• Nenhum resultado encontrado

O Ballet Tradicional Kilandukilu foi fundado em 1984, em Luanda (Angola), e é um grupo de dança e música tradicional. Foi criado no seio de um grupo de amigos que resolveram se juntar descontraidamente para dançar, e, entretanto, foi-se tornando uma “coisa séria” (PETCHU, 2010). Assumem a sua dedicação à divulgação da arte africana em geral, e em especial angolana, através de danças recreativas, danças de salão e tradicionais de Angola, danças africanas contemporâneas, danças guerreiras, fúnebres, música folclórica e rituais. Participam regularmente de festivais, workshops, conferências, programas de televisão, festas regionais, animações em casamentos, boates, festas de empresas, diversas atividades lúdicas, tendo sido contemplados com vários prêmios e homenagens. Em 1988, o grupo saiu em turnê pela Europa e alguns integrantes resolveram se fixar em Lisboa. Nessa altura surge, então, a divisão do Kilandukilu em dois flancos que trabalham autonomamente: um que trabalha em Luanda e outro radicado em Lisboa, cuja direção geral está a cargo de Pedro Tomás (Petchu). Ele explica que resolveram ficar em Portugal porque o seu próprio país não valorizava muito a sua arte, e o fato de se terem estabelecido em Lisboa permitiu a muitos conseguir trabalho, terminar os estudos, trocar conhecimentos com outros africanos etc. Sinaliza apenas que, em relação a apoios, o governo português não foi muito diferente do angolano, e, por isso, a sua atuação tem sido mais junto a iniciativas privadas.

O elenco completo engloba cerca de 27 membros e é consoante o formato de espetáculo pedido que se decide quantos bailarinos irão participar. Do grupo fazem parte pessoas de várias idades (entre os 14 e os 46 anos) e nacionalidades: angolanos, portugueses, “luso-africanos” que são descendentes de cabo-verdianos e são-tomenses. Kilandukilu tem atuado um pouco por todo o país e é frequentemente convidado para espetáculos no estrangeiro (em eventos que querem homenagear a tradição angolana, mas em que, por vezes, não existe a possibilidade de trazer uma companhia do continente africano) (PETCHU, 2010).

Segundo Petchu, o espetáculo que tivemos oportunidade de assistir, “25 anos de Kilandukilu”, aborda um pouco do presente e do passado do quarto século do grupo. Seis bailarinos e três músicos em palco se empenham em mostrar, em cerca 45 minutos de espetáculo, uma compilação das músicas e danças tradicionais. Utilizam diversos instrumentos africanos (batuques, berimbau, reco-reco, apitos, bambu, chocalhos) e tocam ritmos de Angola, Guiné-Bissau, Guiné Conacri etc. Na análise do espetáculo percebemos três partes (três temas que se prolongam por mais de 10 minutos cada) que são apresentadas de

forma sequencial. No início, e depois dos músicos esquentarem o público, tocando e dançando, entram os bailarinos e acontece uma primeira parte, uma dança com movimentos suaves, de saudação. Neste primeiro tema, Petchu está vestido como os músicos, envolto até a cabeça em panos compridos cor de laranja; as bailarinas usam vestidos compridos com padrões africanos e os homens usam um pano comprido como saia, deixando o peito a descoberto. Todos os bailarinos entram com uma espécie de tronco em cima do ombro ou da cabeça, o que indica que esta seja uma dança de trabalho. Durante todo o espetáculo Petchu está puxando cânticos, a que o corpo de baile responde. Os bailarinos saem como entraram: sempre pelas laterais, fazendo o mesmo “passo” em fila. O segundo momento seria um momento de interação de Petchu com o público, que iremos descrever em seguida; e o terceiro momento, em continuação deste último quadro, uma dança de guerreiros.

Figura 7. Espetáculo do grupo Kilandukilu. Foto de divulgação.

Se pensarmos bem, a ideia que está na base da criação deste espetáculo (uma compilação de 25 anos deste grupo) leva-nos à linha de trabalho do grupo. Petchu explica que o Kilandukilu “fala do quotidiano dos nossos antepassados, e fala do nosso dia-a-dia, o dia-a- dia mais em Angola. São coreografias com mensagem, a maior parte delas. Falamos como foi, como é, e às vezes, até a gente dá a previsão, como será” (PETCHU, 2010). Uma das mensagens mais reforçadas por este grupo está ligada à “preservação” das tradições. Realmente, identificamos ao longo do seu espetáculo várias referências tidas como tradicionais africanas: movimentos, cânticos, músicas, figurinos de modelos ou tecidos africanos, pinturas faciais, adereços ou saias de palha etc. Vanessa, uma das bailarinas do grupo, também nos dá conta do mesmo:

O nosso grupo pauta-se essencialmente na divulgação da arte africana em geral, e em especial, da angolana. Somos um grupo que nasceu e não pretendemos morrer, pelos esforços dos seus integrantes, [...] não deixando perder os valores tradicionais [...] somos os “difusores da cultura”.

são coisas muito antigas, mas que são elas retrato e um veículo de uma história, de uma cultura que existe e nós estamos a retratar através da dança. Nós não dançamos só por dançar, nós fazemos teatro-bailado. Nós dançamos para falar e transmitir a cultura que nos foi transmitida a nós, e eu acho isso único (CARVALHO, 2010).

Duas ideias estão contidas nestas palavras: uma que fala sobre uma suposta “originalidade” e outra que fala de “transmissão”. A mesma bailarina afirma justamente que o maior diferencial deste grupo é o fato de serem “autênticos” (“eu posso dizer que este é um grupo de dança africana” (CARVALHO, 2010). Como se sabe, existe cada vez mais na contemporaneidade uma tensão entre o que é local e o que é global (HALL, 2006), o que se evidencia pela tendência ocidental de “retorno às raízes”. Por outro lado, esta questão ganha outra camada neste caso específico, já que movimentos como este têm sido uma forma da cultura africana afirmar a sua identidade no país do ex-colonizador (“não pretendemos morrer”). Porém é preciso questionar aqui o sentido da palavra “preservar”, isto por que ela pressupõe a existência de algo “original”. Daniel Tércio expõe a complexidade deste tema ao afirmar: “a discussão das origens [...] pode constituir um poço sem fundo, ou se quiser, a busca do lugar onde nasce o arco-íris; uma quimera, portanto” (TÉRCIO, 2006).

Assim, a ideia de uns “difusores da cultura” que vão “resgatar” a cultura para trazê-la para o nosso cotidiano parece-nos um pouco complicada, pois não existe algo “original”, tudo é sempre uma interpretação. Nenhum conhecimento permanece estanque e estas informações, ao terem que se adaptar a um tempo e espaço diferentes, vão necessariamente sofrer alterações. Dos entrevistados deste grupo, houve apenas um membro do grupo, um percussionista angolano, que indicou esta perspectiva: “para além desses ritmos que são já originários, nós também podemos inventar, podemos também criar” (FREDI, 2010).

Porém, o fato do Kilandukilu se apresentar como um “museu vivo” (CARVALHO, 2010) no panorama africano português leva a que a abordagem seja mais a de “reproduzir”, “imitar”, “pegar”. Curiosamente, é o mesmo membro que, falando sobre o processo criativo do grupo, comenta logo em seguida: “[...] a gente foi lá [Angola], gravamos aquilo e começamos a trabalhar para a gente, imitar aquilo, o que eles fazem” (FREDI, 2010). Novamente, surge aqui a mesma oscilação entre “cópia” e “releitura”, sobre a natureza do seu trabalho, que tinha aparecido já na análise das aulas de Petchu.

Nos próprios ensaios que decorrem todos os sábados à tarde no Ateneu Comercial, local em que Petchu dá aulas, reparamos a mesma tendência de cópia. A nível da estrutura de

ensaio, existe, muito presente, a imitação de um modelo: o início é exatamente a aula de Petchu (inclusive as músicas são as mesmas), a única diferença é que é dada por um aluno; enquanto um bailarino puxa aquecimento, todos o seguem. Várias vezes, os bailarinos ou os músicos não sabem muito bem o que fazer, e ficam esperando as indicações de Petchu. Também ao nível do processo criativo, as opiniões caminham no mesmo sentido: “O nosso diretor é que nos traz os ritmos e a gente toca” (FREDI, 2010); “essencialmente esta coisa de criar espetáculos é mais feita mesmo pelo diretor e coreógrafo [...] podemos também dar ideias, mas é muito mais dirigido por ele (CARVALHO, 2010). Como, aliás, já tinha sido observado nas aulas de Petchu, notamos, assim, pouca ênfase dada à criatividade e a processos colaborativos no seio deste grupo, ressalvando-se pequenos exemplos de certos bailarinos mais avançados que têm autonomia para liderar aquecimentos ou, inclusive, fazer correções.

O que, no entanto, se torna evidente é que este grupo, principalmente por ser constituído, na sua maioria, por descendentes dos PALOP, parece estar funcionando como um espaço de encontro com “África”, como um “veículo de uma história”:

Kilandukilu serve para mim enquanto fonte, se eu reparar na Vanessa que eu era antes de entrar no Kilandukilu, é uma diferença brutal. Eu assumi muito mais o meu lado afro, que sempre esteve presente, mas nós crescemos cá, ficamos ali no... ali naquela corda do “Sou europeu, estou aqui em Portugal, mas também sou negro e isso não se esconde, né?” Mas pronto, eu acho que é como se fosse aqui uma escola em que nós vamos colher a cultura, muitas coisas que aprendi que não sabia, não fazia ideia, de onde é que vim, então é uma fonte de informação Kilandukilu, ajuda- nos a aproximar daquilo que é nosso, e que nós nem tivemos oportunidade às vezes de conhecer (CARVALHO, 2010).

Estas palavras de Vanessa ilustram bem as contradições de se considerar portuguesa, mas afastada da sua identidade cultural africana. A sua vivência dentro do grupo parece, então, vir colmatar essa lacuna. Nesse sentido, o grupo Kilandukilu, ao trabalhar com as danças tradicionais africanas e levar a que os seus integrantes dancem movimentos “africanos”, vistam certos trajes “africanos”, encenem rituais “africanos”, está criando uma representação e experiência de “África” no cotidiano destes indivíduos. Parecem recorrer, assim, a símbolos da cultura africana (panos, pinturas, indumentárias, gestos, canções, acessórios) na tentativa de que, através de um transporte da imagem e dos clichés, de um locus para outro, se possam sentir mais “africanos”. Mas que “África” é essa?

Voltamos ao questionamento levantado sobre as aulas de Petchu. Que “África” é esta que estes artistas e este espetáculo veiculam? Para aprofundarmos a questão, iremos descrever a segunda parte do espetáculo. Petchu entra sozinho com um traje e adereços de guerreiro

(pinturas faciais, perneiras e cotoveleiras de palha, tapa-sexo, envergando escudo e flecha) e executa movimentos fortes e saltitados. De repente, para a música e o movimento, e ele, de modo agressivo, dirige-se ao público, aponta com uma lança, intima uma pessoa que suba ao palco. O tom é cômico, pois Petchu gesticula, fala um dialeto imperceptível e parece cada vez mais zangado por que ninguém vem ter com ele (enquanto os músicos dizem no microfone: “Quem avisa, amigo é... Cuidado... se ele fica chateado, se ele desce do palco, cuidado”). O público ri, assobia e finalmente chega alguém. Petchu desafia-o para um duelo: colocam-se frente a frente, de perfil para o público, e, enquanto os músicos começam a tocar, ele vai cercando o seu “adversário” com movimentos bruscos. Ao mesmo tempo, começa a fazer gestos com os braços em direção à coxia, como se estivesse chamando alguém. Depois de alguns momentos de suspense, de repente, saltam por cima das caixas de som os outros bailarinos, que também surgem caracterizados de guerreiros. Todos cercam o “voluntário” com movimentos de escudo e flecha ao seu redor, ele cada vez mais sem saber o que fazer, até que Petchu agradece-lhe, o público bate palmas e o convidado vai embora. Ficam só os três homens guerreiros, numa coreografia de repetição de passos expansivos, saltados, em que se enfrentam e trocam de lugar. A dada altura, ajoelham-se e entram as bailarinas, também em movimentos marcados e frenéticos. A percussão é sincopada e repetitiva, de cânticos com “gritos” “É-É-É-É”/ “KABUM-KABUM”. Em uníssono com um arranjo da música, terminam todos ajoelhados no chão. Depois do silêncio, Petchu começa com um cântico, e os músicos respondem com sons orgânicos com a boca, imitam a fala dos macacos etc. Ele se levanta lentamente e começa de novo o cântico, ao mesmo tempo em que “rebola” o quadril, desafiando a plateia com o olhar. O público assobia. Petchu dá um salto de 180º e, ficando de costas para o público, canta de novo o refrão movimentando as nádegas nuas. O coro de bailarinos responde e se levanta com movimentos com braços no ar, como se estivesse festejando algo. O ambiente é festivo agora; os bailarinos, em vez de se enfrentarem, estão lado a lado, os homens fazendo “passos” juntos e as mulheres também juntas. O coro da música canta: “Dá licença/Dá licença”. Em um tema que já vai com mais de 10 minutos, Petchu entra com duas tochas de fogo na mão, enquanto o ritmo continua acelerado e os bailarinos dançam no fundo. Ele se dirige à boca de cena, passando as tochas pelo corpo, e começa a cuspir fogo. As luzes de palco apagam-se completamente e fica só ele interagindo e reagindo às manifestações de entusiasmo do público. Quando as tochas apagam, já com alguma luz, engole alternadamente o fumo de uma e de outra, fazendo teatro com o fumo que sai pela sua boca. Aí, um strob em contraluz desemboca em mais um momento de todos os bailarinos em uníssono, até que o tema termina com as bailarinas “caindo” no colo dos

guerreiros, entretanto já ajoelhados. A composição que formam no final do espetáculo faz lembrar a fotografia de uma trupe de circo.

Figura 8. Espetáculo do grupo Kilandukilu. Foto de divulgação.

Depois de todo este quadro, e já respondendo a pedidos de bis, enquanto os músicos assumem novamente a percussão, um deles dirige-se à boca de cena e, balançando os braços, pede que o público o imite. “Agora vamos dançar kuduro” (a dança africana da moda), e vai puxando “passos” que a plateia, entusiasmada, repete. Mesmo depois de terminarem o bis, são chamados de novo pelo público e voltam à mesma dinâmica, agora o músico já está em baixo, junto com todos os que o assistiram. Tudo termina em festa. Tudo termina em alegria, em alusão ao nome do grupo que em dialeto kimbundo significa divertimento.

Esta descrição condensa bastante bem que representações de “África” e de “danças africanas” estão sendo afirmadas neste espetáculo. Em primeiro lugar, o “africano” bárbaro, “o selvagem” que anda só tapado de ráfia, de escudo e flecha na mão, gritando e gesticulando; é um ser a temer e faz do branco refém uma presa fácil para a sua “tribo”. Apesar dos elementos da natureza e o uso de armas, relacionados à caça e subsistência estarem muito presentes nas danças africanas, o personagem do guerreiro que cospe fogo pode também, por outro lado, sugerir um retrato estereotipado destas culturas. Parece que a associação daquilo que é “africano” com a selvajaria, a sensualidade, a festa e a alegria é, em certa medida, algo que parte da realidade, mas apresentado de maneira unívoca, tem sido uma caricatura e

também uma maneira dos próprios africanos corresponderem às expectativas do europeu e, simultaneamente, de se diferenciarem dele. Petchu explica que o espetáculo: “retrata o africano [...] na inserção em Portugal é mais um chamar a atenção para aquilo que é a África, aquilo que é o nosso comportamento em palco, e as mensagens do dia-a-dia” (PETCHU, 2010). Vale ressaltar que todo este quadro lembra imagens tradicionais, presentes até em desenhos animados, sobre a situação do europeu chegando a terras desconhecidas. Apresenta um duplo riso – de si próprio e daquele que ainda vê a África como o reduto das barbáries.

A nosso ver, algumas representações simplistas e estereotipadas deste gênero podem incorrer em preconceitos, racismos dissimulados e em uma distância cristalizada que impede encontros culturais abertos. Ao continuar a mostrar o continente africano como uma unidade e como “o mato”, “terras das tribos” e da gente “pobre, mas sempre feliz”, não se concebe que haja muito mais para além disso. Não se concebe a individualidade, a diferença, a mudança, a evolução. Prefere-se “preservar”, pois preservar também é ficar no território conhecido e corresponder a expectativas para ser aceito. Apesar de já haver esforços no sentido de desmistificar estes estereótipos e promover questionamentos sobre isso, tanto por parte de “africanos” como por parte de portugueses, nos parece que é realmente urgente que os povos de África não multipliquem tais olhares exotizados, se conheçam, pesquisem a sua/nossa história e caminhem por suas próprias pernas, seus próprios caminhos. E não pelos caminhos que lhes dizem para caminhar. Claro que isto envolve complexidades sociais bem maiores, mas, no que toca a mudanças, o meio artístico parece ser um bom terreno para tal. Porém, está claro, é extremamente importante, tanto da parte de artistas como dos produtores e do público, questionar que representações dessas culturas se estão multiplicando. Por este motivo, decidimos também incluir as práticas artísticas nesta pesquisa, por intuir que elas desvendam e criam espaço a outras realidades.

Mesmo com a situação peculiar de um grupo que começou em Angola e que agora reside em Portugal, esse fato parece não estar sendo explorado criativamente. Sobre as possíveis articulações com o contexto português, as respostas foram, em geral, vagas. Petchu diz que o espetáculo do Kilandukilu retrata não só o dia a dia em Angola, mas, também, o dia a dia do presente deles, ou seja, Lisboa em 2010. A maneira como temas como descoberta do fogo ou o cotidiano das vilas africanas se relacionam com a época contemporânea não está muito evidente no seu espetáculo. E, ao mesmo tempo, também não observamos muitas relações com o novo contexto português. Inclusive, questionado sobre as possíveis diferenças na linha de trabalho do grupo, decorrentes de uma mudança de continente, Petchu explica que é sempre diferente passar num lugar ou morar lá; mas não entra muito a fundo na resposta,

apenas refere que no início os portugueses achavam um pouco estranho, mas agora o Kilandukilu se sente bem inserido. Por outro lado, dentro da mesma questão, a bailarina Vanessa aponta que existe hoje em dia uma moda pela cultura africana, e acha que “temos que aceitar a cultura do país onde nós estamos, sem perder a nossa”. Refere que, em geral, o grupo consegue agradar aos portugueses, especialmente àqueles que viveram ou estiveram na guerra em Angola e se lembram “daquela época”. Já Fredi começa identificando o ponto em comum, a língua:

Cantamos em português [...] e só fazermos aqueles gestos, as danças em si, há muitas pessoas que percebem. O povo português percebeu aquilo que nós fizemos e ficaram contentes e emocionados [...] o som do batuque entra logo na cabeça e cria aquele espírito que a pessoa tem que fazer isso, para tentar agradar as pessoas, quer seja portugueses, ou brasileiros, ou alemães (FREDI, 2010).

A partir deste testemunho, podemos também tecer algumas observações sobre a relação que o grupo tem com o público. Um momento específico dirige nosso olhar: o momento em que Petchu entre no palco como um “selvagem” e se dirige à plateia, apontando com uma lança, gritando sons imperceptíveis, assustando quem o assiste, até que alguém se decida a ser “voluntário”. Outro momento que poderíamos referir é o final, quando um dos músicos começa puxando “passos” e pede ao público para o seguir. Nos dois exemplos, vemos o mesmo princípio: trata-se de uma interação imposta, em que o público se sente “levado” a participar, mas que satisfaz sua vontade de dançar. Essa, de resto, é uma tendência que muitos grupos de danças africanas apresentam, principalmente quando se apresentam em animações de rua, de “puxar” alguém para dançar. Pela experiência nesta área, temos reparado que perante essas práticas a reação do público se divide: por um lado, existe uma grande parte do público que participa e se sente satisfeito por ter tido essa oportunidade, e, por outro, uma parte que se sente desconfortável com a quase “obrigatoriedade” de adesão que se institui nesses momentos.

Na tentativa de agradar a “gregos e troianos”, ou, neste caso, a portugueses e “africanos”, este grupo parece, por vezes, reafirmar de um olhar etnocêntrico e exotizado da cultura africana, que, ironicamente, aparece muitas vezes sob a capa da “preservação do tradicional”. Por outro lado, também, observamos que existe uma intenção de proporcionar um bem-estar não só aos seus membros como ao seu público, e, assim, buscam relacionar-se através da brincadeira e do que é mais buscado tanto pelos africanos como pelos portugues (por exemplo, puxando passos de kizomba, kuduro ou funáná, no final do seu espetáculo). Podemos afirmar que a visão de interculturalidade que se faz presente neste espetáculo é

aquela que foca a relação harmônica, por isso, também, a preocupação com o “agradar” e corresponder às expectativas. Ao mesmo tempo, a identidade cultural é aqui apresentada como uma identidade estável e fixa, mais próxima dos paradigmas da modernidade, reforçando um entendimento problemático do “africano como selvagem”.

Assim, após termos nos aprofundado nas especificidades de cada caso, podemos, agora, sugerir algumas recorrências que identificamos nos dados levantados por este estudo.