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No ponto anterior, ficou demonstrado que o Tribunal Arbitral do Esporte se encontra em posição privilegiada nas comunicações jurídico-desportivas na ordem transnacional da Lex

Sportiva. Pelos dados levantados, sobre o faturamento e número de praticantes profissionais,

fica claro que o futebol, dentre todos os esportes, tem especial prevalência, já que se tornou a prática esportiva que mais arrecada, que mais movimenta valores em suas transações, com

198 TAS. Swedish National Olýmpic Committee v. IIHF; JO Nagano, 1998, p. 6. Disponível na internet em:

<http://jurisprudence.tas-cas.org/Shared%20Documents/OG%2098-004-005.pdf>. Acesso em: 22 out. 2016. Tradução nossa. Texto original: “As for the Czech Olympic Committee, it is singularly ill placed to seek standing to insist on the application of a rule in circumstances where its team has not been the least affected by the infraction, not even having played in Sweden’s division. The Czech team in effect wishes to be treated as though it had achieved a better result than it did in the first-round games, while Russia is deprived of the fruits of its victory. The Panel finds this stance offensive to the Olympic ideal of fair play”.

maior número de esportistas profissionais e praticantes amadores, bem como é o esporte com mais casos (332, ver nota 171) levados a julgamento pelo TAS. Assim, o presente item se importa em analisar o Estatuto, e demais documentos, da FIFA, sob a ótica da teoria sistêmica, especialmente os trabalhos do jurista Gunther Teubner, que aponta a emergência de estatutos e códigos de conduta de entes civis transnacionais com força de constituições civis, em um processo de constitucionalização sem Estado.

A FIFA (Fédération Internationale de Football Association), instituição internacional privada, com sede em Zurique, na Suíça, administra e gere subsidiárias em 211 países (ou territórios) associados, o que faz com que a Assembleia da FIFA tenha mais membros do que a Assembleia-Geral da Organização das Nações Unidas (com 193 membros). Isso porque, a FIFA reconhece autonomia de territórios que não possuem o mesmo caráter perante a política internacional, como Hong Kong, Kosovo e Gibraltar. Além disso, alguns membros da FIFA são realocados de forma continental, de modo que, em relação ao “mundo do futebol”, Guiana e Suriname pertencem à América Central; a Austrália integra a Ásia; enquanto Israel é parte da Europa. Fundada em maio de 1904, a FIFA se apresenta como uma das federações internacionais mais antigas entre todos os esportes, sendo a quarta com maior número de membros associados. A FIFA é parte do Comitê Olímpico Internacional desde sua fundação, sendo que o futebol esteve presente em todos os jogos olímpicos contemporâneos – mesmo antes da fundação da FIFA, como nos Jogos de 1900, em Paris –, com exceção do primeiro evento, em 1896, em razão da inexistência de locais para sua disputa, ainda que estivesse presente nos anúncios.

O primeiro estatuto da entidade foi aprovado na data de sua fundação, em 1904, passando por severas alterações durante os anos, sendo que a última reforma, aprovada em fevereiro de 2016 e vigente desde o mês de abril, se deu como forma de resposta à falta de transparência nas questões contratuais e financeiras da FIFA, que, em 2015, levou à prisão de alguns dirigentes da entidade e de suas subsidiárias continentais, entre eles o, então, presidente da Confederação Brasileira de Futebol, José Maria Marin, além da renúncia do presidente Josep

Blatter, que estava no cargo de 1998, sob acusações de corrupção, no escândalo que ficou conhecido como FIFA Gate199200201202.

Além do Estatuto203, a FIFA possui uma série de documentos jurídicos, desde as regras do jogo, até regulações sobre as formas de governança da entidade, regulações sobre a eleição presidencial, código de condutas, código de ética, código disciplinar, código eleitoral padrão, regras de transferência de jogadores, além dos Acordos de Cooperação firmados com os Estados escolhidos para receberem as disputas internacionais, bem como regulações de torneios específicos. Todas as normas produzidas pela FIFA, em suas assembleias e contratos firmados, integram a ordem jurídica da Lex Sportiva, vinculando a atuação do TAS quando chamado a julgar demandas desportivas provenientes do futebol. Entretanto, o teor dessa regulamentação não se restringe ao futebol, havendo situações de direitos humanos que são discutidas nesse âmbito.

O processo de juridificação transnacional é veemente no âmbito desportivo, as normas da FIFA, como exemplo, se sofistica de tal maneira, que, além de características normativas apresenta funções jurídicas (jurídico-desportivas), integrando uma ordem jurídica transnacional multicêntrica. Entretanto, o jurista Gunther Teubner observa um fenômeno ainda mais apurado; considerando já assentadas as ordens jurídicas transnacionais autônomas, o autor fala em um processo de constitucionalização sem Estado, em que os códigos de conduta voluntários das corporações e instituições internacionais adquirem propriedade de verdadeiras Constituições civis transnacionais, com caráter não-estatal.

O interesse do presente momento, então, é observar como acontece o intrincamento entre o Estatuto, e demais documentos, da FIFA com a Carta Olímpica, o Código Mundial Antidoping e as decisões do Tribunal Arbitral do Esporte, a partir da teoria de Teubner acerca da autoconstitucionalização das instituições e corporações transnacionais. Novamente, a

199 Caso FIFA: com Marin, cinco dos 14 indiciados estão em prisão domiciliar. Globoesporte.com. Disponível na

internet em: <http://globoesporte.globo.com/futebol/futebol-internacional/noticia/2015/11/caso-fifa-com-marin- cinco-dos-14-indiciados-estao-em-prisao-domiciliar.html>. Acesso em 27 out. 2016.

200 Tudo que você precisa saber sobre o Fifagate e suas consequências. Zero Hora. Versão online. Disponível na

internet em: <http://zh.clicrbs.com.br/rs/esportes/noticia/2015/10/tudo-que-voce-precisa-saber-sobre-o-fifagate- e-suas-consequencias-4882066.html#>. Acesso em 27 out. 2016.

201 Novos dirigentes da FIFA são detidos na Suíça. Globo.com. Disponível na internet em:

<http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/12/novos-dirigentes-da-fifa-sao-detidos-na-suica-diz-jornal.html>. Acesso em 27 out. 2016.

202 O que mudou e o que continua igual um ano depois do Fifagate. Trivela. Disponível na internet em:

<http://trivela.uol.com.br/um-ano-depois-do-fifagate-o-que-mudou-e-o-que-continuou-igual-no-futebol- mundial/>. Acesso em 27 out. 2016.

203 Dados retirados da página oficial da FIFA. Disponível na internet em:

<http://resources.fifa.com/mm/document/affederation/generic/02/78/29/07/fifastatutsweben_neutral.pdf>. Acesso em 27 out. 2016.

escolha da FIFA como parâmetro de onde parte a análise não importa dizer que, em caso de concordância com a tese levantada, está-se diante de uma Constituição da FIFA, mas, sim, de uma constitucionalização e, a posteriori, de uma Constituição civil parcial jurídico-desportiva. Aprioristicamente, porém, é necessária uma delimitação do que se pretende tratar como constitucionalização e Constituição durante o transcorrer desse ponto, com a finalidade de evitar que conceitos deixados em aberto afastem o leitor da ideia inicial do trabalho.

É preciso clarificar, como ponto de partida, que o conceito de Constituição é dotado de plurivocidade de significados. Durante o trajeto para se chegar no sentido contemporâneo, foram inúmeras as evoluções do valor axiológico de Constituição. O conceito de Constituição remonta a Aristóteles, n’A Política204, a Constituição (politeía) era concebida como a ordem (táxis) dos Estados em relação aos “cargos governamentais” (arkhé). Ou seja, de maneira extensiva, como organização, de fato, da polis. Assim, Constituição e Estado poderiam ser equiparados205. Posteriormente, na transição para a sociedade Moderna, como abertura plural do conceito, Constituição para a ser concebida como carta de liberdade ou pacto de poder. “No quadro das revoluções burguesas do Século XVIII, a semântica do constitucionalismo moderno aponta tanto para o sentido normativo quanto para a função constituinte de poder, abrangente e universal da Constituição”206. Mesmo com a expansão do sentido de Constituição, não se viu univocidade no conceito, todavia, apesar da pluralidade de conceituação, desde o surgimento do Estado liberal moderno, Marcelo Neves identifica quatro tendências fundamentais para a definição de Constituição.

Uma primeira definição, “sociológica” clássica, de Constituição, fora formulada por Ferdinand Lassale, em abril de 1862, durante sua conferência em Berlim, onde define, em síntese, a essência da Constituição de país como “a soma dos fatores reais do poder que regem um país”207. Haveria, para Lassale, uma equiparação entre texto e normal constitucional, no sentido de que as normas constitucionais não formariam parte da realidade, ou seja, essa postura “sociologista” (ou “mecanicista”) desconhece que o ordenamento constitucional tem uma relativa autonomia em face do processo real de poder, condicionando-o em certa medida. Assim, a atividade constituinte não é entendida como um processo de filtragem de expectativas

204 ARISTÓTELES. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Col. Saraiva de Bolso. São Paulo: Saraiva,

2011, p. 124.

205 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011,

p. 56.

206 Ibid., p. 57.

207 LASSALE, Ferdinand. Que é uma Constitução? São Paulo: Edições e Publicações Brasil, 2006, p. 30.

Disponível na internet em: <http://www.ebooksbrasil.org/adobeebook/constituicaol.pdf>. Acesso em 27 out. 2016.

normativas comportamentais, fazendo, portanto, com que a Constituição não seja concebida como conjunto de expectativas normativas vigentes208.

Em posição oposta à concepção “sociológica” clássica da Constituição, estão conceitos exclusivamente jurídico-normativos, como aqueles da Teoria Pura do Direito, de Kelsen, que define a Constituição como:

“O escalão de direito positive mais elevado” (Constituição em sentido material) ou as normas jurídicas que, em comparação com as leis ordinárias, só podem ser alteradas ou revogadas através de um procedimento especial submetido a exigências mais severas (Constituição em sentido formal)209.

Essa perspectiva jurídico-normativa pressupõe alguma identificação entre o ordenamento jurídico e o Estado, onde, também, a norma é concebida como o objeto ideal, precisamente, como o sentido objetivo-ideal de um ato de vontade, o que torna o modelo teórico kelseniano inapropriado quando de uma abordagem no sentido da funcionalidade do direito constitucional, visto que desconhece a realidade das expectativas normativas constitucionais como elementos estruturais da Constituição210.

Na terceira perspectiva apontada por Marcelo Neves, a Constituição é definida sob a ótica do “constitucionalismo”, emergindo, especialmente, após as revoluções burguesas nos Séculos XVIII e XIX, correspondendo ao ideal constitucional do Estado burguês de direito. Obviamente, o conceito de Constituição está relacionado ao “Estado constitucional”; sob tal perspectiva, contrapõem-se os Estados constitucionais aos não-constitucionais, a ponto de Neves falar em uma “Constituição constitucional do Estado”211. Entretanto, o jurista brasileiro indica que o problema (a pergunta a qual ela se propõe a responder) da Constituição fica limitado à sua dimensão axiológica ou moral, isso, porque, “nessa orientação seria Constituição ‘verdadeira’ apenas aquela que correspondesse a um determinado padrão valorativo ou a princípios ideais”212. A partir disso, considerando que Estados autoritários e totalitários não realizam os princípios constitucionais, não possuem Constituição.

Por derradeiro, de maneira oposta aos conceitos, que Neves define como, unilaterais, há concepções dialético-culturais da Constituição, que a definem como uma síntese das três

208 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011,

p. 59.

209 KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. Tradução de João Baptista Machado. 6. Ed. São Paulo: Martins

Fontes, 1998, p. 247.

210 NEVES, Marcelo. op. cit. p. 60. 211 Ibid., p. 60.

212 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011,

anteriores, porque as análises parciais da Constituição pressupõem uma concepção integral, onde a Constituição estatal normatizada juridicamente é compreendida somente como expressão parcial de um todo, resultado da “relação recíproca entre dever-ser constitucional (‘ideal’) e ser constitucional (‘real’)”213. O dever-ser constitucional é conceituado como uma conexão (ideal) de sentido, condicionada pelo ser (real) ou, ainda, que dele recebe seu significado social. Com isso, se pode compreender que os procedimentos de tomada de decisões (processo constituinte e de concretização constitucional) atuam como filtros das expectativas jurídico-normativas de comportamentos, de forma a torná-las normas constitucionais vigentes214.

Para além do conceito de Constituição, o interesse do presente ponto é o fenômeno da constitucionalização. Assim, a partir de uma observação sistêmica, mais do que conceituar ou descrever a Constituição, dada sua pluralidade, parece necessário descrever como o processo de constitucionalização permite uma abertura epistemológica do direito constitucional, inclusive no campo transnacional, como constituições civis não-estatais.

Na parte final do primeiro capítulo ficou demonstrado que o sistema do direito é multicêntrico, as comunicações jurídicas internas ao sistemas emergem de diferentes centros, ainda que alguns detenham maior proeminência, como é o caso do Estado. Direito e Política são bastante imbricados com a figura estatal e, por conseguinte, são dois sistemas com nível de entrelaçamento razoável, com bom número de acoplamentos estruturais, como leis que surgem na política mas são aplicadas pelo direito. Outro acoplamento estrutural entre direito e política, citado anteriormente no presente trabalho, é, exatamente, o caso das Constituições Estatais. Justamente nesse ponto é que Teubner tenta um avanço teórico, no processo de constitucionalização, contudo, de forma alheia ao Estado, afirmando a emergência de um grupo de constituições civis, pois, a renúncia de centrar o conceito de constituição no Estado, capaz de iluminar o ângulo cego, abre a perspectiva sobre a possibilidade real de uma constitucionalização sem Estado215, no âmbito transnacional, seguindo o fenômeno da globalização.

A constituição da sociedade mundial não se dá exclusivamente na realidade das instituições representantes da política internacional, tampouco pode acontecer uma constituição global que abarque todos os âmbitos sociais, ao contrário, ela se gera pelo

213 Ibid., p. 62. 214 Ibid., p. 64.

215 TEUBNER, Gunther. El derecho como sistema autopoietico de la sociedad global. Lima: ARA Editores,

incremento da constitucionalização de uma multiplicidade de subsistemas autônomos da sociedade mundial216.

Aqui, novamente, é necessário recorrer à teoria luhmanniana, através de uma digressão ao papal exercido pela Constituição dentro da Teoria dos Sistemas, que permita a compreensão desse avanço teórico proposto por Teubner. Nesse sentido, corroborando a concepção de Constituição exposta acima, com base na lição de Marcelo Neves, se pretende expandir o sentido do termo, a fim de compreender o fenômeno da constitucionalização transnacional.

Como já mencionado, dentro da teoria sistêmica, a Constituição (a Constituição do Estado constitucional) é um acoplamento estrutural entre política e direito, uma via de prestações recíprocas e um mecanismo de interpenetração entre esses dois sistemas sociais autônomos, uma vez que “possibilita uma solução jurídica do problema de auto-referência[sic] do sistema político e, ao mesmo tempo, uma solução política do problema de auto- referência[sic] do sistema jurídico”217. Essas interpenetrações e interferências entre dois sistemas autônomos e autorreferenciais implica relações recíprocas de dependência e independência, somente possíveis a partir da formação autorreferencial de cada sistema.

Dentro da autorreferência e auto-observação do sistema jurídico, a Constituição pode ser compreendida como um “subsistema” do Direito. A norma constitucional, entendida como um caso particular de norma jurídica, representa um tipo de expectativa de comportamento contrafáticamente estabilizada, e não como aquele dever-ser ideal exposto antes218. Ou seja, a vigência das normas constitucionais não é resultado único do procedimento constituinte e/ou da reforma constitucional, entendidos como processos de filtragem exclusivos para tal finalidade, mas, também, da concretização constitucional como processos plurais de filtragem; com isso, se quer dizer que a Constituição não se define apenas pelo aspecto estrutural, mas, de forma simultânea, com seu aspecto operativo, “ela inclui as comunicações que, de um lado, fundamentam-se nas expectativas constitucionais vigentes e, de outro, servem de base a elas”219.

Na relação entre Direito e outros sistemas, a Constituição serve como mecanismo de autonomia operacional do Direito, é a forma pela qual o sistema jurídico reage à sua própria autonomia, porque, “a hierarquização interna Constituição/lei atua como condição da

216 Ibid., p. 78.

217 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011,

p. 66.

218 Ibid., p. 68.

219 NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011,

reprodução autopoiética do direito moderno”220, com o direito constitucional servindo como fechamento normativo e operacional, atuando como verdadeiro limite sistêmico-interno para a capacidade cognitiva do direito positivo. Para Marcelo Neves, “a Constituição determina como e até que ponto o sistema jurídico pode reciclar-se sem perder sua autonomia operacional”221.

Ponto derradeiro para compreensão da formulação de Teubner, sobre essa constitucionalização transnacional, é observar qual a função social e a prestação política da Constituição. Marcelo Neves aponta três situações: a) como primeiro ponto estão os direitos fundamentais e o estado de bem-estar. Os primeiros servem para o desenvolvimento de comunicações em diversos níveis diferenciados, com função relacionada ao “perigo de desdiferenciação” da sociedade, ou seja, com a manutenção de uma ordem diferenciada de comunicação. Isto é, “através dos direitos fundamentais, a Constituição moderna, enquanto subsistema do direito positivo, pretende responder às exigências do seu ambiente por livre desenvolvimento da comunicação conforme diversos códigos diferenciados”222. Já o Estado de bem-estar é definido como a “inclusão política realizada”, e, como Estado de direito, como inclusão jurídica realizada, vez que os “direitos fundamentais sociais por ele instituídos constitucionalmente são imprescindíveis à institucionalização real do direitos fundamentais referentes à liberdade civil e à participação política”223; b) regulação jurídico-constitucional do procedimento eleitoral, considerada como uma prestação específica do direito ao sistema político, isto é, as disposições constitucionais sobre o sufrágio universal, igual e secreto objetivam assegurar a independência do eleitor em relação a seus outros papéis sociais e, com isso, “imunizar” o procedimento eleitoral contra diferenças de status e opinião224; c) a divisão entre os poderes e a diferenciação entre política e administração. A medida que as Constituições institucionalizam a divisão dos poderes, a influência das comunicações conforme o código do poder (política) sobre as comunicações de acordo com o código jurídico é intermediada pelo próprio sistema do direito, ou seja, há uma limitação do poder político por uma esfera jurídica autônoma225. E o corolário lógico dessa divisão dos poderes é a diferenciação entre política e administração, esta última é imunizada (neutralizada) contra interesses concretos e particulares, atuando conforme preceitos e princípios com pretensão de generalidade226.

220 Ibid., p. 70, 221 Ibid., p. 71. 222 Ibid., p. 75. 223 Ibid., p. 77. 224 Ibid., p. 78.

225NEVES, Marcelo. A constitucionalização simbólica. 3. ed, São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p.

80.

Falar em constitucionalização transnacional pressupõe, portanto, uma generalização cuidadosa do conceito de Constituição estatal, sendo desligado das particularidades do processo político, e reespecificado, repensado em termos de operações, estruturas, meios, códigos e programas específicos de cada subsistema. Isso se dá, em razão da sociedade mundial, no contexto da globalização, ter conduzido ao desenvolvimento de rule of law e due process of law em diversos domínios diferenciados de comunicação, processo em que definir a Constituição apenas como acoplamento estrutural entre política e direito se tornou diminuto227. Contudo, como já mencionado, alguns sistemas possuem menor abertura cognitiva – são mais apontados para sua operação própria (repetição) já estabelecida – por conseguinte, levam mais tempo para produzir alguma diferença; enquanto sistemas como a economia reagem com maior naturalidade a complexificação da sociedade, a globalização da política, em comparação aos demais sistemas, está relativamente estancada e deve permanecer assim, em razão de sua estreita ligação com a figura estatal. A política mundial segue sendo política internacional, isto é, “um sistema de interação de Estados nacionais autônomos, que, lentamente, vai incluindo, também, organizações internacionais, sem que estas estejam em condições de substituir os Estados ou, sequer, os relegue a um segundo plano”228.

Essa menor evolução da política, com sua observação sob a ótica estatalista, levou a um processo de juridificação não-estatal, fora das fontes clássicas do direito internacional, como nos contratos entre instituições globais, na regulação do mercado privado pelas multinacionais, os regulamentos internos das organizações internacionais, bem como na Lex Sportiva, objeto desse trabalho. Com isso, no atual estágio de hipercomplexidade e policontexturalidade social, as fontes dominantes do Direito estão na periferia desse sistema, nos limites com outros sistemas da sociedade mundial, não somente nos principais centros que eram responsáveis pela criação do Direito, como os parlamentos nacionais e os acordos internacionais, o que torna possível dizer que, também, normas constitucionais são produzidas nesses ambientes.

Os novos fenômenos de juridificação global também implicam a possibilidade de que