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DANÇAS AFRICANAS E INTERCULTURALIDADE: MUNDIVIDÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE CORPO EM PORTUGAL

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

ESCOLA DE DANÇA

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DANÇA

MARIA TERESA FABIÃO DA SILVA PINTO

DANÇAS AFRICANAS E INTERCULTURALIDADE:

MUNDIVIDÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE CORPO

EM PORTUGAL

Salvador

2011

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MARIA TERESA FABIÃO DA SILVA PINTO

DANÇAS AFRICANAS E INTERCULTURALIDADE:

MUNDIVIDÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE CORPO

EM PORTUGAL

Dissertação apresentada ao Curso de Pós-Graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia, como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Dança.

Orientadora: Profa. Dra. Lúcia Helena Alfredi de Matos

Salvador

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Sistema de Bibliotecas da UFBA

Pinto, Maria Teresa Fabião da Silva.

Danças africanas e interculturalidade : mundividências e experiências de corpo em Portugal / Maria Teresa Fabião da Silva Pinto. - 2011.

151 f. : il.

Inclui apêndices.

Orientadora: Profª. Drª. Lúcia Helena Alfredi de Matos.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal da Bahia, Escola de Dança, Salvador, 2011.

1. Dança - África. 2. África - Relações culturais - Portugal. 3. Portugal - Relações culturais - África. 4. Pós-colonialismo. I. Matos, Lúcia Helena Alfredi de. II. Universidade Federal da Bahia. Escola de Dança. III. Título.

CDD - 793.3096

CDU - 793.3(6)

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MARIA TERESA FABIÃO DA SILVA PINTO

DANÇAS AFRICANAS E INTERCULTURALIDADE:

MUNDIVIDÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS DE CORPO

EM PORTUGAL

Dissertação apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de Mestre em Dança, Programa de Pós-Graduação em Dança, Universidade Federal da Bahia.

Aprovada em 22 de Fevereiro de 2011.

Banca Examinadora

__________________________________________________ Lúcia Helena Alfredi de Matos

(PPGDança - Universidade Federal da Bahia)

__________________________________________________ Mahomed Bamba

(FACOM- Universidade Federal da Bahia)

__________________________________________________ Leda Maria Muhana Martinez Iannitelli

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AGRADECIMENTOS

À avó Natércia, por ter me ensinado a Viver.

Aos meus pais, pelo apoio e por me terem aberto para várias experiências e visões de mundo.

Ao meu irmão Pedro, por ter contribuído para ser quem sou. Ao Salomão, pelo carinho e pela força de todos os dias.

À Cristina Mendanha, minha primeira Mestra na dança, pela paixão pelas artes. À Odete, pela semente do conhecimento, pelos xi-corações.

À Eva, pelo incentivo em escolher a dança como caminho de vida.

À minha orientadora, Prof. Dra. Lúcia Matos, pelo rigor, paciência e aprendizagem, e pela profundidade que conferiu a esta pesquisa.

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia, pela possibilidade de concretização deste estudo.

À Prof. Dra. Eloisa Domenici, que apoiou a minha vinda para a Escola de Dança da Ufba, agradeço-lhe pelo ponto de viragem na minha vida.

À Ana Madureira, pelo sentimento de casa em pleno estudo de campo. À Inês Ponte, pela parceria intelectual em-processo.

Ao Sané, pela partilha da sua história.

Ao Daniel Tércio, pelo contributo para o aprofundamento da pesquisa. Ao Joseph, pelo apoio e compreensão diários.

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Todo o conhecimento é auto-conhecimento. SANTOS, 1988

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PINTO, Maria Teresa Fabião da Silva. Danças africanas e interculturalidade:

mundividências e experiências de corpo em Portugal. 144 f. il. Dissertação (Mestrado) –

Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

RESUMO

Este trabalho aborda de que forma as danças africanas problematizam as relações culturais entre Portugal e certos países africanos. Nesse sentido, realizou-se uma pesquisa de campo com duas unidades de caso, analisando práticas artísticas e pedagógicas com danças africanas: Eva Azevedo e grupo Semente, no Porto, e Petchu e grupo Kilandukilu, em Lisboa. A partir do entendimento da interculturalidade como uma relação dialógica e de questionamentos que envolvem corpo e cultura, discutem-se as representações sustentadas sobre a(s) África(s) e as danças africanas e as significações construídas nessas práticas, relacionando-as com questões sobre colonialismo e pós-colonialismo e questionando, assim, até que ponto é que elas criam espaços de diálogos interculturais. Os dados obtidos através da observação de aulas, espetáculos e ensaios revelaram que o conceito de interculturalidade ainda existe predominantemente no plano dos discursos oficiais, e que as propostas dos professores e grupos artísticos analisados apresentam majoritariamente uma abordagem estereotipada, sugerindo uma dinâmica intercultural do ponto de vista da “fusão”, da justaposição e da relação harmoniosa.

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PINTO, Maria Teresa Fabião da Silva. Danças africanas e interculturalidade: mundividências e experiências de corpo em Portugal. 144 f. il. Dissertação (Mestrado) – Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2011.

ABSTRACT

This study addresses the way in which African dances problematise the cultural relations between Portugal and certain African countries. Thus, a field research was undertaken within two different case units whose artistic and pedagogical practices with African dances were analysed: Eva Azevedo and the group Semente, in Porto, and the group Kilandukilu, in Lisbon. From the understanding of interculturality as a dialogical relationship, as well as from querying on the concepts of body and culture, the study discusses the representations and meanings that these practices assemble about Africa and African dances, associating them with colonialism and post-colonialism issues and questioning the extent up to which they create spaces of intercultural dialogue. The data obtained from class observation, performances and rehearsals revealed that the concept of interculturality still prevails mostly at the level of the official discourse, whereas the teachers and artistic groups mostly propose a stereotyped approach that bespeaks the “fusion”, juxtaposition and harmonious relationship standpoint.

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LISTA DE SIGLAS

UFBA Universidade Federal da Bahia

FUNCEB Fundação Cultural do Estado da Bahia

PALOP Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1. Aula de Eva Azevedo. ... 63

Figura 2. Aula de Eva Azevedo. ... 67

Figura 3. Espetáculo do grupo Semente ... 75

Figura 4. Espetáculo do grupo Semente. ... 78

Figura 5. Espetáculo do grupo Semente. ... 81

Figura 6. Aula de Petchu. ... 87

Figura 7. Espetáculo do grupo Kilandukilu. ... 91

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ... 12

1 DANÇA E INTERCULTURALIDADE ... 158

1.1 SOBRE INTERCULTURALIDADE ... 158

1.2 A INTERCULTURALIDADE A PARTIR DO CORPO... 269

2 PORTUGAL E “ÁFRICAS”: CAMINHOS CRUZADOS ... 314

2.1 PORTUGAL E “ÁFRICAS” HOJE ... 42

3 DANÇAS AFRICANAS EM PORTUGAL: (RE) DEFINIÇÕES E CONTEXTUALIZAÇÃO A PARTIR DOS ANOS 90 ... 469

3.1 DANÇAS AFRICANAS EM PORTUGAL A PARTIR DOS ANOS 90 ... 547

4 PLURIÁFRICAS, PLURIDANÇAS, PLURIVISÕES DE MUNDO ... 63

4.1 UMA “TRADUTORA” DE DANÇAS AFRICANAS NO PORTO ... 614

4.2 SEMENTE: MISTURA “ÉTNICO-CONTEMPORÂNEA” ... 725

4.3 UM “ANIMADOR” AFRICANO EM LISBOA ... 836

4.4 KILANDUKILU: “O MUSEU VIVO” ... 914

5 ASPECTOS DA RECONTEXTUALIZAÇÃO DAS DANÇAS AFRICANAS EM PORTUGAL ... 103

5.1 REPRESENTAÇÕES E “USOS” DE “ÁFRICA” E DAS “DANÇAS AFRICANAS” ... 10811

5.2 DANÇAS AFRICANAS E PÓS-COLONIALISMO EM PORTUGAL ... 1125

5.3 INTERCULTURALIDADE? ... 1236

CONSIDERAÇÕES FINAIS ... 12831

REFERÊNCIAS ... 1347

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INTRODUÇÃO

«”(...) só investigamos de verdade o que nos afeta” (Gramsci, 2002) e afetar vem de afeto».

(MARTÍN-BARBERO, 2004).

Cresci com minha avó me contando memórias da terra da “chuva tropical”, do “cheiro a barro”, do “subir às árvores”... Meu bisavô foi mais um dos inúmeros portugueses que, a meio do século passado, se instalou na “África portuguesa” para montar negócio. Enquanto ele ficou por lá mais de trinta anos, minha avó apenas morou em Guiné-Bissau até aos cinco anos. Foi o suficiente para que os cheiros, imagens e experiências ficassem cravados no seu corpo. Passou-os para mim. Cresci desenvolvendo um imaginário associado a um lugar em que nunca estive.

Meu pai era jornalista na época em que Portugal ainda era país colono. Ainda hoje ouço as histórias do seu envolvimento nos movimentos anticolonialistas, utilizando as suas viagens ao estrangeiro para fazer chegar a Portugal propaganda de partidos revolucionários africanos. Apenas uns anos antes do meu nascimento, viviam-se os tempos agitados da Revolução de 25 de Abril de 1974, revolução querida pelo povo, que veio acabar com o regime ditatorial e afirmar a independência das antigas “colônias”: Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, Moçambique e São Tomé e Príncipe.

Desde cedo na minha educação fui sensibilizada para o contato com outras culturas, entendimentos e realidades de mundo. Estudei em escola pública, viajei desde pequena, visitei, brinquei e me relacionei com outras realidades diferentes da minha. Apesar de viver numa cidade pequena, arranjava maneira de contornar esses limites, não só através de viagens nas férias do verão, mas também do grande universo que a TV apresentava: novos estilos, corpos, culturas e linguagens artísticas.

Penso que são muito difíceis de objetivar, a nível pessoal, as condições de florescimento de determinado interesse. É sempre uma mescla de todas as experiências e, muitas vezes, é um instante decisivo.

Um instante decisivo foi o que me trouxe para a Bahia a fim de estudar dança afro-brasileira, pensava eu na época. Para trás tinha ficado um percurso tradicional na dança que tinha começado aos seis anos com ballet, passando pelo moderno, contemporâneo, barra ao solo etc. Em 2005, três anos antes de decidir sair do país, tive, porém, uma experiência que ia

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ser o meu turning-point na dança e o trampolim necessário para assumi-la como prioridade, o que me encaminhou até Salvador. Conheci algo que me foi apresentado como “dança africana”.

A primeira vez que vi dança africana foi nas ruas no festival de Avignon (França), em 2001. Contudo, foi apenas em 2005 que descobri esse tipo de dança no meu país. Inicialmente, frequentei aulas e aí fui conhecendo pessoas que já tinham projetos nesse meio, sendo assim convidada para alguns projetos e participando no mesmo ano de uma residência de dois meses com a Companhia Raiz di Polon (afro-contemporâneo) em Cabo-Verde.

Na época, mesmo tendo conhecido a “dança africana” há relativamente pouco tempo, já sentia que era uma experiência radicalmente diferente da dança que conhecia até então. Havia diversos aspectos que me faziam identificar com este tipo de dança: a qualidade mais livre, o movimento com sentido, isto é, o movimento que queria dizer algo, criando, assim, espaço para a expressão pessoal, para que cada corpo interpretasse o movimento “do seu jeito”. Assim, o encontro com esta linguagem de dança tornou-se muito mais do que um encontro com uma mera técnica de dança, me possibilitou uma outra vivência / experiência de dança e veio reforçar a ligação da dança com o dia-a-dia.

Atuei durante três anos como intérprete-criadora do grupo Semente e um ano com o grupo de músicas e danças africanas Djamboonda. Dei aulas de “Afro-contemporâneo” (2007) procurando já uma reinterpretação deste estilo de dança. Tanto no contexto docente como na atuação profissional, surgiram várias questões: um estranhamento por “falar” uma “língua estrangeira”, uma rejeição de entender dança como mera “colagem de ´passos´”, um questionamento em relação aos estereótipos, generalizações, exotismos que as propostas neste âmbito evidenciavam... procurava outra forma de me relacionar com este conhecimento.

Essas acabaram por tornarem-se as questões gérmen do projeto de pesquisa de Mestrado, geradas pela experiência de intérprete, criadora e professora de danças africanas em Portugal, e também circunscritas nas reflexões realizadas na Especialização em Estudos Contemporâneos em Dança (UFBA, 2008), e nas vivências no Curso de Educação Profissional Técnico em Dança na Escola de Dança da FUNCEB (2008-2010).

Para além disso, a experiência de imigrante numa cidade como Salvador foi decisiva para chegar ao tema desta dissertação. Destaco a importância de estar imersa noutra cultura diferente da minha; por ironia, um lugar em que falam a “minha língua”, mas doutro jeito. Isso me trouxe, logo desde os primeiros tempos, a possibilidade de usar outros termos e tempos verbais, de reenquadrar as minhas perspectivas, de ver através de outros olhos. Desde sempre e ainda hoje um lugar de passagem, a Bahia é a “terra da mistura” e das contradições,

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onde deixa de ser possível identificar contornos e fronteiras. Ao mesmo tempo, a Bahia, Terra-de-todas-as-Diferenças, lhe “lembra” constantemente em que é que você é “diferente”: mais branco/preto, mais rico/pobre, mais letrado/menos letrado etc. Devido às diversas etnias africanas que foram forçadas a sobreviver desmanteladas, esta é também, por natureza, uma terra de afirmação e valorização da comunidade negra.

Para o estudo do tema desta dissertação contribuiu em muito estar inserida num ambiente em que convivem já há vários séculos diversas influências culturais africanas, contatando com os cheiros, as imagens, os movimentos e os jeitos de ser. Entendi no corpo que a única forma de mergulhar mais aprofundadamente na complexidade destes espaços de tensão e ambiguidade, que são os espaços interculturais, é viver neles, senti-los, navegar nas contradições e na instabilidade que os carateriza. Foi essa a experiência mais rica que a Bahia me deu. Mas a vivência intercultural deu-se não só com o estar numa cidade como Salvador, mas por me relacionar neste contexto com pessoas das mais diversas realidades sociais, por dar e receber, desconstruindo preconceitos em mim e nos outros, por reconhecer e conseguir rir das nossas diferenças e por me sentir estrangeira/“diferente”, experiência essencial para captar o sentido de alteridade... Assim, a interculturalidade passou a estar em mim, no meu “saber de experiência feito”, tornando-se mais do que um mero tema de interesse. Ao longo do processo transformador que é o exercício da pesquisa, remexi muitas gavetas, rearrumei coisas, alterei conceitos, e re-signifiquei outros. Apesar de a minha visão ser, essencialmente, uma visão ocidental e europeia, observo que a vivência há três anos numa das terras “mais africanas fora de África” tem contribuído para novas descobertas e contaminações.

No processo de definição desta investigação optou-se por focar os diálogos interculturais nas danças africanas em Portugal, que se estabelecem com/no corpo. Pretende-se, assim, investigar como as práticas pedagógicas e artísticas de dois profissionais que atuam nas cidades de Porto e Lisboa problematizam os diálogos interculturais entre África Ocidental e Portugal. A popularidade crescente das danças africanas no espaço português e as inerentes questões sobre colonialismo e pós-colonialismo trazem consigo dinâmicas interculturais que modificam o cotidiano, o corpo e o mundo dos indivíduos envolvidos nessas trocas.

O problema inicial que motivou a pesquisa “De que forma duas propostas artísticas e pedagógicas de danças africanas em Portugal problematizam o fluxo de informações entre essas culturas?” se desdobra em outros interesses como as transformações que se dão no corpo e no entendimento de mundo, decorrentes de sujeitos portugueses estarem a praticar danças africanas, e o papel da dança nas trocas interculturais. Para averiguar tal realidade, foram delineados os seguintes objetivos:

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• Pesquisar como as práticas pedagógicas e artísticas de dois profissionais que atuam nas cidades de Porto e Lisboa apresentam o diálogo cultural entre África Ocidental e Portugal;

• Identificar quais tipos de informações estão contidas nessas práticas e como estas informações se articulam na relação intercultural;

• Analisar como são efetivadas as propostas artísticas e pedagógicas dos profissionais que trabalham com estas danças em Portugal e, por sua vez, que representações de África e das danças africanas estas práticas evidenciam.

Ao nível metodológico, constituiu-se como princípio orientador uma abordagem que não apenas trouxesse o meu olhar enquanto pesquisadora, mas que abrisse caminho para a “polifonia de vozes” (MATOS, 2006) e situações que esta realidade abarca. Ao mesmo tempo, foi contraproducente recorrer a uma única “hipótese de trabalho”, preferindo-se, antes, trabalhar com questões orientadoras da pesquisa (DENZIN; LINCOLN et al., 2006), questões essas que se foram aprofundando e clarificando no decorrer do processo. Nesse sentido, optou-se pela realização de um estudo de campo, que seria a única maneira de analisar de perto estas realidades.

Assim sendo, este estudo se insere no campo das pesquisas qualitativas, isto é, pesquisas que trazem no seu foco “a questão do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais” (MINAYO, 1992, p. 22-23). Isto faz com que o âmbito não esteja tanto na mensuração, mas sim nas relações entre variáveis, nos dados qualitativos. Para tal, recorremos à metodologia de estudo de caso múltiplo, definido por Yin (2005) como uma investigação empírica que analisa fenômenos contemporâneos dentro do seu contexto da vida real. Precisamente por ser crucial a análise comparativa de vários casos dentro de uma mesma realidade, este estudo assume a forma de “estudo de caso múltiplo”. Serão consideradas unidades de análise dois profissionais que trabalham com danças africanas em Portugal, sendo estudadas tanto as suas práticas artísticas como as práticas pedagógicas.

Os aportes teóricos escolhidos nos permitiram um maior aprofundamento analítico, estabelecendo uma conexão entre a área da dança, da Sociologia e dos Estudos Culturais. Para tal, no aprofundamento da discussão do conceito de interculturalidade, as teorias de João Maria André (2005), Vera Candau (2000) e Reinaldo Fleuri (2001) tornaram-se mais significativas. Para falar sobre o tema da interculturalidade em Portugal escolhemos João

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Paulo Oliveira e Costa e Teresa Lacerda (2007) e sobre questões pós-coloniais na sociedade portuguesa Neusa Gusmão (2005). A par disso, algumas ideias de Boaventura Sousa Santos (1988; 2006; 2009) contribuíram bastante para esta pesquisa, especificamente conceitos-chave como “ecologia” dos saberes, conhecimento hegemônico/contra-hegemônico e suas discussões acerca do colonialismo e da identidade lusófona pós-colonial.

No campo dos estudos pós-coloniais, a abordagem que Hommi Bhabha (1998) propõe acerca dos efeitos da globalização e das implicações do colonialismo e pós-colonialismo nas noções de identidade e cultura. Perpassando estas temáticas, surgiu também Stuart Hall (2006), nos seus estudos acerca da identidade cultural na contemporaneidade, isto é, do processo de crise das “velhas identidades” e do surgimento de novas identidades, como consequência das globalizações e das diásporas, e, em suma, do contato multicultural.

Para salientar a conexão entre estas temáticas e a área da dança, dialogamos com Christine Greiner (2007), já que esta apresenta “trocas culturais” como uma questão complexa no corpo que dança; Pegge Vissicaro (2004), quando esta afirma uma correlação entre o estudo do movimento e do corpo e a forma como indivíduos de diferentes culturas interagem; e também André Lepecki (2006), que aborda com bastante profundidade questões ligadas ao pós-colonialismo na dança.

Como complemento do arcabouço teórico, utilizamos a pesquisa documental (releases, críticas publicadas) sobre o assunto e registros de vídeo dos grupos estudados, e, para a observação do caso, foi realizada uma pesquisa de campo em Porto e em Lisboa, Portugal, durante os meses de janeiro e fevereiro de 2010. A pesquisa de campo contou, então, com os seguintes instrumentos: observação in loco e registro em vídeo das aulas, dos ensaios e dos espetáculos dos dois profissionais selecionados; realização de entrevistas semiestruturadas com os dois professores, membros dos grupos e praticantes das aulas; realização de entrevistas semiestruturadas com profissionais ligados ao meio das danças africanas em Portugal.

Diante de uma lacuna de produção textual sobre esta realidade em específico, este trabalho tem, também, o objetivo de contribuir para desenvolver o meio das danças africanas em Portugal, à luz de diversas áreas de conhecimento (Estudos Culturais, Sociologia, Antropologia, Pós-Colonialismo). É através destes múltiplos olhares epistemológicos que vamos melhor compreender o caleidoscópio da realidade em questão. Encarando que teoria e prática devem andar par a par, à medida que as questões forem surgindo, elas serão sustentadas e problematizadas por aportes téoricos e pelas falas dos sujeitos da pesquisa.

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Assim, no primeiro capítulo deste trabalho, começamos por levantar uma discussão sobre o conceito de interculturalidade, sugerindo, inicialmente, a noção de “diálogos interculturais” como central a esta pesquisa e ressaltando algumas ideias que devem estar em cena ao falar sobre este conceito. Passamos, depois, a explicar de que forma concebemos o tema da interculturalidade relacionado ao corpo, destacando o potencial da dança nas trocas interculturais.

Através de recortes históricos, o capítulo seguinte apresenta uma breve retrospectiva das relações culturais entre Portugal e certos países africanos, não só num momento passado como também num momento presente, de maneira a fornecer uma contextualização para o foco da pesquisa.

No capítulo terceiro entramos no tema específico das danças africanas em Portugal a partir dos anos 90. Essa delimitação temporal deve-se à própria circunscrição da atual pesquisa, mas, também, à época recente em que estas danças começaram a se fazer mais presentes em alguns contextos no país. Antes de elaborar uma breve descrição do meio das danças africanas no espaço português, achamos pertinente propor uma discussão sobre esse mesmo conceito, que tem estado tão envolto em generalizações e estereotipias.

Em “PluriÁfricas, pluridanças, plurivisões de mundo”, entrando já na descrição e análise dos dados de campo, vamos abordando cada caso em particular, a professora Eva Azevedo e o grupo Semente, e o professor Petchu e o grupo Kilandukilu, apresentando as principais questões suscitadas.

Retornamos, no quinto capítulo, aos questionamentos que se mostraram mais complexos e recorrentes, tendo a oportunidade de cruzar mais aprofundadamente as nossas análises com as visões de diversos autores e, assim, problematizar diferentes contornos que assumem os diálogos entre estas culturas nas danças africanas em Portugal.

Por último, apresentamos as considerações finais acerca dos dados analisados anteriormente, apontando, na consequência, desdobramentos do estudo e propostas para o futuro, no âmbito deste assunto.

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1 DANÇA E INTERCULTURALIDADE

1.1 SOBRE INTERCULTURALIDADE

Um dos primeiros questionamentos desta pesquisa diz respeito à busca pelo conceito mais apropriado para falar sobre “troca entre culturas”. Na busca sobre o termo mais adequado, surgiu a dúvida entre os conceitos de multiculturalismo ou interculturalismo.

Segundo o sociólogo americano Stuart Hall (2003, p. 52), multiculturalismo “refere-se às estratégias e políticas adotadas para governar ou administrar problemas de diversidade”. Já nas palavras de Reinaldo Fleuri (1999), multiculturalismo indica “uma situação em que grupos culturais diferentes coexistem um ao lado do outro sem necessariamente interagir entre si” (op. cit., p. 7). Existem autores, como Peter McLaren, que veem a questão de um ponto de vista crítico e concebem o multiculturalismo como um processo em constante reconstrução, assumindo a multiplicidade de vozes que carateriza os cenários multiculturais e apresentando-os como “polivocais e relacionais” (McLAREN, 1997, p. 180). Porém sabemapresentando-os que essa não é, infelizmente, a abordagem mais divulgada do conceito. No senso comum, esse conceito aproxima-se mais de uma tradução literal do termo: multi (=muitas) culturalismo (=culturas), ou seja, “o multiculturalismo nada mais é do que várias culturas se encontrarem no mesmo espaço e tempo” (CANTU; DAMSCHI; TONNIAZO, (s/d), p. 114). Assim, no dia a dia o entendimento mais disseminado continua sendo o de multiculturalismo, enquanto “diversidade cultural” (BRANT, 2005), ligado à ideia de sobreposição, de coexistência entre diferentes culturas, o que nos parece tão interessante para este estudo. A esse propósito, as educadoras Canen e Oliveira (2002) têm uma síntese interessante:

[...] o multiculturalismo apresenta uma polissemia (CANEN, 1999; 2000; 2001; CANEN & GRANT, 1999; CANEN & MOREIRA, 2001), abarcando posturas epistemologicamente diversas e, mesmo, conflitantes. Há os que o concebem apenas como valorização da diversidade cultural, entendida de forma essencializada e folclórica, [...] reduzido [...] à comemoração de datas especiais, tais como "Dia da Consciência Negra", "Dia do Índio" e assim por diante. O fato de que o multiculturalismo seja reduzido a essa dimensão tem levado a muitas críticas (SILVA, 2000), ressaltando-se a necessidade de se discutirem seus sentidos mais engajados com posturas teórico-críticas de transformação social. [...] (CANEN; OLIVEIRA, 2002, p. 2).

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Apesar de o termo multiculturalismo ser mais popular, inclusive no contexto que será abordado nesta pesquisa, o seu uso cotidiano indiscriminado parece trazer mais limites que possibilidades, e, por isso, nos afastamos logo à partida desta linha de estudos.

Por outro lado, interculturalismo nos parece uma noção mais aberta e completa, igualmente polissêmica e ambígua, mas que se aproxima mais das ideias que queremos desenvolver. Conceito que começou sendo majoritariamente usado pela Antropologia e pelas Ciências da Educação (OLIVEIRA, 2007), foram as escolas, como seio de diferentes comunidades, as primeiras instituições a sentirem necessidade de compreender a intercultura. Assim, este termo traz aliado a si a ideia de interação cultural (CANDAU, 2000), de processos contínuos e continuados, ligado a uma perspectiva relacional, de troca e de criação de espaços de encontro entre culturas, como aprofundaremos mais adiante.

Ainda que a discussão comparativa entre conceitos não seja o foco deste trabalho, nos pareceu pertinente expor estes questionamentos por duas razões. Primeiro por que, como falamos antes, um cenário multicultural não implica necessariamente que estejam acontecendo trocas entre culturas, sendo que esta discussão terminológica pode lançar mais alerta para estas sutilezas, fomentando, desse jeito, uma postura mais crítica. Segundo, por que nos demos conta que o que estava por detrás desta busca não era tão-somente a questão de nomear, mas um questionamento da abordagem epistemológica e ontológica a ser utilizada, sendo que, ao partilhar esse processo, esperamos poder também contribuir para o desenvolvimento de uma atitude mais questionadora. Nesse sentido, como nos traz Leonardo Brant, as atuais pesquisas sobre multiculturalismo, interculturalismo, pluralismo não devem ser apagadas “nem transpostas apressadamente: este[multiculturalismo]deve ser inventado, sintetizado e confrontado aos questionamentos hoje formulados nos diferentes quadros nacionais, regionais e multilaterais” (BRANT, 2005, p. 80). Assim sendo, um caminho frutífero para as trocas interculturais pode ser o questionamento e ressignificação de conceitos que permitam nomear e discutir estas realidades que se redefinem diariamente.

Partindo desse pressuposto, passamos a aprofundar, em seguida, o conceito de interculturalidade, articulando visões de diferentes autores. Dentre os aportes teóricos estudados, começamos com a proposição de Vera Candau (2000), pesquisadora de interculturalidade e educação, que apresenta uma perspectiva bem abrangente sobre o conceito. Em suas palavras:

O interculturalismo supõe a deliberada inter-relação entre diferentes culturas. O prefixo inter indica uma relação entre vários elementos diferentes: marca uma reciprocidade (interação, intercâmbio, ruptura do isolamento) e, ao mesmo tempo,

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uma separação ou disjuntiva (interdição, interposição, diferença) este prefixo [...] se refere a um processo dinâmico marcado pela reciprocidade de perspectivas (CANDAU, 2000, p. 3).

Estão sendo introduzidas, nesta definição, algumas características das relações interculturais. Para além de estar sendo realçado o caráter intencional destes processos, o destaque para o prefixo “inter” vem sublinhar algumas dinâmicas que se dão pelo princípio da reciprocidade. Reciprocidade parece surgir aqui enquanto troca, apontando uma relação “entre”, uma “interação, intercâmbio”, mas também uma “ruptura do isolamento”. É interessante pensar as trocas culturais também como um meio de quebrar o fechamento que por vezes assegura, mas também isola, os grupos culturais. Concordamos com Candau, também, quando ela apresenta este conceito não como algo dualístico (recíproco /isolado), mas representando uma “posição entre duas coisas”, um “entre-lugar” (“interposição”), representando “diferença”, representando impedimentos (“interdição”). É também essencial a visão que a autora traz do interculturalismo enquanto “processo dinâmico”, algo em permanente redefinição, característica que será sublinhada ao longo de todo este trabalho. Em suma, a perspectiva apresentada por Candau (2000) contribui para ver a questão da “reciprocidade de perspectivas” e de como isso pode estimular um crescimento mútuo.

Por outro lado, Reinaldo Fleuri, da Universidade de Campinas, tece também algumas considerações interessantes que podem completar o discurso de Candau. Para o autor:

[...] a perspectiva intercultural [...] emerge no contexto das lutas contra os processos crescentes de exclusão social. Reconhece-se o sentido e a identidade cultural de cada grupo social. Mas, ao mesmo tempo, valoriza-se o potencial educativo dos conflitos. E busca-se desenvolver a interação e a reciprocidade entre grupos diferentes como fator de crescimento cultural e de enriquecimento mútuo (FLEURI, 2001, p. 49).

Interessante de se pensar a emergência deste conceito como consequência dos cenários de exclusão e conflitos sociais, cada vez mais cotidianos nas grandes metrópoles multiculturais. Fleuri defende a abordagem intercultural no seu potencial de aproximar identidades culturais1, não numa perspectiva “idealizada” da realidade, na qual o conflito é “abafado”, mas vendo-o como motor de emergência das discordâncias, das diferenças, das desconexões de pontos de vistas, e como possibilidade de articulação, negociação, tradução e integração. O cenário intercultural ainda lida com estereótipos e dinâmicas em torno de um ideal de harmonia que tendem a cair por terra quando começamos a trabalhar a partir das

1

Ao longo desta pesquisa, identidade cultural será entendida a partir do conceito de “identidade multifacetada”, de Stuart Hall (2006), que será desenvolvido mais adiante.

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tensões e do potencial criativo e catártico do conflito entre diferentes concepções de mundo. Não se trata de suprimir a possível violência das discordâncias, mas sim de deslocá-la para outro lugar, para um lugar de tensão produtiva, para que isso seja um ponto de saída, para que se torne, como coloca Reinaldo Fleuri (2000, p. 49), um “fator de crescimento cultural e de enriquecimento mútuo”. Igualmente, nesta definição, encontramos a tônica na reciprocidade e interação que vêm frequentemente agregadas ao conceito em questão.

Uma outra visão que interessa compartilhar é a de João Maria André, autor do livro “Diálogo intercultural, Utopia e Mestiçagens”, que nos fala do “projeto da interculturalidade” (ANDRÉ, 2005). Esse filósofo português apresenta outra perspectiva que toma a interculturalidade como uma forma de lidar com o cenário multicultural, como um “projeto” a ser implementado em processo (ANDRÉ, 2005). Este autor associa a educação intercultural à emergência do multiculturalismo, expondo uma visão que relaciona interculturalismo com multiculturalismo. Da mesma forma, Júlio César de Tavares nos descreve a interculturalidade “como a prática dialógica cotidiana do projeto multicultural” (TAVARES, 2004, p. 137).

Como vimos até agora, podemos considerar que uns entendem a interculturalidade como as relações recíprocas entre culturas, outros como uma “proposta” ou como um “projeto”. Quer a ênfase esteja na interculturalidade como “projeto” (propostas teóricas a serem implementadas), ou na interculturalidade como “processo” (algo que se redefine constantemente), de qualquer forma, ela tende a ser encarada como algo “vir-a-ser”, como uma prática dialógica que se reestrutura à medida que acontece e que abarca nela a heterogeneidade, a diferença, a alteridade.

Uma perspectiva que adiciona algo às abordagens apresentadas é a de Pallabi Chakravorty que, no artigo “From Interculturalism to Historicism: Reflections on Classical Indian Dance” (2000), discute o conceito de interculturalismo, deslocando-o dos centros hegemônicos de conhecimento, localizados nos países ricos. Esta teórica indiana traz uma visão inovadora ao pensar a emergência deste conceito como uma consequência do contexto que o concebe. A autora identifica que, atualmente, o conceito de interculturalismo carece de uma reformulação, e que o “centro” deve desenvolver um olhar mais autocrítico, a partir de uma análise das relações de poder embebidas nas relações entre “centro” e “periferia” (outrora as relações desiguais entre colonizador e colonizado)2. No seguimento deste artigo, Pallabi traz a visão de Trinh Minh-ha, cineasta vietnamita que entende “interculturalismo como a partilha de um campo que não pertence a ninguém, tão-pouco àqueles que o criam”

2

Esta é uma temática que retomaremos mais tarde, quando abordaremos sobre a ligação entre Portugal e alguns países africanos.

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HA apud PALLABI, 2000, p. 116). É extremamente interessante pensar este fenômeno também como uma “terra-de-ninguém”, ou como um “não-lugar”3, em que tudo pertence a todos e nada pertence a ninguém. A mesma cineasta afirma que, nos primórdios do interculturalismo, “o interesse em criar encontros entre gêneros foi desenvolvido a partir das diásporas4 indianas e africanas” (op. cit.).

Ao mesmo tempo, outro aspecto pertinente sobre interculturalismo refere-se à visão de encarar os espaços de troca intercultural como espaços de transformação, de trocas emocionais, de trocas de mundividências e atitudes de estar no mundo. É o que foi incentivado pelo Festival Interculturalidades, criado no Rio de Janeiro, em 2004, por ação da Universidade Federal Fluminense, que teve como objetivo o “contato entre diferenças” e o “despertar para o outro” (GUELDMAN; ROCHA, 2004, p. 1). Na publicação sobre o encontro, alguns autores exprimiram a interculturalidade como coletividade, como polifonia, como reativação das memórias coletivas, mas também como diferença, como articulabilidade, e como um lugar de encontros afetivos. Assim, é fácil entender que, para Cícero Rodrigues, reitor que promoveu o citado festival, a interculturalidade é um “território de encontros, ideias, sensibilidades e percepções [...]” (2004, p. 2). Apesar de pouco divulgado este entendimento do fenômeno intercultural, pensamos que é frutífero reconhecer os contextos em que realizamos encontros – encontros afetivos, profissionais, entre outros – e no qual iniciamos e solidificamos relacionamentos, como um canal de expressão e construção de identidades sociais e coletivas.

Por outra via, apesar da inter-relação entre essas conceituações, consideramos pertinente discutir outras visões sobre interculturalidade, que, em contraposição, evidenciam opções teóricas que não se adequam às adotadas neste trabalho.

A primeira delas surge de Carlos Gimenez Romero (1997), catedrático da Universidade Autônoma de Madri que estuda mediação intercultural e que nos traz que “a interculturalidade é uma relação de harmonia entre as culturas; dito de outra forma, uma relação de intercâmbio positivo e convivência social entre actores culturalmente diferenciados” (GIMENEZ ROMERO, 1997, p. 19). Através desta definição observamos uma tendência para encarar esta realidade do ponto de vista meramente harmônico, sem considerar a tensão e conflituosidade que também está imbuída nos processos interculturais. E, mesmo quando o autor coloca a questão da “diferença”, nota-se que não a está abordando enquanto

3 Conceito de Marc Augé (1994). 4

Apesar de haver autores que se dedicam ao estudo das trocas interculturais a partir do conceito de “diáspora” (HALL, 2003), neste trabalho não iremos aprofundar este assunto.

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“singularidade”, mas apenas enquanto “culturas diferentes”. Novamente voltamos à visão trazida no início deste capítulo, dos espaços multiculturais tratados do ponto de vista de “diversidade cultural”: ou seja, trabalhar com a diferença, tratando de maneira igual indivíduos e culturas que são diferentes. Dessa forma, somos levados a crer que o que pode surgir da convivência com o “diferente” é algo apenas “positivo”. Assim, não nos parece tão interessante essa visão já que ela não concebe que as relações interculturais são, pois, baseadas nas redefinições, na aceitação, mas também no conflito. São um processo contínuo de negociação que, para funcionar, assenta numa pedra basilar: o diálogo. Visões deste gênero multiplicam uma perspectiva redutora do encontro entre culturas, vendo estes cenários de um ponto de vista conservador, como se o que resultasse disso fosse algo necessário e exclusivamente harmonioso. Parece-nos, então, importante lançar questionamentos para que o padrão de encarar os encontros culturais numa perspectiva idealizada não continue a criar violações culturais, epistemológicas e ontológicas.

A segunda definição da qual discordamos parcialmente surge de Christine Greiner, a qual nos diz que o intercultural “corresponderia a aspectos de duas culturas sintetizados em uma forma nova que é diferente das duas culturas supostamente originais” (GREINER, 1999). A nosso ver é complicado pensar os encontros culturais a partir da ideia de “síntese”, já que isso parece colocar uma ênfase demasiado grande no resultado, e não no processo. Nem sempre o que surge dessas experiências é elaborado em forma de “síntese”, às vezes não se chega a nada “palpável”; só o simples fato de se “estar em contato” desencadeia vivências interculturais. Por essa lógica de ideias, é certo que essas vivências vão originar formas novas, mas o que daí advém estará o tempo inteiro numa relação processual, continuamente se redefinindo. À parte disso, uma outra fragilidade que identificamos nesta noção é que nenhum termo remete à ideia de troca, de diálogo, que pensamos vir associada ao prefixo “inter”, sendo uma perspectiva que nos interessa bastante reforçar.

Diante do exposto, neste trabalho, para enfatizar o entendimento da interculturalidade como algo-em-processo, consideramos proveitoso optar por um conceito composto que alie as noções de “diálogo” e “intercultural”.

Nessa articulação, diálogo sugere troca, comunicação, e evidencia, por definição, uma perspectiva relacional. Diálogo surge como uma possibilidade de construir pontes entre subjetivações e sensibilidades, com toda a complexidade e conflituosidade que isso implica. Logo, como é trazido na citada publicação do Festival Interculturalidades, “no curso das inter-ações, é a própria constituição e experiência dos seus elementos que se vê conduzida a novos deslocamentos, a partir da perspectiva relacional, no encontro, nos vemos diante de

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possibilidades e da efetividade da própria mudança” (GUELDMAN; ROCHA, 2004, p. 3). Assim, queremos reforçar a visão destes encontros enquanto espaços de transformação e aprendizagem, reforçar o potencial dos encontros culturais, vistos a partir das diferenças que unem, quando trabalhadas a partir das tensões, das diferenças naturais entre indivíduos de diferentes referências culturais. Dessa forma, sabendo que trabalhar a diferença significa trabalhar as tensões existentes, diálogo surge aqui não do ponto de vista meramente harmônico, mas sim como algo que tem muito de tradução, flexibilidade, negociação e conflito. Assim, passa-se a conceber a aproximação entre culturas como possibilidade de desenvolver outros pontos de vista através do contato com o outro. É só através do diálogo que podemos aceder e compreender uma outra perspectiva de mundo, quer esse diálogo aconteça por meio de palavras, danças, músicas etc.

Gadamer nos diz que um diálogo “é aquilo que deixou uma marca. O que perfaz um verdadeiro diálogo não é experimentarmos algo de novo, mas termos encontrado no outro algo que não tínhamos encontrado em nossa própria experiência de mundo” (GADAMER

apud GUELDMAN; ROCHA, 2004, p. 247). Por essa ordem de ideias, os encontros culturais

têm a virtude de se tornarem em espaços de troca e aprendizagem. Este entendimento da troca intercultural implica que se abandone concepções conservadoras de troca como algo igualmente recíproco e “mensurável”, do gênero “toma lá/ dá cá”, mas que se esteja receptivo a encarar troca como um fluxo entre polos, como algo construído a várias mãos, e que não funciona exatamente na mesma medida. Nessas dinâmicas interculturais, não se trata tanto de aprender “informações materiais” (uma dança, uma canção, uma palavra, uma música), mas sim de trocar aprendizagens relacionadas a “um jeito de estar no mundo”, a uma mundividência. Talvez assim, trabalhando a partir das congruências e incongruências, encarando que o que resulta num contexto pode não resultar noutro, e estará sempre se redefinindo, talvez assim esses encontros possam crescer na sua potencialidade. Sabendo que esses espaços de aprendizagem só o serão se forem encarados não como “receitas-prontas”, mas como “[...] prática[s] de transformação que, porque assente[s] no diálogo, não prefigura[m] antecipadamente os resultados finais, mas abre[m]-se ao novo que, fulgurantemente, pode sempre surgir da convivência dinâmica de diferentes [...]” (DERRIDA

apud ANDRÉ, 2005, p. 63).

Nesse sentido, João Maria André refere-se ao diálogo como “hospedagem do outro em mim”, isto é, como uma relação afetiva que é gerada quando nos ligamos ao outro e o acolhemos dentro de nós, deixando que “ele nos more ou habite como se fossemos a sua casa” (ANDRÉ, 2005, p. 145). Contudo, André alerta, essa relação não é algo extrínseco ou

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estático, “como se morar fosse apenas o estar em, tal como um livro está numa estante, mas é uma relação de mútua transformação” (op. cit.). Quem sabe esse possa ser um caminho para uma experiência intercultural mais profunda: o ser capaz de se imaginar ou de se sentir no lugar da outra pessoa, o ser capaz de acolher dentro de nós outros modos de fazer.

Ao mesmo tempo, é interessante também acrescentar que o diálogo entre diferentes “práticas e poéticas contemporâneas muitas delas consideradas subalternas (minoritárias, populares, étnicas, etc)” podem ajudar a “garantir a presença [e a sobrevivência] de diferentes vozes e olhares” (BARBOSA, 2004, p. 73) que, como vimos antes com Chakravorty (2000), se encontram ainda muito marginais. Para isso é crucial que se disseminem ideias mais inclusivas, que se juntem e multipliquem iniciativas, ações e pesquisas questionadoras em torno das diferentes vertentes deste tema.

Neste ponto, é válido destacar que a noção de diálogo intercultural não é algo que está sendo construído neste trabalho, mas que vem sendo usada por variados autores, majoritariamente autores europeus, por conta de essa realidade estar cada vez mais na “ordem do dia” na Europa. Como forma de aprofundar o debate sobre este conceito, recorremos de novo a João Maria André (2005) para apresentar três dimensões do diálogo intercultural, dimensões que ele considera estarem indissociáveis. Na sua concepção, o primeiro momento indispensável é o “conhecimento do outro”, da sua história, do seu percurso, das suas tradições. Sem que haja este entrosamento, o outro é descontextualizado e descorporalizado, sob pena de reduzir-se o diálogo a um monólogo. Assim, é crucial que se criem condições para que os sujeitos que convivem nos espaços multiculturais se conheçam mutuamente, “não bastando proporcionar às culturas minoritárias elementos informativos para superarem os seus déficits no seio das culturas majoritárias em que estão inseridas [e vice-versa]” (ANDRÉ, 2005, p. 142). Ao mesmo tempo, uma segunda instância é o “desenvolvimento de uma consciência crítica” em relação às situações de injustiça social, sobre suas causas e consequências. Isso é a base para um diálogo “despreconceituoso e empenhado”. Por último, o autor expõe que esse diálogo só poderá assumir toda a sua radicalidade se o tivermos como uma “práxis de transformação”. Isto é, ao se desenvolver primeiro uma práxis de transformação interior, ela automaticamente vai se refletir numa “prática de transformação e reconstrução social, num empenhamento sócio-político, numa perspectiva holística e como educação para a cidadania plena” (ANDRÉ, 2005, p. 143).

Diante do exposto, podemos ter uma noção da repercussão da prática dialógica da interculturalidade. Atentas para esta realidade, algumas instâncias governamentais europeias têm alicerçado os seus posicionamentos em torno deste conceito, e, pelo fato, trataremos

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agora de alguns desses discursos e suas fragilidades como forma de aprofundar as questões levantadas.

Para o Conselho da Europa, “diálogo intercultural é uma troca de idéias, feita de uma forma aberta, respeitadora e baseada na compreensão mútua entre indivíduos e grupos com origens e patrimônio étnico, cultural, religioso e linguístico diferentes”(Cultureactioneurope, 2008). Desta noção, poderíamos extrair palavras-chave como “troca”, “abertura”, “compreensão mútua”, que, efetivamente, reforçam a abordagem de que não basta pôr em contato várias culturas, mas que é necessário incentivar a interação. Por outro lado, há outro aspecto que fragiliza esta definição: existe nela uma tendência em apresentar “diálogo” como uma mera “troca de idéias respeitadora”, quando um diálogo não tem, necessariamente, que passar apenas por ideias, conceitos ou palavras. Na nossa opinião, emerge desta noção uma perspectiva ainda bastante logocêntrica, baseada em uma visão racional que não leva em conta a importância da corporalidade, do movimento, da comunicação não-verbal nestes processos. Seria, pois, interessante se se pudesse pensar este conceito de uma forma mais ampla que concebesse diferentes configurações de comunicação de uma forma sistêmica.

Uma segunda visão é da IAU (International Association of Universities), organismo ligado à UNESCO e fundado em 1950, que tem como um dos temas principais as relações entre culturas. Este organismo tem como “ponto de partida o reconhecimento da diferença e multiplicidade no nosso mundo, sendo que as diferenças de opinião, pontos de vista e valores sociais existem não só dentro de cada cultura, mas também entre as diversas culturas” (IAU, 2004) (tradução nossa). Em sua perspectiva, concebe o diálogo intercultural “como um processo que promove a identificação das fronteiras que definem os indivíduos, para assim os levar a relacionar-se a partir dessas fronteiras, inclusivamente colocando-as em questão” (IAU, 2004) (tradução nossa).Nesta noção existem algumas ideias importantes: em primeiro lugar, está sendo sublinhado que as diferenças de mundividências não acontecem apenas a nível intracultural, mas muito também a nível intercultural. Sobre esse tópico, é interessante observar que já é uma realidade complexa a negociação de pontos de vista no campo interpessoal e intergrupal, quanto mais pensar essas relações entre indivíduos de diferentes grupos culturais. É realmente uma situação desafiante tomarmos consciência de que, mesmo falando sobre o diálogo entre culturas, teremos sempre que ter em conta o individual no seio do grupal e vice-versa. Ao mesmo tempo, seguindo na análise da definição acima citada, partir da diferença, isto é, daquilo que nos distingue e nos torna singulares, parece ser algo interessante de cultivar, porque nos leva a compreender aquilo que também temos de “especial”, de “diferente” e único. Por último, apesar de inicialmente a definição parecer

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sugerir as identidades dos indivíduos como algo estanque, mais adiante essa concepção é posta em causa quando se afirma que essas próprias identidades são questionadas por meio do processo intercultural.

Posto isto, consideramos que os dois conceitos agregados, diálogo e intercultural, ganham outra dimensão quando pensados no plural, “diálogos interculturais”. Por expressar melhor uma polifonia e multiplicidade de pontos de vista que queremos salientar, esse será um conceito-chave deste trabalho.

Até agora temos analisado algumas características que vemos associadas a diálogos interculturais: o seu ponto de vista relacional, de reciprocidade e de transformação mútua. Para além dessas características, vamos elencar algumas noções que nos ajudam a completar os pressupostos que estarão por trás da noção de diálogos interculturais no âmbito desta pesquisa.

Em primeiro lugar, no consenso sobre intercultural cabe pensar que as diferenças de mundividências e experiências podem ser observadas à luz do conceito de “ecologia dos

saberes”, de Boaventura de Sousa Santos (2006). Entendendo “ecologia” como respeito e

agregação da diversidade e “promoção de interações sustentáveis” (SANTOS, 2006, p. 105), o sociólogo português aponta que toda e qualquer prática relacional entre indivíduos parte de mais do que uma forma de saber. Desenvolvendo esta ideia, Sousa Santos reconhece a incompletude de todos os saberes como condição para o diálogo. Ao propor a agregação de diversos saberes e linguagens, o sociólogo desestabiliza padrões hegemônicos de conhecimento e promove, com isso, uma “´igualdade de oportunidades´ às diferentes formas de saber [...], visando a maximização dos seus respectivos contributos para a construção de ‘um outro mundo possível´” (SANTOS, 2006, p. 108).

Outro autor que se lança na mesma missão é Paulo Freire e, por isso, recorremos à sua ideia de “prática dialógica”. Vemos diálogos interculturais como uma prática, pois é importante que, em qualquer iniciativa ou organismo, se materializem as teorias e os discursos na prática, que se passe do reflexivo para o propositivo, do abstrato para o operacional, já que “não há palavra verdadeira que não seja práxis” (FREIRE, 1996, p. 60). Vemos, assim, os diálogos interculturais imbricados na ideia de prática dialógica, no sentido em que o processo de aprendizagem é baseado no diálogo e construído com o(s) outro(s), “[...] em que os sujeitos dialógicos aprendem e crescem na diferença [...]” (FREIRE, 2005, p. 89). Assim como diz um provérbio do imaginário popular chinês, “Aquele que ensina e aquele que aprende constroem juntos o conhecimento”.

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Na nossa visão de diálogos interculturais está incorporada, também, a ideia de “troca”, pensando em troca não numa concepção bancária (FREIRE, 1996), mas como reciprocidade (CANDAU, 2000), como um fluxo de pontos de vista entre dois intervenientes. Ao mesmo tempo, vale destacar que quando nos referimos a troca, na realidade estamos pensando não só nas trocas que acontecem entre indivíduos de diferentes culturas, mas também nas trocas entre indivíduos de uma mesma cultura que trazem consigo diferentes informações culturais. Determinadas informações culturais podem ser trazidas não por um autóctone, isto é, um indivíduo pertencente ao grupo cultural dessas informações, mas por um indivíduo “estrangeiro” que, através do contato ou estudo continuado, se tenha familiarizado com esse conhecimento e traga deste uma visão mediada e adaptada.

Por último, como temos vindo a entender, um aspecto igualmente importante referente à abordagem intercultural é a ênfase nos sujeitos envolvidos nessas trocas. É certo que esse caminho leva a que necessariamente se pense sobre identidade cultural. Essa tem sido uma questão muito discutida nos dias de hoje, e, nesse campo, estamos em consonância com a linha de pensamento de Stuart Hall. Este sociólogo norte-americano explica que a velha concepção de identidade que por muito tempo deu estabilidade à sociedade ocidental está em crise e que, através desse processo, têm surgido novas concepções de identidade (HALL, 1996). Nos tempos atuais, em que temos liberdade para ser “qualquer coisa” e em que a rapidez de estímulos atinge o nível da overdose, não é difícil de observar esta “crise de identidade”. Assim, nas palavras de Hall, o “sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas” (HALL, 1996, p. 12). Por isso, o autor avança com a ideia de “identidade multifacetada”, afirmando que identidade e cultura são, hoje em dia, cada vez mais noções dinâmicas. E, assim, a identidade tem, cada vez mais, um caráter oscilatório, desterritorializado e flutuante. É por isso frequente o sentimento de nos reconhecermos numa cultura ou aspecto cultural que não é “nosso”, apropriando-nos de um certo estar no mundo, e sentindo-nos “localizados” fora da nossa cultura. Na atualidade, somos confrontados com esse descentramento e com uma multiplicidade de “identidades possíveis”, o que também pode ter o seu lado positivo, já que abre possibilidade de novas articulações, não só a nível interno (sujeito), mas também a nível relacional (no sentido em que, quanto mais identidades eu for capaz de experimentar em mim, com mais identidades vou ser capaz de interagir). Cabe aqui resgatar a visão de Charles Taylor, filósofo canadense, quando este diz que

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[...] a descoberta da minha identidade não significa que eu me dedique a ela sozinho, mas sim que eu a negocie, em parte, abertamente, em parte, interiormente, com os outros. [...] A minha própria identidade depende, decisivamente, das minhas reações dialógicas com os outros (TAYLOR apud ANDRÈ, 2005, p. 49).

A identidade cultural tanto se constrói a partir do reconhecimento do que me é semelhante, como do que é diferente de mim. Isto acontece por meio de uma complementaridade entre identidade e alteridade, sendo que essa relação de alteridade perpassa também pela troca de fluxos de informações, abrindo caminhos para que se perceba o outro.

Assim sendo, partimos da noção de “identidade multifacetada” (HALL, 1996) – algo mutável e flexível, que se transforma permanentemente –, associada à ideia de

“diferença”, diferença surgindo aqui enquanto singularidade, enquanto alteridade, enquanto

complexo dinâmico, enquanto transformação. A ideia de diferença ganha um sentido positivo, contrariando o discurso comum (nas famílias, escolas, grupos religiosos, televisão) que diz que as diferenças não são boas e que quem é diferente deve ser tratado de maneira desigual (PEREIRA, 2010). Neste trabalho, queremos caminhar na direção de uma “relação em que as pessoas estão mais sensíveis para a diferença, no fundo para se conhecerem melhor através do outro, que aí já não é o outro, somos nós próprios” (TÉRCIO, 2010). Identificamos que a compreensão da noção de alteridade só é possível através da noção de identidade e vice-versa. Ao mesmo tempo, é importante reconhecer que: “Somos todos diferentes, e são as nossas diferenças que nos fazem únicos, mas também parte de um ’todo‘ maior que nós. São as diferenças nossas dialogadas que formam este mosaico fantástico que chamamos Humanidade” (PEREIRA, 2010, p. 12). É a partir dessa perspectiva que discutiremos, a seguir, a interculturalidade a partir do corpo.

1.2 A INTERCULTURALIDADE A PARTIR DO CORPO

As discussões levantadas até agora nos permitem, neste momento, debater de que forma a arte pode contribuir para o desenvolvimento dos diálogos interculturais. Conforme apresenta o guia didático da Cruz Vermelha Espanhola (GARRIDO DEL SAZ et al., s/d) sobre “Diálogo intercultural através da arte”, esta área tem um vasto potencial no campo das trocas interculturais. Apesar de o título apontar uma perspectiva instrumental da arte,

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utilizaremos esse texto para discutir algumas questões relevantes. Em primeiro lugar, a área das artes assume-se como um transmissor de experiências em que se podem reconhecer vivências comuns. Como ressaltamos, discordamos da visão da arte como “transmissão”, como algo que é depositado no outro, mas entendemos que os autores se referem aqui a essa palavra enquanto “expressão”. Nesse sentido, ainda destacando o potencial que o referido guia confere à arte no seio dos encontros interculturais, ela também contribui para que se conheçam costumes, mitos e rituais, valorizando-se o conhecimento tradicional. Ao mesmo tempo, o processo de criação de obras artísticas permite que cada sujeito dê a sua visão de determinado tema, o que pode contribuir para desestabilizar preconceitos e estereótipos, construindo novos pontos de vista, novos significados, novas interpretações. Essas vivências estimulam transformações individuais, essenciais na hora de provocar transformações sociais. É importante, por isso, atentar que, contemplando a multiplicidade de formas e experiências de cada grupo social, a arte pode preconizar o diálogo entre comunidades como ação transformadora, como “prática de emancipação” (MCLAREN, 1997) e contribuir, desse jeito, para a formação de cidadãos políticos, conscientes de que as suas escolhas criam repercussões no seio da sua sociedade. Aí, observamos o potencial da arte, tanto na sua vertente artística como educativa, justamente os dois focos desta pesquisa.

Para compreender mais a fundo o papel que a dança pode ter nestas trocas, nos propomos, primeiramente, a lançar algumas reflexões sobre a relação entre dança e cultura.

Um dos primeiros estudos relacionados a essa questão foi o artigo “Techniques of the Body”, lançado em 1934 por Marcel Mauss, analisando como diferentes culturas detinham distintas técnicas corporais, e como culturas diversas implicavam corporalidades diferentes (LEPECKI, 1998). Existem outros pesquisadores, como Susan Foster (1997) e Jane Desmond (1997), que se debruçaram sobre o tema e que concordam que as “representações (seja em relação a gênero, raça, etnia, ou mesmo habilidade física) que o corpo do dançarino traz para a dança são resultado de suas experiências diárias no contexto social e cultural” (MATOS, 2006, p. 65). Assim, vemos reforçada a associação entre dança e o sistema cultural do qual essa dança faz parte.

Da mesma forma, de acordo com Pegge Vissicaro, existe uma relação intrínseca entre o movimento e a maneira “como a pessoa pensa e sente o seu ambiente e do que se está passando nesse entorno” (VISSICARO, 2004, p. 5). Para esse entendimento, é importante reconhecer o trânsito corpo-cultura-sociedade como uma relação de mútua contaminação, em que a possibilidade de experimentar outra cultura, não só por informações e pensamentos, mas também pelo corpo, é uma porta que se abre para aprender novas perspectivas acerca do

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mundo e de si próprio. A esse respeito, vale ressaltar a ideia de embodiment, de Johnson (1987), quando este fala da importância do corpo na apreensão de conceitos, em processos que se julgam ser exclusivamente mentais. Existe ainda vigente nos nossos dias uma concepção dualista do mundo que, aliada a uma tradição judaico-cristã, tem contribuído para que ainda se conceba corpo e mente separados. Porém, cada vez mais estudiosos de diferentes áreas (JOHNSON, 1987; DAMÁSIO, 2006; KATZ & GREINER, 2005) afirmam a confluência destas duas instâncias, como um sistema que atua em simultâneo nas trocas com o ambiente. Encarando assim a dança como uma experiência cognitiva que opera em fluxo contínuo corpomente (KATZ & GREINER, 2005), conseguimos compreender mais a fundo a amplitude do seu papel nos processos interculturais. A partir de uma visão integrada do ser humano, cada corpo, cada dança reflete um pensamento, uma mundividência, um jeito de se estar no mundo.

Desta feita, a aproximação a um outro entendimento de mundo através do corpo pode ser uma mais-valia da dança nos encontros culturais. Infelizmente, a nosso ver, opapel que a dança pode ter nas trocas interculturais ainda é uma questão que carece de reflexão, e falta principalmente que os estudos que vão sendo realizados sobre dança e cultura tenham circulação para além do contexto acadêmico.

O nosso tema em específico nos leva a refletir sobre algumas questões imbricadas nas práticas de danças de contextos distintos sobre corporalidades que entram em contato com culturas provenientes de outros lugares. No caso da realidade em estudo, o fato de indivíduos portugueses estarem em contato com códigos culturais de alguns países africanos certamente terá as suas repercussões. A prática crescente de danças africanas em Portugal traz consigo experiências interculturais transformadoras do cotidiano, dos corpos e do mundo dos indivíduos envolvidos nessas trocas, trocas que passam a ficar inscritas nos corpos dos sujeitos. Esta ideia é ilustrada por Vissicaro (2004), quando fala que a dança pode funcionar como uma “ponte entre fronteiras, já que parte de algo que todos os seres humanos têm em comum: o seu corpo“ (2004, p. 5) (tradução nossa). Nesse processo, não se trata tanto de “ir e voltar”, isto é, de apenas “relacionar” culturas, mas antes de um próprio borramento das fronteiras de cada cultura, ao ponto de deixar de ser identificável onde começa uma e acaba outra, ao ponto de se criar um fluxo contínuo.

Por outro lado, dentro desta temática, achamos pertinente levantar outros questionamentos. André Lepecki (1998), por exemplo, fala acerca da visibilidade e aceitação recentes do Ocidente em relação ao “resto do mundo”. No entanto reconhece, também, que a Europa, ainda imbuída das suas raízes coloniais, identifica o “diferente” com o “exótico”, o

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curioso, o bizarro. O caso de Portugal é peculiar porque este interesse recente que também se nota, principalmente nas comunidades mais jovens, pelas culturas extraeuropeias, envolve também ligações ao continente africano, que tanto tem de “ferida aberta” como de “irmandade”.

Outra visão divulgada pelo senso comum é a tendência a encarar a dança como uma arte universal, como se conseguíssemos tudo comunicar e tudo partilhar através dela. Em contraposição a essa visão, Lepecki (1998) denuncia essa visão equivocada do “corpo, considerado como um grau-zero da cultura e dos movimentos do corpo, considerado como um grau-zero da comunicação” (LEPECKI, 1998, p. 38). É perigoso encarar o corpo ou a dança dessa forma, uma vez que também não existe tal coisa como um “significado universal” no contexto de culturas diferenciadas. Isto nos leva a depreender que não existe algo que todos possamos ler da mesma forma; existem tantas danças e entendimentos de corpo(s) como criadores e observadores, cada olhar criará uma interpretação e recriação diferentes .

Paralelamente aos questionamentos levantados, queremos agora trazer alguns pressupostos que antes associamos ao conceito de diálogos interculturais, aqui aplicados ao campo específico das danças africanas. Imediatamente, a primeira característica que se destaca é o fator relacional que está bastante presente nas danças africanas. Apesar de nos dias de hoje serem experienciadas de diversos modos, ainda mantêm majoritariamente uma forte construção relacional, seja por meio da comunicação com os músicos, das movimentações entre dançarinos, do contato com o público, dos temas da cultura específica etc. Este parece ser um atributo passível de ser explorado nos encontros interculturais, pois fornece, logo à partida, um espírito de interação e de descontração entre os intervenientes.

Este pressuposto se relaciona, assim, com a ideia de dialogicidade de Paulo Freire, no sentido de que tanto uma experiência de criação coletiva, como uma experiência de ensino da dança, como até um solo, podem expressar essa relação intercultural e o que daí advém pode ser dialogicamente construído e refletir um engajamento crítico. É legítimo realçar, no entanto, que a dialogicidade como espaço de compartilhamento que Freire preconiza, no caso das danças africanas, dependendo de cada professor, criador ou observador, pode ser identificada em níveis e formas diferentes.

Um outro ponto de ligação com a realidade estudada materializa-se na ideia de “ecologia dos saberes” (SANTOS, 2006). As danças africanas, também consideradas “danças étnicas”, são danças de culturas que não costumam ter visibilidade ou voz nos meios científicos, e, como tal, trata-se de saberes que circulam apenas em grupos minoritários e contra-hegemônicos. Assim, se compreendemos a importância de uma ecologia do

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