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Sabendo que as trocas entre Portugal e o continente africano datam de há já vários séculos, o espaço-tempo que nos interessa é situado a partir dos anos 90, essencialmente focado nas cidades de Lisboa e Porto. Como vimos antes, o fim do regime colonial na década de 70 e a consequente abertura de fronteiras de Portugal, em adição aos câmbios econômicos devido à entrada na UE, contribuíram para que vários africanos ou portugueses residentes nas ex-colônias quisessem voltar e iniciar vida no país. Isso levou a que os contatos entre portugueses e africanos em solo português se intensificassem e ambas as culturas se fossem conhecendo e interpenetrando cada vez mais. Fruto deste contexto, desde inícios dos anos 90 começou a surgir um interesse crescente pelas culturas africanas, o que fomentou o aparecimento de mais grupos de músicas e danças africanas.

Sobre o tema da presença de danças africanas em Portugal quase não encontramos bibliografia referente a este período mais recente, sendo que as informações apresentadas se baseiam na pesquisa de campo e na minha experiência como bailarina e coreógrafa de dois grupos de referência no cenário das danças africanas em Portugal: Semente e Djamboonda. Assim, iremos levantar alguns dados que fazem parte de uma contextualização histórica mais ampla, não sendo premissa traçar uma histografia, mas apenas apontar alguns dados que nos permitam entender melhor o panorama geral. Para tal, esses recortes históricos passarão por identificar os grupos artísticos e, depois, enunciar os formadores, para, assim, poder dar uma noção do conjunto em que este movimento se insere.

Os gêneros mais populares de danças africanas em Portugal são a kizomba e o kuduro, as danças a par, que surgiram em Angola nos anos 80 e que atraem cada vez mais pessoas para as pistas de dança nacionais. Todavia, para esta contextualização, levaremos em conta as danças que em Portugal são chamadas de “danças africanas tradicionais” ou “danças africanas tribais”, que tiveram um boom no país a partir do início dos anos 90.

Inicialmente, este gênero de dança foi representado no país através de grupos artísticos, pois uma atividade pedagógica mais proeminente só surgiu mais tarde, como fruto de haver mais interessados, profissionais, praticantes e simpatizantes.

Os grupos e profissionais selecionados por este estudo (Kilandukilu e Semente) foram aqueles que atenderam aos critérios preestabelecidos, os quais serão apresentados no próximo capítulo. Porém, para que possamos ter uma noção do conjunto, é importante referir que

existem outros grupos e outros projetos e apresentar brevemente as suas propostas e áreas de atuação.

Assim, o grupo Djamboonda12 foi um dos primeiros e mais sólidos grupos independentes de dança e música tradicional, embora esteja parado atualmente. Foi fundado em 1992 por Carlos Camará, bailarino guineense, e músicos portugueses, a cuja formação se juntou, em 1997, Gueladjo Sané, ex-solista do Ballet Nacional da Guiné-Bissau. Sané foi um dos primeiros mestres de djembé africano a escolher se estabelecer no país e a sua presença foi decisiva para a divulgação da cultura africana no país. O grupo é constituído por dez membros de diferentes países e de vários pontos do país (Guiné-Bissau, Cabo Verde, Portugal) e propõe trazer a música e dança tradicional africana como um “regresso às origens”, como “uma necessidade social e um conceito universal” (DJAMBOONDA, 2010).

Em 1996, o grupo Batoto Yetu13 foi implementado em Portugal pelas mãos do coreógrafo Júlio Leitão e teve o apoio da Fundação Luso Americana para o Desenvolvimento e da Câmara Municipal de Oeiras. O seu foco é um trabalho social e educacional com as crianças dos bairros suburbanos da grande Lisboa, através da associação cultural com o mesmo nome, fazendo com que a maior parte do corpo artístico do grupo seja constituída por crianças e jovens luso-africanos. Procuram, através da dança e expressão artística, a descoberta das raízes culturais africanas e o desenvolvimento da autoestima. “Esperamos assim que estas crianças e jovens poderão posicionar-se do ponto de vista sócio-cultural na sociedade onde vivem, contribuindo para um Portugal intercultural e cosmopolita”, lê-se no texto de apresentação do grupo. Através desta filosofia, criaram o projeto comunitário Áfri- Cá: Asas e Raízes, que é financiado pelo Alto-Comissariado para a Imigração e Diálogo Intercultural. Através de apoios e mecenas, o grupo faz diversas digressões pelo estrangeiro, inclusive ao continente africano, sendo uma forma de jovens luso-africanos contatarem com a cultura dos seus pais e avós. Os Batoto Yetu têm atualmente um elenco de cerca de vinte e cinco jovens, muitos deles descendentes de famílias provenientes de Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, S. Tomé e Príncipe e de Portugal (BATOTO YETU, 2010).

A extinta Companhia Kouami14 foi criada em 2005 pelas mãos do dançarino e coreógrafo togolense Marc N’Danou. Esta companhia de Lisboa alicerçava-se na combinação entre as danças tradicionais oriundas da África Ocidental (Guiné, Senegal, Gana, Costa do

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Informação recolhida no site do grupo. Disponível em:< http://www.myspace.com/djamboonda>. Acesso em: 20 out. 2010.

13 Informação recolhida no site do grupo. Disponível em:< http://batotoyetu.pt/>. Acesso em: 20 out. 2010.

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Informação recolhida no site da produção do grupo. Disponível em:

Marfim, Togo) e movimentos inspirados na dança contemporânea, com cerca de seis integrantes de Portugal, Togo e Inglaterra/Espanha. A diferença de percursos artísticos, a escassez de trabalho e o recente estabelecimento de Marc na Inglaterra fizeram com que o grupo parasse a sua atividade (KOUAMI, 2010).

Madandza15 é um grupo de percussão e dança tradicional malinké que existe desde

2006, em Viana do Castelo, no norte do país. Baseado na pesquisa e exploração da cultura do oeste africano (cerimônias, rituais e tradições ancestrais), desenvolve e colabora em vários projetos de ação social e projetos de caráter educativo-cultural. Engloba onze membros, todos portugueses (MADANDZA, 2010).

Em 2006, o dançarino e coreógrafo Abdoulaye Camara (Guiné Conakri) decidiu criar uma “filial” da sua Allatantou Dance Company16 no Porto, projeto que ficou nas mãos de Joana Peres. Desde essa época, a companhia tem desenvolvido um trabalho de divulgação, ensino e partilha das tradições e legado cultural da “Mãe África”, através de espetáculos, aulas, workshops, ações sociais. Os seus cerca de dez integrantes portugueses pretendem incentivar o respeito por estas culturas e cultivar boas energias através da música e dança.

Por último, Djembaladança17 assumem-se como um grupo de percussão e dança

mandinga, que existe desde 2009 em Lisboa. São oito membros portugueses fortemente influenciados pelos ritmos tradicionais desta cultura e suas danças “afro-tribais”.

Ao mesmo tempo, no cenário português atual, existem mais professores do que há meia dúzia de anos atrás. Por exemplo, na zona sul temos Petchu (Angola), Marc N’Danou (Togo), Arantxa Joseph (Portugal/Espanha/Inglaterra), Claudina Correia (Cabo Verde), entre outros. Já no norte, podemos referir Eva Azevedo (Portugal), Joana Peres (Portugal), Isa Santos (Portugal), Rita Santos (Portugal), Bárbara Gonçalves (Portugal), Dora Borges (Portugal). É importante referir que muitas vezes o que acontece é que, tanto a nível artístico (na considerada dança cênica) como a nível pedagógico (dançada no contexto da sala de aula), mesmo que se denominem de “danças africanas”, muitas vezes, pela necessidade de adaptação a um novo contexto cultural e geográfico, já são releituras. De todos esses profissionais, o único caso que se assume com outro nome é de Dora Borges, que dá aulas de “Afro-contemporâneo”, uma síntese que ela assume que faz a partir da sua experiência no ballet e na dança moderna, e do seu encontro mais recente (2005) com as danças africanas.

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Informação recolhida no site do grupo. Disponível em: < http://www.myspace.com/madandza>. Acesso em: 20 out. 2010.

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Informação recolhida no site do grupo. Disponível em: < http://www.myspace.com/allatantou>. Acesso em: 20 out. 2010.

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Informação recolhida no site do grupo. Disponível em:

Assumindo ou não, o que é certo é que cada profissional ou grupo enunciado tem um proposta diferenciada, lógicas e âmbitos de trabalho particulares.

Vale também destacar que temos conhecimento de outros coreógrafos e projetos que trabalham com um jeito diferenciado com a “cultura africana”, como António Tavares, Clara Andermatt e Paulo Ribeiro (no contexto do projeto extinto “Dançar o que é Nosso”), Filipa Francisco e as Wonderfull’s Kova M (jovens no Bairro da Cova da Moura, Lisboa), ou o Projeto Mus-é, que trabalha levando os artistas à escola e, a partir daí, criando uma ligação entre diferentes comunidades culturais. No entanto não é do âmbito deste trabalho cobrir esta realidade.

Com efeito, pode-se dizer que o conjunto de pessoas envolvidas no meio caracterizado engloba indivíduos de diferentes idades, sexos, contextos socioeconômicos. Apesar de variar, em termos de norte ou sul do país, podemos dizer que esse meio é constituído, na sua maioria, por portugueses, existindo também africanos (principalmente dos PALOP) residentes do país, e alguns luso-africanos, que nasceram e sempre viveram em Portugal, mas influenciados por duas ou mais culturas. Sané, um dos primeiros mestres de percussão africana a residir no país, aponta essa realidade, falando sobre o público dos worskshops que leciona:

Eu lembro-me... quando eu comecei a fazer workshop de percussão tradicional africana aqui em Lisboa, na altura era tudo só portugueses, não havia nenhum africano. Depois foram lá dois africanos, e são africanos que não sabem o que é um ritmo tradicional africano, nasceram cá. Porque é assim: há muita gente que diz que num africano a dança ou a percussão está no sangue, é mentira... e agora os europeus que estão a praticar estão a ultrapassar, se um grupo africano vê e não tem experiência, eles ficam envergonhados. São pessoas que foram a África estudar, aprender o tradicional africano, não é só aprender aqui na Europa (SANÉ, 2010).

O que Sané fala é a realidade: dentro do meio das pessoas que trabalham com estas influências culturais está crescendo a quantidade de profissionais que preferem deslocar-se ao contexto local dessas manifestações. Aos poucos, mais pessoas vão podendo contatar com essas tradições nos seus contextos locais, em virtude do incremento generalizado de intercâmbios e de uma maior democratização das viagens internacionais. Tem havido, assim, um aumento daqueles que viajam e estabelecem contato direto com essas informações, deixando de apenas ter acesso a elas através de um olhar mediado. Porém é preciso dizer que este tipo de formação tem obrigado a grandes investimentos:

As danças do Mundo (africana, indiana, flamenco, tango argentino, sufi, japonesas, danças da Europa e danças orientais) têm crescido em Portugal na última década. Se algumas apareceram por moda importada via televisão e novelas, outras surgem pela dedicação e esforço de alguns professores que se vão esforçando por trazer essas

danças de carácter antropológico até aos seus alunos. Para quem se dedica profissionalmente às danças do Mundo o caminho não é fácil. Eva Azevedo, professora de dança africana, conta: "Em Portugal, não existe formação académica e profissional nesta área". [...] O valor gasto por Eva Azevedo ronda os 1300 euros por cada viagem até África e, como explica, "é dinheiro gasto e sem receber, porque, com recibos verdes18, não tem direito a férias remuneradas” (FERREIRA, 2010).

Este é um excerto de um artigo publicado em 2010, num jornal de ampla circulação, o que nos dá conta, por um lado, da popularidade que estes gêneros já começam a alcançar no país, e, por outro, da dificuldade em buscar formação nesses campos.

Com efeito, o conjunto de seguidores, quando comparado com a dimensão da sociedade em que se insere, ainda é uma minoria, no entanto dá indícios de estar crescendo significativamente, como evidencia a maior quantidade de festivais, de workshops, de encontros, de público, no fundo, de procura e oferta. A formação pedagógica e artística também tem-se traduzido no aumento do número de formadores africanos que se deslocam ao país. Em meados desta década, poderíamos ter um workshop por ano, e agora é possível haver dois ou três no mesmo ano.

Da mesma forma, e como vínhamos a expôr acima, também este boom recente das danças africanas em Portugal se insere num contexto mais amplo. Podemos referir o desenvolvimento de uma indústria e um mercado de world music, na qual os gêneros musicais “negros” e “mestiços” têm larga representação, que criou condições a que bandas como Terrakota (world music) e Buraka Som Sistema (kuduro progressivo) estejam com mais popularidade em Portugal. Estes grupos são exemplos de projetos que assentam na convivência entre diferentes culturas, e o seu sucesso espelha uma nítida abertura nesse sentido, pelo menos de um certo segmento da população. É importante dizer que tanto uma como outra são bandas por vezes mais aclamadas no estrangeiro e tidas como os “novos sabores da mistura lusa”19. Contudo Portugal, apesar de ser efetivamente uma porta de entrada e distribuição deste tipo de sons na Europa, ainda tem certa reticência em assumir verdadeiramente essa multiculturalidade como a cara do país, preferindo manter a imagem do “país dos Descobrimentos”.

Para além do desenvolvimento das “músicas do mundo”, os maiores incentivos a este meio têm sido dados pela proliferação de eventos e festivais dedicados às culturas africanas ou à mestiçagem. Referido por vários entrevistados por este estudo, está o festival Andanças,

18 Recibo verde é análogo ao modelo brasileiro de trabalhador autônomo, mas tem grandes descontos de

impostos para o governo português.

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Título dado à entrevista da banda Terrakota, disponível em:

mas também o extinto Festival Africa’ki, e outros que podemos nomear: Festival de Músicas do Mundo de Sines, Festival Todos, o África Festival, o Lisboa Mistura ou o Áfricadançar – Congresso Internacional de Danças Africanas, que já vai na terceira edição.

Como se pode constatar através dos dados levantados, este meio tem estado em expansão e torna-se urgente a ampliação de estudos sobre o tema. Após termos uma ideia do contexto geral, podemos, agora, adentrar na análise dos casos que são foco deste estudo.

4 PLURIÁFRICAS, PLURIDANÇAS, PLURIVISÕES DE MUNDO

A pesquisa de campo foi efetivada durante os meses de janeiro e fevereiro de 2010, em Portugal, com o objetivo de acompanhar as práticas artísticas e pedagógicas de dois profissionais, um na cidade de Porto, outro na cidade de Lisboa. Os sujeitos selecionados teriam que ter uma atividade com mais de três anos no meio das danças africanas em Portugal, bem como uma atuação artística e pedagógica direcionada para adultos.

Dentre os profissionais atuantes, os que atendiam a esses critérios foram Eva Azevedo (e grupo Semente), no Porto, e Petchu (e grupo Kilandukilu), em Lisboa. Seguindo os pressupostos de estudo de caso múltiplo apontados por Yin (2005), escolhemos duas unidades representativas das danças africanas em Portugal, estudando-as nas suas condições contextuais. Usando critérios semelhantes para ambos os casos, a coleta de material foi efetivada por meio de observação participante de aulas, realização de entrevistas e observação direta de ensaios e espetáculos. Os dois espetáculos foram assistidos in loco no mesmo festival, o 7º Festival Etnias – Festival de Músicas do Mundo (2009), realizado pela Ácaro Associação Cultural/Contagiarte, no Teatro Sá da Bandeira (Porto).

Para além dos profissionais e grupos selecionados serem de diferentes contextos socioeconômicos e geográficos, ressalta-se o fato de serem provenientes de duas cidades bem distintas, Lisboa e Porto. Lisboa é a capital do país, uma cidade que já tem uma história de fluxos migratórios Portugal-África desde o século XV, em que, ainda mais com a crescente globalização, a comunidade africana é maior que em qualquer ponto do país. Estas populações, muitas delas, já têm os seus espaços físicos, sociais, hábitos inseridos nos ritmos da cidade. Devido à comunidade africana em Lisboa ser significativa, existem certos comportamentos, valores, hábitos sociais que são considerados normais e não são tão novos e estranhos aos olhos do lisboeta, ao ponto de propiciar uma interação e considerá-los até componentes da estrutura e da segmentação da própria cidade. Já o Porto é uma cidade diferente em termos de diversidade cultural: pelo fato de ser uma presença não tão significativa, faz com que ainda haja um certo desconhecimento social em relação a etnias, línguas, manifestações diferentes (LUVUMBA, 1997). As coisas estão começando a mudar e, por isso, a cultura africana ainda é referida, inclusive pelos sujeitos desta pesquisa, como algo “novo”. Assim, é importante deixar claro que as formas pelas quais a cultura africana se

coloca são diferentes nas duas cidades estudadas, já que são contextos e populações diferentes.

Com o intuito de estudar as práticas pedagógicas assistimos, em cada grupo, a quatro aulas (sendo a primeira participada e as restantes observadas) e entrevistamos o professor e dois alunos. A intenção de acompanhar as práticas pedagógicas, importa lembrar, não foi com o objetivo de fazer uma análise da metodologia dos professores, mas sim de observar de que forma este conhecimento está sendo multiplicado, entendendo os professores como formadores de opinião. Para seguir de perto as práticas artísticas, assistimos a dois ensaios do grupo, assim como ao espetáculo ao vivo, o registro da obra e entrevistamos, ainda, dois membros dos grupos. Este caleidoscópio que se tornou o momento de coleta de material tentou captar informações e significados através de diversas técnicas de recolha de informação, gerando, dessa forma, múltiplos dados. Sabíamos que o tema eram os diálogos interculturais nas danças africanas em Portugal, mas sabíamos, também, que este tema abria muitas janelas para assuntos complexos, como o papel da dança na educação intercultural, “difusão” de códigos culturais, temas como identidade/alteridade, colonialismo, pós- colonialismo, entendimentos de corpo, o papel da dança como ação política, entre outros, e, devido a isso, utilizamos o cruzamento de dados para nos ajudar a localizar esses desdobramentos.

A análise do material recolhido em campo será apresentada em seguida a partir das idiossincrasias de cada caso, criando uma triangulação com o material das aulas, espetáculos e ensaios e os referenciais teóricos que contribuíram para um aprofundamento da discussão.