrubou-o e arrastou-o consigo ao fundo do poço.

*

Fala agora o conto sobre o que houve a Owain depois que foi levado ao Purgatório, atirado perto de um rio que era o mais espantoso e o mais horrendo que já fora visto por seus olhos.

Parecia certo que quem tocasse suas águas morreria, pois nadavam por ele enormes vermes e serpentes peçonhentas.

O demônio usou um açoite para golpear as costas de Owain, que foi ao chão, sem forças para olhar para trás e se levantar. O demônio depois o pisoteou, enquanto dizia:

- Eis o destino dos cavaleiros desleais e vis, que não respeitam seus irmãos de armas: descem à pousada das trevas!

Foi o espírito imundo que ergueu a cabeça de Owain para que fosse visto por seus olhos o que havia em outras partes do Purgatório, como num mau sonho enxergando um maltrapilho, que, embora coroado, era muito magro e infeliz. Fora assentado sobre uma pedra áspera e pelos sulcos de seu rosto fluía o sangue que os demônios faziam escorrer de uma elevação espinhosa. Sangue de pecadores. A coroa estava repleta de ferrugem, causada talvez pela presença do mal. De repente, o homem gritou:

- Irmãos, onde estais? Rogo que oreis por mim! Se estiverdes na Terra, orai sem cessar nas igrejas! Se estiverdes no Céu, lembrai-vos de mim na casa da alegria, rogando ao alto Mestre!

Foi captada pelos ouvidos de Owain uma resposta em voz severa:

- Tu te fizeste esquecer por teus irmãos. Agora, restam-te a fé e

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a esperança, que deves recobrar, ou não merecerás galardão.

O coração de Owain foi invadido pelo terror. Mas muito mais havia para ser visto e ouvido.

*

Havia mulheres com línguas presas às rochas, marteladas por demônios de corpos diminutos mas imensos membros. Eles riam, enquanto para elas gritar era impossível.

Com o peito tomado por lancinante agonia, os olhos do cavaleiro foram mantidos abertos pelos dedos afiados do demônio, parecendo-lhe ter diante de si uma velha muito feia e espantosa, que os demônios faziam berrar. Vestimenta nenhuma do mundo a recobria, picada por espadas, garras e insetos.

Logo havia mais de mil diabos colocando nela suas mãos imundas. Esfregavam-se nela e diziam:

- Foste em vida licenciosa! Não respeitaste teu pai nem teu marido! Agora eles rezarão para livrar-te de nosso eterno deleite e teu eterno sofrimento?

E o demônio que se impunha sobre Owain lhe falou:

- Não será ela tua amada?

Acabara de introduzir no coração do cavaleiro a dúvida, levantando-o com suas patas e, após voar sobre o rio horrendo e seguir adiante, descendo-o em um vale muito negro e muito escuro, além de fundo, onde a luz fora completamente esquecida.

Ali havia choro e infelicidade, mas não se entendia nada do que diziam as sombras, que pertenciam a grandes pecadores.

- Ai, infelizes!- Disse o demônio.- Não há companheiros meus ao redor destes mesquinhos, mas ainda assim eles se veem atormentados e chicoteados. São fracos e tolos!

Introduzia em Owain ainda maior medo, que se tornou

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desesperador quando outros braços o agarraram, de outros demônios, e eram dezenas, carregando-o, para seu espanto, para uma cova incandescente.

Esta cheirava mal, emitia um forte fedor de enxofre, e aos olhos do cavaleiro, quando sobre ela, era como se tivesse sido aceso ali todo o fogo do mundo.

- Queimem! Ele deve queimar!- Gritou o primeiro demônio, enquanto fazia com que Owain visse, em meio àquele fogo, sua amante, a esposa de Morholt, nua e descabelada com as mãos cobrindo os seios mutilados, sentada em uma cadeira com a língua puxada para fora. Seu corpo de pele muito branca queimava tal qual vela grossa.

Foram lágrimas que saíram dos olhos do cavaleiro ante tal visão.

*

Owain decidiu invocar, não só para si como para evitar a eterna danação de sua amada, o santo e terrível nome de Jesus Cristo, diante do qual tremem os infernos e se dobram os joelhos de todas as criaturas que os possuem.

Os demônios contorceram seus rostos de desespero e ira, tendo de se afastar da luz em meio à qual descia um rei muito formoso cercado por uma companhia de anjos. Estes traziam consigo uma coroa de ouro e faziam em volta dele grande alegria com seus cantos e seus sorrisos. Alguns tocavam harpas, enquanto outros brandiam espadas das quais emanavam feixes de luz perfeita.

O cavaleiro compreendeu que aquele não era outro senão o

filho de Deus. E, uma vez recobrado seu arbítrio, reapareceu

diante do poço para o qual o demônio o tragara. O eremita

estava ao seu lado. Perguntou:

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- Vistes? Estais arrependido?

- Não podeis imaginar o quanto, senhor.- Respondeu Owain, que daquele dia em diante não deixaria nunca de orar por sua amada, a esposa de Morholt, que por sua vez ainda o perseguia.

*

Conta a história que, quando Owain e Morholt tornaram a ficar frente a frente, o segundo colocou o escudo adiante do corpo, preparou sua lança e pronunciou palavras injuriosas.

Estava pronto para disparar em direção ao outro cavaleiro e despedaçá-lo:

- Senhor, vos mostrastes indigno de vossa posição e linhagem.- Disse.- Cavaleiros não devem tomar um a esposa do outro, e sim socorrer as damas e donzelas do perigo. Vós, ao contrário, colocastes em perigo tanto vossa vida como a de minha esposa.

E primeiro ela sucumbiu, agora será vossa vez, sob esta lança que sempre foi perigo para outros homens e dragões.

Só que para a surpresa de Morholt, Owain desceu de seu cavalo e se ajoelhou, inclinando a cabeça. Disse então:

- Senhor, eu me nego a lutar convosco.

- Como podeis dizer isso? Não possuís honra?- Perguntou-lhe, perplexo, Morholt, ficando mais furioso.

- Confessei meus pecados a um bom eremita e agora estou limpo de mácula. Entrego-me à morte sob vossa espada, pois não sou digno de derramar vosso sangue.

- Pois ainda que não reajais, eu o derramarei! Não terei piedade de um cavaleiro perjuro!

Morholt estava então pronto para decapitar Owain.

Mas antes que descesse a espada, ouviu o estrépito de outros

cavaleiros se aproximando. E quando olhou para trás, Morholt

viu que era o rei, acompanhado por seu condestável e por toda

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sua comitiva.

- Ordeno que vos detenhais de imediato!- Disse o rei.- Em nome de Jesus Cristo!

- Nem mesmo vós podeis deter-me, senhor.- Disse Morholt.- É imperioso que eu mate o homem que manchou minha honra.

- Já sei o que se sucedeu.- Disse o rei. E perguntou:- Não sois cristão, senhor Morholt?

- Evidente que sou!

- Assim sendo, por que não perdoais vosso irmão? A esposa infiel já está entre os mortos. E bem conhecemos os ardis de Eva, e como são capazes de desviar os homens. Não credes que seja melhor perdoar um homem que se humilha, que se mostra sincero em seu arrependimento, disposto a entregar sua própria vida?

Morholt passou a ora olhar para o rei, ora para Owain, que permanecia no chão e com a cabeça baixa. Até que, por fim, largou a espada, subiu novamente em seu cavalo e partiu.

Seguiram-no os seus. E só então Owain reergueu o olhar, agradecendo ao rei:

- Não tenho palavras para agradecer-vos, senhor, ainda que minha gratidão maior seja para com o Senhor do Céu, que muitas maravilhas me revelou nestes tempos e me deu nova oportunidade a fim de que não caísse em maior tormento.

- O que pretendeis agora fazer, cavaleiro?

- Retirar-me-ei do mundo, senhor.

Owain ficou de pé. Mas muitas vezes mais se ajoelharia até o final de sua vida, que levaria como monge branco. Dessa maneira, ficou certamente livre não apenas do Inferno como também do Purgatório, ascendendo ao Paraíso ao término de seus dias.

Morholt também se tornou monge, pois nada mais no século

era de seu interesse. E o rei não lamentou ter perdido os dois

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cavaleiros:

- Se os perdi para Deus, não devo jamais me queixar.- Disse a seu senescal.

Assim terminamos este conto, tão repleto de maravilhas e mistérios. Chegou o momento de render graças e repousar.

Não busco louvores, por isso permaneço sem nome, como irmão e amigo.

Que Deus seja louvado em sua eterna glória.

Ámen.

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Clemência

Dos dois exércitos em confronto, apenas um parecia humano.

O outro, não só devido ao fato de seus membros se revestirem com peles de lobos, dava a impressão de ser constituído por terríveis feras bípedes: eram berserkers, que, além de ferirem com machados e espadas, também faziam uso de suas unhas e dentes e demonstravam uma força prodigiosa.

Jarl Hakon, o líder do exército humano, viu diante de seus olhos um pedaço do braço direito de um de seus soldados, pele, carne e ossos, ser arrancado com uma única mordida. Isso que seus guerreiros estavam muito melhor protegidos, com elmos, escudos e cotas de malha, enquanto os berserkers se limitavam a ficar cobertos de lobos e havia entre eles, por incrível que pudesse parecer, com toda a aparente ausência de razão e sensibilidade, uma mulher.

Ela lutava ao lado do mais alto entre os homens ali presentes:

seu marido Hrolf, peludo e muito magro se comparado a jarl Hakon, mas cuja potência dos golpes partia com facilidade qualquer escudo de madeira. Sua arma um longo machado.

Todavia, a despeito de toda a ferocidade, os berserkers estavam em menor número. Não pareciam sentir dor, seguiam lutando depois de terem orelhas ou dedos cortados, olhos perfurados ou de estarem produzindo rios de sangue a seus pés;

porém não eram imunes à morte. De modo que começaram a cair, também perfurados por flechas; e o próprio Hrolf ficou muito ferido enquanto se esforçava para se aproximar do comandante do outro exército.

Houve um momento em que tudo pareceu se tornar névoa:

não via mais por perto sequer sua esposa Bodil. Foi quando um

guerreiro portando uma maça pesada se aproximou. Tentou

golpeá-lo, com a intenção de esmagar-lhe o crânio:

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- Chegou a hora de sua morte, lobo!- Porém algo se interpôs entre ambos, como um relâmpago: e era na verdade uma luminosa donzela armada, que deteve com seu escudo o ataque do inimigo.

Ela desapareceu em um instante, sem que nenhum dos dois a visse. O guerreiro recuou, perguntando-se enquanto a surpresa o dominava: “O que foi isso?! Alguma coisa me repeliu!”, ao passo que Hrolf recobrara a claridade da visão e a força, avançando para decapitá-lo com seu machado.

Completamente lúcido, ouviu então de um de seus lobos, que, logo atrás, deixara de rosnar para dizer:

- Temos que recuar, jarl Hrolf!

O líder dos berserkers pareceu visivelmente cansado e abatido, mas sua vista seguia clara, assim como ergueu sua voz para ordenar a retirada.

A batalha fora perdida. Restava aos fugitivos, horas depois em seu acampamento, agradecer pela sobrevivência e cuidar das feridas. Para isso, Hrolf contava com as habilidades de sua mulher, sua valente escudeira, que, assim como não temia dragões, não se intimidava com sangue e pus.

- Maldito seja jarl Hakon por nove gerações! Esconde-se atrás de seus homens e foge do confronto comigo.- Bradou Hrolf, ignorando a dor.

- Eu já o amaldiçoei por dezoito gerações. Que as terras que nos tomou não deem nenhum fruto, pois nelas ainda está o sangue de nossos filhos.- Replicou Bodil.

- Ainda não vi nenhuma lágrima escorrer dos seus olhos pelo assassinato de nossas crianças, mulher.

- As lágrimas talvez não passem de um hábito que dá aos olhos um prazer mesquinho, enquanto que a alma se contorce e o restante do corpo se encolhe.

- As lágrimas de Freya fertilizam o solo!

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- Freya chorará por nós e eu lhe darei novos herdeiros, Hrolf.

Mas o que ficou no passado permanecerá seco.

- Suas palavras não parecem conter esperança.

- Diante do que temos vivido, só me restar esperar pelo Folkvangr.

- Eu decidi. Vou consultar a volva!

- Nada lhe garante que ela lhe trará esperança.

- No campo de batalha, eu estava próximo do fim. Tão prejudicado que quase não enxergava. Mas o guerreiro que ia me matar estranhamente recuou, como se algo o tivesse repelido, enquanto eu recuperei minha visão e minhas forças para conseguir enviá-lo ao Valhala. Tenho a sensação de que ainda podemos confiar que os deuses nos darão a vitória neste mundo.

- Se acredita que a volva poderá esclarecê-lo a respeito disso, então vá. Embora eu creia que seja mais provável que uma flecha tenha atingido esse guerreiro antes dele ser abatido por você. Foi isso: uma flecha deve tê-lo feito cambalear, enquanto você se recuperou de um mal-estar temporário.

- Não havia nenhuma flecha e as feridas de que você agora está cuidando ainda sangravam. Eram muito mais graves do que parecem ser agora. Talvez até estivessem em maior número, mas algumas desapareceram.

- Você não tem olhos para ver tudo.

- Não adianta discutir com você, que perdeu a fé nos deuses!

- Não perdi a fé. Apenas sinto que os deuses nos chamam...Para longe de Midgard.

- Não, ainda é cedo!- E, logo após receber o tratamento, jarl Hrolf se dirigiu à tenda da volva, a vidente do acampamento.

Sentou-se diante dela, uma mulher de olhar muito antigo, ainda

que não aparentasse velhice, e requisitou:- Desejo saber o que

as nornas me reservam.

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A volva jogou as runas e depois disso permaneceu observando-as, deixando o jarl impaciente. Tanto que ele resolveu perguntar:

- O que vê? Por que esse silêncio?- Ao que ela finalmente respondeu:

- Vejo que o senhor, jarl Hrolf, tem contado com uma forte proteção.

- Eu sabia que os deuses não me abandonariam, após todas as injustiças cometidas contra mim e a minha família!- Replicou Hrolf.

- Atenção, senhor. Há uma proteção, mas cujo fio logo será cortado pelas nornas.- E Hrolf mudou de semblante, parecendo preocupado. A vidente prosseguiu:- Terá de sobreviver à próxima batalha com suas próprias forças.

- Então ao menos eu não estava errado! Alguém impediu minha morte na última batalha!- E queria mais detalhes:- Foi um deus ou uma deusa? Foi o próprio Odin?- Ao que a volva respondeu:

- Não foi o senhor das batalhas. Sinto uma presença clemente.

- Isso nada esclarece.

- Não seja ingrato, senhor. Seus olhos já receberam uma nova luz.

O jarl encarou a volva, ao passo que, perto dali, crianças brincavam, parecendo desafiar o céu vermelho. O Sol ainda estava presente, enquanto a Lua surgia e, invisível, mas vigilante, a mesma donzela armada que salvara Hrolf as observava com uma expressão serena. Um semblante que desapareceria na batalha seguinte, quando, em pleno ocaso, desferiu golpes junto com seu protegido, triplicando sua força.

Só parou, e seu rosto foi tomado pelo temor, quando viu surgir Odin, caolho, empunhando a lança Gungnir.

- Não cabe a uma valquíria decidir o destino de uma batalha

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ou de uma vida. Sua função é apenas recolher os caídos, Eir.- Disse o rei dos deuses, inquirindo a seguir:- Você se deixou fascinar por um lobo?

Eir não conseguiu responder e o senhor das batalhas, sem ser visto por nenhum guerreiro, a envolveu com seu manto.

Desapareceram, enquanto em Midgard o combate prosseguia:

Hrolf ainda parecia imbatível, conduzindo uma perseguição a Hakon e seus homens, que fugiram para uma floresta.

Entre as árvores, onde se poderia pensar que os lobos encontrariam seu lar, os que escapavam pareceram desistir de correr e se voltaram para lutar.

Na violência do embate, quase todos os homens de Hakon foram mortos e o próprio perdeu sua mão direita, no confronto entre os líderes, arrancada pelos dentes de Hrolf.

Contudo, os arqueiros chegaram, disparando contra os berserkers.

Hrolf foi atingido primeiro, no ombro, por uma flecha.

Depois, enquanto ainda ignorava a dor, um homem com uma lança o transpassou pelas costas. Sua queda significou a subsequente ruína de todo seu exército.

Bodil, ensanguentada, não deixou de pronunciar suas últimas palavras:

- Meu sangue secará estas terras para sempre.- E caiu.

- Senhor!- Hakon foi rodeado por seus homens, enquanto o sangue escorria pelo braço que perdera a mão. Firmou-se para dizer:

- Não se preocupem comigo. O que importa é que jarl Hrolf foi abatido. Seus selvagens não mais saquearão nossas casas.

Tomamos suas terras e suas vidas.- E complementou, após

lançar seu olhar para o céu e ver o Sol presente ao lado da

Lua:- Parece que a Sol

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hoje se recusa a partir. Creio que deseja

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testemunhar nossa vitória.- E se voltou bravamente para os seus homens:- Acorrentem o corpo de jarl Hrolf. Peçam às volvas para que consagrem a Odin as correntes que o prenderem e assim o enterrem. Dessa maneira, não correremos o risco de um draugr que à noite se solte para se transformar em lobo.

Assim, o corpo de jarl Hrolf, líder de berserkers, seria enterrado entre correntes.

A valquíria Eir, por sua vez, também seria acorrentada, mas viva, a uma rocha obscura.

Odin se aproximou para inquirir:

- Se não foi o lobo que a fascinou, diga-me o que houve.

- Foram seus filhotes.- Eir deu sua resposta, erguendo a cabeça:- Não podia permitir que um assassino de crianças saísse vitorioso.

- Não é sua função decidir o que é justo. Antes de invadir as terras de jarl Hrolf, jarl Hakon teve por diversas vezes suas terras saqueadas por jarl Hrolf e sua gente.- Replicou o rei dos deuses. E logo complementou, enquanto Eir parecia sem forças:- Velhos morrem. Homens morrem. Mulheres morrem.

Crianças morrem. As nornas são impiedosas ao cortar qualquer espécie de fio. Você ainda é uma valquíria jovem: tem muito o que aprender. E a punição fará parte de seu aprendizado, pois valquírias não são lobas.- E enquanto Odin desaparecia, Eir voltou a abaixar a cabeça; lobos apareceram ao seu redor, como filhos das trevas. Rosnaram antes de começar a mordê-la.

O tormento persistiu por horas, até se retirarem.

Na noite seguinte, pois ali não havia dia, depois do corpo da valquíria ter se reconstituído, os lobos regressaram.

Um se aproximou mais.

O tormento recomeçaria?

Limitou-se, no entanto, a lambê-la; e assim também fariam os

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demais.

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Fortaleza I

A paisagem à sua frente não apresentava mais nenhuma batalha. Apenas um céu e um sol límpidos, que banhavam os campos com sua luz. Os cervos bebiam calmamente à beira do rio. As árvores apresentavam uma vida e um brilho que Renárd jamais percebera antes. Estava na companhia dos pássaros. Não tinha mais armadura. Não trazia mais consigo sua espada.

Podia enfim respirar tranquilo, profundamente, e ficou assim por horas, até ao misterioso anoitecer aflorarem as recordações.

Longas memórias! Que lhe exigiam atenção. Como o metal na forja exige do ferreiro.

Com estas, vieram a dor e a saudade; contudo, só lhe restava ir adiante, entregando-se ao caminho suavemente iluminado pela Lua e pelas estrelas. Não via nem ouvia mais nenhum animal. Ao menos não havia monstros nem luta. Só precisava andar. Caminhar. E continuar respirando. Não derramaria mais nenhuma gota de sangue.

Começou a se lembrar em detalhes de seus primeiros dias como guerreiro. Naquela época, era puro fogo, e também ignorância. Sua alma inquieta se debatia o tempo todo em busca do que queimar.

Ao chegar à cidade de Gedom, capital cujo nome compartilhava com o reino como um todo, deparara-se com uma multidão que mais parecia uma roda emperrada. Alguns até queriam se mover, mas o medo os impedia. Faltava óleo para fazer aquela engrenagem girar. O óleo da coragem.

“Não é possível que todos aqui sejam medrosos! Bando de

covardes! É esse o espírito dos homens de Gedom?”, dois

sujeitos estavam mortos aos pés de um gigante de machado

longo e armadura pesada. Um fora decapitado, o outro partido

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ao meio. Haviam lutado ao mesmo tempo contra aquele colossal mercenário, que estava tentando chamar a atenção do rei e de sua guarda, os melhores cavaleiros de Gedom.

Soldados medianos não estavam à sua altura. “Esta é uma cidade de fracos, e não a fortaleza famosa da qual tanto ouvi falar! Vocês precisam de homens como eu, não de lendas!”, evidente que estava em busca de ouro, o que esperava conseguir após desmoralizar os guerreiros da cidade.

“Eu vou lutar com você.”, fora então que o jovem Renárd se adiantara. Era moreno, seus olhos negros irradiando uma luz ambígua que escapava por seu elmo, e alto, embora menor do que o gigante bruto. Não tinha ainda uma armadura completa, com, além do capacete, proteções metálicas apenas para os ombros, os joelhos e os antebraços.

“Ora, ora...Até que enfim um rapaz valente! Apesar que você não parece ser um cavaleiro.”

“E não sou.”, Renárd respondeu secamente.

“Com quem andou treinando, moleque?”

“Já treinei com o meu pai e os meus irmãos.”

“E eles são cavaleiros?”

“Não. Eles não eram cavaleiros.”

“E você quer me enfrentar?!”, liberou uma desordenada gargalhada. “Tem tanta pressa assim de morrer, garoto?”

Renárd ignorou a provocação e atacou.

O mercenário, ainda que surpreso, protegeu-se com seu

machado, uma arma que parecia de extraordinária eficiência

tanto para o ataque como para a defesa. Apesar da velocidade

do rapaz, tentou manter a calma e a frieza. Experiente,

pretendeu esperar que o jovem se distraísse em seu ímpeto para

contra-atacar com eficácia. Já matara inúmeros guerreiros

habilidosos, aos quais sobrara ansiedade e faltara

discernimento.

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Contudo, subestimara a força e a destreza de Renárd. Após alguns choques entre as armas, o machado do brutamontes se partiu, provocando pela primeira vez espanto entre os que se achavam ao redor. Mesmo com sua armadura, o adversário ficou indefeso e de nada adiantou pedir clemência. Era o fim.

O sangue capturou o pôr do sol. Foi quando se ouviu o trote de cavalos que chegavam.

Renárd olhou para a frente e para cima. Quem vinha adiante era o rei Mark, que mesmo com a barba e os cabelos já brancos continuava sendo um grande guerreiro, de porte elevado e olhar altivo, jamais soberbo. Acompanhavam-no outros três homens, membros da guarda real. Pararam à frente do jovem e do cadáver do enorme mercenário.

O soberano nada disse a princípio. Da mesma maneira que Renárd. Era um duelo de olhares. Todos permaneceram em silêncio, até que o jovem embainhou sua espada e se ajoelhou diante do rei, dizendo: “Estou aqui, meu senhor, porque quero me tornar um cavaleiro. Quero ajudar a proteger o nosso reino.

Sei que não sou nobre de nascimento, mas tenho meu valor.”

“Isso me parece certo.”, pronunciou-se o rei Mark. “Um mensageiro veio me avisar que havia um homem violento e perigoso causando transtornos na praça central. Por isso viemos. Mas você agiu antes de nós e foi bem-sucedido.

Acredito que mereça nossa consideração. Contudo, gostaria de saber de onde veio e como conseguiu estas armas se provém de família humilde.”

“Venho do vilarejo de Auburg, da região da Floresta Negra.

Meu pai era ferreiro e me ensinou a arte. Todo metal que trago comigo foi trabalhado por minhas próprias mãos.”

“E o que houve com o seu pai?”

“Foi morto por bárbaros, assim como minha mãe e meus

irmãos. Apenas eu consegui sobreviver, e por muito pouco.”

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“Sinto muito, rapaz. Mas saiba que nem a sua história nem o seu feito de hoje são suficientes para torná-lo cavaleiro.”

“Estou consciente disso. Sei que um homem de origem inferior não se torna cavaleiro da noite para o dia. Mas gostaria de participar das batalhas contra os bárbaros e os reinos hostis de alguma forma. Dessa maneira, quem sabe algum dia Vossa Majestade me considere digno de me nomear como um membro de sua guarda.”

“Não acha que está indo longe demais, garoto?”, indagou um dos homens a cavalo, de cabelo e bigode loiros.

“Não se preocupe, Hernand. O rapaz não disse nada de ofensivo. Ele só está mostrando vontade. E poderá nos ser útil não apenas como guerreiro, mas também na feitura de armas.”

“Já temos muitos ferreiros em Gedom, senhor. E são todos homens experientes.”

“Experiência não é tudo. E um a mais não irá nos prejudicar, pelo contrário. Afora que não tenho dúvidas que é talentoso: a espada que ele forjou partiu um machado de duas mãos! Não está vendo?”

“Talvez ele esteja mentindo sobre ter forjado a espada...”, nisso, os olhos de Renárd queimaram; e por essa razão os desviou de Hernand: não queria demonstrar sua raiva.

Só que era impossível contê-la; e, mesmo sendo um cavaleiro,

aquele homem não tinha o menor direito de duvidar de seu

trabalho, de seu suor. O rei percebeu tudo, dizendo a seguir: “A

postura desse jovem não é a de um mentiroso. Aguce seu

sentido de observação e contenha as suas palavras, Hernand.”,

fez o cavaleiro silenciar, na sequência voltando a se dirigir a

Renárd: “Repito: não tenho dúvidas que seja talentoso. No

entanto, todo dom deve ser temperado. Levante-se agora! Você

terá a oportunidade de se aprimorar junto a nós.”, tudo o que o

rapaz queria ouvir; com isso, a raiva temporariamente se

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dissipou. Pôde ser levado à Torre da Guarda, onde, para a surpresa de ambos, foi nomeado escudeiro de Hernand.

“Por que esse garoto?”, o cavaleiro questionou a decisão do rei, que de imediato rebateu:

“Você não está em posição de me contestar.”

“Sinto muito, Majestade. Peço desculpas! Não era o que eu pretendia, mas é que...”

“Fiz isso porque está sem escudeiro já há algum tempo, desde que Poul morreu. E será uma oportunidade para que o jovem aprenda muito. Sei que poderá lhe ensinar muitas coisas e torná-lo melhor. Confio em você.”

Hernand nascera em uma família privilegiada. Seu pai lhe dera, em sua infância, um quarto de brincar, para onde transferia seus pequenos tesouros e, utilizando um falso altar, passava-se por sacerdote. Não porque desejasse se tornar um: e sim para caçoar destes, já que sempre quisera apenas ser um guerreiro. Seus amigos riam de sua imitação, principalmente quando tropeçava e derrubava o falso líquido sagrado. Não lhe agradava nem um pouco quando algum sacerdote vinha pedir a seu pai fundos para um templo. Considerava um tolo desperdício de recursos importar-se com a devoção a seres superiores, que deviam ser indiferentes à humanidade.

Com o tempo, entretanto, aprendera a temer a ira dos deuses ao enfrentar a dureza das perdas, chegando a se questionar se estas não tinham ocorrido em razão de sua desrespeitosa postura. Nesse caso, de que serviam deuses tão cruéis? Só lhe restara todavia, já no final de sua adolescência, orar para que acolhessem bem a alma de Elim, sua irmã mais velha, acometida pela doença.

Seu sorriso não se apagara com facilidade: foram meses de agonia, entre tosses sangrentas e palidez lancinante.

Confessara-lhe, pouco antes de partir: “Parece que não há mais

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sangue em mim, irmão. Que somente me restam os ossos.

Poderá uma mulher se sustentar assim?”

Quando já haviam se passado meses de seu falecimento, ainda tinha em sua mente a imagem de Elim, seu sorriso, seus gestos e palavras, vendo-a ao nascer do Sol, durante a tarde, à noite, no almoço, no jantar, fora e dentro do lar. Para onde quer que fosse, era uma faca cravada em suas costas. Uma traição dos deuses? Uma vingança? Se fosse o segundo caso, por que atingir uma inocente?

Elim era diferente. Não era tanto de brincar. Mas sabia sorrir e era forte. Quando outros meninos o repreendiam e o ameaçavam, punha-se à frente. Era muito alta. Para meninos tolos, quase uma deusa a tocar o céu. Para ele, uma torre que, ao desabar, provocara outras quedas. Seu pai se abatera, seus conselhos se diluindo até não haver mais firmeza. Como se fosse apenas sangue, sem ossos.

Retornemos porém agora ao ponto anterior da narrativa, posterior no tempo; quando, após o rei declarar a Hernand sua confiança, só restou ao cavaleiro dizer: “Obrigado, meu senhor.”

Logo se daria conta que seu soberano fizera isso para que também aprendesse. Sofrimentos passados nunca são o bastante. O homem não pode permanecer estático.

Seria um aprendizado mútuo: e de fato os dois juntos cresceram, as diferenças iniciais aos poucos sendo superadas e despontando a amizade. Renárd, mais do que substituir Poul, conquistou seu próprio espaço.

O rei Mark desde o princípio se dera conta das chamas que

envolviam o rapaz, e que iriam fatalmente devorá-lo se nada

fosse feito. Já que Renárd não iria fugir do fogo, era preciso

fazer com que o utilizasse a seu favor. Que as labaredas fossem

transformadas em luz, a ira em esperança. Era preciso lutar não

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apenas com raiva, mas na expectativa da paz. Era necessário evitar a tentação de perpetuar a violência. O prazer deveria estar em outros focos. Que a fogueira servisse para aquecer o corpo e assar o alimento. Uma meta serena: um não à ânsia por vingança.

Hernand ainda tinha uma bela irmã a seu lado, a caçula de seus pais, chamada Eloah, que tanto prezava e que passara a proteger com vigor redobrado após ficarem sozinhos.

Com a aproximação dos dois, ela seria apresentada ao escudeiro.

Um alívio para seus pesadelos de couro, sangue e aço.

II

Gedom costumara permitir, durante o dia, enquanto seus portões ficavam abertos, a entrada de um a dez homens solitários, além de grupos de comerciantes.

Após o incidente com o mercenário, o controle se tornou mais rigoroso, proibida a entrada de armas, recolhidas logo na entrada pelos guardas, a não ser que se tratassem de guerreiros de outras cidades do reino. Soldados estrangeiros que quisessem oferecer seus serviços que entrassem desarmados.

Os anos se passaram e Renárd se tornava mais maduro enquanto o reino se fortalecia. As invasões foram ficando menos recorrentes à medida que as hordas de bárbaros iam sendo vencidas e rechaçadas, assim como as tropas de nações hostis. Além disso, foi estabelecida uma aliança comercial com dois reinos próximos. Mark considerava fundamental estabelecer boas relações com os vizinhos.

Renárd teve um papel fundamental nas vitórias militares, após

um ano de serviço promovido de escudeiro a cavaleiro, com a

veemente aprovação de Hernand, cujo orgulho, com as batalhas

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e cavalgadas, sua vida salva em mais de uma ocasião pelo companheiro, sucumbira sob a amizade. A essa altura, Eloah, com seus cabelos da cor do Sol, era só sorrisos para o rapaz.

Mais três anos e ele, além de ter deixado a barba crescer, tornara-se o mais temido dos guerreiros de Gedom: o cavaleiro negro, assim denominado por sua armadura e seu cavalo, anunciando aos seus oponentes um inverno sangrento ao avançar, tingindo de vermelho a neve nas noites e dias gélidos.

Seu corpo que estava sempre quente, conquanto não fosse mais como o incêndio de outrora, compartilhando seu calor com Eloah no leito que receberam de presente do rei após o casamento. Primeiro haviam se tornado noivos, com as bençãos da sacerdotisa de Bel, deusa da fertilidade, para depois consumarem sua união. A cerimônia matrimonial fora das mais belas já vistas na cidade, com pétalas de diferentes tipos de flores espalhadas para o herói e sua nova esposa. A sacerdotisa, que se vestia de branco, colocou os primeiros colares, de ouro, nos pescoços dos noivos trajados em negro. Hernand que, na ausência dos falecidos pais, cingiu-os de vez com os colares de prata. Graças à popularidade de Renárd, estavam todos exultantes.

De sua noiva, Renárd recebeu de presente de casamento um colar que ela mesma produzira, feito de nozes-moscadas e pétalas de rosas e violetas, que colocou sobre sua cabeça. Algo singelo, mas pleno de verdadeira doçura.

Crescia a esperança de uma nova era, em que os luares não fossem tão turvos e a bandeira da paz pudesse permanecer firmemente hasteada, sem temer que os raios do Sol a queimassem.

Viúvo e sem herdeiros, Mark se daria conta que era tão órfão

quanto Renárd: órfão dos filhos que desejara e que sua esposa

não tivera tempo de lhe dar. Rei e cavaleiro acabaram criando

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entre si laços mais profundos do que o habitual entre senhor e vassalo. A gratidão, a admiração e o afeto eram mútuos, mesmo que manifestados de maneiras distintas, de forma coerente também com as posições que ocupavam, ainda que não só. Era o soberano que se aproximava para abraçá-lo ou beijar-lhe a testa; o mais jovem dificilmente sorria, mas se inclinava e agradecia por tudo com sincera reverência, sem sentir o menor peso em suas costas.

Consequentemente, Mark aguardava que Eloah lhe desse um neto. Não por acaso a visitava com frequência e a tratava como se fosse uma filha caçula.

Segundo a lei do reino, caso não tivesse rebentos, o soberano tinha o direito de elaborar um testamento que designaria seu sucessor. Se isso não fosse feito, a guarda real e o conselho de ministros se reuniriam para eleger o novo rei.

Mark já pensara em alguns candidatos, como o próprio Hernand. Mas com o passar do tempo, Renárd lhe parecia cada vez mais o homem adequado. Apesar de sua origem plebeia, não só já fora nomeado cavaleiro como seu coração era nobre.

Tratava-se de um líder nato, só precisando dominar seu fogo.

Como o rei ainda pretendia viver por um bom período, acreditava que haveria tempo o bastante para seu filho adotivo amadurecer plenamente. Em algum momento, talvez fosse inclusive oficializar a adoção.

Quanto ao relacionamento entre Renárd e Eloah, cada um parecia ter consigo um sol e uma lua. A claridade que um emanava se refletia no outro, e vice-versa. Apoiavam-se. E embora ela precisasse olhar para cima para encará-lo, devido à diferença de altura, ele sempre sentia que estavam no mesmo plano.

Assim, o Sol ia banhando as planícies do reino e o céu diurno

era plenamente azul. O verão e a primavera ofereciam noites

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tranquilas, frescas, de brisa acalentadora. O comércio prosperava. Na praça central, apresentavam-se diversos artistas de rua, entre mágicos e malabaristas. As crianças podiam sorrir e brincar com seus cães de estimação. Sem que houvesse rainha, parecia de todo modo haver um invisível carinho de mãe à disposição de todos os súditos.

No entanto, não era tempo de amolecer. Renárd e os outros cavaleiros continuavam treinando e repelindo as mais raras incursões bárbaras, que não alcançavam Gedom e as cidades próximas graças à rede de mensageiros que Mark criara. As informações chegavam a tempo de deter saques e carnificinas.

Até que alguns velhos inimigos voltaram a se mover: dois reinos rivais se uniram, visando a prosperidade da aliança que tinha seu centro em Gedom; eram Lascaria e Edon.

Antes, Mark achou que seria melhor dedicar sua atenção a Lascaria, cujos domínios eram áridos, sem grandes recursos.

Enviou primeiro uma expedição de paz, com a oferta de presentes e uma proposta de aliança e cessação das antigas inimizades. Contudo, o rei Asor não estava disposto a ceder.

Riu do que lhe foi exposto, dizendo: “Por acaso aquele frouxo do Mark acha que vou me esquecer com tanta facilidade do que vocês já causaram a nós? Não vou me vender por tão pouco!”, referia-se a rixas que remontavam aos avôs dos soberanos atuais. Fora o avô de Mark que atacara Lascaria no passado, restringindo seu território, tomando suas terras mais férteis, impondo-lhe tributos. O atual senhor de Gedom eliminara as taxas desde que assumira o trono, mas em sua proposta de paz não estavam incluídas as terras conquistadas outrora. Com isso, apenas dois sobreviventes retornaram da expedição, trazendo consigo partes dos corpos dos demais, que haviam sido esquartejados.

“Cometi um grande erro. Deveria ter incluído aquelas terras,

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que em sua origem não são mesmo nossas, na negociação.

Apenas me passei por nobre e magnânimo. Mas fui um crápula, como era o meu avô. Se quero realmente a paz entre todos os reinos, preciso agir coerentemente.”, Mark se abriu com Renárd.

“Mas o senhor agora pretende ceder as terras?”

“Não há mais como fazer isso. Ele também caiu em desonra ao assassinar a maior parte dos homens da nossa expedição, e de uma forma tão brutal. Está longe de ser alguém que mereça a nossa complacência. Se o nosso reino cedesse agora as terras, toda a nossa população me veria como um covarde. Eu perderia toda a moral, todo o respeito, por permitir algo como o que aconteceu. E ele nos consideraria fracos e procuraria tirar proveito da situação, não só recuperando o que lhe é de direito como buscando conquistar todo o nosso território. De todo modo, a culpa foi minha, pois o humilhei.”

“Não vejo dessa maneira.”

“Qual a sua visão, Renárd?”

“O senhor acredita mesmo que ele aceitaria de coração a paz se desde o princípio tivéssemos proposto a devolução das terras conquistadas no passado? Vossa Majestade adequadamente observou que ele não é um homem merecedor de compaixão.

Caso devolvêssemos as terras, de qualquer forma nos veria como fracos, que fazem qualquer coisa, que cedem qualquer uma de suas posses, para não lutar, pois temem ser derrotados, sabem que são incapazes de vencer uma guerra. Não demoraria muito e lançaria um ataque violento, após provavelmente aceitar a restituição e simular uma intenção pacífica. Alguém que mata mensageiros da maneira como ele matou não é alguém disposto à paz. A nenhuma forma de paz. Ele cultiva um forte revanchismo.”

“É verdade. Ótimas observações.”

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“O senhor não pode se deixar envolver por uma culpa que não é sua. E nem pela tristeza de uma sensação de fracasso. Pois não iremos fracassar. Chegaremos à paz. Mas para isso, antes será necessário lutar. Não para conquistar, como foi em outros tempos; mas para nos defendermos. Quanto às terras que foram de Lascaria, poderemos restituí-las no dia em que Lascaria for verdadeiramente pacífica e tiver em seu trono um soberano tão nobre quanto Vossa Majestade.”, Mark sorriu com leve melancolia em reação às palavras de seu melhor guerreiro, que permaneceu sério.

O cavaleiro negro assim voltou à ação.

E, numa ocasião em que os dois exércitos ficaram frente a frente, o rei Asor desafiou as tropas comandadas por Mark:

“Reconheço que vocês podem ser bons guerreiros. Mas ainda são humanos! Não podem vencer nosso melhor soldado.”, referia-se a um gigante de pedra azul que avançou. Media quase três metros de estatura e tinha chifres nas laterais de sua cabeça. Tratava-se de um golem, de uma grotesca estátua animada por um feiticeiro da corte de Lascaria. “Lanço um desafio! Se algum dos homens de Gedom conseguir vencer esta criatura, filha de nossa sabedoria, da magia que nos protege, declararei nossa rendição!”

O medo tomou conta dos homens de Mark. Gedom não tinha atualmente nenhum bruxo à sua disposição. A magia despertava receios e temor mesmo no rei.

Asor riu diante do burburinho dos soldados.

“Você ficou louco?”, Hernand colocou sua mão no ombro de Renárd quando o cavaleiro negro desceu de sua montaria e foi avançando.

“É preciso que alguém vá.”, replicou o guerreiro.

“Você não vai. Acha que pode vencer aquela coisa? É fruto de

magia!”

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“Não tenho medo de magia. Aquele mercenário que enfrentei quando cheguei em Gedom era quase do tamanho dele.”

“Não é a mesma coisa! Esse monstro não é de carne e osso.

Não quero ver a Eloah chorando por você depois. Não quero ver o reino em luto. Nós podemos recusar o desafio dele e lutar em conjunto contra essa coisa.”

“Isso nos desonraria. Nos rebaixaria ao mesmo nível dele.”

“Você está é preocupado com a sua honra como guerreiro.

Não quer admitir que exista alguém, ou algo, que você não possa derrotar.”

“Estou preocupado com o reino. Asor disse que irá se render se alguém vencer esse monstro. Será o fim de ao menos uma frente de guerra.”

“Acredita nele?”

“Não estou certo. Mas se ele não cumprir com a palavra, então poderemos usar qualquer estratégia desonrosa ou suja sem o menor pesar.”

“Você por acaso tem alguma coisa desse tipo em mente, que ainda não empregou?”

“Não. Mas se for necessário, estou certo de que terei alguma boa ideia. E não vou deixar de aplicá-la.”, assim, Renárd se apresentou, e os dois exércitos ficaram em silêncio. Mas o semblante de surpresa e leve receio de Asor não durou muito;

logo voltou a sorrir, confiante.

Duvidara que algum dos homens de Gedom fosse se oferecer, e a recusa do confronto individual seria uma oportunidade para desmoralizar seu oponente. Com a moral baixa, qualquer exército podia ser derrotado com mais facilidade. Ainda mais com um golem ao lado.

De qualquer maneira, procederia ao massacre depois, sem

pressa. Nenhum guerreiro humano podia ser capaz de abater

um golem. E sendo derrotado o cavaleiro negro, o melhor

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homem de Gedom, do qual já ouvira falar muito, as tropas de Mark ficariam apavoradas e entrariam em colapso. Tudo estava caminhando para seu triunfo, acreditava.

“Mais do que corajoso, é um idiota temerário! Os deuses estão mesmo do meu lado!”, refletiu Asor, enquanto o rei Mark acabava de engolir a seco. Não tirava mais os olhos de Renárd, que agora estava a pé. Hernand ficou ao lado do rei e o fitou, dando a impressão de estar preocupado. O soberano pareceu ignorá-lo. Não conseguiam trocar nenhuma palavra.

O golem estava armado com uma montante de tamanho assustador. Mesmo a espada de duas mãos do cavaleiro negro parecia insignificante se comparada à arma de seu rival.

Renárd desistiu de se impor com o olhar ao perceber que a criatura não tinha expressão. Não possuía nenhum sentimento.

Era uma máquina de lutar.

“Os homens de Gedom são mesmo valorosos! Talvez não tenha sido a melhor escolha, a minha.”, ironizou explicitamente o rei de Lascaria. “Mas será uma boa oportunidade para testemunhar de perto as lendárias habilidades do cavaleiro negro!”

No início do confronto, após Asor ordenar ao golem para que atacasse, Renárd se limitou a se esquivar e correr. Parecia impossível, mesmo para um guerreiro excepcional, vencer aquela luta. O soberano do reino inimigo não resistiu e desatou a rir.

“Que desgraçado...”, Hernand refletiu.

Renárd, apesar de pela primeira vez estar sentindo um

profundo medo em uma luta, procurou se estabilizar, focando

seu pensamento em algo em que acreditava há tempos, desde

seus primeiros contatos com a magia: algo certamente acessível

a todos que soubessem discernir seu poder interno, que

conseguissem perceber a força da alma.

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Fez uma silenciosa prece aos deuses, o que não era muito de seu costume, para que despertassem ao menos uma fagulha do que devia ter guardado em si. Recusava-se a acreditar que a magia fosse exclusividade dos bruxos, que apenas deviam ter tido mais tempo para estudar e treinar a respeito.

Colocou toda sua força, determinação e energia no golpe que conseguiu aplicar numa das pernas do colosso. A rachadura foi crescendo e o gigante perdeu equilíbrio. Todo o exército de Mark foi percorrido por uma onda de esperança, Hernand ficando boquiaberto. O rei conseguiu esboçar um sorriso, enquanto Asor parecia incrédulo.

O golem tentou acertar Renárd com sua espada, porém o cavaleiro evitou mais uma vez o golpe. A enorme lâmina se cravou no solo e a outra perna do gigante foi atingida.

Quando o monstro de pedra se curvou, era a chance para o guerreiro, que saltou para decapitá-lo: era o fim do maior inimigo já enfrentado pelo cavaleiro negro, que após perder a cabeça se dissolveu em pó. Hernand abria enfim um vistoso sorriso.

Inconformado, Asor ordenou que seu exército atacasse e ofereceu um prêmio em ouro e uma de suas belas concubinas àquele que trouxesse a cabeça do cavaleiro negro.

Mark dirigiu o contra-ataque de suas tropas. Deu-se uma clamorosa derrota para Lascaria, cujo rei, no entanto, conseguiu escapar e se refugiar em sua cidadela, junto com alguns de seus principais guerreiros. O feiticeiro foi enforcado devido ao fracasso do golem. De nada adiantaram promessas de novas artimanhas e criaturas.

Todavia, após mais algumas batalhas, o cerco da capital de

Lascaria se prologou mais do que o esperado, principalmente

porque Edon enviava constantemente tropas em auxílio de seus

aliados. Estas agrediam e desgastavam o acampamento de

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Mark, que se viu forçado a recuar. Não pudera levar todos os seus soldados porque uma boa parte precisara permanecer, defendendo Gedom e outras cidades e vilarejos dos ataques de outras tropas de Edon. Por quanto tempo uma guerra em duas frentes poderia ser suportada?

Algo que se sabia era que as mulheres eram uma das fraquezas de Asor. O rei de Lascaria possuía um harém à sua disposição e dizia-se que era bastante volúvel, trocando de preferida sempre que uma nova moça aparecia. Nisso, Renárd teve uma ideia, que expôs ao rei: “Podemos usar uma mulher corajosa para enganá-lo e assassiná-lo.”

Em outro contexto, Mark teria recusado esse tipo de estratégia. Mas como Asor se revelara um rival ignóbil, não tendo cumprido com sua palavra e prosseguido com a guerra após a derrota do golem, assim seria feito.

Ao tomar conhecimento do plano, Hernand se lembrou do que Renárd lhe dissera antes de enfrentar o gigante de pedra.

Encarou-o com firmeza, o cavaleiro negro não desviando seu olhar. O esposo de sua irmã realmente não era um homem de se limitar às palavras...

A escolhida foi uma mercenária a serviço de Mark, uma morena alta, vigorosa e atraente chamada Ilena. Já lançara alguns olhares na direção de Renárd, o único homem ali que a fascinava apesar de todos os assédios que recebia, mas nunca fora correspondida. Talvez tivesse encontrado uma maneira de impressioná-lo.

Em trajes rasgados e com alguns ferimentos que se auto- induzira, passou-se na entrada da capital de Lascaria por uma mulher desamparada, com sede e fome.

Os soldados do reino tinham ordens para levar qualquer

beldade à presença do rei. O não cumprimento dessa

determinação, caso chegasse aos ouvidos do soberano, seria

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punido com a morte. Havia até um prêmio para um eventual delator. Os guardas interessados na moça contiveram portanto a tentação. Um dos homens escoltou-a até a corte.

Ilena estava habituada a esconder o medo. Mais difícil foi ocultar seu asco diante de Asor. O senhor de Lascaria era mais velho do que Mark e a guerra o debilitara e o tornara ainda mais descuidado com a aparência e a higiene.

Após rodeá-la quando lhe foi apresentada, não só se aproximou para cheirá-la e lhe dizer obscenidades com seu hálito apodrecido, como lambeu-lhe os ombros e o pescoço.

À noite, na cama, a mercenária foi rápida: tampou-lhe a boca com uma mão e com a outra estrangulou-o facilmente utilizando uma técnica marcial que conhecia, aprendida em um reino distante a que servira no passado.

O mais trabalhoso foi fugir do palácio: apoderou-se de uma espada que estava no quarto do rei, junto com uma armadura de adorno. Com esta, degolou um guarda que patrulhava os corredores.

Com relativa calma, apesar de seu suor, tentando não se precipitar, arrastou o corpo para o aposento de Asor e lá se vestiu com a armadura do soldado, que tinha mais ou menos o seu tamanho. O melhor era que o elmo só deixava os olhos expostos.

Deixou o palácio com naturalidade, e depois a capital,

engrossando a voz com competência ao alegar que o rei lhe

pedira que fosse buscar uma certa fruta de propriedades

afrodisíacas que crescia no campo, em falta na cidade. Ilena

fora informada a respeito de pedidos do gênero que Asor

costumava fazer sempre que tinha uma nova preferida. Por

isso, nenhum soldado suspeitou de nada. Só não fizeram piadas

e brincadeiras por receio que um pudesse delatar o outro por

algumas moedas de prata...

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Quando alguém com uma armadura das tropas de Lascaria foi visto se aproximando sozinho do acampamento do exército de Mark, logo foi deduzido que era a mercenária que retornava.

Nenhum homem de Asor teria sido tão temerário.

“Não posso dizer que foi uma missão fácil. Passei por alguns bocados difíceis. Mas o pior, definitivamente, foi ter que ficar com ele na cama, mesmo que por poucos instantes.”, Ilena comentou na tenda do rei, e os cavaleiros ao seu redor riram, menos Renárd.

“Foi um ótimo trabalho.”, limitou-se a dizer, e deixou o local após ser informado de tudo. Um sorriso esquálido dominou o rosto da mercenária, que pela primeira vez em sua vida não se sentiu plenamente satisfeita com o ouro que recebeu do rei Mark como pagamento.

“Ele se tornou um homem inflexível.”, Hernand, que notara a queda que Ilena tinha pelo amigo, sabia perfeitamente que ele se portava daquela maneira não porque o cunhado estava por perto, mas porque esse era seu modo de ser e agir.

A morte de Asor foi descoberta no dia seguinte. Já estava entardecendo e um dos soldados estranhou que o soberano ainda não saíra do quarto. Por mais que a nova concubina o tivesse fascinado e entretido, era tempo demais. Resolveu arriscar sua cabeça e abriu a porta, deparando-se com o horror dos dois cadáveres.

Apesar de todas as suas mulheres, o rei morrera sem deixar um herdeiro. E à noite, enquanto os melhores guerreiros se desentendiam, discutindo quem seria o novo soberano, o exército de Mark atacou a cidade.

Devido às línguas de alguns servos do palácio, a notícia da morte de Asor já havia se difundido e espalhado insegurança.

Alguns tinham aproveitado para escancarar sua oposição à

elite de Lascaria. Uma parte dos soldados precisara agir para

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suprimir as insurreições que estavam se formando. Os revoltosos foram considerados suspeitos, levantada a hipótese que a bela assassina fosse uma conspiradora interna, que viera de alguma outra cidade do reino. Um cenário perfeito para as tropas de Gedom escalarem os muros e derrubarem os portões.

Lascaria foi finalmente abatida pelo aço e pelo fogo.

III

Chegara o momento de lidar com Edon, povo de cabelos ruivos, cujos melhores guerreiros costumavam montar, em vez de cavalos, grandes lagartos vermelhos cuspidores de fogo.

Estes eram animais orgulhosos, muito difíceis de domar. Por condição natural, tremendamente hostis aos seres humanos.

Mesmo quando criados desde filhotes, podiam ser perigosos, seus ovos sanguinolentos surrupiados por enviados do rei.

Apenas os mais corajosos e persistentes conseguiam tê-los a seu serviço, e no caso não meramente como aliados, mas como amigos fiéis até o término de seus dias: os dragões edonitas, que não tinham asas e portanto não voavam, mas que possuíam escamas muito resistentes, que lembravam pedras rubras, além de espinhos afiados em suas caudas, eram capazes de morrer por seus senhores. Nasciam para admirar a coragem.

O território de Edon era frio e montanhoso. Com alguma frequência, caíam nevascas. Os dragões locais, pelo calor interno que possuíam e irradiavam, cheirando a cinzas vulcânicas, eram dos poucos seres que não necessitavam se preocupar com o clima gelado.

Além de tropas de Esaiah, o soberano edonita, no caminho

para a capital do reino o exército de Mark precisou confrontar

algumas destas feras em estado selvagem. Eram maiores e mais

altas do que cavalos. Diversos homens ficaram com

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queimaduras em decorrência dos confrontos, além de terem sido feridos por suas caudas, e doze morreram.

Por fim, chegaram à cidade, Obad, que para sua surpresa encontraram completamente deserta. Os portões estavam abertos, sem nenhum soldado em sua muralha. Entraram sem encontrar obstáculos.

“O que será que aconteceu aqui?”, inquiriu Renárd.

“Não há uma única alma neste lugar.”, observou Hernand.

“Nenhum rei costuma abandonar sua capital dessa maneira.

Isso me cheira a emboscada.”, opinou Ilena.

Mark, a princípio em silêncio, ordenou que todos os cantos da cidade fossem vasculhados.

Ao cair da noite, encerrada a inspeção, ninguém foi encontrado.

Sem abrir mão do estado alerta, o exército de Gedom terminou acampando no interior da esvaziada capital do reino inimigo.

“Para onde ele pode ter ido com toda a população?”, inquiriu Hernand, já na tenda do rei.

“Talvez tenham se refugiado nas cavernas.”, replicou Renárd.

“Tendo percebido nossa superioridade bélica após a vitória sobre Lascaria, acredito que pretendam nos atrair até elas, que devem conhecer muito bem. Em corredores desconhecidos para quem ataca, estreitos, frios e escuros, a estratégia militar e mesmo as melhores armas e guerreiros perdem importância. A diferença entre a força de cada exército se reduz consideravelmente. Até crianças, ocultas em cantos obscuros, podem ser perigosas com fundas, pedras e facas.”

“Renárd tem razão. Eles podem promover ataques furtivos,

rápidos e precisos, e depois se esconderem onde não

conseguiremos encontrá-los.”, disse um dos altos oficiais do

rei.

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“E Vossa Majestade, o que tem a dizer? Parece cansado...”, Hernand se dirigiu ao soberano.

“Estou pensativo.”, Mark replicou. “Poderíamos ir até as cavernas para tentar encerrar esta guerra de uma vez por todas.

Creio que seja o que Esaiah pensou que eu faria. Mas preciso conter minha ansiedade pela paz. Não podemos cair em nenhuma armadilha. É melhor ter paciência. Se permanecerem nas grutas por muito tempo, haverá um momento em que sentirão a falta de recursos, de víveres. A tática que estão usando, ou que nós estamos deduzindo que eles estão empregando, é para uma guerra de duração não tão longa.”, palavras que soaram bastante sensatas para Renárd.

À noite, pouco dormiram. Pela manhã, logo ao nascer do Sol, a surpresa foi a aparição de um homem montado em um dos dragões típicos da região. Só podia ser um dos guerreiros da elite de Esaiah. Como esperado, pediu para falar com o rei Mark. Sua armadura era vermelha, e ao retirar o elmo viram-se seus longos cabelos ruivos ondulados e seus olhos cor de esmeralda, sua pele repleta de sardas. Sua expressão continha certa arrogância.

O senhor de Gedom, contudo, não saiu de sua tenda. Pediu a Renárd para que falasse com o recém-chegado.

“Eu queria falar com o rei e me aparece um lacaio?”, questionou o guerreiro edonita, numa postura claramente provocativa. Falava com correção a língua de Gedom, mas seu sotaque era um tanto carregado.

Os soldados em volta se agitaram, mas o esposo de Eloah fez um gesto para que se contivessem e, após todos silenciarem, replicou:

“Imagino que você não seja Esaiah. Portanto, pode muito bem falar comigo.”

“Prepotente como sempre imaginei que são os homens de

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Gedom.”

“A única prepotência aqui é a sua. E por melhor soldado que seja e por mais que esteja montando uma dessas bestas que cospem fogo, estamos em muito maior número aqui. É melhor que nos respeite.”

“Usa a quantidade de homens para me intimidar. Não teria coragem de duelar comigo.”

“Não tenha dúvidas que se necessário eu poderia dar um jeito em você sem que precisasse desmontar do seu lagarto.”

“Ao menos a sua língua é afiada.”

“Ela tem um bom fio, mas não contém veneno trapaceiro como a sua.”, o edonita então riu. Renárd se manteve sério. E indagou, demonstrando frieza: “Afinal, o que veio fazer aqui?”

“Já que não posso falar com o rei, terei que me contentar com você. Vim avisá-los que queremos a paz.”

“Isso é sério?”

“Eu até gosto de brincar. Mas meu senhor é diferente de mim.”

“Por que esvaziaram a cidade e onde estão escondidos agora?”

“Ora, isso é óbvio! Nós desejávamos encerrar esta guerra, mas vocês não iriam nos ouvir! Acabariam atacando a cidade e muitas mortes ocorreriam de ambos os lados.”

“Bastaria enviar um mensageiro para nos explicar suas novas intenções. Mas se querem realmente a paz, por que nos atacaram pelo caminho?”

“Um mensageiro? Não seríamos tão ingênuos! Conhecemos a guerra. Vocês pensariam que se tratava de uma armadilha e o fariam prisioneiro. De qualquer forma nos agrediriam. A propósito, sei que vocês mantêm homens nossos em correntes.”

“Sim, os que derrotamos no avanço pelas montanhas e que

sobreviveram aos confrontos. Mas você ainda não me

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respondeu o porquê dos ataques e onde seu povo se encontra agora.”

“Para demonstrar que desejamos realmente a paz, vou lhe responder confiando na honra de seu rei: as tropas que estavam pelo caminho que vocês percorreram ainda não haviam sido avisadas da nova vontade do rei Esaiah; não houve tempo. E nos encontramos nas grutas próximas daqui.”, as suposições estavam corretas.

“E quais suas condições para a paz?”

“Basta que desocupem nossa capital e libertem os homens que aprisionaram.”

“Vou me reunir com o rei. Voltarei com o parecer dele.”

“Está bem.”, o guerreiro, que se chamava Gunder, sorriu com leve escárnio. Renárd voltou para o interior da tenda de Mark e discutiu a situação com o soberano, Hernand e outros membros da elite guerreira do rei.

“Por alguma razão, essa paz não me soa confiável.”, disse o monarca.

“Nem a mim. Acha que devemos prosseguir com esta guerra até o final?”, inquiriu o cavaleiro negro.

“Por você, sei que iríamos em frente até abater Esaiah.”, Mark abriu um tímido sorriso. “Porém tenho minhas crenças e princípios a elas atrelados, Renárd. Ainda que talvez eu vá me arrepender no futuro, preciso tentar acreditar que alguém pode mudar e desenvolver intenções mais limpas e sadias. Por tudo aquilo em que creio, tenho que dar uma chance a Esaiah.”

“Compreendo.”, a decepção e a desconfiança no semblante do

guerreiro eram nítidas; mas mesmo que não concordasse com

seu rei, jamais iria afrontá-lo. E Mark sabia que seu melhor

soldado discordava dele; porém não iriam entrar em discussões

longas e vãs. “Não precisa se preocupar nem se justificar. O

senhor é o rei, e continuarei ao seu lado. Se Esaiah trair sua

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