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“(...) ser tão diferente do outro e saber-se tão próximo gera sentimentos e relações ambíguas de ambas as partes”.

(GUSMÃO, 2005).

Antes de adentrarmos na descrição do meio das danças africanas em Portugal a partir da década de 90, é importante aprofundarmos a análise fazendo uma ponte com a atualidade. Qual é a atual contextualização de Portugal? Como são percebidas as relações entre portugueses e africanos em solo lusitano?

Desde o momento em que, durante o período colonial, começam a haver trocas territoriais tanto dos portugueses se fixando em solo africano, como por parte de africanos que eram trazidos para solo português, via colonização e escravatura, a relação entre essas comunidades é marcada por uma forte imbricação. Assim, da mesma maneira que a partir do século XV Portugal contava com a presença de africanos, como também de portugueses- africanos, o mesmo agora acontece com os chamados luso-africanos e os seus filhos.

Este fato tornou-se ainda mais significativo devido às mudanças históricas estruturais a que Portugal esteve sujeito nos últimos séculos. Após a independência do Brasil e perante o interesse crescente das potências europeias no continente africano, pelos finais do século XIX, Portugal viu-se obrigado a criar uma nova política colonial. Tendo por justificativa a missão providencial divina dos portugueses para “desvendar mundos”, foi criada uma ideologia que ficou conhecida como “Terceiro Império” (1822-1975) e atingiu o seu expoente máximo com a figura de Salazar e o “Estado Novo”, regime ditatorial que durou quase cinquenta anos (1926-1975). Assim, a estratégia assumida por Salazar para evitar que o país fosse considerado uma potência colonial em pleno século XX foi inventar o conceito de um Portugal intercontinental, trocando o nome de “colônias” por “províncias ultramarinas”, apresentando-as como territórios extensivos e inseparáveis de Portugal. Com essa política, a ditadura fez ressurgir o regime colonial, criando o mito do Terceiro Império, apresentando a Lusitânia7 e suas colônias como uma “nação multirracial e pluricontinental” (CASTRO; VERÍSSIMO; VIANA; REPOLHO; ESPADINHA; 2009).

O tipo de relação entre portugueses e africanos, assentada na lógica de “colonizador/colonizado”, só veio cair por terra em 1974, quando a Revolução de 25 de Abril

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Termo atribuído na antiguidade ao território oeste da Península Ibérica onde viviam os povos lusitanos, tido como o nome ancestral de Portugal.

pôs fim à ditadura portuguesa e os países dos PALOP (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa) foram se libertando, um a um, do domínio português. Esse processo de libertação, como em toda relação de colonizador/colonizado, foi conquistado a duras penas e a saída do colonizador português dos países africanos implicou na busca de modos de sobrevivência e estruturação enquanto nação (aspectos sociais, econômicos etc.) para ambos os lados.

Assim, o momento atual que a Lusitânia vive é um resultado de duas grandes transformações estruturais: o processo de descolonização e fim do regime ditatorial, e a entrada para a União Europeia. O derrube da ditadura marcou uma profunda mudança em todo o país, um dos mais pobres em toda a Europa. A longa guerra colonial (1961-1974) tinha absorvido a maior parte dos recursos econômicos e humanos do país, condicionando de forma brutal o seu desenvolvimento. Assim, quando, em 1986, Portugal entra na União Europeia, isso veio representar uma efetiva melhoria econômica e um aumento da qualidade de vida da população8 (SANTOS, 1994).

Tal fato, aliado à sua própria condição geográfica de ser uma porta de entrada na Europa, veio atrair vários emigrantes, principalmente das ex-colônias. A situação pós- Revolução havia ditado a abertura das fronteiras de Portugal e esse fato estimulou vários indivíduos a voltar ou iniciar a vida no país. Porém a entrada em solo luso de africanos ou “retornados” (portugueses residentes nas ex-colônias) coloca inúmeros problemas relativos à sua integração nesse novo contexto. Por volta das décadas de 50/ 60, isto é, quando se inicia o movimento de descolonização, aumenta o número de africanos em Portugal, na sua maioria originários dos PALOP – as ex-colônias. Este é um fenômeno que se intensifica a partir dos anos 80/90, com a integração de Portugal à comunidade europeia e a consequente necessidade de mão de obra (GUSMÃO, 2005; LUVUMBA; 1997). Através de alguns estudos (GUSMÃO, 2005; OLIVEIRA e COSTA, 2007) somos levados a induzir que os fluxos migratórios se intensificaram a partir dos anos 60, com uma forte presença de cabo-verdianos em solo português, continuando nos anos 70, quando a maior parte dos imigrantes que entram no país é proveniente dos PALOP (com especial destaque para Angola e Moçambique), sendo que somente após os anos 80 africanos de outros países chegam a terras lusitanas.

Para estas populações, as razões de imigração se prendem basicamente com a busca de trabalho, o dar continuidade aos estudos, o reencontro com familiares ou até para escapar à

8 Portugal foi um dos últimos países europeus a entrar na UE e isso era há muito almejado como forma de

instabilidade sociopolítica dos seus países (LUVUMBA, 1997). No entanto essa imigração é feita para territórios demarcados: a maioria das pessoas trabalha na construção civil e em trabalhos “braçais” que os portugueses não querem mais fazer. Assim, na fase inicial de inserção de Portugal na UE, o “africano” não era um problema, era a solução” (GUSMÃO, 2005, p. 66).

Esta situação, originada por vários fatores, vai necessariamente trazer uma série de complexidades e ambiguidades que ainda hoje se fazem sentir. Em primeiro lugar, é preciso lembrar que Portugal tornou-se uma porta de entrada na Europa, um país que até há bem pouco tempo não tinha grande controle e fiscalização sobre o contingente de imigrantes, o que era um atrativo. Isto tendo em conta que, ainda hoje, a Europa tem uma aura de “terra ideal”, o local em que qualquer um vai para enriquecer e ter a vida que sempre quis – infelizmente, esta ideia continua sendo alimentada por imigrantes que, mesmo em condições precárias, desumanas e sem trabalho, contam maravilhas sobre a sua estadia na “terra prometida”. Segundo Sansone (2004, p. 144),

[...] nos últimos cem anos, com uma aceleração nas últimas décadas, a migração em massa, muitas vezes para as antigas “pátrias” coloniais, levou à formação de grandes comunidades negras em países que, até há bem pouco tempo atrás, tinham apenas uma presença negra mínima.

Indubitavelmente, nesse cenário, se complexifiquem as relações entre essas comunidades e a sociedade de acolhimento. A dificuldade que os estudos sobre esta matéria têm enfrentado é que se trata de um processo que, para além de traumático, é ainda muito recente, “em acontecimento” (GUSMÃO, 2005, p. 16), já que o fim do regime colonial data de 1974, havendo, ainda, dificuldade em lidar com certas questões, pois o passado é uma ferida que ainda está aberta.

Ao mesmo tempo, Portugal, que foi durante muito tempo um país de emigração, recentemente tem-se tornado um país de imigração. Ainda são mudanças muito recentes na realidade do país, o que faz com que a mudança social possa ir à frente da própria mudança de mentalidades. É crucial, então, atentar simultaneamente no “mundo português criado pela expansão portuguesa do passado e o mundo português, do presente, vale dizer, como país membro da União Européia [...]”, e, por outro lado, nas “relações sociais que envolvem uma memória histórica [...] um “eu” e um “nós” em comum” (GUSMÃO, 2005, p. 27).

Torna-se essencial reconhecer a história cultural compartilhada e os fortes laços culturais e até biológicos que têm ligado Portugal e partes da África, realidade que tem sido

continuamente escamoeatada e esquecida, numa espécie de amnésia coletiva que o povo português parece ter em relação ao seu passado colonial.

Novos desafios e complexidades são criados quando os portugueses se deparam com o africano instalado no “seu” território. Nos dias de hoje, já ninguém em Portugal se lembra do discurso do Terceiro Império que falava dos países africanos como uma “família alargada”, dos países africanos como “províncias d’além-mar”. Atualmente, apenas algumas décadas depois, com a realidade do ex-colonizado radicado em “suas” terras, o caso muda de figura.

A educação das escolas em Portugal, apesar de não repetir essa ideia de família alargada, perpetua a visão de Portugal como “descobridor” de mundos, do heroísmo do seu povo e de uma relação fraterna (por vezes até paternal) com os seus “irmãos africanos”. Do lado dos PALOP, o que os testemunhos dos imigrantes adultos (GUSMÃO, 2005) que chegaram nas últimas décadas parece sugerir é que há ainda uma imagem de Portugal e das “províncias ultramarinas” como uma só nação, e, devido a isso, o choque ainda é maior quando os referidos sujeitos se estabelecem na sociedade portuguesa e descobrem que são “africanos”, isto é, “estrangeiros”.

O discurso da unicidade que acompanhava a ideia de Terceiro Império ajudou a reforçar ainda mais a estratégia colonialista portuguesa, assimilacionista por natureza, que, sob o bojo da criação de elementos unificadores (língua, cultura, religião), “tendia a, antropofagicamente, assimilar o outro” (GUSMÃO, 2005, p. 55). Ainda nos nossos dias, no discurso repetido nas escolas e em outros meios sociais, perpetua uma concepção de História de Portugal difundida pelo “Estado Novo”, sendo recorrente a referência à palavra “aculturação”, que traz consigo uma ideia de cópia do modelo da cultura do colonizador, apresentado-o como um agente de civilização. Este conceito é passado de geração a geração do ponto de vista de trocas unilaterais, como se, do contato entre a cultura dominante e dominada, só ficassem os traços da cultura dominante. Ao mesmo tempo, observamos que a política colonial portuguesa baseou-se em dois fatores: na miscigenação e suposta ausência de preconceito quanto à cor da pele, para, assim, criar condições para a assimilação dos africanos no mundo português. Através destas medidas identificamos uma tendência constante por parte do povo luso de “negar a alteridade cultural do ‘outro’” e, com isso, “em nome da razão de ele ser perversamente diferente e precisar ser tornado igual, ‘civilizado’ [...] tornar o outro mais igual a mim para colocá-lo melhor a meu serviço” (BRANDÃO apud GUSMÃO, 2005, p. 75).

Como afirma Neusa Gusmão, “o discurso da unicidade [...] que ao evocar a união África/Portugal e muitas vezes uma comunidade lusófona o faz, desde que, ao que parece,

permaneça cada um no seu lugar” (2005, p. 50). E se, por um lado, atualmente, no campo da língua, com o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, tem-se assistido a alguns progressos no sentido do reconhecimento – ainda que com muitas resistências – da imbricação entre estas comunidades, essa realidade ainda está muito aquém das políticas de integração que deveriam já estar sendo praticadas.

O estabelecimento recente de inúmeras populações africanas no espaço português deu origem a múltiplas realidades identitárias difíceis de definir e delimitar, pois as conceituações de nacionalidades se perdem na complexidade da realidade. Ainda segundo Gusmão (ibid, p. 32), “as crianças e os jovens africanos e os luso-africanos [são] como sujeitos feitos ‘estrangeiros’ de si mesmos e da nação portuguesa, desterritorializados e portadores de identidades múltiplas [...]”. Isto por que se sentem portugueses e são nascidos em Portugal, no entanto a cor da pele chega primeiro, e são considerados africanos sem sequer terem conhecido a África. Por esse fato, é legítimo reconhecer os “luso-africanos” como indivíduos de identidade híbrida, de dupla condição cultural: simultaneamente, africanos e portugueses (GUSMÃO, 2005).

Ao mesmo tempo, “o ângulo pelo qual Portugal se pensa como português e branco implicou, desde sempre, a crença de uma homogeneidade de sua formação e na formação de seu povo (GUSMÃO, 2005, p. 70). Nessa medida, o “outro”, agora demasiadamente perto, incomoda e desestabiliza a identidade singular historicamente construída. “O ‘outro’, antes distante, dava grandeza a Portugal, lhe conferia bravura e heroísmo [...]. Então é como se Portugal limpasse o espelho para ver o rosto e descobrisse que também é africano” (op. cit., p. 83). Assim sendo, parece que a figura do outro coloca em jogo também a própria identidade, levando o povo português a tomar contato com a sua ambivalência cultural. Na fala de Gusmão, “a ambivalência de se ‘ser português’ e ‘ser africano’ coloca em questão o quanto dessa ideologia referente à ‘família alargada’ de Portugal e África permanece para portugueses e para africanos [...]” (op. cit., p. 89).

Uma das questões que parece surgir destes novos encontros entre portugueses e africanos é a da interpenetração e ambivalência identitária destes povos. Talvez uma forma de lidar com isso, no caso lusitano, seja reconhecer, como fala Sousa Santos, que “não existe uma cultura portuguesa, existe antes uma forma cultural portuguesa: a fronteira, o estar na fronteira” (SANTOS, 1999, p. 134).

No entanto parece que o mundo português atual ainda não é capaz de aceitar completamente toda esta realidade. Ainda se percebe uma leve sensação de que os africanos

são necessários, mas, ao mesmo tempo, não são bem-vindos. Neusa Gusmão também se interroga quanto à natureza da sociedade portuguesa:

Racista? Etnocêntrica? Democrática? Em luta com suas próprias contradições e conflitos? Ou tudo isso a um só tempo? Está em jogo a tão propalada capacidade plástica e de fácil adaptabilidade do mundo português; características essas que tinham a ver com o mundo fora das portas. Mas porta à dentro não parece ser a mesma coisa” (GUSMÃO, 2005, p. 71).

Apesar de sentir as opiniões e posições divididas, Portugal ainda é um país mais racista que acolhedor para com a figura do imigrante, especialmente quando esse imigrante é “africano”. Nas imagens reproduzidas pela mídia, pelos indivíduos, pelas instituições o “africano” é ainda representado sob o estereótipo da marginalidade, delinquência, exotismo ou, inclusive, como um complemento do ser português. Essa realidade é disfarçada com “esse mito que diz que Portugal é um país de brandos costumes que sempre conviveu bem com a diversidade [...] onde toda a gente ‘até tem um amigo preto’ que lhe serve de álibi que prove a sua tolerância para depois poder dizer tudo o que lhe venha à cabeça” (OLIVEIRA, 2010). As relações entre os africanos (antes colonizados e hoje imigrantes) com a sociedade de acolhimento não se limitam, no entanto, a atitudes discriminatórias. Como apresenta Gusmão (2005, p. 97):

A problemática posta no âmbito cultural revela, no entanto, que apesar da discriminação e preconceito, esses grupos não deixam de manifestar seus costumes e sua cultura (...), à qual não fica indiferente o português. Pode-se, então, verificar em Portugal a presença fortíssima da cultura africana e, numa segunda contradição, a relação dos portugueses para com ela. [...] É o exótico, mas não só.

Assim, como podemos observar pelas questões aqui levantadas, as relações entre sujeitos portugueses e sujeitos africanos envolvem uma complexidade de realidades, e, mesmo como pesquisadores no campo da dança, lidamos com estas contradições do contexto pós-colonial, quando o conflito convive com a curiosidade, quando a indiferença convive com o fascínio. Apesar de tudo o que foi referido, observamos que estamos numa época diferente, em que as relações históricas de Portugal com as “Áfricas” criam um ambiente propício a uma melhor aceitação das danças africanas nesse país. Só isso explica que num país de “brandos costumes” como Portugal, num país “frio”, e de forte introspecção, o contexto pós-colonial não seja mais apenas baseado no conflito ou distanciamento, mas também no interesse dos portugueses pela cultura africana.

Nesse sentido, “diante do desafio de dialogar com a pluralidade cultural que invade as ruas, a Europa revela um interesse crescente pela diversidade, pelo exótico, pela identidade e pela religião das outras nações” (RABELO, 2008, p. 51). Ao mesmo tempo, a curiosidade pela cultura africana, que faz parte de uma tendência internacional e internacionalizante de “re-africanização” (SANSONE) e de “regresso às raízes”, em Portugal, é, em adição, algo contextual, distinguindo-o em relação a outros países do continente europeu. Posto isto, a correlação entre Portugal e as “Áfricas” no passado e na contemporaneidade vão necessariamente estar refletidas no corpo que dança.

3 DANÇAS AFRICANAS EM PORTUGAL: (RE) DEFINIÇÕES E CONTEXTUALIZAÇÃO A PARTIR DOS ANOS 90

Antes de definir e contextualizar as danças inseridas nesta pesquisa, nos deparamos com a necessidade de discutir brevemente dois conceitos-chave deste trabalho: os conceitos de “África” e de “danças africanas”. Pelo fato de a questão da nomenclatura não ser o foco deste trabalho, evitaremos entrar numa discussão mais ampla. Contudo devemos referir a importância do nomear e suas questões epistemológicas, pois em muito pode contribuir para a compreensão dos obstáculos na aproximação entre culturas, já que “as escolhas terminológicas não podem ser neutras (AGAMBEN, 2003). Além de implicar uma tomada de posição quanto à natureza do fenômeno que se propõe estudar, nomear já é agir, organizar no corpo uma atitude” (GREINER, 2007, p. 13). Estamos conscientes do poder que o ato de nomear implica, por isso não queremos passar por estes conceitos de uma forma leviana.

Nesse aspecto, concordamos com Morin quando este afirma que “é importante reagir contra toda a simplificação semântica, contra toda tentativa de homogeinização cultural” (MORIN, 1996, p. 289). Perduram até hoje uma série de estereótipos ligados à ideia de “África” que a “pintam” como um lugar das tribos e dos elefantes, leões e girafas, um lugar exótico, um lugar monolítico, marcado pela pobreza etc. As pessoas referem-se à “África” como se se referissem a um único país, generalizando a diversidade da sua história e contextos sociais. A “África mítica” é tida como a origem da própria espécie humana, a “mama África”, que serve como tábua de salvação identitária em épocas de incertezas. Evita- se conhecer a África de hoje, pois ainda se prefere a mesma África de há 500 anos, claramente num olhar estereotipado do Ocidente sobre o continente africano. Foram várias as vezes que, nas entrevistas realizadas por esta pesquisa, mesmo pessoas que afirmam que encaram África na sua diversidade, como um continente, têm atos falhados e se referem a ela como um país: um reducionismo proveniente de um olhar e de uma construção de pensamento que vai demorar para se desmontar.

Assim, essas representações foram confirmadas unanimamente pelas falas dos sujeitos da pesquisa. No Portugal atual, entre portugueses, africanos e luso-africanos, “África” ainda é “o continente mais selvagem e primitivo que existe, com animais selvagens” (BORGES, 2010), “terra seca” (MORAIS, 2010), “petróleo e diamantes” (GRACIETE, 2010), “imagens quentes de sol, de alegria e de seriedade” (NINI, 2010), “o berço e as raízes de todos os

povos” (SILVA, 2010), no entanto, também, “o lugar da miséria” (SILVA, 2010), “onde todo o abutre quer ir picar” (PETCHU, 2010). Em adição, para outros, também é um lugar de “extrema riqueza a nível cultural” (BILAN, 2010), “calor humano” (SILVA, 2010), em que as pessoas “sabem viver o presente e o coletivo, o que se está a perder na Europa” (AZEVEDO, 2010). Apesar de a maior parte das respostas irem no mesmo sentido, apenas três das treze pessoas entrevistadas tinham efetivamente estado no continente africano, o que nos faz questionar também de onde vêm estas representações.

Talvez elas surgiram mais uma “África imaginada” do que uma “África” vivida ou conhecida. Estes dados colocam-nos diante daquilo que Eric Hobsbawm (1984) chamou de “tradições inventadas”. Este conceito corresponde a “um conjunto de práticas normalmente reguladas por regras tácita ou abertamente aceitas; tais práticas, de natureza ritual ou simbólica, visam inculcar certos valores e normas de comportamento através da repetição, o que implica, automaticamente, uma continuidade em relação ao passado. [...] Muitas vezes, ‘tradições’ que parecem antigas são bastante recentes, quando não inventadas” (op. cit., p. 9). Na ótica desse autor, estas representações seriam socialmente construídas ou formalmente institucionalizadas. Um exemplo de uma “tradição inventada” seria o kilt escocês, que todo o mundo pensa que é uma vestimenta com séculos de história na Escócia, mas que, na verdade, é uma tradição bem moderna. O mesmo autor identifica que a “função” de uma “tradição inventada” é despoletar uma mudança desejada, ou, por outro lado, ser uma resistência à inovação (HOBSBAWM, 1997). A nossa perspectiva é que as imagens que a “África” ainda suscita no mundo europeu se inscrevem no segundo caso: tratam-se, por um lado, de uma resistência de um olhar etnocêntrico por parte dos ocidentais, e de uma persistência dos africanos nessa mesma imagem, na tentativa de corresponder às expectativas do ex-colono e, ao mesmo tempo, de encontrar um sentimento de identidade coletiva. Nesse sentido, é interessante observar que os próprios angolanos e cabo-verdianos que foram entrevistados reforçam o estereótipo de uma “África ancestral”, o que nos leva de encontro a essa ideia de uma cultura “imaginada”, ou, como nos traz Mohamed Bamba, de uma comunidade simbólica com o “poder para gerar um sentimento de identidade” (BAMBA, 2007, p. 50).

Portanto, no âmbito deste estudo, e tendo em conta que o tema escolhido se espraia por várias realidades socioculturais e geográficas, decidimos, nos nossos pontos de vista, optar por um conceito mais amplo: “Áfricas”. A noção de “Áfricas” pretende sublinhar o