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A teoria dos sistemas sociais autopoiéticos, ao estabelecer como categorias-chave os conceitos de complexidade e contingência, propõe um avanço epistemológico, uma evolução na observação da sociedade. Essa sociedade, descrita e observada, é, também, complexa e contingente, de forma que a sua diferenciação em sistemas funcionais autopoiéticos, operativamente fechados e cognitivamente abertos, se mostra um processo referido ao gradual aumento da complexidade. Luhmann entende que a sociedade moderna possui correspondência com a sociedade complexa, utilizada pelo autor como uma concepção ampla, concebendo todas as particularidades como integrantes dessa complexidade, com isso, a concepção luhmanniana de sociedade complexa compreende inúmeras denominações, desde as noções de Pós- Modernidade até Modernidade Líquida, construções que tentam demonstrar, exatamente, como o crescente número de descrições da sociedade, na contemporaneidade, derrubaram figuras metarrativas que serviam de pilastras à Modernidade.

A ausência de metanarrativas omniabarcadoras de toda a racionalidade, afastada, na contemporaneidade, descrições unívocas e monolinguísticas sobre a sociedade. Não há um centro comunicativo guião, responsável por declarar validade às demais comunicações, sendo que aquelas que, porventura, sejam contrárias ao método, têm sua autonomia cassada por esse

82 LOPES JR., DALMIR O contrato como intertextualidade: o papel do direito privado em face da

policontexturalidade. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). Juridicização das esferas sociais e fragmentação do

centro detentor de monopólio na produção do sentido, papel que já foi desempenhado pela religião (ou pela Igreja, especialmente a Católica Romana, enquanto instituição), de forma que as comunicações seguiam uma ordem metafisicamente estabilizada. Com o declínio da Igreja e do metafísico, e a assunção do indivíduo a um papel primário, há um empoderamento da instituição Estado, como forma de regulação e regulamentação social, o que fica claro com o mito do Contrato Social, em que os indivíduos, espontaneamente, cederiam parte de sua liberdade a esse construto, o Estado soberano, responsável pela manutenção da vida de seus súditos.

A noção do Estado soberano é um dos pilares que alicerçavam a Modernidade, como centralizador das comunicações, detentor de uma comunhão de concepções coletivas, que a sociedade complexa funcionalmente diferenciada acabou por relativizar. “Através da diferenciação funcional dissolver-se-ia a comunhão das concepções coletivas, e em seu lugar surgiria uma solidariedade ‘orgânica’ que, tal qual um organismo, possibilitaria a conjunção das diferentes partes”83.

A globalização, entendida como um resultado da intensificação da sociedade mundial, se mostra como a produção da simultaneidade entre a presença e a ausência que somente é possível em decorrência de sua impossibilidade84, que acabou por “sacudir” o Estado soberano. Em sentido amplo, globalização pode ser compreendida como um processo “policêntrico em que diversos âmbitos vitais superam seus limites regionais e constituem, respectivamente, setores globais autônomos”85, em difusão internacional econômica, social, cultural, política, etc., de maneira que a produção de sentidos está integrada entre o estritamente local e o universal, é, justamente, a união entre esses dois polos espaciais outrora inconciliáveis. A hipercomplexidade e a policontexturalidade, observadas na sociedade funcionalmente diferenciada, se ligam, umbilicalmente, com a globalização, enquanto justaposição de local e universal. Com isso, uma das construções “afetadas” pela globalização (ou pela hipercomplexidade) é o Estado soberano, já que a noção de soberania absoluta está, severamente, relativizada.

83 LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Tradução: Gustavo Bayer. Rio de Janeiro: Edições Tempo

Brasileiro, 1983, p. 26.

84 ROCHA, Leonel Severo. Da epistemologia jurídica normativista ao construtivismo sistêmico. In: ROCHA,

Leonel Severo; SCHWARTZ, Germano; CLAM, Jean. Introdução à teoria do sistema autopoiético do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 45.

85 TEUBNER, Gunther. El derecho como sistema autopoietico de la sociedad global. Lima: ARA Editores,

2005, p. 87, tradução nossa. Texto original: “La globalización es un proceso policéntrico, en el que diversos ámbitos vitales superan sus límites regionales y constituyen respectivamente sectores globales autónomos”.

Jean Bodin define soberania como o “poder absoluto e perpétuo de uma república”86. República em Bodin pode ser compreendida como o Estado moderno, em sua visão

hobbesiana87, uma forma de poder político separado tanto do governado quanto do governante. Soberania é o poder ilimitado e indivisível de centralização das comunicações (jurídicas, morais, políticas, identitárias), monopolizado pelo Estado, reforçando a ideia do mito do Contrato Social88.

O Estado moderno é a projeção perfeita do Leviatã hobbesiano, uma construção intocável, mas, paradoxalmente, presente e dotada de mecanismos que lhe garantiram a centralização proeminência nas comunicações sociais. No epicentro da ideia do Estado moderno “se encontra uma ordem impessoal legal ou constitucional, delimitando uma estrutura comum de autoridade, que define a natureza e a forma de controle e administração de uma comunidade determinada”89. A formação do Estado, em suas feições modernas, é condensada, com rara felicidade, por David Held, em seis momentos determinantes:

a) a crescente coincidência dos limites territoriais com um sistema de governo uniforme; b) a criação de novos mecanismos de elaboração e execução de leis; c) a centralização do poder administrativo; d) a alteração e extensão dos controles fiscais; e) a formalização das relações entre os Estados mediante o desenvolvimento da diplomacia e das instituições diplomáticas e; f) a introdução de um exército permanente90.

86 BODIN, Jean. Os seis livros da república: livro primeiro. São Paulo: Ícone Editora, 2011, p. 195. Ver: BEDIN,

Gilmar Antônio. A idade média e o nascimento do estado moderno. Aspectos históricos e teóricos. 2. ed. Ijuí: Editora Unijuí, 2013, p. 111.

87 HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Tradução de João

Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Nova Cultura, 2004.

88 O contrato social é compreendido como o mito fundador do Estado enquanto instituição responsável por guiar

e zelar pelos indivíduos. Thomas Hobbes indica que o interesse dos homens em restringir a si mesmos, vivendo sob o Estado, é o cuidado com sua própria conservação. HOBBES, Thomas, op. cit. p. 59. Jean-Jacques Rousseau é elucidativo quando cita que o Estado foi a forma encontrada pelos homens como uma associação que os defenda e a seus bens, sendo que essa instituição tem seu poder proveniente da própria liberdade dos indivíduos, que obedecendo a essa comunhão de todos, obedeceriam a si mesmo, permanecendo tão livre quanto no estado de natureza. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social. Rio de Janeiro: Saraiva, 2011, p. 30. Com isso, o mito do contrato social pressupõe que todas as sociedades políticas têm sua gênese na união voluntária e acordo mútuo de homens que escolhiam livremente seus governantes e formas de governo. LOCKE, John. Segundo tratado

sobre o governo. São Paulo: Martin Claret, 2002, p. 63.

89 HELDT, David. La democracia y el orden global: del estado moderno al gobierno cosmopolita. Editorial

Paidós, 1997, p. 60, tradução nossa. Texto original: “se encuentra un orden impersonal legal o constitucional, delimitando una estructura común de autoridad, que define la naturaleza y la forma del control y la administración de una comunidad determinada”.

90 Ibid.. p. 58, tradução nossa. Texto original: “a) la creciente coincidência de los limites territoriales com um

sistema de gobierno uniforme; b) la creación de nuevos mecanismos de elaboración y ejecución de leyes; c) la centralización del poder administrativo; d) la alteración y extensión de los controles fiscales; e) la formalización de las relaciones entre los Estados mediante el desarrollo de la diplomacia y las instituciones diplomáticas y f) la introducción de um ejército permanente”.

O paradigma moderno revelaria a coexistência de Estados soberanos, autônomos e ilimitados dentro de suas fronteiras, sem autoridade superior, sendo que possíveis litígios entre diferentes Estados justificava o incurso em guerras, principalmente para aplicação de ordens jurídicas de um Estado em outro. Essa afirmação do Estado com poderes ilimitados dentro de suas fronteiras, fruto da soberania moderna, foi responsável por tornar os Estados, que deveriam garantir aos indivíduos proteção e direitos, no maior violador dos pressupostos de sua própria fundação.

Essa moderna soberania externa começa a declinar com a Carta da ONU, de 1945, e com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, vez que tais documentos estabeleceram um sistema internacional de normas cogentes, afastando a proeminência do Estado como ator singular na produção de comunicações sociais (principalmente jurídicas, morais e de identidades) e como sujeitos de direito internacional, como forma de tentar garantir aos indivíduos um mínimo de garantias necessárias à dignidade da pessoa humana. Assim, o reconhecimento de uma ordem jurídica supraestatal assola a lógica de ausência de autoridade superior ao Estado e, por consequência, mitiga a ideia de soberania91.

A partir da Sociedade Complexa, a diferenciação funcional afastou os centros de produção de sentido do ente estatal, mormente em alguns sistemas, como a ciência, as artes, meios de comunicação em massa, e, principalmente, a economia. Alguns sistemas funcionais, entretanto, ainda comunicam com especial ênfase na figura do Estado, notadamente a política e, o campo de estudo do presente trabalho, o direito. A globalização, a crescente complexificação social, enquanto processo de difusão espacial das comunicações, tem papel importante na relativização da soberania do Estado e na emergência de diversos centros de racionalização de sentido, uma fragmentação nas descrições sociais, que começa a ser sentida, também, no sistema jurídico, ainda que de forma incipiente.

A percepção da noção de tempo e espaço também tem sua relevância diminuída na Sociedade Complexa, já que é retirado da figura estatal o monopólio na produção de sentido das comunicações. Em uma sociedade funcionalmente diferenciada, tempo se torna uma importante síntese simbólica de sentidos, considerando que hipercomplexidade é ligada de forma estreita com o conceito de globalização92. Novamente, alguns sistemas funcionais,

91 FORNASIER, Mateus de Oliveira. Diálogo ultracíclico transordinal: possível metodologia para a

regulamentação do risco nanotecnológico para o ser humano e o meio ambiente. 524f., Tese (Doutorado em Direito) – Programa de Pós-Graduação em Direito, UNISINOS, São Leopoldo, 2013, p. 192.

92 ROCHA, Leonel Severo; DA LUZ, Cícero Krupp. Lex mercatoria and governance: the polycontexturality

between law and state. Revista da Faculdade de Direito Sul de Minas, v. 28, Pouso Alegre, p. 105-126, jan./jun. 2009, p. 106, tradução nossa. Texto original: “To a functionally differentiated society, time becomes a very

aqueles que observam e comunicam de forma menos ligada ao Estado, parecem operar satisfatoriamente nesse cenário policontextural, enquanto a outros, como o Direito, esse processo apresenta maiores tensionamentos.

Essa defasagem significativa entre as noções de tempo, espaço e sociedade na dogmática jurídica e a atual experiência social leva a um paralelismo temporal, não é raro que os juristas programem normas para longas durações, mas elas não duram, muitas vezes, dias93:

O conceito de tempo nos permite perceber os níveis de diferença de tempo desenvolvido em cada sistema social. O sistema social da economia move suas operações em uma velocidade incrível: as principais bolsas de valores adquirem reações quase físico-psíquicas em relação a, por exemplo, escândalos de corrupção na política ou falsos orçamentos de investimentos internacionais. Enquanto isso, o sistema social da religião, com uma menor abertura cognitiva, ou seja, muito mais apontada para sua operação própria (repetição) já estabelecida (pela Bíblia, por exemplo), leva muito mais tempo para produzir alguma diferença94.

O espaço físico, também, já não é observado e percebido como dantes, a dogmática jurídica positivista estatal imprescinde do conceito de território, já que as ordens jurídicas estatais somente têm vigência e validade naquele âmbito geográfico. Porém, essa noção de territorialidade é superada, conjuntamente com a relativização da soberania estatal, pela fluidez das comunicações, Paul Virilio afirma que estamos diante do fim da geografia, a gradual suplantação das barreiras geográficas (territoriais):

Na ausência de um fim da história é, pois, assim, ao final da geografia que estamos assistindo. Desde as velhas distâncias de tempo produzidas até a revolução nos transportes do século passado, o afastamento propício de várias empresas, em uma época da revolução das transmissões que começa em retorno contínuo das atividades humanas cria a invisível ameaça de um acidente desta interatividade generalizada, sendo uma quebra da bolsa um possível sintoma.95 (VIRILIO apud FORNASIER,

2014, p. 187)

important symbolic synthesis of meanings, since the hypercomplexity is strongly tied with the concept of globalization”.

93 FORNASIER, Mateus de Oliveira; FERREIRA, Luciano Vaz. Complexidade, globalização e regulação jurídica:

a conduta das empresas transnacionais e suas possibilidades de normatização. Scientia Iuris, v. 19, Londrina, p. 73-100, 2015, p. 76.

94 ROCHA, Leonel Severo; DA LUZ, Cícero Krupp, op. cit. p. 107, tradução nossa. Texto original: “This

conception of time allow us to perceive the different levels of time that are developed in each social system. That is, the social system of economy carries out its own operations in an incredible speed: the main stock exchanges acquire nearly physical-psychic reactions in relation to, for example, corruption scandals in the politics or false budgets of international investments. Meanwhile, the social system of religion, with a very thinner cognitive opening, that is, much more pointed toward its proper operation (repetition) already established (by the Bible, for example), takes much more time to produce any difference”.

95 FORNASIER, Mateus de Oliveira. Desterritorialização e Direito: desafios para a construção de uma observação

do jurídico na sociedade mundial. In: FAYET, Paulo; JOBIM, Geraldo; JOBIM, Marco Félix. Controvérsias

constitucionais atuais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2014, p. 187. Tradução: Mateus de Oliveira

Fornasier. Texto original: “A défaut d’une fin de l’histoire, c’est donc bien à la fin de la géographie que nous assistons. Là où les anciennes distances de temps produisaient, jusqu’à la révolution des transports du siècle

Bauman é extremamente elucidativo nesse ponto, quando afirma que, atualmente, estamos todos em movimento, ainda que a maioria esteja em movimento mesmo que fisicamente parada, em razão da desconstrução das noções de distância e tempo, que existem, somente, para serem superados, anulados96. Vivemos no mundo da fluidez e da rapidez, “trata- se de uma fluidez virtual, possível pela presença dos novos sistemas técnicos, sobretudo os sistemas de informação, e de uma fluidez efetiva, realizada quando essa fluidez potencial é utilizada no exercício da ação”97. Ou seja, os territórios, as distâncias, já não importam, e a ideia de uma fronteira geográfica e um tempo “uno” já não se sustentam, de fato, já que são construtos artificiais da razão humana, frutos do Estado moderno, outra ficção98, fala-se em desterritorialização como um fenômeno da globalização, a superação da noção de território99.

Desterritorialização é o movimento de abandono do território pela pluralidade de possibilidades que a crescente complexidade nos apresenta, como já mencionado, o local e o universal estão presentes ao mesmo tempo. É possível sentir um desencaixe, ou seja, um deslocamento das relações sociais do contexto local em direção ao universal, o que passa por uma reestruturação através de extensões indefinidas de espaço-tempo100.

A economia comunica a partir de diversos centros de produção de sentido, sem que o Estado detenha participação fundamental, especialmente com a emergência de atores transnacionais privados, grandes corporações e conglomerados que “transitam” pelos Estados, sem lhes “pertencer”. Essa policontexturalidade comunicativa, tão bem compreendida por alguns sistemas funcionais, é fruto do processo de globalização, ou seja, da crescente complexificação da sociedade, por conta da ausência de distâncias e diferente percepção de tempo e espaço na contemporaneidade. A policontexturalidade é introdução da pluralidade de contexturas, ou seja, possibilidades que transcendem a relação binária, por exemplo, entre

dernier, l’éloignement propice des diverses sociétés, à l’ère de la révolution des transmissions qui commence le continuel feed-back des activités humaines engendre l’invisible menace d’un accident de cette interactivité généralisée, dont le krach boursier pourrait être le symptôme”.

96 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1999, p. 85. 97 SANTOS, Milton. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciência universal. Rio de Janeiro:

Record, 2010, p. 41.

98 BAUMAN, Zygmunt. Op. cit. p. 19.

99 “Espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, na maioria das vezes – mas

não exclusivamente – relacionado ao poder político do Estado”. HAESBAERT, Rogério. O mito da

desterritorialização: do fim dos territórios à multilateralidade. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2006, p. 40. 100 Ibid., p. 157.

privado e público; estado e nação, apontando para a emersão de formas inesperadas que complementam uma função social determinada101.

A fluidez das comunicações econômicas foi intensificada a partir da década de 1980, especialmente na segunda metade, já que o capital não tem domicílio fixo e os fluxos financeiros estão bem além do controle dos governos nacionais102. Contudo, encontrava (e ainda encontra, mesmo que em menor escala) certas barreiras em diálogos com alguns sistemas comunicativos mais sólidos, como é o sistema do direito, com comunicação mais adstrita à figura moderna do Estado, o que “engessa”, não raramente, as comunicações econômicas, dando azo à conflitos e/ou corrupção entre diferentes sistemas. A proeminência de um sistema comunicativo, e uma possível corrupção de outro(s) sistema(s), não é saudável à comunicação na sociedade, em razão de que pode levar ao crescimento desordenado desse sistema e a suplantação do programa de outro(s) sistema(s), acabando com a autopoiese, pela falta do fechamento operativo, direcionando à alopoiése.

Mireille Delmas-Marty103 ressalva que a globalização, em seu viés econômico, tende a uniformização hegemônica de um modelo, especialmente pelo empoderamento de atores transnacionais privados, que se ocupam dos espaços que outrora eram observados e comunicados pela via estatal. A autora francesa anuncia um processo de mundialização104 em curso. Esse processo, contudo, precisa precaver-se para os riscos de uma imposição hegemônica, com fins de homogeneização, o que não seria saudável, como já mencionado, em razão da expansão desordenada de um subsistema social em relação aos demais.

O risco de uma hegemonia da economia, como sistema comunicativo, é resumido por Delmas-Marty sob a forma de três técnicas jurídicas. A primeira, denominada de Direito

Imperial, se dá pela “estruturação hegemônica da sociedade internacional dominada por uma

única potência”105 A segunda, o Mercado da Lei, seria uma “venda” explícita de um modelo jurídico, “não se trata apenas de exportar o direito estatal nacional, mas de facilitar a adaptação

101 ROCHA, Leonel Severo; DA LUZ, Cícero Krupp. Lex mercatoria and governance: the polycontexturality

between law and state. Revista da Faculdade de Direito Sul de Minas, v. 28, Pouso Alegre, p. 105-126, jan./jun. 2009, p. 106, tradução nossa. Texto original: “Polycontexturality is the introduction of the plurality from the contextures, that is, possibilities that transcend the binarity, for example, between private/public and state/nation, preparing the emergence of unexpected forms that complement a determined social function”.

102 BAUMAN, Zygmunt. Globalização: as consequências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1999, p. 60. 103 DELMAS-MARTY, Mireille. Três desafios para um direito mundial. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2003, p.

13.

104 A escolha do termo mundialização é justificada em razão da neutralidade que o mesmo anuncia. Para Delmas-

Marty, o termo globalização guarda maior proximidade à discussão econômica, enquanto que o uso do conceito de universalização é melhor associada ao direito, especialmente aos direitos humanos.

da regra do direito às exigências das próprias empresas multinacionais”106. E a última técnica seria a Lei do Mercado, ou seja, “a decomposição do sistema jurídico pelo mercado, com a aparição de zonas de não-direito submetidas somente ao capital internacional”107.

O sistema do Direito, com isso, passa por uma ressignificação na contemporaneidade, com o claro escopo de superar o paralelismo temporal e espacial que a dogmática jurídica positivista está fadada. Essa (re)configuração do Direito na globalização mantém relação íntima com o alargamento das possibilidades possíveis de escolha proporcionado pela complexificação social, fruto da evolução de formas estratificadas de diferenciação social para formas funcionalmente diferenciadas108, com isso, quer-se dizer que a globalização é um fenômeno multidimensional que implica diversas áreas de atividade e interação, incluindo o campo econômico, político, tecnológico, militar, cultural e do meio ambiente, ou seja, não significa simplesmente um capitalismo global, mas, sim, a realização da diferenciação funcional em escala mundial109.

Uma reconfiguração do direito é necessária, porque, mesmo com a crise do modelo estatal da atualidade, como já mencionado, a teoria jurídica dominante continua sendo normativista e com sua racionalidade centrada no Estado, o que não mais se integra ao contexto da pós-modernidade110, sendo fácil perceber a amplitude das transformações que provoca ao Direito essa constatação de que o Estado deixou de ser o fundamento único do poder e da lei111.