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Autonomia da Lex Sportiva como ordem jurídica: (des)encontros entre a regulamentação internacional do esporte profissional e os direitos humanos

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Academic year: 2021

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DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS E SOCIAIS PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM DIREITO

MESTRADO EM DIREITOS HUMANOS

THIAGO DOS SANTOS DA SILVA

AUTONOMIA DA LEX SPORTIVA COMO ORDEM JURÍDICA: (DES)ENCONTROS ENTRE A REGULAMENTAÇÃO INTERNACIONAL DO ESPORTE

PROFISSIONAL E OS DIREITOS HUMANOS.

Ijuí, RS 2016

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THIAGO DOS SANTOS DA SILVA

AUTONOMIA DA LEX SPORTIVA COMO ORDEM JURÍDICA: (DES)ENCONTROS ENTRE A REGULAMENTAÇÃO INTERNACIONAL DO ESPORTE

PROFISSIONAL E OS DIREITOS HUMANOS.

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação strictu sensu em Direitos Humanos – mestrado, linha de pesquisa: Direitos Humanos, Meio Ambiente e Novos Direitos, da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul – UNIJUI, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Mateus de Oliveira Fornasier.

Ijuí (RS) 2016

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Catalogação na Publicação

Gislaine Nunes dos Santos CRB10/1845 S586a Silva, Thiago dos Santos da.

Autonomia da Lex Sportiva como ordem jurídica: (des)encontros entre a regulamentação internacional do esporte profissional e os direitos humanos / Thiago dos Santos da Silva. – Ijuí, 2016. –

184 f. ; 29 cm.

Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Direitos Humanos.

“Orientador: Mateus de Oliveira Fornasier”.

1. Hipercomplexidade. 2. Lex Sportiva. 3. Ordens jurídicas. 4. Policontexturalidade. 5. Teoria dos sistemas sociais autopoiéticos. I. Fornasier, Mateus de Oliveira. II. Título. III. Título: (Des)encontros entre a regulamentação internacional dos esporte profissional e os direitos humanos

CDU: 34

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UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Programa de Pós-Graduação em Direito

Curso de Mestrado em Direitos Humanos

A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação

AUTONOMIA DA LEX SPORTIVA COMO ORDEM JURÍDICA: (DES)ENCONTROS ENTRE A REGULAMENTAÇÃO INTERNACIONAL DO ESPORTE

PROFISSIONAL E OS DIREITOS HUMANOS

elaborada por

THIAGO DOS SANTOS DA SILVA

como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito

Banca Examinadora:

Prof. Dr. Mateus de Oliveira Fornasier (UNIJUÍ): __________________________________

Prof. Dr. Luciano Vaz Ferreira (FURG): __________________________________________

Prof. Dr. Luís Gustavo Gomes Flores (UNIJUÍ): ___________________________________

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À todas as vítimas do “Desastre de Medelín”, que lembrou ao mundo que o futebol, e o esporte em si, serve para unir e não para separar. O futebol não é jogado com os pés, mas com o coração. “Uma religião sem ateus”, como disse Galeano. Um amor odioso ou um ódio amável. “A coisa mais importante, dentre as menos importantes”, segundo Arrigo Sacchi, que, em dados momentos, se traveste da coisa importante pra ensinar uma lição de humanismo, de humanidade, de humano. As manifestações de solidariedade às vítimas de Medelín, ao redor do mundo, equipes oferecendo atletas à Chapecoense, de forma gratuita, Wembley pintado de verde, o “mundo da bola” se vestiu do verde da esperança, enquanto o verde da Chapecoense tomou tons de preto, pelo luto. A tragédia será superada, como outras já foram, mas essa chaga não se cura sem deixar cicatriz. Lembremo-nos, sempre, o futebol não é só um esporte e jamais será apenas um esporte. Avante, Chapecoense! Não lhe deixaremos cair, jamais. Avante, Chapecoense! Com a força de Condá, o Furacão do Oeste se reerguerá. Que escutem, em todo o Continente, que nunca esqueceremos da campeã Chapecoense #ForçaChape.

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Uma vez por semana, o torcedor foge de casa e vai ao estádio. Ondulam as bandeiras, soam as matracas, os foguetes, os tambores, chovem serpentinas e papel picado: a cidade desaparece, a rotina se esquece, só existe o templo. Neste espaço sagrado, a única religião que não tem ateus exibe suas divindades. Embora o torcedor possa contemplar o milagre, mais comodamente, na tela de sua televisão, prefere cumprir a peregrinação até o lugar onde possa ver em carne e osso seus anjos lutando em duelo contra os demônios da rodada. Aqui o torcedor agita o lenço, engole a saliva, engole veneno, come o boné, sussurra preces e maldições, e de repente arrebenta a garganta numa ovação e salta feito pulga abraçando o desconhecido que grita gol ao seu lado. Enquanto dura a missa paga, o torcedor é muitos. Compartilha com milhares de devotos a certeza de que somos os melhores, todos os juízes estão vendidos, todos os rivais são trapaceiros. É raro o torcedor que diz: “meu time joga hoje”. Sempre diz: “nós jogamos hoje”. Este jogador número doze sabe muito bem que é ele quem sopra os ventos de fervor quem empurram a bola quando ela dorme, do mesmo jeito que os outros onze jogadores sabem que jogar sem torcida é como dançar sem música. Quando termina a partida, o torcedor, que não saiu da arquibancada, celebra sua vitória, que goleada fizemos, que surra a gente deu neles, ou chora sua derrota, nos roubaram outra vez, juiz ladrão. E então o sol vai embora, e o torcedor se vai. Caem as sombras sobre o estádio que se esvazia. Nos degraus de cimento ardem, aqui e ali, algumas fogueiras de fogo fugaz, enquanto vão se apagando as luzes e as vozes. O estádio fica sozinho e o torcedor também volta à sua solidão, um eu que foi nós; o torcedor se afasta, se dispersa, se perde, e o domingo é melancólico feito uma quarta-feira de cinzas depois da morte do carnaval. (GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. São Paulo: L&PM POCKET. 2004)

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RESUMO

O objetivo geral do presente trabalho foi observar a reflexividade entre ordens jurídicas estatais e não-estatais, internas e externas, naquilo que tange à regulamentação internacional do esporte profissional. Foram estabelecidos três objetivos específicos. O primeiro objetivo específico consiste em apresentar a sociedade mundial como funcionalmente diferenciada, admitindo a hipercomplexidade nas comunicações atuais e reconhecendo sua policontexturalidade normativa. O segundo objetivo específico é o de analisar o modo pelo qual o esporte é regulado política e juridicamente conforme a observação das ordens brasileira e mundial, com a finalidade de compreender se a interação entre ordens jurídicas públicas e privadas no âmbito esportivo cria um direito transnacional. Já o terceiro objetivo específico foi observar casos de reflexividade e acoplamento estrutural entre ordens jurídicas e políticas estatais e não-estatais de forma a visualizar o diálogo entre diferentes ordens não-hierárquicas entre si, no sentido de conceber se o reconhecimento de uma ordem jurídica não-estatal por um Estado tem o condão de alterar o regramento jurídico público. A hipótese estabelecida foi a de que a interação entre ordens jurídicas de diferentes níveis, não-hierárquicas entre si, pode ser compreendido como

locus de surgimento de um direito mundial, explicitando a função do esporte na sociedade

hipercomplexa global atual. A Lex Sportiva pode ser compreendida como ordem jurídica autônoma com vigência sobre as relações esportivas internacionais, com decisões são dotadas de eficácia, vinculando os atores esportivos, e versando sobre questões de direitos humanos. A metodologia consiste no método sistêmico-construtivista, sob a matriz pragmático-sistêmica. As conclusões confirmam a hipótese proposta, já que o diálogo entre ordens jurídicas de diferentes níveis aponta para uma gradual evolução do Direito como sistema social, em direção ao estabelecimento de pontes de transição de sentido transordinal, tendo como horizonte a luta pela garantia da dignidade da pessoa humana.

PALAVRAS-CHAVE: Hipercomplexidade - Lex Sportiva - Ordens Jurídicas, Policontexturalidade - Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos.

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ABSTRACT

The general objective of this study was to observe the reflexivity between state and non-state, internal and external, legal systems related to international regulations of professional sports. Three specific objectives were established. The first specific objective is to present the world society as functionally differentiated, admitting hypercomplexity in current communications and recognizing the normative policontexturality. The second specific objective is to analyze the way in which the sport is governed politically and legally as the observation of the Brazilian and world orders, to understand the interaction between public legal systems and private orders in sports creates a transnational law. The third specific objective was to observe cases of reflexivity and structural coupling between legal and political state and non-state orders to view the dialogue among different non-hierarchical orders to design the recognition of a non-state legal order by a State can change the public legal rules. The established hypothesis was that the interaction between legal orders of different levels, non-hierarchical among themselves, could be the locus for the emergence of a world law, explaining the role of sport in today’s global hypercomplex society. The lex sportive could be understood as an autonomous legal order with effect on international sports relations, with decisions being made effective, linking sports players, and dealing with human rights issues. The methodology consists of the systemic-constructivist method, under the pragmatic-systemic matrix. The conclusions confirm the hypothesis proposed, since the dialogue between legal orders of different levels point to a gradual evolution of the Law as social system, towards the establishment of transition bridges of transordinal sense, having as horizon the seeking for the guarantee of the human dignity.

KEYWORDS: Hipercomplexity, Legal orders, Lex Sportiva, Policontexturality, Autopoietic

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LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

AFI – Athletics Federation of India (Associação Atlética Indiana)

AIBA – International Boxing Association (Associação Internacional de Boxe Amador)

AIWF – Association of international winter sports federations (Associação das Federações Internacionais de Esportes de Inverno)

ANOC – Association of national olympic committees (Associação dos Comitês Olímpicos Internacionais)

ARISF – Association of IOC Recognised International Sport Federation (Associação das Federações Esportivas Internacionais Reconhecidas pelo COI)

ASOIF – Association of summer olympic international federations (Associação das Federações Internacionais dos Esportes Olímpicos de Verão)

BID – Boletim Informativo Diário

CAS – Court of Arbitration for Sport (Tribunal Arbitral do Esporte) CBD – Confederação Brasileira de Desportos

CBF – Confederação Brasileira de Futebol CND – Conselho Nacional de Desporto COB – Comitê Olímpico Brasileiro COI – Comitê Olímpico Internacional

CONMEBOL – Confederación Sudamericana de Fútbol (Confederação Sulamericana de Futebol)

FA – Football Association (Federação Britânica de Futebol)

FEI – Fédération Equestre Internationale (Federação Equestre Internacional)

FIA – Federation Internationale de l’Automobille (Federação Internacional de Automobilismo) FIBA – International Basketball Federation (Federação Internacional de Basquete)

FIFA - Fédération Internationale de Football Association (Federação Internacional de Futebol) FINA – Fédération Internationale de Natatio (Federação Internacional de Natação)

FMI – Fundo Monetário Internacional

IAAF – International Association of Athletics Federations (Associação Internacional das Federações de Atletismo)

ICANN – Internet Corporation for Assigned Names and Numbers (Corporação da Internet para Atribuição de Nomes e Números)

ICAS – International Council of Arbitration for Sport (Conselho Internacional em Arbitragem sobre Esporte)

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IIHF – International Ice Hockey Federation (Federação Internacional de Hóquei sobre o Gelo) IWF – International Weightlifting Federation (Federação Internacional de Levantamento de Peso)

LGC – Lei Geral da Copa

MMA – Mixed Martial Arts (Artes Marciais Mistas)

NSAC – Nevada Athletic Comission (Comissão Atlética de Nevada) OEA – Organização do Estados Americanos

OMC – Organização Mundial do Comércio ONU – Organização das Nações Unidas

OTAN – Organização do Tratado do Atlântico Norte PLC – Projeto de Lei da Câmara

STJD – Superior Tribunal de Justiça Desportiva

TAS – Tribunal Arbitral du Sport (Tribunal Arbitral do Esporte) TJCE – Tribunal de Justiça da Comunidade Europeia

TJD – Tribunal de Justiça Desportiva

UEFA – Union of European Football Associations (União das Federações Europeias de Futebol)

UFC – Ultimate Fighting Championship

USADA – United States Antidoping Agency (Agência Estadunidense Antidoping) WADA-AMA – World AntiDoping Agency (Agência Mundial Antidoping)

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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ... 11

2 SOCIEDADE MUNDIAL HIPERCOMPLEXA E A CRISE DA SOBERANIA ... 20

2.1 Complexidade, contingência e (pós)modernidade ... 21

2.2 Diferenciação funcional e o Direito como (sub)sistema ... 30

2.3 A relativização da soberania estatal e a globalização ... 41

2.4 Multiplicidade de centros emissores de juridicidade ... 49

3 A REGULAÇÃO POLÍTICA E JURÍDICA DO ESPORTE: UMA ANÁLISE DAS ORDENS BRASILEIRA E MUNDIAL ... 60

3.1 Evolução histórica do esporte ... 61

3.1.1 Os jogos olímpicos na antiguidade ... 62

3.1.2 O esporte como luz na idade das trevas ... 66

3.1.3 Da modernidade à contemporaneidade: renascimento e evolução profissional do esporte... 69

3.2 Lex Sportiva como exemplo de um Direito transnacional ... 73

3.2.1 O Tribunal Arbitral do Esporte como principal centro emissor da Lex Sportiva .... 82

3.3 Constitucionalização civil: o Estatuto da FIFA em análise ... 90

3.4 De Zico a Pelé: a regulamentação político-jurídica desportiva no Brasil ... 103

4 DIÁLOGO E REFLEXIVIDADE ENTRE ORDENS JURÍDICAS ESTATAIS E NÃO-ESTATAIS...112

4.1 A necessária observação sistêmica: o transconstitucionalismo como metodologia dialogal ... 113

4.2 Casos de reflexividade ... 123

4.2.1 A (in)constitucionalidade da Lei Geral da Copa ... 124

4.2.2 Juízo arbitral ou direito penal? O Caso Suárez ... 134

4.2.3 A economia reconhece o esporte como mercadoria: o Caso Bosman ... 141

4.2.4 Oscar Pistorius e o esporte como reconhecimento das diferenças ... 148

4.3 O esporte e os direitos humanos: encontros e desencontros. ... 154

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1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como tema de investigação a autodeclaração de validade da Lex

Sportiva, enquanto ordem jurídica não-estatal capaz de regular o esporte profissional em nível

internacional, e quais os encontros e desencontros com os direitos humanos que exsurgem do diálogo entre diferentes ordens jurídicas. A partir de uma ótica sistêmica, se busca delinear um caminho de diálogo entre essa ordem jurídica transnacional e a ordem jurídica estatal brasileira, em questões constitucionais.

A partir da Teoria dos Sistemas, de Niklas Luhmann, sob uma epistemologia sistêmico-construtivista, em sua matriz pragmático-sistêmica, autonomia deve ser compreendida como diferenciação e, mais, como fechamento operacional. Reconhece-se a sociedade como um sistema omniabarcador, fruto da totalidade das comunicações, funcionalmente diferenciada em subsistemas, fechados, em suas operações, e, paradoxalmente, abertos cognitivamente, que atuam na redução da complexidade presente no ambiente, assim consideradas todas as comunicações que não pertencem ao programa prévio de cada sistema. A operação de redução de complexidade, ou de sua transformação em complexidade ordenada, acontece pelo código binário que cada sistema é dotado, no caso do direito lícito/ilícito.

Mesmo dentro de cada um dos subsistemas funcionais da Sociedade, contudo, há um processo de diferenciação. No caso do Sistema do Direito, é possível visualizar esse processo de diferenciação quando várias ordens jurídicas emergem e se autovalidam para estabilizar expectativas normativas. Ainda que todas essas ordens jurídicas (pois integrantes do sistema jurídico) atuem sob o código lícito/ilícito, e baseadas em um programa jurídico geral, cada uma delas possui seu programa próprio, que garante sua validade e vigência como estabilizadora de expectativas e, com isso, atuando na redução da complexidade desordenada do ambiente.

A autonomia (essa capacidade de diferenciação, de fechamento operativo), permite a reconstrução e autoconstrução em situações de diálogos e reflexividade com outras ordens jurídicas do mesmo sistema funcional. Essa autoconstrução, que é, também, um processo de autorreferência e auto-observação, acontece a partir, e com base, no seu programa próprio, que se rearranja, no sentido de possibilitar que o ruído existente no ambiente, seja ressignificado como complexidade ordenada. Dentro da Teoria dos Sistemas, esse processo de (auto)construção é chamado de autopoiese, que permite a evolução dos sistemas funcionais e da Sociedade como sistema mundial.

A escolha por uma matriz teórica sistêmica se justifica pela (hiper)complexidade das comunicações na sociedade contemporânea. Para uma observação da complexidade da

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sociedade é necessário uso de uma epistemologia, também, complexa, capaz de responder ao(s) problema(s) que possa(m) surgir a partir da observação sobre a observação e atingir o(s) objetivo(s) proposto(s) no trabalho de pesquisa acadêmica.

Uma observação de segundo grau, que se proponha a observar a crescente complexidade da modernidade contemporânea, pressupõe uma evolução da epistemologia, para além da sintaxe e da semântica, em direção à pragmática. A Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos, desenvolvida pelo alemão Niklas Luhmann, permite a superação da chamada dogmática jurídica, no sentido de uma observação da complexidade social e como os sistemas funcionais atuam na redução dessa complexidade a partir de seus programas próprios, reduzindo os riscos contingentes.

A delimitação do tema que estabelece os limites da presente dissertação passa pela investigação de como se dá a afirmação da Lex Sportiva como uma ordem jurídica transnacional autônoma, suficiente para estabilizar expectativas no âmbito da regulação internacional do esporte profissional, e qual a reflexividade entre essa ordem não-estatal e ordem jurídica estatal brasileira em questões de cunho constitucional, os direitos humanos, para observar os “encontros e desencontros” entre o esporte e esses direitos.

Parte-se da compreensão do Direito como sistema autopoiético, com clausura operativa e abertura cognitiva, agindo na redução da complexidade desordenada presente em seu ambiente. Outro ponto importante para compreensão da delimitação do tema de pesquisa é o entendimento da sociedade como hipercomplexa, em que a figura do Estado não encerra todas as comunicações.

Considerando que a soberania externa, tão marcante da Modernidade, vem sendo paulatinamente relativizada por instrumentos internacionais (Carta da ONU, de 1945; Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948), que afastam a proeminência do Estado como único centro emissor de juridicidade e normatividade, ou seja, de direito, a lógica vigente, de ausência de autoridade superior ao Estado, foi mitigada na sociedade complexa e policontextural contemporânea, e o reconhecimento, pelos Estados, de agentes internacionais (ONU, OTAN) e transnacionais (OMC, FMI, FIFA) com poderes muitas vezes tão significativos quanto os seus (a depender do âmbito de análise), permite a costura de relações de horizontalidade.

Com isso, o problema que se coloca no presente trabalho é que diante do cenário social global de hipercomplexidade, em que o Estado já não se mostra detentor de soberania, do mesmo modo que se configurava quando do advento da Modernidade, e com a emersão de ordens jurídicas transnacionais autônomas (especialmente, a Lex Sportiva), é possível visualizar

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pontos de convergência (diálogo) entre diferentes ordens jurídicas não-hierárquicas entre si, naquilo que tange ao discurso dos direitos humanos?

Nesse viés, é visível a referida crise dos Estados em relação à sua soberania (à ausência de poder superior aos Estados em nível internacional). A contemporaneidade é caracterizada pela sua fluidez e liquidez nas relações e comunicações, em contrariedade à maior rigidez característica da Modernidade. A partir disso, o encolhimento do poder soberano estatal é visualizado pelo empoderamento de agentes transnacionais, absolutamente desligados da figura Estatal, onde se sente uma rachadura no monopólio da produção de juridicidade, outrora garantido ao Estado e, agora, compartilhado com ordens não-estatais.

Em face do problema apresentado, a hipótese que se desenha é que essa pluralidade de centros receptores, transmissores e emissores de informações e comunicações (principalmente as comunicações jurídicas) na sociedade hipercomplexa atual, pode ser melhor reparada no âmbito da regulação internacional do esporte profissional em que a Lex Sportiva, uma ordem jurídica não-estatal transnacional, emerge, principalmente, de organizações privadas, a partir de seus estatutos e códigos de conduta.

A complexificação dos modos de se observar a soberania estatal, em que pese ainda possua proeminência fática, teórica e normativa (especialmente nos sistemas jurídico e político da sociedade mundial), expressa uma reorganização das comunicações jurídicas entre diferentes ordens – algumas estatais (dentre elas as internacionais, pois dependem da soberania estatal para se firmarem) e outras não-estatais, sendo exemplos significativos destas últimas a ordem de regulação do esporte profissional na sociedade mundial. É necessário analisar como essa complexificação se delineia no tocante à regulamentação jurídica (estabilização de expectativas normativas congruentes) do esporte, que se dá mais, principalmente, na atualidade, por entes privados do que pelo Estado.

A produção de estabilizações das expectativas normativas, no esporte profissional, vem acontecendo exclusivamente na esfera privada transnacional, por entes não-estatais. Esse regramento internacional do esporte gera efeitos aos direitos humanos de forma paralela aos Estados, quando o regramento internacional do esporte, enquanto ordem jurídica transnacional autônoma, é provocado a decidir sobre situações envolvendo direitos humanos, especialmente questões ligadas à livre contratação, o direito ao trabalho e, ainda, casos de reconhecimento e respeito às diferenças. Nesse ponto, a hipótese apontada como resposta ao problema proposto é que a interação entre diferentes ordens jurídicas, estatais e não-estatais, não-hierárquicas entre si, ou seja, o diálogo transordinal, pode ser compreendido como locus de surgimento de um

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A Lex Sportiva apresenta autonomia e vigência sobre as relações esportivas internacionais e suas decisões são dotadas de eficácia, vinculando os atores esportivos, e versando sobre questões de direitos humanos. Assim, o diálogo entre ordens jurídicas de diferentes níveis aponta para uma gradual evolução do sistema jurídico, em direção ao estabelecimento de pontes de transição de sentido transordinais, tendo como horizonte a luta pela garantia da dignidade da pessoa humana.

A proposta dessa investigação social se justifica pela necessidade de uma observação da sociedade de forma mais sofisticada, a fim de abarcar um maior de número de comunicações e a crescente complexidade social, considerando o dinamismo e a contingência que se intensificam. Ainda que tal discussão pareça distante, especialmente na América Latina, que ainda leciona sobre questões fundamentais, como direito à saúde e moradia que imprescinde do Estado, na Europa, principalmente França, Reino Unido e Suíça, há razoável produção acadêmica sobre “transnacionalismo jurídico”, ou seja, sobre a possibilidade de que ordens jurídicas de caráter transnacional estejam observando e comunicando com validade e autonomia.

É necessária uma observação do papel decisivo do esporte em políticas de inclusão social e resgate de populações expostas às violações de direitos, em especial os direitos humanos, o que se pode chamar de “função social do esporte”, enquanto notável ferramenta na garantia pela cidadania e direitos humanos aos indivíduos. Porém, é preciso visualizar, também, que o uso do esporte como mercadoria reconhecida pelo sistema econômico.

A partir da regulação internacional do esporte, sob o comando das federações e confederações esportivas, agentes transnacionais desligadas de quaisquer figuras estatais, realizada através dos estatutos, códigos de condutas e contratos firmados pelos entes esportivos internacionais, é possível falar na existência de uma Lex Sportiva com força transnacional, atuando de forma cogente – uma ordem jurídica não-estatal regulando o esporte profissional em nível internacional, que entra em processo dialogal com a ordem jurídica dos Estados. Faz-se imperioso ao sistema funcional do Direito a compreensão desFaz-se fenômeno jurídico transnacional, afastado da figura do Estado, e quais os reflexos da criação desse direito multicêntrico (policontexturalidade) às relações entre sistema e ambiente, dando especial atenção aos direitos humanos e seu caráter indisponível aos indivíduos.

Partindo da análise do processo de diálogo entre a ordem jurídica estatal brasileira e ordens jurídicas não-estatais, se pretende localizar possíveis atentados à soberania nacional, ainda que de forma velada e transitória, bem como, entender como esses poderes internacionais conflitam com os interesses estatais e a possibilidade de se estar visualizando um novo processo

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constitucional privado com a construção de ordens jurídicas transnacionais harmônicas entre si que, em processo de atrito com as ordens jurídicas públicas, fazer surgir alterações e modificações em âmbito duplo.

A relevância se torna visível quando, mesmo com toda a perda de proeminência da soberania dos Estados e o reconhecimento da autonomia de ordens jurídicas transnacionais na contemporaneidade, não é raro que seja reproduzido um discurso positivista, marcante da modernidade, mesmo no ambiente acadêmico, com investigações voltadas, exclusivamente, ao viés “estatalista” do Direito, de maneira que o “direito” se confunde com o “direito do Estado”. As comunicações continuam pautadas pela lógica do Estado soberano, ainda que seja crescente o número de pesquisas sobre temas como pluralismo jurídico e novos direitos, é larga a gama de trabalhos focados estritamente em políticas públicas que demandam atuação extensiva do Estado, olvidando acerca desses novos agentes e centros que emitem normatividade e juridicidade na sociedade hipercomplexa contemporânea.

O desenvolvimento do presente trabalho ocorre de forma vinculada ao projeto de pesquisa do orientador Professor Doutor Mateus de Oliveira Fornasier, “Novas Tecnologias e Responsabilidade”, ligada à questão dos “novos direitos” que exsurgem em razão da hipercomplexidade contemporânea. O presente trabalho tem o condão de apresentar uma observação diferenciada para tal projeto de pesquisa, em razão de se assentar no admissão de autonomia de uma ordem jurídica não-estatal que emerge do ambiente internacional, em que os maiores atores não são os Estados e, sim, agências de regulação transnacionais.

Dentro do Programa de Pós-Graduação Strictu Sensu em Direito, Mestrado em Direitos, da UNIJUÍ, o presente trabalho se liga à linha de pesquisa “Direitos Humanos, Novos Direitos e Meio Ambientes”, com uma análise voltada ao recebimento e percepção de novas conformações do sistema do direito, que prescinde do Estado. Ainda que o paradigma estatal ainda guarde sua importância destacada, há um reconhecimento de novas instâncias (não entender como instância judicial) de surgimento e emersão de normatividade e, mesmo, juridicidade, uma ressignificação do humano dos direitos humanos.

A metodologia utilizada para o desenvolvimento desse trabalho consiste no método sistêmico-construtivista, a partir de uma complexa observação de segunda ordem, sob a matriz pragmático-sistêmica, com um conjunto de categorias teóricas suficientes para a compreensão e resposta do problema de pesquisa antes proposto. Trata-se de uma incursão na Teoria dos

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Sistemas Sociais Autopoiéticos, do jurista alemão Niklas Luhmann1, seguindo a matriz proposta pelo brasileiro Leonel Severo Rocha2, que sugere uma reflexão jurídica que supere uma observação voltada apenas à sintaxe (estrutura formal da linguagem) e/ou à semântica (sentido das proposições), atingindo a seara da pragmática (uso das preferências discursivas). Ou seja, busca caminhar para uma epistemologia jurídica além do positivismo (lógica da sintaxe) e da hermenêutica (lógica da semântica), pensando a partir de uma teoria funcionalista como a teoria sistêmica (lógica da pragmática), em razão disso a escolha da matriz pragmático-sistêmica como guião da pesquisa acadêmica.

Além do citado método de abordagem, o método de procedimento é o monográfico, considerando que a presente pesquisa é um estudo direcionado, com uma temática definida e específica, proporcionando, assim, segurança à pesquisa acadêmica. Esse procedimento, aliado à técnica de pesquisa bibliográfica, prevê o uso de textos doutrinários acerca dos assuntos imprescindíveis à temática delimitada; apontamentos e fichamentos; estatutos privados; códigos de conduta de entes transnacionais; bem como legislação pátria e jurisprudência (de Cortes brasileiras, órgãos administrativos nacionais e transnacionais, e tribunais arbitrais). Inclui-se no trabalho, ainda, a análise de documentos de informações presentes na rede mundial de computadores.

O objetivo geral a orientar a investigação no presente trabalho se refere a observar a reflexividade entre ordens jurídicas estatais e não-estatais, internas e externas (Superior Tribunal de Justiça Desportiva, Federação Internacional de Futebol, Comitê Olímpico Internacional, Tribunal Arbitral do Esporte, etc.), em relação à regulamentação internacional do esporte profissional, e como esse processo dialogal tem produzido comunicações jurídicas sobre direitos humanos e questões constitucionais.

Ou seja, trata-se da tentativa de uma construção reflexiva para melhor compreender as comunicações contemporâneas no sistema do direito, sob ponto de vista do diálogo transordinal, no sentido de evidenciar a declaração de autonomia da Lex Sportiva para estabilizar expectativas normativas no âmbito esportivo profissional internacional, a partir de uma observação de segunda ordem utilizando dos construtos teóricos da matriz pragmático-sistêmica e da Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos.

1 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo

Brasileiro, 1983; La sociedad de la sociedad. Tradução para o espanhol de Javier Torres Nafarrate. México: Ed. Herder, Universidad Iberoamericana, 2007.

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O primeiro objetivo específico, correspondente ao primeiro capítulo, foi delineado no sentido de apresentar a sociedade mundial como funcionalmente diferenciada admitindo a hipercomplexidade nas comunicações na contemporaneidade e reconhecendo a policontexturalidade normativa. Nesse primeiro capítulo, sob o título ”Sociedade Mundial hipercomplexa e crise da Soberania”, no momento inicial se apresenta, com base na teoria sistêmica, o conceito de complexidade na pós-modernidade, assim entendida, justamente, a sociedade contemporânea. Por complexidade se compreende a imperativa necessidade de escolher, dentre as mais variadas possibilidades que podem ser eleitas, aquela que nos parece adequada, ou seja, complexidade deve ser concebida como seletividade forçada.

No momento seguinte do primeiro capítulo, o processo de aglutinação de complexidade ao contexto social acontece conjuntamente ao processo de diferenciação funcional das diferentes esferas sociais, assim, a sociedade, entendida como um sistema autopoiético, fechado operativamente, entretanto, aberto de forma cognitiva, e diferenciado de seu ambiente, compreendendo em seu interior toda a multiplicidade comunicativa, permitindo que o sistema social se divida em (sub)sistemas funcionais, que produzem comunicações mais específicas (direito, economia, ciência, política, educação, etc.). Assim, a sociedade moderna, funcionalmente diferenciada, seria mais complexa do que as sociedades baseadas em outras formas de diferenciação, como a diferenciação estratificada (anterior ao advento da Modernidade). Esse processo de diferenciação da sociedade em sistemas funcionais é ponto fulcral na relativização da soberania estatal, através dos processos globalizantes, considerando que as comunicações ultrapassam a figura do Estado, que se apresentou, durante a Modernidade, como centro emissor único das comunicações sociais. Com isso, o momento final do primeiro capítulo introduz a pluralidade de centros emissores de juridicidade na sociedade hipercomplexa, de modo que as comunicações jurídicas são, nesse momento, provenientes de diferentes ordens, dispersas na sociedade mundial, e não somente a partir das ordens jurídicas estatais nacionais.

O segundo objetivo específico, se importa em analisar o modo pelo qual o esporte é regulado, política e juridicamente, conforme a observação das ordens brasileira e mundial, com a finalidade de compreender se a interação entre ordens jurídicas públicas (estatais) e privadas (não-estatais) no âmbito esportivo, com base no caráter econômico atribuído ao esporte atual, cria um direito transnacional. Esse objetivo é abordado no segundo capítulo, intitulado “A regulação política e jurídica do esporte: uma análise das ordens Brasileira e Mundial”. Parte-se de uma filosofia da história do esporte, no sentido de fazer uma retomada histórica da função desenvolvida pelas práticas esportivas ao longo da existência da humanidade, desde o uso como

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táticas de guerra e treinamentos militares, passando pelas Olimpíadas da Antiguidade até a contemporaneidade, para demonstrar o processo de profissionalização que o esporte foi apresentado, até desaguar na atualidade, em que a regulamentação internacional profissional de variados esportes deu luz à uma ordem jurídica multicêntrica, a Lex Sportiva. A partir dessa contemporização, parte-se para uma discussão sobre a Lex Sportiva, como local de criação de um direito global, um primeiro passo para uma ordem jurídica transversal capaz de estabilizar expectativas normativas de forma congruente na sociedade mundial. Para isso, se apresenta o Tribunal Arbitral do Esporte (principal instância na discussão privada em todos os esportes integrantes do Movimento Olímpico) como principal centro emissor de juridicidade na Lex

Sportiva. Já ao final do segundo capítulo, a partir da pesquisa atual do alemão Gunther Teubner

sobre o processo ultracíclico e seu diálogo transordinal, observado por Mateus de Oliveira Fornasier, se analisou o Estatuto da FIFA e a possibilidade do surgimento de verdadeiras constituições civis corporativas em razão dos processos de diálogo e reflexividades entre diferentes estatutos corporativos, com hierarquia e heterarquia comum aos textos constitucionais. Fecha-se o segundo capítulo com uma apresentação da regulamentação jurídica do esporte dentro da ordem brasileira, com fim de promover um comparativo e complementaridade entre ordens, com foco especial à Lei nº. 8.672, de 06 de julho de 1993, denominada de “Lei Zico”, e a Lei nº. 9.615, de 24 de março de 1998, a “Lei Pelé”, que revogou a anterior e segue em vigência na ordem jurídica brasileira.

O terceiro objetivo específico, fechando o trabalho no terceiro capítulo, observa casos de reflexividade e acoplamento entre ordens jurídicas e políticas estatais e não-estatais, de forma a visualizar o diálogo entre diferentes ordens não-hierárquicas entre si, no sentido de conceber se o reconhecimento de uma ordem jurídica não-estatal por um Estado tem o condão de alterar o regramento jurídico público. Esse capítulo, “Diálogo e reflexividade entre ordens jurídicas estatais e não-estatais”, aprofunda a comparação iniciada no segundo momento do trabalho, partindo para o comparativo e ingressando na metodologia do diálogo transordinal, a partir da tese do Transconstitucionalismo, do jurista brasileiro Marcelo Neves. Nos momentos em que uma mesma discussão esteja presente em ordens de diferentes níveis, que abasteçam um sentimento de autonomia entre ambas, mas edifiquem pontes de diálogo, aí está o transconstitucionalismo. Introduzida a metodologia para identificação de reflexividade entre diferentes ordens, o momento posterior se obriga a apresentar oportunidades em que foi sentido atrito e, mais, diálogo entre a Lex Sportiva e a ordem jurídica brasileira, bem como analisar qual o grau de autonomia entre as ordens no momento do acoplamento estrutural ocorrido, buscando visualizar uma possível corrupção em dada ligação. O primeiro caso abordado é o processo

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legislativo que resultou na promulgação da Lei nº. 12.663, de 05 de junho de 2012, a “Lei Geral da Copa”, responsável pela regulamentação e regularização da Copa das Confederações, de 2013, e da Copa do Mundo FIFA de Futebol, de 2014. O segundo momento de reflexividade que foi analisado é o Caso Bosman, litígio jurídico envolvendo o jogador profissional de futebol belga Jean-Marc Bosman, que resultou no fim do instituto do “passe”, que vinculava os jogadores profissionais às equipes, mesmo após o término do contrato, e foi utilizada como base para o texto da “Lei Pelé”. Outro momento fulcral em que a Lex Sportiva foi chamada a decidir sobre questões constitucionais foi no Caso Suárez, jogador profissional de futebol uruguaio, punido em razão de ter mordido um companheiro de profissão durante partida na Copa do Mundo FIFA de Futebol 2014, que permaneceu impossibilitado da disputa de partidas, amistosas ou oficiais, por sua Seleção Nacional por mais tempo do que se tivesse sido punido em um Juízo Penal como incurso em prática criminal de lesões corporais. O caso derradeiro que se pretende analisar é do corredor profissional sul-africano Oscar Pistorius, atleta biamputado e único esportista a disputar as Olimpíadas e as Paraolimpíadas na mesma edição, em Londres/2012, amparado por uma decisão do Tribunal Arbitral do Esporte, que lhe possibilitou competir as provas das Olimpíadas, mesmo com suas próteses. Assim, chega-se ao ponto derradeiro do terceiro capítulo e, por conseguinte, do presente trabalho de investigação social, em que se pretende ponderar acerca dos encontros e desencontros entre o esporte e os direitos humanos, a partir da matriz teórica pragmático-sistêmica.

Após apresentar toda a nova proposta de epistemologia jurídica a partir do viés sistêmico-construtivista, bem como investigar sobre o processo de diálogo entre diferentes ordens jurídicas, não hierárquicas entre si, mostrar os momentos de reflexividade entre a Lex

Sportiva e a ordem jurídica brasileira, bem como situações em que direitos humanos foram

garantidos e/ou questionados dentro do programa de uma ordem não-estatal, o momento derradeiro do trabalho se presta a ponderar sobre os (des)encontros entre essa regulação internacional do esporte e o discurso dos direitos humanos, com isso, se pretende elucidar qual a função que uma ordem jurídica transnacional desempenha dentro do sistema do direito e como situação envolvendo o esporte, de um lado, podem garantir direitos humanos e, de outro, qual a potência de uma mitigação desses direitos em nome do esporte ou, mais profundamente, em razão de uma estabilização de expectativas a partir da Lex Sportiva.

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2 SOCIEDADE MUNDIAL HIPERCOMPLEXA E A CRISE DA SOBERANIA

Todo debate acadêmico necessita, para garantir uma interlocução dialogal, de um (re)corte temporal que possibilite, ao pesquisador, uma verticalidade em sua observação, e, àquele que, de posse do trabalho, se permite visualizá-lo, uma clareza de fundamentação, de sorte que afaste possíveis excessos passíveis de inviabilizar a pesquisa, especialmente nas ciências sociais, em que métodos cartesianos se mostram inadequados, considerando a complexidade que as comunicações apresentam na contemporaneidade.

É sintomático que o Segundo Pós-Guerra (1945), especialmente após o fim da Guerra Fria3 (1991), se mostrou tempo de profundas evoluções e desenvolvimento tecnológico e social. Da telemática à informática, do analógico ao digital, da larga escala ao nano, do cidadão ao consumidor, a complexidade social foi incrementada de tal forma, que se permite falar em pós-modernidade, ou seja, para além da pós-modernidade, uma superação de metanarrativas e univocidade em direção a uma Sociedade Complexa, plural e policontextural. Nesse cenário, há uma relativização da proeminência do papel do Estado, não mais centro único das comunicações na sociedade mundial, mas, agora, compartilhando sentidos com outros atores empoderados.

Com essa agenda apresentada, este capítulo, como instrumento de introdução e aproximação do leitor a uma teoria sofisticada, objetiva apresentar a sociedade como uma realidade hipercomplexa. No primeiro momento, faz-se uso das categorias da complexidade e contingência, a partir da Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos, de Niklas Luhmann, no intuito de demonstrar como o crescimento da complexidade nas comunicações eleva o grau de contingenciamento da sociedade contemporânea.

A partir dessa elevação da complexidade e contingência, se apresenta, no segundo momento, a sociedade como funcionalmente diferenciada, evolução do tecido social que acompanha, e se retroalimenta, com a hipercomplexidade e policontexturalidade das comunicações sistêmicas, onde diversos sistemas sociais autopoiéticos - direito, economia, política, religião, ciência – desempenham funções, no intuito de redução dessa hipercomplexidade presente no ambiente de cada um desses sistemas funcionais.

Os avanços tecnológicos, a evolução da sociedade para uma forma funcionalmente diferenciada, e a elevação da complexidade são apresentados, na terceira seção, como

3 Corrida desenvolvimentista política e tecnológica polarizada entre Estados Unidos (capitalismo) e União

Soviética (socialismo). HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos. Tradução de Marcos Santarrita. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

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determinantes para uma relativização da soberania estatal, especialmente nas comunicações econômicas, científicas e dos meios de comunicação em massa. O Estado deixa de ser um centro comunicativo único, passando a compartilhar com grandes corporações transnacionais os espaços na sociedade complexa característica da contemporaneidade.

Por fim, a parte última deste capítulo intenta um passo além nessa observação sobre a relativização da soberania estatal, atentando para o sistema funcional do Direito, ainda umbilicalmente ligado ao Estado, mas que passa a apresentar, também, uma multiplicidade de centros emissores de comunicações jurídicas, a partir da emergência de ordens jurídicas não-estatais transnacionais, com comunicações específicas como interação entre diferentes sistemas sociais diferenciados.

O interesse precípuo, então, desse primeiro capítulo, é a exposição ao leitor de uma teoria sociológica do direito, baseada em uma epistemologia sistêmico-construtivista, teoria capaz de apresentar uma evolução na observação da função das comunicações jurídicas na sociedade, para além das teorias positivistas e hermenêuticas, pela escolha de uma matriz pragmático-sistêmica suficientemente complexa para observar a hipercomplexidade da sociedade.

2.1 Complexidade, contingência e (pós)modernidade

A sociedade contemporânea é uma sociedade complexa. Os processos naturais de evolução social elevaram o grau de complexidade no tecido social, e, para depurar essa complexidade nas comunicações, o sistema social se complexifica. Complexidade, aqui, não deve ser entendida como dificuldade, mas, sim, como incompletude, sofisticação, um aprimoramento nas comunicações que sobreleva o nível de observação necessária na tentativa de compreensão da sociedade.

O paradigma moderno é sólido, homogêneo, unidimensional, monolinguístico e monista, especialmente como referencial epistêmico jurídico, mas, também, naquilo que concerne à identidade moderna4. Seja na física newtoniana ou no método matemático cartesiano, a modernidade foi marcada por avanços científicos que colocaram o indivíduo no centro de uma guinada evolutiva responsável por “matar”5 a figura do Divino. Há o abandono

4 CANCLINI, Néstor García. Consumidores e cidadãos: conflitos multiculturais da globalização. 3 ed. Rio de

Janeiro: Editora UFRJ, 1997, p. 35.

5 Deus está morto. NIETSZCHE, Friedrich. A Gaia ciência. Trad. Paulo César de Souza. 1 ed. São Paulo:

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de uma ótica metafísica de observação do mundo, a partir de premissas ordenadas por uma entidade abstrata onisciente e onipotente, em direção ao determinismo universal, representado por leis e ordens absolutas, com ênfase aos métodos.

Guiada pelo cogito ergo sum6 cartesiano, a Modernidade foi assentada no “paradigma

da simplificação, responsável por separar o sujeito pensante da coisa extensa”7.

Este paradigma, que controla a aventura do pensamento ocidental desde o século XVII, permitiu sem dúvida os grandes progressos do conhecimento científico e da reflexão filosófica; as suas consequências nocivas últimas só começam a revelar-se no século XX8.

A crise desse modelo de pensamento simplificador se dá a partir da auto-observação, pois seus limites são exacerbados quando se volta a si mesmo. Essa crise se inicia porque uma das bases do paradigma da simplificação é o princípio da disjunção, responsável por isolar “radicalmente um dos outros os três grandes campos do conhecimento científico: a física, a biologia, a ciência do homem”9, e a tentativa de superar a disjunção foi uma redução do complexo ao simples.

Esse pensamento simplificado e simplificador não consegue conceber a “conjunção do uno e do múltiplo; ou ainda unifica abstratamente ao anular a diversidade, ou, pelo contrário, justapõe a diversidade sem conhecer a unidade”10. Aí reside uma falha fulcral na simplificação, já que “complexidade é unidade de uma multiplicidade”11. Nesse paradoxo do uno e do múltiplo, a complexidade é espaço em que constituintes heterogêneos são inseparavelmente associados.

A superação do paradigma moderno, face ao confronto das ciências com a complexidade e a negação de pensamentos simplificados, representou um desafio, ainda em processo de ultrapassagem, já que as ciências se assentavam sobre três pilares de certeza12:

O primeiro pilar era a ordem, a regularidade, a constância e, sobretudo, o determinismo absoluto. Laplace imaginava que um demônio, dotado de sentido e de um espírito superiores, podia conhecer qualquer acontecimento do passado e do futuro;

6 “Eu penso, logo existo”. DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. Maria Ernestina Galvão. São Paulo:

Martins Fontes, 1996, p. 39.

7 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 16. 8 Ibid., p. 16-17.

9 Ibid., p. 17. 10 Ibid., p. 18.

11 ROCHA, Leonel Severo. Direito, complexidade e risco. In: Revista Sequência: Revista do Curso de

Pós-Graduação em Direito. n. 28, Florianópolis: UFSC, 1993, p. 01-14, p. 02.

12 MORIN, Edgar; ALMEIDA, Maria da Conceição de; Edgard de Assis Carvalho (ORGS.). Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2007, p. 60-61.

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O segundo pilar era a separabilidade. Considere-se, por exemplo, um objeto e um corpo. Para conhecê-lo, basta isolá-lo conceitual ou experimentalmente, extraindo-o de seu meio de origem para examiná-lo num meio artificial;

O terceiro pilar era o valor de prova absoluta fornecida pela indução e pela dedução, e pelos três princípios aristotélicos que estabelecem a unicidade da identidade e a recusa da contradição.

Esses pilares de certeza atingiram, também, as chamadas “humanidades”, ciências como a sociologia, política, filosofia e o direito estão inundadas com a noção de simetria, sob a ótica de uma epistemologia cartesiana e positivista, na Sociologia com Augusto Comte e no Direito tem na Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen seu principal expoente. Portanto, o cartesianismo e positivismo, a despeito dos avanços que possibilitaram nas diversas áreas do conhecimento, se mostraram esgotados pelo próprio método de simplificação, divisão e separação na menor porção, que afasta da análise as relações entre partes e todo, entre partes e outras partes, na vã inteligência de que uma abordagem de cada parte separada possibilitaria o entendimento e compreensão do todo, considerando, ainda, que partes e todo permaneceriam estáticos, e com possibilidades unas, determináveis.

O paradigma moderno restou superado por conta desse determinismo, que retira do horizonte de visão a complexidade, a existência de mais possibilidades do que se pode realizar13, ou seja, o conjunto de todos os eventos possíveis.

Designa-se assim, portanto, o campo ilimitado dos “mundos possíveis”. Tomada desta forma, a complexidade alude, por um lado, a um mundo de possibilidades que não é um mundo real, visto que a igualdade radical de tais possibilidades, tanto quanto possível, não se rompe até que alguma forma de preferência permita a decantação de um desses mundos possíveis como mundo real; e, por outro lado, esse campo ilimitado de possibilidades que se denomina complexidade, é concebido conceitualmente como caos ainda não como cosmos. Uma vez que se introduza alguma forma de ordem nessa ausência de contornos, ter-se-á assentado a base para a dita preferência, que permitirá a auto-afirmação de um dos mundos como real; com a complexidade reduzida, começa a existir a sociedade14.

A dificuldade em conceber a complexidade se dá em função, justamente, da ausência de fórmulas fechadas universais, a sociedade complexa derrubou as metanarrativas, comuns à modernidade, que garantiam sua solidez. A ausência dessas metanarrativas, na sociedade complexa, nos remete à concepção do filósofo polonês Zugmunt Bauman, acerca da

modernidade líquida. Para o referido autor, fluidez e liquidez são metáforas adequadas para

13 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo

Brasileiro, 1983, p. 45.

14 AMADO, Juan Antonio Garcia. A sociedade e o direito na obra de Niklas Luhmann In: ARNAUD, André-Jean;

LOPES JR., Dalmir. Niklas Luhman: do sistema social à sociologia jurídica. Traduções de Dalmir Lopes Jr., Daniele Andréia da Silva Manão e Flávia Elias Riche. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 301-302.

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captar, para demonstrar, a natureza da presente fase15. Quando Bauman fala em liquidez, se refere a um derretimento (liquefação) das estruturas, dos padrões, das narrativas elevadas ao nível de “regras universais incontestáveis”. “São esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta” 16.

Essa é a complexidade, onde não há “padrões” que nos são dados, mas, sim, um sem-número de possibilidades. Estamos passando de um momento que nos eram entregues “grupos de referência” para uma era de “comparação universal”. O trabalhoso do pensar complexo, o “peso” em abraçar a complexidade, está que se deve enfrentar a confusão, a solidariedade dos próprios fenômenos entre si, a bruma, a incerteza, a contradição17. A sociedade complexa – o processo de aglutinação de complexidade ao tecido social – apresenta a totalidade dos possíveis acontecimentos e das circunstâncias; “algo é complexo, quando, no mínimo, envolve mais de uma circunstância”18.

A complexidade tem sempre contato com o acaso19, há um vasto campo de

possibilidades, em número maior do que se pode depurar. O desafio reside na necessidade de religação e da incerteza – é preciso religar o que se considerava separado; e, ao mesmo tempo, fazer com que certezas interajam com a incerteza20, desafio que se intensifica na contemporaneidade, pautada pela mundialização.

Niklas Luhmann21 define a complexidade, em termos práticos, como seleção forçada –

enforced selectivity. Com isso, reconhecendo a complexidade incrementada na sociedade, o

sociólogo de Bielefeld propõe uma observação complexa da complexidade, guiando-se pela religação e incerteza, já que a complexidade de uma unidade reside no fato de que nem todos os elementos de tal unidade podem estar simultaneamente em relação com eles mesmos22, pressuposto guião da modernidade. O positivismo e o cartesianismo não oferecem meios

15 BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Tradução: Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001,

p. 09.

16 Ibid., p. 14.

17 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 21.

18 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; NEVES, Fabrício Monteiro. O que há de complexo no mundo complexo? Niklas

Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 15, p. 182-207, jan/jun 2006, p. 10.

19 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 52.

20 MORIN, Edgar; ALMEIDA, Maria da Conceição de; Edgard de Assis Carvalho (Orgs.). Educação e complexidade: os sete saberes e outros ensaios. 4 ed. São Paulo: Cortez, 2007, p. 63.

21 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo

Brasileiro, 1983, p. 46. LUHMANN, Niklas. Essays on self-reference. New York: Columbia University Press, 1990, p. 84.

22 BARALDI, Claudio; CORSI, Giancarlo; ESPOSITO, Elena. Glosario sobre la teoría social de Niklas Luhmann. Tradução: Miguel Romero Pérez. Guadalajara: Universidad Iberoamericana, 1996, p. 43, tradução

nossa. Texto original: “La complejidad de una unidad indica el hecho de que no todos los elementos de dicha unidad pueden estar simultáneamente en relación con ellos mismos”.

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capazes de observar essa complexidade crescente, já que o paradigma da simplificação “desconhece o desconhecido”, não há perguntas sem respostas na modernidade.

O que se pretende, especialmente a partir da nova epistemologia proposta por Luhmann, em sua Teoria dos Sistemas Sociais Autopoiéticos, é compreender que para cada input pode haver diferentes outputs, já que a sociedade complexa, paradoxalmente, produz complexidade ao tentar controlar sua própria complexidade.

A sociedade moderna possui condições de controlar as indeterminações, ao mesmo tempo que não cessa de produzi-las. A sociedade contemporânea é constituída por uma estrutura paradoxal, na qual ampliam-se a justiça e a injustiça, o Direito e o não-direito, a segurança e a insegurança, a determinação e a indeterminação. Em outras palavras, nunca a sociedade foi tão estável e nunca a sociedade foi tão instável, pois a lógica binária não tem mais sentido na paradoxalidade comunicativa23.

A base da teoria luhmanniana se consubstancia na tentativa de observar a sociedade (complexa) sob uma perspectiva sistêmico-construtivista que apresente subsídios passíveis de redução dessa complexidade. Significa que, na imperiosa necessidade de escolher, entre variadas possibilidades, aquela que nos pareça adequada, cuja ativação permita o estabelecimento de uma relação de sentido24, a teoria dos sistemas autopoiéticos, proposta por Luhmann, atua na tentativa de redução e apreensão da complexidade. “Os sistemas sociais têm por função a apreensão e a redução da complexidade”25.

Luhmann concebe a sociedade como sistema social global, “um sistema social abrangente que inclui todas as comunicações, reproduz todas as comunicações, e constitui horizonte significativos para novas comunicações”26, já que o elemento básico na teoria luhmanniana é a comunicação, que permite transcender a clausura individual do sistema psíquico27. Nesse sentido, a complexidade extrema do mundo não é compreensível pela consciência humana, há um gap entre a complexidade no mundo e a consciência humana, “neste

23 ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA,

Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 45.

24 SCHWARTZ, Germano. A fase pré-autopoiética do sistemismo Luhmanniano. In: ROCHA, Leonel Severo;

SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 68.

25 LUHMANN, Niklas. Sociologia como teoria dos sistemas sociais. Trad. Artur Morão. In: SANTOS, José

Manuel (Org.). O pensamento de Niklas Luhmann. Covilhã, Portugal: Serviços Gráficos da Universidade da Beira Interior, 2005, p. 80.

26 LUHMANN, Niklas. Essays on self-reference. New York: Columbia University Press, 1990, p. 176, tradução

nossa: Texto original: “It is the encompassing social system that includes all communications, reproduces all communications, and constitutes meaningful horizons for further communications”.

27 LOPES JR., Dalmir. O contrato como intertextualidade: o papel do direito privado em face da

policontexturalidade. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). Juridicização das esferas sociais e fragmentação do

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ponto que os sistemas sociais assumem a sua função de redução de complexidade na medida em que excluem possibilidades e selecionam outras”28.

A contemporaneidade é tão vasta de probabilidades, o mundo apresenta tantas possibilidades, para além da percepção humana, a ponto da sociedade se tornar hipercomplexa29. A extrema complexidade não compreende apenas quantidades de unidades (unitas multiplex30) e interações que desafiam a capacidade humana de processamento; “compreende também incertezas, indeterminações, fenômenos aleatórios”31, ou seja, o aumento (acréscimo) de complexidade sobreleva, por conseguinte, a contingência.

Contingência, todavia, não deve ser tratada como sinônimo para acaso ou imprevisto. Contingência é algo que não é nem necessário, tampouco impossível, é apenas o que é (ou foi ou será), mas também poderia ser de outra forma32. Contingência, significa, em termos práticos, o perigo de desapontamento e a necessidade de riscos serem assumidos:

Por contingência entendemos o fato de que as possibilidades apontadas para as demais experiências poderiam ser diferentes das esperadas; ou seja, que essa indicação pode ser enganosa por referir-se a algo inexistente, intangível, ou a algo que após tomadas as medidas necessárias para a experiência concreta, não mais lá está33.

Considerando a hipercomplexidade, as variáveis, as possíveis escolhas são vastas, obrigando a seletividade a conviver com a contingência. O ato de escolha, ainda que não percebido como tal, restringe o âmbito de opções seletáveis a posteriori. As escolhas limitam o optável, transformando o que era indefinido em palpável, reduzindo a amplidão. Aí reside a contingência, na teoria luhmanniana, uma vez que uma escolha sempre significa uma (ou várias) renúncia(s), já que nossas escolhas são baseadas em expectativas que podem, ou não, ser atingidas, já que não há garantia de efetivação lógica, mas, sim, um resultado expectável, entretanto, contingente.

28 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; NEVES, Fabrício Monteiro. O que há de complexo no mundo complexo? Niklas

Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 15, p. 182-207, jan/jun 2006, p. 10-11.

29 A hipercomplexidade é a possibilidade de recorrer-se a diferentes sistemas para enfrentamento de questões

específicas. ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo. In: ROCHA, Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 46.

30 A sociedade mundial constitui-se como uma conexão unitária de uma pluralidade de âmbitos de comunicação

em relações de concorrência e, simultaneamente, de complementaridade. Trata-se de uma unitas multiplex. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. 1. ed. São Paulo: WNF Martins Fontes, 2009, p. 26.

31 MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006, p. 52.

32 LUHMANN, Niklas. Social System. Tradução para o inglês de John Bednarz Jr. e Dirk Baecker. Stanford:

Stanford University Press, 2003, p. 106, tradução nossa. Texto original: “Something is contingent insofar as it is neither necessary nor impossible; it is just what it is (or was or will be), though it could also be otherwise”.

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A contingência tem ligação intrínseca com o desapontamento, pois baseada em escolhas expectáveis, mas sem resultado lógico garantido, principalmente se considerada uma perspectiva temporal a partir da complexidade e da contingência. “Dissolvida na dimensão tempo [a complexidade] aparece não só como uma sequência temporal de diferentes acontecimentos, mas, ao mesmo tempo, como uma ‘simultaneidade’ de acontecimentos ocorridos e não ocorridos34”.

No ato de seleção (escolha) forçada, se o objeto de escolha estiver unicamente relacionado com o meio, os resultados do ato não dependerão de outro juízo humano, “as expectativas do ser com relação ao meio são as contingências”35, nos termos já mencionados supra, ou seja, frente à contingência simples, erigem-se estruturas estabilizadas de expectativas imunes, em maior escala, a desapontamentos36. Há, contudo, escolhas em que as expectativas do autor se sujeitam à conformidade dessas com expectativas de outro indivíduo, o que sobreleva a complexidade e o risco de desapontamento é maior, no mesmo patamar. “Se a expectativa está voltada para atos que dependam das expectativas de outro ser, aí então, se está a falar da dupla contingência”37.

Luhmann trata da dupla contingência quando fala que “o comportamento do outro não pode ser tomado como fato determinado, ele tem que ser expetável em sua seletividade, como seleção entre outras possibilidades do outro”38. Com isso, temos que a dupla contingência é a expectativa sobre uma expectativa. O aumento da complexidade na sociedade elevou, de forma gradual, a quantidade de possibilidades de ação para cada indivíduo, aumentando, com isso, também, as experiências da contingência desse indivíduo. Tem-se que, da comunicação entre dois indivíduos, exsurge a dupla contingência, como visto, resultado da necessidade de informação contingente do outro39.

A partir da dupla contingência, uma interpretação da comunicação correta se torna, apenas, uma possibilidade, já que calcada na expectativa de uma expectativa, havendo, mesmo,

34 NEVES, Clarissa Eckert Baeta; NEVES, Fabrício Monteiro. O que há de complexo no mundo complexo? Niklas

Luhmann e a Teoria dos Sistemas Sociais. Sociologias, Porto Alegre, ano 8, n. 15, p. 182-207, jan/jun 2006, p. 16.

35 TRINDADE, André. Para entender Luhmann e o direito como sistema autopoiético. Porto Alegre: Livraria

do Advogado Editora, 2008, p. 55.

36 “À noite segue-se o dia, que amanhã a casa ainda estará de pé”. LUHMANN, Niklas. Op. cit. p. 47. As

expectativas são estabilizadas de forma que os desapontamentos se dão em menor escala, mas, entretanto, ainda subsistem, já que se pode ocorrer um furacão, tufão ou terremoto que derrube a casa, mas, essa contingência se relaciona, unicamente, com o meio, independente de outro juízo humano.

37 TRINDADE, André. Para entender Luhmann e o direito como sistema autopoiético. Porto Alegre: Livraria

do Advogado Editora, 2008, p. 55.

38 LUHMANN, Niklas. Sociologia do direito I. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo

Brasileiro, 1983, p. 47.

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a impossibilidade na comunicação. Tal situação é verificável no momento da cobrança de um pênalti em uma partida de futebol, quando jogador e goleiro procuram calcular suas ações com base na dupla contingência40. O goleiro espera (expecta) “ler”, no ato do jogador, o canto que este chutará a bola; já, o jogador, espera (expecta) chutar a bola fora do alcance do goleiro, a partir das informações que este passa. Essa é a característica e forma da sociedade do terceiro milênio, “um sistema social hipercomplexo dominado pela complexidade e a dupla contingência”41.

A partir do desenvolvimento de sua teoria social, baseada em sistemas sociais autupoiéticos, Luhmann considera que as estruturas de expectativas humanas podem ser definidas em expectativas cognitivas e/ou expectativas normativas. Nas expectativas

cognitivas, na ocorrência de desapontamento, é possível uma adaptação à realidade, já que

existe uma predisposição (in)consciente de assimilação de tal desapontamento. No âmbito de expectativas normativas, todavia, existindo o dano a expectativa não é abandonado, onde

normas são expectativas de comportamentos estabilizadas em termos contrafáticos. No nível

cognitivo de expectativas, elas são experimentadas e tratadas para que, em caso de desapontamentos, sejam adaptadas à realidade. Já, no nível das expectativas normativas, ocorre o contrário, elas não são abandonadas se alguém as transgride. É sabido que o mundo é complexo e contingente, portanto, o desapontamento é (ou pode ser) previsto, mas não é considerado relevante para a expectativa, baseada em processos de neutralização simbólica do expectável.

Luhmann elucida essa diferença com o exemplo da contratação de uma secretária:

No caso de esperar-se uma nova secretária, por exemplo, a situação contém componentes de expectativas cognitivas e também normativas. Que ela seja jovem, bonita, loura, só se pode esperar, quando muito, ao nível cognitivo; nesse sentido é necessária a adaptação no caso de desapontamentos, não fazendo questão de cabelo louro, exigindo que os cabelos sejam tingidos, etc. Por outro lado espera-se normativamente que ela apresente determinadas capacidades de trabalho. Ocorrendo desapontamento nesse ponto, não se tem a sensação de que a expectativa estava errada. A expectativa é mantida, e a discrepância é atribuída ao ator42.

40 FORNASIER, Mateus de Oliveira. Diálogo ultracíclico transordinal: possível metodologia para a

regulamentação do risco nanotecnológico para o ser humano e o meio ambiente. 524f., Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, UNISINOS, São Leopoldo, 2013, 159.

41 ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA,

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