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Manifestações culturais de Saubara-BA: Contribuições para preservação de ecossistemas manguezal

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Academic year: 2021

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UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

INSTITUTO DE HUMANIDADES, ARTES E CIÊNCIAS PROFESSOR MILTON SANTOS

PROGRAMA MULTIDISCIPLINAR DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CULTURA E SOCIEDADE

INADJA ELIZABETE NOGUEIRA SOUZA VIEIRA

MANIFESTAÇÕES CULTURAIS DE SAUBARA-BA:

CONTRIBUIÇÕES PARA PRESERVAÇÃO DO ECOSSISTEMA MANGUEZAL

SALVADOR/BA 2018

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INADJA ELIZABETE NOGUEIRA SOUZA VIEIRA

MANIFESTAÇÕES CULTURAIS DE SAUBARA-BA: CONTRIBUIÇÕES

PARA PRESERVAÇÃO DO ECOSSISTEMA MANGUEZAL

Dissertação apresentada ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade do Instituto de Humanidades Artes e Ciências Professor Milton Santos, para obtenção do grau de Mestre.

Orientador: Prof. Dr. Adalberto Silva Santos

SALVADOR/BA 2018

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Ficha catalográfica elaborada pelo Sistema Universitário de Bibliotecas (SIBI/UFBA), com os dados fornecidos pelo(a) autor(a).

Nogueira, Inadja Elizabete

Manifestações culturais de Saubara-BA: Contribuições para preservação do ecossistema manguezal / Inadja Elizabete Nogueira. -- Salvador, 2018.

134 f. : il

Orientador: Adalberto Santos.

Dissertação (Mestrado - Programa Multidisciplinar de pós-graduação em Cultura e Sociedade) -- Universidade Federal da Bahia, Instituto de Humanidades Artes e Ciências Professor Milton Santos, 2018.

1. Manifestações culturais. 2. Topofilia. 3. Memória. 4. Manguezal. I. Santos, Adalberto. II. Título.

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DEDICATÓRIA

À todas as marisqueiras.

À minha avó Carmem (in memorian), à minha mãe. Às minhas filhas, Alana e Ariane Nogueira Vieira.

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AGRADECIMENTOS

A realização desse trabalho foi como tecer uma rede: contou com muitos fios, e, no enlace de cada nó, apesar da sensação, nunca estive só. Cabe agora agradecer a todos que durante esses três anos colaboraram na tecitura deste trabalho.

Primeiro, ao meu orientador, Adalberto Silva Santos, que desde o início acreditou e depositou confiança em meu projeto de pesquisa. Gratidão pela generosidade, acolhimento, paciência e profissionalismo.

A todas as marisqueiras, rendeiras, pescadores, sambadores pelo carinho, acolhida, gentileza e alegria em me receber para as conversas. À Maria do Carmo e Lenira, pelo sorriso no rosto sempre que eu chegava com minhas perguntas.

Ao professor Raimundo José dos Santos (Betinho d’Saubara), pela atenção e boa vontade em me receber e apresentar a pessoas fundamentais para a pesquisa.

À Flávia Daiane, pela amizade e pelo texto “O tear, o tecer e o tecido” (SANTOS, 2011). À Marisa Marques, que no exercício de sua profissão me ajudou nessa caminhada. Ao Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, pelo acolhimento de uma bióloga. Aos excelentes professores e colegas de turma, aos colegas amigos Emilena, Marie, Fabiana, Taís, Adroaldo, Arnaldo Jr., pelas discussões nas aulas e pelo carinho e amizade.

Aos membros da bancar professoras Cacilda Reis e Marilda Santanna, por participar desse momento feliz na minha vida.

Aos meus pais Alfredo e Nair pelos belos exemplos, aos irmãos, e minha avó Carmem (in memorian) que em seus muitos contos me levou a conhecer Saubara.

Às minhas filhas Alana e Ariane, pelo incentivo, apoio, confiança e socorro nos momentos de desespero. Ao meu marido Edson, o companheiro de todas as horas e viagens.

A todos aqueles que comigo caminharam de pés descalços na lama dos manguezais. Ao meu poderoso Anjo da Guarda, pela proteção. E ao criador de todo Universo por me permitir mais essa caminhada.

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O ouro afunda no mar Madeira fica por cima Ostra nasce do lodo Gerando pérolas finas. Ederaldo Gentil

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RESUMO

Esta pesquisa, ao descrever as manifestações culturais que ocorrem na cidade de Saubara-Ba, tenta compreender em que medida as mesmas apresentam indícios de laços afetivos com o ambiente, lugar de vida, trabalho e lazer. Parte do princípio de que os modos de vida dos moradores retratam memórias perpetuadas por gerações, reproduzindo elementos que corroboram para a preservação de manguezais. Nesse estudo, imbrica preservação de traços culturais e do ambiente natural, revelando um processo de interdependência entre o homem e a natureza que resultou em um rico legado cultural e criou as condições necessárias para o desenvolvimento de atitudes de preservação ambiental, aquilo que denominamos sentimento de topofilia. O conceito de Topofilia foi construído por Yi Fu Tuan (1974) e é a chave para o entendimento do “amor ao lugar”, um norteador para pensar o ambiente na forma como é percebido pelos atores sociais. Os fragmentos de topofilia observados na cidade nos deram as pistas necessárias para o entendimento de como as memórias impactam e servem de substratos para as manifestações culturais. A noção de sujeito ecológico, de Sato e Carvalho (2005), nos leva a discorrer sobre “um tipo ideal, forjado no jogo das interpretações onde se produzem os sentidos do ambiental levando em conta os universos da tradição (tempo de longa duração) e das experiências vividas no presente” (SATO E CARVALHO, 2005, p.54). Tomo por ator ecológico parafraseando Sato e Carvalho (2005) os atores sociais da cidade de Saubara que a partir de suas vivências em seus saberes e fazeres, transmitidos por gerações via educação informal, desenvolvem estratégias que auxiliam na preservação dos manguezais ali existente. As manifestações culturais reforçam e preservam identificações relacionadas ao lugar de vida, nas relações produtivas e simbólicas que se estabelecem diante da floresta de mangue e por meio delas, mantendo e reproduzindo modos de vida numa saudável relação com o ambiente, importante elemento para preservação do ecossistema manguezal. Hoje, a partir do que vi e vivi durante a pesquisa, posso afirmar que Saubara é flor e é pele. É flor porque é memória, elemento reprodutor de modos de vida na cidade. E é pele, pela sua capacidade de autorregeneração e proteção desses modos de vida que se reproduzem por gerações.

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ABSTRACT

This research, in describing the cultural manifestations that occur in the city of Saubara-Bahia, tries to understand to what extent they present signs of affective ties with the environment, place of life, work and leisure. Part of the principle that the livelihoods of the residents portray memories perpetuated by generations, reproducing elements that corroborate for the preservation of mangroves. In this study, it imbriced the preservation of cultural traits and of the natural environment, revealing a process of interdependence between man and nature, that resulted in a rich cultural legacy and created the necessary conditions for the development of attitudes of environmental preservation, what we call the feeling of Topofilia. The concept of Topofilia was built by Yi Fu Tuan (1974) and is the key to understanding the "love of place", a guide to think the environment in the way it is perceived by social actors. The fragments of Topofilia observed in the city gave us the clues necessary to understand how memories impact and serve as substrates for cultural manifestations. The notion of an ecological subject, of Sato and Carvalho (2005), leads us to talk about "an ideal type, forged in the game of interpretations where the senses of the environmental are produced taking into account the universes of tradition (long-term time) and experiences lived in the present "(SATO and CARVALHO, 2005, p. 54). I take by ecological actor paraphrasing Sato and Carvalho (2005), The social actors of the city of Saubara that from their experiences, their know-how and of to do, transmitted by generations through informal education, develop strategies that help in the preservation of Mangroves existing there. Cultural manifestations reinforce and preserve identifications related to the place of life, in the productive and symbolic relations that are established in front of the mangrove forest and through them, maintaining and reproducing ways of life in a healthy relationship with the Environment, an important element for the preservation of the mangrove ecosystem. Today, from what I saw and lived during the research, I can say that Saubara is flower and is skin. It's flower because it's memory, a breeding element of lifestyles in the city. And it is skin, for its capacity of self regeneration and protection of those ways of life that reproduce for generations.

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LISTA DE ILUSTRAÇÕES

Figura 1 – Grupo de atores sociais alvo da pesquisa...17

Figura 2 – Mapa de localização da cidade de Saubara-Bahia...27

Figura 3 – O peixe comercializado na cidade é representado no gradil da casa ao fundo...28

Figura 4 – Vista da Igreja de São Domingos de Gusmão da Saubara...29

Figura 5 – Dona Marinalva no fim da tarde catando ostras (Crassostrea spp.) para comercialização...31

Figura 6 – Instalação em concreto, com formas de animais encontrados nos mares e marés, destaque para o siri (Callinectes spp.), fonte de alimento e subsistência para muitas famílias na cidade de Saubara...32

Figura 7 – Crianças e adultos no fim de tarde com a maré cheia, em momentos de lazer e descontração no banho no Porto de Saubara...33

Figura 8 – Área de Floresta de mangue estudada na pesquisa...35

Figura 9 – Folhas e flores da (Laguncularia racemosa), nome popular Mangue branco...36

Figura 10 – Aratu do mangue...37

Figura 11 – Caranguejo-uçá no mangue em Saubara...37

Figura 12 – Floresta de mangue na cidade de Saubara...38

Figura 13 – Pescador em atividade na cidade de Saubara ...39

Figura 14 – Caminho do manguezal em Saubara...41

Figura 15 – Casas de pescadores na ilha em Saubara...42

Figura 16 – Vista dos manguezais durante a maré baixa em Saubara...43

Figura 17 – Marisqueira e Rendeira Crispina Maria (Piute) ...45

Figura 18 – Marisqueira Joselina cavando o solo do manguezal em Saubara...49

Figura 19 – Mãos de marisqueira e pescadora Rosa Marina...50

Figura 20 – Marisqueira Dona Marinalva, catando Siris (Callinectes sapidus) ...51

Figura 21 – Fernanda e Maíara, mariscando no manguezal em Saubara-Ba...53

Figura 22 – Caranguejo-uçá no manguezal em Saubara-Ba...55

Figura 23 – Peixes secando ao sol na na praça da Rocinha em Saubara...56

Figura 24 – Balde com Bebe-fumo (Anomalocardia brasilians) coletados em Saubara...57

Figura 25 – Marisqueiras caminham sorrindo para suas casas após mariscagem...57

Figura 26 – Mulheres catando mariscos com coluna vertebral mal posicionada...58

Figura 27 – Esquema de comercialização do marisco...59

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Figura 29 – Deposição das conchas de mariscos em frente à casa da marisqueira...61

Figura 30 – Peixe Niquin (Thalassophryne nattereri) no manguezal em Saubara...62

Figura 31 – Saulo com o pai Rodrigo e sua prima Evelyn...63

Figura 32 – Rio de Saubara-Ba (Rio do banho) ...66

Figura 33 – Presente para Mãe das águas no Rio de Saubara- Ba – 2017 Foto: Heriberto Santos...67

Figura 34 – Moqueca de siri catado...72

Figura 35 – Moqueca na palha de bananeira...74

Figura 36 – Barco de pesca com as redes do pescador...78

Figura 37 – Almofada, bilros e molde para tramar a renda...80

Figura 38 – Dona Maria do Carmo, coordenadora da Associação dos Artesão de Saubara ...81

Figura 39 – Apliques tecidos em renda de bilros...81

Figura 40 – Detalhe da renda de bilro Flor da Maré...82

Figura 41 – Pedro de Jesus, “Vovô Pedro”, sambador e marujo da Chegança Fragata Brasileira...86

Figura 42 – As mestras sambadeiras do projeto Mulheres do Samba de Roda...87

Figura 43 – Pés de meninas sambadeiras no Encontro de Samba de Roda Mirim...88

Figura 44 – A Barquinha de Dona Rita da Barquinha...90

Figura 45 – Dona Rita da Barquinha sambando...91

Figura 46 – Grupo do Rancho do Papagaio...92

Figura 47 – Adereços utilizados pelas pastoras e tabuinhas que marcam o samba...93

Figura 48 – Ao centro o Mestre João Antônio das Virgens e a direita Raimundo José dos Santos ...94

Figura 49 – Trecho da 1ª Marcha do Rancho do Papagaio por Mestre João Iaiá...95

Figura 50 – Trecho da 17ª Marcha Rancho do papagaio...95

Figura 51 – Folhas de vassourinha (Scoparia dulcis L.) usadas para rezar...97

Figura 52 – Mulheres da Caretas do Mingau...98

Figura 53 – Caretas domingueiras na Rua da Rocinha...99

Figura 54 – Moradores carregando as saias de folhas secas de bananeira...100

Figura 55 – Máscaras expostas na sede da Associação Chegança dos Marujos...101

Figura 56 – O professor Betinho da Saubara representando o Padre Capelão e alguns integrantes da Chegança Mirim...103

Figura 57 – Chegança Fragata Brasileira de Saubara no V Encontro...104

Figura 58 – Rosa Marina e sua neta Evelyn no V Encontro de Chegança da Bahia...105

Figura 59 – Alunas do Centro Educacional Manoel Castro no V Encontro de Chegança da Bahia...106

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LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Características sociais das entrevistadas.

LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

APP – Área de Preservação Permanente BP – Bahia Pesca

BTS – Baía de Todos os Santos EA – Educação Ambiental

IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística

ICMBio – Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade IDEB – Índice de Desenvolvimento da Educação Básica

IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional MPF/BA – Ministério Público Federal da Bahia

PNAD – Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios PRAD – Plano de Recuperação da Área Degradada PSF – Programa Saúde da Família

PVC – Policloreto de vinil

SEI – Superintendência de Estudos Econômicos e Sociais da Bahia TAUI/MI – Termo de Autorização de Uso de Imagem - Menor de Idade TCC – Trabalho de Conclusão de Curso

TCLE – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido UC – Unidade de Conservação

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...12

CAPÍTULO I – Natureza e cultura: a forma como se vê...19

1.1 Circulação de saberes, rede memórias e identidade...21

1.2 Fragmentos de topofilia em Saubara...25

1.3 O manguezal...33

CAPÍTULO II – Caminhando entre memórias e manguezais...40

2.1 A labuta das mulheres nos manguezais...45

2.2 Mãos de mulheres...48

2.3 A produção do pescado e da dor...54

2.4 Imagem da mulher e das águas...64

CAPÍTULO III – À flor da pele: manifestações culturais de Saubara...69

3.1 Comida, um ritual à mesa...70

3.2 Onde há, redes há rendas...77

3.3 O Samba de Roda no Recôncavo...84

3.4 A Barquinha...89

3.5 O Rancho do Papagaio...91

3.6 As Rezas...96

3.7 Caretas vamos assustar...97

3.8 Chegança o palco do mar...101

CONSIDERAÇÕES FINAIS...107

REFERÊNCIAS...113

APÊNDICES...121

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INTRODUÇÃO

Ao escrever essa introdução, entendo que é preciso falar um pouco sobre a minha caminhada para situar como essa pesquisa se deu. Nascida em agosto de 1968, a segunda de cinco irmãos, pude conviver por muito tempo com a minha avó materna Carmem Nery de Souza. Entre as muitas lembranças que tenho dela, duas sempre me acompanharam: primeiro a tristeza que ela tinha de não saber assinar o próprio nome e a segunda era a saudade que ela tinha dos tempos que tecia redes de pesca na cidade de Saubara.

Foi assim que conheci Saubara, no imaginário de uma criança de 10 ou 12 anos, por meio das lembranças da avó que foi moradora da cidade na década de quarenta. Ela nasceu em Santo Amaro da Purificação em 1920, e foi impedida de aprender a ler e escrever pelo seu pai que dizia: “Mulher que sabe escrever, é para fazer carta e fugir com o namorado”, assim proibindo todas as filhas de estudar. Aos vinte e quatro anos, moradora de Saubara, como forma de sobrevivência, fazia cocada, trançava palha e tecia redes de pesca. Segundo ela, era uma das mais procuradas pelos pescadores na época, devido a qualidade do seu trabalho.

Eu ouvia atentamente as lembranças dela, contos que pareciam me transportar para um mundo que só vim conhecer tempos depois. Durante as férias, em visitas a parentes, minha mãe levava os cinco filhos à cidade de Santo Amaro. Passaríamos o dia na praia de Itapema, em Saubara. Eu ficava encantada com o quintal da casa de dona Marieta: o cheiro das carambolas maduras espalhadas pelo chão era algo que me encantava. Olhava a rua pela janela e via, no final da tarde, meninos a vender pamonha de carimã ou puba, um quitute ainda comum na cidade, que eu particularmente aprecio muito. Lembranças tão presentes quanto o sabor de um bolinho chamado apanan (ou panã): uma mistura de coco ralado com farinha de trigo, que minha avó fazia para merenda, e que, ao que me parece, desapareceu na cidade.

Meu interesse pelos saberes populares é antigo. Lá em casa, minha mãe cuidava e curava enfermidades dos filhos e de alguns vizinhos com um xarope caseiro feito com várias ervas. Ao longo dos anos, algumas plantas utilizadas no xarope ainda permanecem no jardim e no quintal de sua casa: o Sabugueiro, Mastruz, Pitanga, Alfavaca, Romã, Maria Preta e outras. A preservação dessas plantas, assim como o saber fazer xarope, ao longo de tantos anos, sinaliza a relação harmônica entre os saberes populares e a natureza.

O tempo passou, casei, e com as filhas já crescidas, resolvi voltar a estudar, o curso fora o de Licenciatura em Ciências Biológicas, um desejo antigo, motivado pelas lembranças da

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minha professora de ciências no ensino fundamental, a pró Valda, quem eu nunca esqueci. Na faculdade, o primeiro desafio foi trabalhar com o ecossistema manguezal na disciplina de Ecologia. Percebi um sentimento de repulsa por parte de alguns colegas de equipe, mas que, diante de meus argumentos, conseguimos realizar o trabalho. Entender porque um ecossistema de importância ecológica e econômica é tratado com desprezo por muitos já era um desejo.

Meu Trabalho de Conclusão do Curso (TCC), intitulado O uso medicinal da Espinheira-santa (Maytenus ilicifolia): em Cachoeira-Bahia, realizado em 2006, foi a partir do qual estudei a espinheira-santa (Maytenus ilicifolia) Mart., espécie considerada medicinal pela confirmação de sua ação anti-úlcera em estudos farmacológicos, embora esta já fosse de conhecimento popular. Essa planta é amplamente comercializada na feira livre da cidade de Cachoeira-Ba. A partir da pesquisa, foi possível me aproximar dos saberes populares do uso de plantas medicinais. Posteriormente, a pesquisa foi ampliada no curso de Pós-graduação em Gestão e Educação Ambiental, realizado em 2011.

Em 2007, assumi a vaga de professora efetiva de Biologia no Colégio Estadual Professor Aristides de Souza Oliveira, no bairro São João do Cabrito, Subúrbio Ferroviário de Salvador. Para conhecer o universo conceitual dos alunos no que diz respeito à realidade ambiental do bairro, pensei como ponto de partida para a discussão em Educação Ambiental (EA), propor aos alunos o exercício de fotografar e fazer pequenos vídeos da atual situação da formação vegetal dos manguezais na região. Mas, diante das constantes negativas por parte de alguns deles para realização dessas atividades escolares – ouvi algumas falas como: “eu não quero ir, lá fede, eu tenho nojo”, “quem vai entrar lá? Só tem maconheiro”, “tem é que cortar tudo mesmo, e fazer campo de futebol”, demonstrando aversão pelo ecossistema – fui então tomada por um sentimento de impotência no que diz respeito a sensibilização desses alunos, o que desencadeou a necessidade de compreender a relação existente entre comunidade, natureza e degradação ambiental.

Observações em áreas de manguezais no município de Saubara e na enseada do São João do Cabrito, no Subúrbio Ferroviário de Salvador, permitiu constatar diferenças extremas de degradação ambiental na Capital do Estado, embora trabalhos de educação ambiental, revitalização e recuperação do manguezal tenham sido realizados. A inquietação para o entendimento de tais diferenças me leva a refletir e questionar: Quais as estratégias desenvolvidas pela comunidade de Saubara que lhe tem permitido agir no mangue a partir do conhecimento e de sua importância?

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A importância dos manguezais para a população de Saubara é perceptível nas manifestações culturais da cidade: nos sambas de roda, culinária, artesanato, oferendas, redes e rendas. Saberes de pescadores e marisqueiras, mediadores da convivência junto aos manguezais, reforçados nas manifestações culturais da comunidade, criaram as condições necessárias para o desenvolvimento de atitudes efetivas de educação ambiental, auxiliando o processo de preservação do ecossistema?

Por outro lado, estudos dessa natureza se justificam na medida que, ao envolver as ciências naturais e humanas, relacionando-as às questões ambientais e culturais, se amplia a possibilidade de atuação multidisciplinar, ao colocar-se em interação ser humano e natureza.

Certa de que a formação do educador é um processo continuado e nunca deve ser vista como encerrada, pois reflete na sua prática educativa e nos diversos contextos de ensinar e aprender, me lancei ao desafio de voltar ao mundo acadêmico. Em 2015 fui aprovada na seleção do Mestrado no Programa Multidisciplinar de Cultura e Sociedade, com o projeto de pesquisa intitulado Manifestações Culturais de Saubara: Contribuições para Preservação do Ecossistema Manguezal.

Na primeira disciplina a cursar, o peso de uma pergunta carregada de preconceito de uma colega – que disse: “O que você está fazendo aqui, se você é bióloga? ” –, me causou imensa tristeza. Respondi: “Eu sou professora”. Em um curso de Mestrado Multidisciplinar, do qual ela também sairá professora, como aceitar um pensamento que reflete o aprisionamento em uma educação ultrapassada? A cada semestre e nova disciplina, perguntas iguais ou semelhantes surgiram, sinalizando a separação entre cultura e biologia, reflexo da própria divisão entre as ciências humanas e ciências naturais. Fato que me deu a certeza que esse é o meu lugar, e que as questões sociais e ambientais devem adentrar as unidades de ensino em todos os níveis, não como um elemento meramente ilustrativo, mas como parte inerente à educação dos atores sociais.

A partir de então, a observação do comportamento dos atores sociais detentores dos saberes – sambadores, pescadores, marisqueiras e artesãos – em seu cotidiano e nos momentos de festividades, tornaram-se fundamental para o entendimento dos modos de vida da população da cidade Saubara.

Aprofundar o conhecimento acerca do locus pesquisado e atribuir caráter científico às observações foram os passos principais que tornaram a pesquisa possível. Diferentes ferramentas foram acionadas para montar a base metodológica da pesquisa e proximidade do

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fenômeno estudado: observações, conversas informais, banco de imagens, questionário, entrevistas e nota de campo. Pois, conforme afirmam Bogdan e Biklen (1994, p.47), os estudos que recorrem à observação na investigação qualitativa têm como característica o fato de que a “[...] fonte direta de dados é o ambiente natural, constituindo o investigador o instrumento principal”. Assim, a percepção dos acontecimentos ou ações poderiam ser melhor compreendidas, pois foram observadas no seu ambiente de ocorrência.

Observei e anotei tudo da forma mais minuciosa possível, construí um diário com anotações de campo, tudo foi registrado para melhor descrição dos fenômenos observados, considerando indicações de Jaccoud e Mayer (2014, p.274), quando afirmaram que “[...] as anotações registradas durante a observação possibilitam tanto uma ‘descrição narrativa’ quanto uma melhor compreensão dos fenômenos observados [...]”’. As conversas, os relatos de experiências vividas por marisqueiras e pescadores junto aos manguezais, permitiram descrever os modos de vida conforme recomenda Maurice Merleau-Ponty (2011, p.3): “[...] descrever, não de explicar nem de analisar”.

O trabalho de campo desenvolvido nos manguezais em Saubara, junto às marisqueiras, foi um dos momentos mais marcantes da pesquisa. Significou mergulhar em um mundo onde a natureza possui diversos significados. Uma realidade que revelou muitas possibilidades de interpretações e análises, uma vez que as atividades laborais e recreativas que ali se constituem, marcam um universo social atravessado por questões de gênero, cultural, ambiental e econômico.

A pesquisa de campo foi realizada ao longo de quatorze meses, durante vinte e sete dias não consecutivos, distribuídos entre os meses de janeiro, fevereiro, julho, agosto e novembro de 2015; janeiro, fevereiro, abril, julho e agosto de 2016; janeiro, fevereiro, julho e agosto de 2017. Estive presente nos eventos festivos da cidade, tais como o Encontro de Chegança da Bahia em todas as edições que ocorrem no mês de agosto dos anos 2013, 2014, 2015, 2016 e 2017; Caretas do Mingau em 2015; ao Circuito do Samba de Roda do Recôncavo da Baiano, em abril de 2015; 4º Intercâmbio dos Samba de Roda Mirim, em novembro de 2015; Encontro de Samba de Roda Mirim, em janeiro de 2016; e o encerramento do Projeto Encontro das Mulheres do Samba de Roda, em novembro de 2017.

A observação participante foi fundamental para a percepção dos modos de vida e comportamento da população de Saubara, criando um elo de confiança e amizade, fatores básicos para a descrição dos processos. Deu-se durante onze dias não consecutivos, distribuídos

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entre os meses de janeiro e julho de 2015; agosto de 2016; janeiro e fevereiro de 2017. Quarenta e três atores sociais responderam ao questionário, entrevistas e conversas totalizaram 12 horas de falas gravadas. As conversas ocorreram durante as festividades, caminhadas e mariscagem.

Durante a pesquisa, a câmera fotográfica foi uma fiel companheira, os registros fotográficos permitiram um olhar descritivo. Construí um banco de imagens e vídeos como forma de registro de tudo o que foi percebido, congelando momentos, relações e comportamentos que não podem ser recriados verbalmente, pois em algumas ocasiões as imagens dizem mais que as palavras. Para Mauad (1996, p. 3), a fotografia é “[...] uma elaboração do vivido, o resultado de um ato de investimento de sentido, ou ainda uma leitura do real [...]”, que incitou a minha imaginação, a partir da materialidade da imagem.

Conversas informais deixaram os atores sociais envolvidos na pesquisa, à vontade para que revelassem, o quanto possível, as suas vivências, de forma livre e espontânea. As conversas foram importantes para identificar as palavras não ditas, a forma de falar, a forma do preparo dos alimentos, fruto da maré, as dores no corpo, as dificuldades enfrentadas no cotidiano da maré e as experiências de vida, proporcionando a obtenção de informações objetivas e subjetivas.

Elaborei um questionário com questões abertas e fechadas. Questões fechadas para a investigação das características pessoais dos atores sociais (nome, sexo, idade, estado civil, escolaridade) e questões abertas com os seguintes objetivos: Questão.1: Caracterizar a experiência dos atores sociais em relação à memória e à frequência junto aos manguezais; Questão. 2: Investigar os significados objetivo e subjetivo dos manguezais; Questão.3: Investigar os valores afetivos (Topofilia); Questão.4: Investigar os elementos de identificação. Foram selecionados três grupos de atores sociais: Grupo 1 – Atores sociais envolvidos nas manifestações culturais; Grupo 2 – Atores sociais que utilizam os recursos dos manguezais para subsistência e Grupo 3 – Atores sociais que participam simultaneamente das manifestações culturais e utilizam os recursos dos manguezais.

O questionário foi aplicado a quarenta e três atores sociais, compreendendo os três grupos pesquisados. Responderam ao questionário: 14% o Grupo.1 – atores sociais que apenas participam das manifestações culturais; 33 % o Grupo.2 – atores sociais que utilizam os recursos da maré para sobrevivência; e 53% o Grupo.3 – atores sociais que participam simultaneamente das duas atividades relacionadas anteriormente.

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Figura 1 – Grupos de atores sociais alvo da pesquisa

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

A pesquisa ocorreu baseada nos princípios éticos, de modo que somente se processou após o consentimento livre e esclarecido dos indivíduos participantes. Os entrevistados assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE, aceitando participar da pesquisa e sinalizando sobre o interesse em ter sua identidade revelada ou não, bem como a exposição de sua imagem no presente trabalho. No caso de menores de idade, os pais ou responsáveis foram procurados e solicitados à assinatura do Termo de Autorização de Uso de Imagem - Menor de Idade – TAUI/MI. Em algumas situações, aos entrevistados que não assinavam, solicitei a autorização através de gravação de áudio.

Para a construção dos capítulos desta dissertação, busquei a aproximação das ciências naturais, evocando os órgãos dos sentidos – visão, audição, tato, paladar e olfato – fundamentais para a percepção do meio em que vivemos: “O visível é o que se apreende com os olhos, e o sensível é o que se apreende pelos sentidos” (MERLEAU-PONTY, 2011, p.28).

No Primeiro Capítulo, ponto de partida para a discussão sobre: Natureza e Cultura: a forma como se vê, voltei o olhar para as relações entre os seres humanos e a natureza, traduzindo, a partir de fragmentos de topofilia (TUAN, 2012), o elo afetivo entre atores sociais e o meio ambiente, na medida em que este se apresenta em manifestações culturais da cidade de Saubara.

A partir do trabalho de campo, se deu a composição do Segundo Capítulo: Caminhando entre memórias e manguezais, no qual descrevi as observações participantes durante o trabalho de mulheres que labutam na maré, as marisqueiras. A minha escolha por essa atividade laboral, – exercida exclusivamente por mulheres –, em detrimento de tantas outras atividades de pesca realizadas na região, se deu em função dessa atividade estar intimamente vinculada ao convívio

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cotidiano com o manguezal. Falarei de mulheres que têm o seu tempo demarcado pelo movimento das águas, na busca pelo alimento do corpo e da alma, vivências que produzem marcas nas mãos e no corpo. Elas estão entre o seco e o molhado, em um universo feminino que estabelece relações simbólicas com as divindades do mangue e do mar, revelando um sentimento maternal e protetor dos manguezais.

No Terceiro Capítulo: À flor da Pele: manifestações culturais de Saubara, descrevo as manifestações culturais que, em terra firme, encanta pelos saberes, sabores, odores, cores, danças, cantos, rendas e rezas. Momento que parafraseando Sato e Carvalho (2005), tomo por “ator ecológico” os envolvidos na pesquisa, que com seus modos de vida decorrentes de suas vivências, podem agir como elementos sensibilizadores, criando dispositivos de preservação do ecossistema, a partir de um processo de identificação e topofilia.

Enfim, convido o leitor a ver os Manguezais a partir das minhas inquietações e percurso acadêmico, como um porto seguro, fonte de riqueza material e simbólica, capaz de sensibilizar atores sociais, tornando possível mudanças de comportamentos e de vida, preservando o ecossistema.

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CAPÍTULO I

Natureza e cultura: a forma como se vê

Por muito tempo, a relação com a natureza foi permeada de mitos, rituais e magias. Para cada fenômeno natural havia um deus, uma entidade responsável: o deus do mar, da terra, dos ventos, das chuvas, dos rios, das plantações, dos raios e dos trovões. Os rituais mágicos povoavam o mundo, mantidos por narrativas associadas à vida cotidiana, sempre com elementos e fenômenos da natureza, numa fusão de atributos humanos e não humanos, em uma interligação orgânica entre o mundo natural, sobrenatural e social, partes indispensáveis da cultura e identidade de vários povos.

A natureza não é um objeto eterno e imutável, e sim, o resultado da ação coletiva de transformação do mundo pelos seres humanos. Para Carvalho (2013), a natureza tem história própria, mas, a que conhecemos é a contada pelos homens, sob os diversos olhares das múltiplas sociedades, ao longo dos tempos da humanidade. Os significados da natureza são resultados das relações dos seres com o mundo, segundo os seus valores e modos de vida. Portanto, o conceito de natureza é uma construção cultural que varia no tempo e no espaço, em diferentes acepções:

Sem o homem, isto é, antes da história, a Natureza era una. Continua a sê-lo, em si mesma, apesar das partições que o uso do Planeta pelos homens lhe infligiu. Agora, porém, há uma enorme mudança. Una, mas socialmente fragmentada, durante tantos séculos, a Natureza é agora unificada pela história, em benefício de firmas, estados e classes hegemônicas. Mas não é mais a Natureza amiga, e o Homem também não é mais seu amigo (SANTOS, 1992, p.98).

Para Boaventura Santos (2011), a clássica separação entre natureza e cultura já não se aplica mais, dadas as dificuldades em identificar aspectos na natureza que não possuam as “mãos” do ser humano, ou seja, não existiria na natureza bens naturais, já que tudo que descrevemos como natural sofreu ação humana. Por outro lado, Eagleton (2011, p.137) afirmou que o homem também não existe fora da cultura, e “Se a cultura realmente se estende a tudo, então parece desempenhar o mesmo papel que a natureza e parece-nos tão natural quanto ela”. Nesse sentido, a indissociabilidade entre natureza e cultura é que leva à transformação daquela, leva à produção de novas culturas do mesmo modo que nossa concepção leva à nova concepção de natureza. Somos parte dela e interagimos com ela.

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Natureza e cultura não habitam e nem constroem mundos distintos, mas um único e mesmo mundo. Tal compreensão me leva a refletir sobre a perspectiva do lugar de onde se vê, como lembra Tuan (2012, p. 28): “[...] uma pessoa que simplesmente vê é um expectador, um observador, alguém que não está envolvido com a cena. O mundo percebido pelos olhos é mais abstrato que o conhecido por nós por meio dos outros sentidos”.

Sabe-se que a humanidade, há muito tempo, recorre a elementos da natureza com a intenção de sobrevivência, bem como na cura de enfermidades, em rituais religiosos e culturais. É graças a esses saberes transmitidos por gerações sucessivas no âmbito familiar e comunitário que essas manifestações permaneceram vivas, no sentido material – no uso de plantas, semente, resinas e animais – e no sentido imaterial – os cânticos e rezas.

A cultura como é definida pelo professor Adalberto Santos:

[...] é antes de tudo o conjunto de valores e de conhecimentos constituídos em virtude dos quais os seres humanos interpretam e organizam sua existência. Cultura é o nome que se dá ao depósito de conhecimento e de valores que permeiam a totalidade dos fenômenos humanos e configuram o espaço constituinte do sistema de vida (SANTOS, 2011, p.45).

O ser humano muitas vezes, em uma visão antropocêntrica de ecologia rasa, como é definido por Capra (2003), situa-se acima ou fora da natureza, atribuindo-a apenas um valor instrumental, ou seja, de “uso”, e considerando-a passiva e sempre apta a fornecer suas benesses de forma inesgotável. Tal visão tem balizado uma forma de interferência agressiva na dinâmica originária da natureza, provocando sérios desequilíbrios ao ambiente.

Resgatando a passagem de Laraia (2013, p.26), quando da contribuição do antropólogo americano Marvin Harris, que expressou: “Nenhuma ordem social é baseada em verdades inatas, uma mudança no ambiente resulta numa mudança no comportamento”. Posso afirmar que o oposto é verdadeiro. Nesse sentido, vale ressaltar a importância em acreditar no potencial humano de mudança cultural, embora concorde com Terry Eagleton (2011, p.136) que entende, no que diz respeito à rigidez de alguns preconceitos culturais e a maleabilidade da natureza que “Transformar toda uma cultura seria muito mais trabalhoso do que represar um rio ou arrasar uma montanha”.

A vida é construída num sistema de interação e transformações. Nessa linha de raciocínio, pode-se afirmar que não haveria “[...] ecossistemas imutáveis, e a espécie humana, enquanto existir sobre a Terra, atuará neles. O que pode e deve mudar é o padrão societário e,

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consequentemente, a visão de mundo que se tem e o tipo de relações sociais e de produção aí inseridas” (LOUREIRO, 2014, p.27).

As florestas foram e são habitadas por grupos humanos que se desenvolveram em contato direto com a natureza, caracterizando modos de vida que foram fundamentais para manutenção da biodiversidade e das culturas. Entre essas florestas estão os manguezais, unidade faunística e florística de grande relevância, representada por um grupo típico de animais e plantas singulares.

Diegues (1999, p.3) sinaliza a importância da inter-relação entre cultura e natureza, na medida que entende que “[...] biodiversidade não é simplesmente um produto da natureza, mas em muitos casos é produto da ação das sociedades e culturas humanas”. O autor ressalta ainda que, do ponto de vista científico, a ecologia social propõe que a biodiversidade não seja tratada como um “[...] conceito simplesmente biológico, relativo à diversidade genética de indivíduos, de espécies, e de ecossistemas, mas é também o resultado de práticas, muitas vezes milenares, das comunidades tradicionais que domesticam espécies [...]” (Ibid., p.9). Tal perspectiva me leva a afirmar que a biodiversidade pertence ao domínio do natural e do cultural. Dessa forma, a importância do conhecimento das populações locais para assegurar a biodiversidade, deve ser destacada como um processo de circulação de saberes ligados aos modos de vida. Mais do que sabedoria, os saberes tradicionais se caracterizam por serem saberes práticos, de um saber-fazer que, geralmente, se configura como um campo de práticas culturais.

1.1 Circulação de saberes, rede, memória e identidade

No que se refere à conservação da natureza, Diegues (2008, p.71) reconhece que nesse âmbito ocorre o confronto de dois saberes: o tradicional e o científico-moderno. No primeiro, “[...] está o saber acumulado das populações tradicionais, referente aos ciclos naturais, à reprodução e migração da fauna, à influência da lua nas atividades de corte de madeira, da pesca [...] tendo em vista a conservação das espécies”. No segundo, “[...] está o conhecimento científico, oriundo das ciências naturais que não apenas desconhece, mas despreza o conhecimento tradicionalmente acumulado”.

Na perspectiva de conservação, recuperação e gerenciamento de mangues e manguezais, diferentemente de Diegues (2008), Marta Vannucci (2002) já sinalizava a contribuição do

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progresso do saber científico quando afirmou que tal progresso levou ao reconhecimento dos saberes tradicionais e que esses saberes estão sendo reconhecidos e testados cientificamente, reforçando a certeza da necessidade de “[...] incluir as populações litorâneas que vivem em função dos manguezais [...] como norma obrigatória para o bom funcionamento dos programas de conservação, recuperação e gerenciamento de mangues e manguezais” (VANNUCCI, 2002, p.16).

O que é reforçado por Barbero (2008), quando nos convida a pensar uma saída para o mundo do risco, próprio da sociedade atual. Para ele, a saída não se encontra nos conhecimentos especializados, da biologia ambiental à genética, mas “A única saída encontra-se na articulação de conhecimentos especializados com aqueles outros que provêm da experiência social e das memórias coletivas” (BARBERO, 2008, p.239).

De acordo com a Biologia da cognição, de Humberto Maturana e Francisco Varela (2001), o processo de conhecimento é produzido pelos seres humanos de forma integrada com o meio e com outros seres vivos, em forma dinâmica e circular entre autoprodução e dependência de recursos externos, essa produção forma nichos emocionais e racionais, que alimentam vínculos de pertencimentos e identificações, resultando em situações de ensino e aprendizagem.

Conforme afirma Deleuze (1998), pensar os mecanismos pelos quais aprendemos é entender a cultura. O aprendizado é, para ele, um movimento percorrido por cada um para resolver um problema. É justamente a existência de um problema a ser resolvido que possibilita aos indivíduos o trânsito entre não saber e saber. E é o desenvolvimento de argumentos que nos arranca do não saber, num exercício discursivo que possibilita a abertura a novos modos de pensar. Para aqueles que compreendem o aprendizado tal como formulado pelo filósofo francês, o ato de ensinar não pode ser reduzido à simples transmissão de informações, mas, consoante com os princípios aqui formulados, ensinar se converte no exercício de encaminhar para a investigação do saber pensar.

Um importante documento gerado em 1975, a Carta de Belgrado, chama atenção para a necessidade de um novo tipo de educação. E, no que diz respeito às diretrizes da Educação Ambiental, alerta para a necessidade de se considerar o ambiente em sua totalidade, incluindo aspectos naturais e criados pelo homem: ecológico, econômico, tecnológico, social, legislativo, cultural e estético. A proposta que se depreende desse documento implica uma Educação Ambiental pautada na valorização dos conhecimentos das populações, na linguagem, na

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diversidade cultural, nos valores e nos diálogos intergeracionais, visando a construção de um conhecimento crítico, contextualizado e participativo, e não apenas pautada em conhecimentos científicos, já que as questões ambientais estão intimamente ligadas às questões sociais e culturais.

Castro (2009) avança ao propor que a Educação Ambiental se constitua numa “[...] área do conhecimento eminentemente interdisciplinar [...], que não pode ser concebida apenas como um conteúdo escolar, pois está implicada numa tomada de consciência de uma complexa rede de fatores políticos, econômicos, culturais e científicos” (CASTRO, 2009, p.173, grifo do autor). Por sua vez, Loureiro (2012), em discussão relativa à cidadania e consciência ecológica, alertou que, em termos do processo educativo formal, o grau de escolaridade não reflete a consciência ambiental:

Apesar de possuirmos o maior índice de escolaridade e a maior concentração de profissionais com formação superior do país, na região Sudeste, encontramos frequentemente casos de irresponsabilidade ambiental e de descaso com o espaço público, lixo acumulado em ruas, depredação dos bens culturais arquitetônicos, dentre outros (LOUREIRO, 2014, p. 34).

A noção de sujeito ecológico, de Sato e Carvalho (2005, p.54), nos leva a discorrer sobre “um tipo ideal, forjado no jogo das interpretações onde se produzem os sentidos do ambiental levando em conta os universos da tradição (tempo de longa duração) e das experiências vividas no presente”. Essa noção se constituiu em torno do entrecruzamento de questões ambientais no Brasil com as trajetórias biográficas e profissionais de educadores ambientais. No entanto, não podemos esquecer que a educação como uma prática formativa importante faz da vida escolar um espaço social significativo:

Embora a formação do sujeito ecológico tenha lugar em todas as experiências que nos formam durante a vida, a escola toma parte entre essas experiências como um elo muito importante deste ambiente-mundo em que vivemos (CARVALHO, 2013, p. 3).

Parafraseando Sato e Carvalho (2005), tomo por ator ecológico os envolvidos na pesquisa que, com seus modos de vida decorrentes de suas vivências, apresentam traços do sujeito ecológico, agindo com comportamentos sensibilizadores, criando dispositivos de preservação do ecossistema, a partir de um processo de identificação com o ambiente, o lugar de vida.

Para o professor Milton Santos (2006, pp.176-182), as definições de rede se multiplicam, e enquadram-se em duas grandes matrizes: a que considera o aspecto material e uma outra que

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leva em conta o dado social. Ele entende que “a rede é também social e política, pelas pessoas, mensagens, valores que a frequentam”. Ressalta ainda que através das redes, podemos reconhecer três tipos ou níveis de solidariedade: nível mundial, nível dos territórios dos Estados e o nível local. As redes são um veículo de um movimento dialético que, de uma parte, ao mundo opõe o território e o lugar; e, de outra parte, confronta o lugar ao território tomado como um todo.

Assim, território é o lugar em que desembocam todas as ações, todas as paixões, todos os poderes, todas as forças, todas as fraquezas, isto é, onde a história do homem plenamente se realiza a partir das manifestações da sua existência. Para Milton Santos (1999), o território não é apenas um conjunto de sistemas naturais e de coisas superpostas, “O território usado é o chão mais a identidade. A identidade é o sentimento de pertencer àquilo que nos pertence, e o território é o fundamento do trabalho, o lugar da residência, das trocas materiais e espirituais e do exercício da vida” (SANTOS, 1999, p.7).

No exercício da vida, os seres humanos, ao tentarem reviver o passado, recordando vestígios que insistem em se atualizarem, traduzem a vida e os sentimentos, ativados por lembranças, por histórias de lugares ou territórios e tempos. E assim, tais exercícios se convertem em estratégias identitárias, como fios que tecem uma rede de relações sociais.

Para Candau (2014), memória e identidade se entrecruzam e se reforçam mutuamente. A memória é necessariamente anterior em relação à identidade. “Não há busca identitária sem memória e, inversamente, a busca memorial é sempre acompanhada de um sentimento de identidade, pelo menos individualmente” (CANDAU, 2014, p.19). Ele entende que a faculdade da memória é que dá conta de certa realidade vivida por toda pessoa consciente, e afirma que em “[...] nossa vida cotidiana, mobilizamos regularmente múltiplas lembranças, recentes ou antigas” (Ibid., p.23).

As lembranças conduzem às memórias, como o ritual de iniciação vai do grupo que dita a lei ao indivíduo iniciado, na reatualização das memórias em um tecer constante, através de gerações sucessivas. “Sem lembranças o sujeito é aniquilado” (CANDAU, 2014, p.17). Saberes e práticas funcionam como marcas deixadas nos corpos dos indivíduos e são responsáveis pela manutenção das memórias, “[...] o corpo é uma memória […] as marcas que deixamos sobre o vosso corpo vos servirão sempre como uma lembrança [...]” (CLASTRES, 2013, p.198).

Dessa forma, as memórias transmitidas por gerações, guardadas nos corpos e modos de vida, podem ser utilizadas como estratégias de conservação de ecossistemas, pois, através de

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um sistema de representações, agem como fios de uma rede. O que chamamos fios é entendido como as diferentes escolhas dos atores sociais “[...] representações, mito-histórias, crenças, ritos, saberes, heranças etc., ou seja, no interior de um registro memorial” (CANDAU, 2014, p. 18).

Diegues (2008) já havia apontado a necessidade de se estudar melhor as representações dos mitos de populações tradicionais, vendo-os como parte integrante de uma política de preservação. Pois, segundo ele “Com isso, se poderá partir da visão dessas populações sobre a conservação e não das percepções das elites urbanas, que têm visões próprias e diferentes do que significa a ‘mata natural’, ‘o mar natural’” (DIEGUES, 2008, p.88).

Crenças e práticas culturais ajudaram populações humanas a se adaptarem a seus ambientes usando elementos de sua cultura para manterem seus ecossistemas. Muitos grupos nativos fizeram um trabalho significativo na gestão de seus recursos e preservação de seus ecossistemas. Esses grupos tinham formas tradicionais de categorizar recursos, regulando seu uso e preservando o meio ambiente (KOTTAK, 2013, p.319).

Entendo que Saubara é um bom exemplo para a afirmação de Kottak (2013), no sentido em que as memórias transmitidas por gerações no município reforçam o sentimento de pertença e de construção da identidade presentes nos modos de vida, nas relações sociais e familiares, nos rituais e símbolos expressos nas diversas manifestações culturais, marcadas pela participação popular, recuperando o passado, não deixando cair no esquecimento uma cadeia simbólica construída para amenizar as dificuldades enfrentadas no mundo do trabalho, ajudando a população a se adaptar e preservar o ambiente natural, usando elementos culturais e revelando assim a indissociabilidade entre natureza e cultura.

1.2 Fragmentos de topofilia em Saubara

Topofilia, conceito construído por um geógrafo sino-americano e publicado pela primeira vez em 1974, é fundamental para o entendimento das relações construídas entre os atores sociais aqui estudados e os espaços ou lugares de vida. A topofilia se constitui como um estudo da percepção, é a chave para o entendimento do “amor ao lugar”, um norteador para pensar o ambiente na forma como é percebido e vivido pelas pessoas, respeitando suas tradições e valores culturais.

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As marcas de topofilia, ou seja, os sinais que indicam o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente fisico, se expressam a partir da estética, apreciação da beleza do lugar, da sensação tátil do lugar, sentimento de valor do local de vida e de trabalho. O domínio mental de interação dos atores sociais e o ambiente ocorre por meio de mecanismos perceptivos, traços comuns em percepção: os sentidos, visão, audição, olfato, paladar e tato. Sensações, sentimentos, lembranças, pensamentos, memórias, partes de um todo, experiências de um lugar impregnado de subjetividades, trânsito entre o real e o mítico, um universo de gestos, sons, movimentos, cores, cheiros e texturas, fragmentos de topofilia perceptíveis nos manguezais da cidade de Saubara.

A percepção é baseada nos conhecimentos e posturas individuais, fazendo com que cada indivíduo possua entendimentos diferenciados para o mesmo ambiente. Assim, os manguezais para alguns é concebido como um lugar feio, malcheiroso, nojento, insalubre; para outros, que convivem e retiram sua sobrevivência do local, a visão é de um lugar provedor de vida, tido como mãe que acolhe e cuida, alimentando seus filhos. Dessa forma, podemos dizer que os lugares são resultados da variedade de modos de vida construídos pelas relações entre indivíduos e o meio, o que implica mais do que morar ou se organizar em um espaço, adapta-se aos ritmos da natureza. Deste modo, “o adapta-ser humano é excepcionalmente adaptável. Beleza e feiura – cada uma tende a desaparecer no subconsciente à medida que ele aprende a viver nesse mundo” (TUAN, 2012, p.99).

O município de Saubara, localizado no Recôncavo Baiano, é constituído por mais dois distritos, Cabuçu e Bom Jesus dos Pobres, distante 98 km de Salvador por rodovia e menos de 20 km via náutica. Situado no interior da Baía de Todos os Santos, próximo à foz do Rio Paraguaçu, o povoado de Saubara nasceu junto ao mar, por volta de 1550. Segundo Barros (2006), o nome Saubara é de origem indígena, vindo do tupi-guarani, da palavra saúva, que significa “comedor de formiga”. Primeiro distrito do município de Santo Amaro da Purificação, a cidade teve sua constituição a partir da construção da Igreja dedicada a São Domingos de Gusmão da Saubara, padroeiro da cidade. Em 1989, Saubara teve sua emancipação política, e hoje ocupa área de 158 km2, limitando-se com os municípios de Santo Amaro, Cachoeira e Maragogipe.

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Figura 2 – Mapa de localização da cidade de Saubara-Bahia

Fonte: https://www.google.com.br/maps.

A cidade possui intensa atividade de pesca artesanal e mariscagem. Apresenta uma diversidade de manifestações culturais, realizadas por moradores da cidade: agricultores, pescadores e marisqueiras, seus filhos, netos e bisnetos. Podemos inferir e enumerar diversas relações que podem ser construídas entre a população e os manguezais da cidade de Saubara: a marisqueira vê o mangue como uma mãe que alimenta seus filhos; a população idosa vê o ambiente de onde se extrai lembranças de velhos mitos e causos locais; o empresário, dono de Eco Resort, talvez veja como uma zona de estorvo para seus investimentos ou zona de futuro loteamento; as crianças, como um ambiente lúdico; e os religiosos, como lugar sagrado.

Como afirma Tuan (2013), o espaço somente se transforma em lugar à medida que o conhecemos melhor e atribuímos-lhe valores e significados, dotando-o de características decorrentes da vivência cultural de forma direta e íntima, e entende que a “[...] cidade natal é um lugar íntimo” (TUAN, 2013, p.177). Para este autor, lugar é segurança, é também liberdade o que o indivíduo sente quando se apega ao lugar. O lugar se singulariza a partir de visões

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subjetivas vinculadas a percepções emotivas, a exemplo do sentimento topofílico de experiências felizes.

No entendimento de Tuan (2013), nas relações de espaço e lugar, o significado de espaço frequentemente se funde com o de lugar. Espaço é mais abstrato do que lugar. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor.

A relação de afetividade com os manguezais se apresenta nas narrativas dos moradores: “o mangue é tudo”. Reproduzem símbolos na cidade, expressos nos gradis de casas, nas letras dos sambas de roda, em instalações à porta de residências, nas rendas, na construção da Igreja do padroeiro da cidade de frente para maré. Afeição, familiaridade e intimidade com o mangue, dão a sensação de pertencimento ao lugar. E como afirma Tuan (2012), o lugar ou ambiente são produtores de imagem para a topofilia, pois esta é mais que um sentimento difuso. O ambiente fornece o estímulo sensorial que, ao agir como imagem percebida, dá forma às nossas alegrias.

Figura 3 – O peixe comercializado na cidade é representado no gradil da casa ao fundo.

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Ver o ecossistema manguezal, a partir de fragmentos de topofilia no município de Saubara, é tentar compreender se existe elo afetivo entre atores sociais e seus espaços de vida. Ao mesmo tempo, tal empreendimento nos possibilita refletir sobre a importância da manutenção das memórias e como estas impactam na preservação dos manguezais ali

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existentes. Assim, os fragmentos de topofilia observados na cidade e nas manifestações culturais da cidade, nos dão pistas de traços de atores ecológicos que, a partir do seu cotidiano, constroem laços afetivos com os manguezais, resultando na preservação do ecossistema.

Uma demonstração de laço afetivo entre o homem e a natureza, nesse caso a maré, revela-se na construção da Igreja do padroeiro da cidade, São Domingos de Gusmão da Saubara, carinhosamente chamado por pescadores e moradores de São Dominguinhos, o que demonstra afeição ao santo. Entre as muitas lendas que envolvem o padroeiro da cidade, segundo a escritora Barros (2006), a mais famosa conta que o santo queria que sua Igreja fosse construída na parte mais alta da cidade, e de frente para a maré1, de onde se vê grande parte da Baía de Todos os Santos e de costas para os milagres2, para que assim pudesse proteger os pescadores que estavam em alto mar e a população que vivia exclusivamente dos frutos do mar e da maré.

Figura 4 – Vista da Igreja de São Domingos de Gusmão da Saubara

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

O santo padroeiro da cidade tem a data 04 de agosto reservada para a sua comemoração. Durante esse mês, Saubara é marcada por festejo em homenagem ao seu padroeiro. A

1 A letra do Samba de Roda do vovô Pedro “Bom Jesus boa passagem, Cabuçu faz o que quer, São Domingoas

de Saubra está de frente pra maré, está de frente pra maré.”

2 Barros (2006): “Milagres”, gruta dos Milagres de São Domingos de Gusmão, local considerado encantado que,

segundo os mais velhos, possui uma luz de cor azul, que aparece sempre à noite, circulando ao redor do local e depois volta para dentro do mesmo. Existia no interior da gruta água sagrada.

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religiosidade parece reforçar o significado de pertencimento ao lugar. No trecho do hino de São Domingos de Gusmão da Saubara, se evoca o santo como o advogado dos pescadores: “Ó São Domingos de Deus amado sede dos Pescadores sublime advogado”.

Segundo Pessoa (2013) momentos de festividades podem despertar nos atores sociais atitudes de tolerância, respeito, reconhecimento e valorização das suas tradições em um universo simbólico, intensificando as relações entre gerações com as trocas de saberes, pois quem vai à festa tem a possibilidade de aprender que:

O que se sabe ainda não é tudo para se continuar a viver e a reproduzir as condições de sobrevivência. [...] mas na festa também se pode aprender que o novo, por mais irremediável que seja, precisa ser integrado à herança que recebemos, [...] A festa popular é o grande e fecundo momento a nos ensinar que a arte de viver e de compreender a vida que nos envolve está na perfeita integração entre o velho e o novo. Sem o novo, paramos no tempo. Mas sem o velho nos apresentamos ao presente e ao futuro de mãos vazias (PESSOA, 2013, p.210).

Diegues (2008, p.81) afirmou que “[...] a maioria das áreas de florestas tropicais e outros ecossistemas ainda não destruídos pela invasão capitalista é, em grande parte, habitada por tipos de sociedades de extrativistas, ribeirinhos, grupos e povos indígenas [...]” que mantêm uma relação de equilíbrio com a natureza. Diante da afirmação de Antonio Carlos Diegues, podemos destacar que as relações construídas entre o homem e a natureza no município de Saubara revelam traços do ator ecológico:

Um objeto ou lugar atinge realidade concreta quando nossa experiência com ele é total, isto é, mediante todos os sentidos, como também com a mente ativa e reflexiva. Quando residimos por muito tempo em determinado lugar, podemos conhecê-lo intimamente (TUAN, 2013, p. 29).

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Figura 5 – Dona Marinalva no fim da tarde catando ostras (Crassostrea spp.) para comercialização

Fonte: Inadja Vieira, 2015.

As relações dos moradores com o seu “lugar” de vida, de trabalho, de lazer, de convívio social, se refletem na preservação ambiental do ecossistema que lhes confere sobrevivência, os manguezais. Experiências compartilhadas conectam pessoas que crescem vivenciando uma mesma cultura, num mesmo “[...] processo acumulativo, resultante de toda a experiência histórica das gerações anteriores. Este processo limita ou estimula a ação criativa do indivíduo” (LARAIA, 2013, p.49).

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Figura 6 – Instalação em concreto, com formas de animais encontrados nos mares e marés, destaque para o siri (Callinectes spp.), fonte de alimento e subsistência para muitas famílias na cidade de Saubara.

Fonte: Inadja Vieira, 2015.

Segundo Tuan (2013), com o tempo nos familiarizamos com o ambiente e este se transforma em lugar, o que quer dizer que cada vez mais nos consideramos conhecidos, a afeição é adquirida, podendo desenvolver uma paixão. Assim, “a resposta ao meio ambiente pode ser basicamente estética: em seguida, pode variar do efêmero prazer que se tem de uma vista, até a sensação de beleza, igualmente fugaz, mas muito intensa, que é subitamente revelada” (TUAN, 2012, p.136).

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Figura 7 – Crianças e adultos no fim de tarde com a maré cheia, em momentos de lazer e descontração no banho no Porto de Saubara.

Fonte: Inadja Vieira, 2015.

Reflexões acerca das relações estabelecidas entre cultura e natureza, em comunidades que desenvolvam atividades tradicionais dotadas de significativos bens culturais e naturais, podem fornecer elementos para a compreensão de comportamentos em grupos tradicionais e urbanos, e as estratégias de preservação desses bens. Na medida em que o “[...] meio ambiente natural e a visão do mundo estão estreitamente ligadas: a visão do mundo, se não é derivada de uma cultura estranha, necessariamente é construída dos elementos conspícuos do ambiente social e físico de um povo” (TUAN, 2012, p.116).

1.3 O manguezal

“A relação do homem com o manguezal é muito antiga, a qual remonta a algumas civilizações como a da Grécia Antiga e a Pré-Colombiana no Equador” (PEREIRA FILHO e ALVES, 1999, p. 16). Para Vannucci (2002), o homem não teria sido capaz de habitar os manguezais se não tivesse aprendido como utilizá-lo e preservá-lo, tanto em sua totalidade quanto em seus componentes.

O manguezal é um ecossistema costeiro associado ao Bioma Mata Atlântica, reconhecido como Reserva da Biosfera pela UNESCO. Local de transição entre os ambientes terrestre e

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marinho, típico de regiões tropicais e subtropicais, sujeito ao regime das marés, apresenta extrema importância ecológica, simbólica e é vital para a sustentabilidade dos recursos pesqueiros e para as comunidades que vivem em seu entorno. É no manguezal que muitas espécies de peixes e crustáceos iniciam seus ciclos de vida, conhecido como berçário do mar, criadouro de diversas espécies de animais e vegetais, além de possuir alta capacidade de reter nutrientes e poluentes, e ser área de recreação e lazer.

Por ocasião do primeiro Dia Internacional para a Conservação do Ecossistema de Mangue, 26 de julho de 2016, a diretora geral da UNESCO, Irina Bakova, proferiu a seguinte mensagem:

Os mangues são ecossistemas raros, prolíficos e espetaculares, nos limites entre a terra e o mar. Eles garantem a segurança alimentar para as comunidades locais. Eles oferecem biomassa, produtos silvestres e sustentam as atividades pesqueiras. Eles contribuem para a proteção dos litorais. Eles ajudam a reduzir os efeitos da mudança climática e dos eventos climáticos extremos (UNESCO, 20163).

As florestas de manguezal, segundo Schaeffer-Novelli (1995), estão distribuídas ao longo do litoral brasileiro, têm uma extensão de 7.408 km, diversificando-se entre a desembocadura do Rio Oiapoque (04o52’45”N) e o Arroio Chuí (33o45’10”S) com uma gama de ecossistemas, que varia entre campos de dunas, ilhas, recifes, costões rochosos, baías, estuários, brejos, falésias e baixios.

No Rio de Janeiro, com a implantação do Canal do Mangue, nos anos 1920, o ecossistema foi erroneamente relacionado à zona de prostituição de rua que ocorreu às margens do Canal. O artista Di Cavalcanti, em 1929, pintou o quadro Mangue, uma de suas principais obras, retratando a prostituição no “mangue” da Cidade do Rio de Janeiro; o artista Lasar Segall, em 1944, lançou o álbum Mangue, com reproduções de desenhos sobre a prostituição, com o olhar voltado para questões sociais como a solidão e a miséria; o escritor Gilberto Freyre (2013) atribuiu à palavra “mangue” a área de prostituição do Rio de Janeiro, conforme relata em sua obra, “[...] o Mangue carioca: escravas de dez, doze, quinze anos mostrando-se às janelas, seminuas; escravas a quem seus senhores e suas senhoras obrigavam a vender seus favores [...]” (FREYRE, 2013, p. 538).

3 UNESCO. Dia Internacional para a Conservação do Ecossistema Mangue. Disponível em:

<http://www.unesco.org/new/pt/brasilia/about-this-office/single

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Durante os anos 1940, devido aos surtos de febre amarela e malária, os manguezais foram associados a estas enfermidades. Embora as doenças já tenham sido controladas, atitudes negativas e depreciativas em relação ao ecossistema perduram, e a palavra “mangue”, infelizmente, teve seu sentido associado à desordem e sujeira.

Os impactos negativos sobre os manguezais, segundo Lacerda (2002), são intensos e diversificados: o desmatamento para implantação industrial, urbana e turística; a contaminação por substâncias químicas; disposição de resíduos urbanos sólidos. Por diferentes razões e propósitos, os manguezais passaram por uma enorme destruição, causando a degradação e desertificação onde antes havia ricas florestas tropicais, cheias de fauna e de vida. “Durante a década de 1970, com o acelerado desenvolvimento urbano do litoral brasileiro, diversas áreas de manguezal foram apropriadas para a construção de marinas e projetos turístico-imobiliários, [...] principal ameaça aos manguezais em grande parte do litoral brasileiro” (LACERDA, 2002, p. 204).

Quanto à distribuição e formação vegetal dos manguezais no Estado da Bahia, ocorrem em todo o litoral baiano, segundo Lacerda (2002, p.197), “[...] no interior de baías protegidas podem ocorrer extensas florestas”. A Baía de Todos os Santos (BTS), segundo Hadlich e Ucha (2008), possui um perímetro de aproximadamente 200 km, sendo vastas as áreas das margens da BTS ocupadas por manguezais, totalizando 177,6 km², distribuídos na BTS, à exceção da área urbana de Salvador e das áreas litorâneas abertas ao mar.

Figura 8 – Área de floresta de mangue estudada nesta pesquisa

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As plantas encontradas neste ecossistema são popularmente conhecidas como mangues. A diversidade de espécies de plantas associadas aos manguezais depende das condições climáticas regionais. “A flora dos manguezais é constituída por um pequeno número de espécies exclusivas desse ecossistema e de espécies associadas [...]. Entre as espécies restritas aos manguezais encontram-se: a Rhizophoraceae Rhizophora mangle L., as Avicenniaceae Avicennia germinans L. e Avicennia schaueriana Stapf. & Leech. e a Combretaceae Laguncularia racemosa R. (Gaertn), árvores mais frequentes nos manguezais do Brasil” (LACERDA, 2002, p.197).

Figura 9 – Folhas e flores da (Laguncularia racemosa), nome popular Mangue branco

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Quanto à fauna, é muito difícil identificar uma exclusiva desse ecossistema. Lacerda (2002), agrupou em quatro grupos funcionais distintos: 1- Espécies diretamente associadas às estruturas aéreas das árvores. Exemplos: Aratu do mangue (Aratus pisionii), o caracol da folha (Littorina angulifera) e a ostra do mangue (Crassostraea rhizophorae), e aves. 2- Espécies que habitam o ambiente terrestre, mas que visitam periodicamente os mangues à procura de alimento. Exemplos: Grupo representado por mamíferos, “cachorro” comedor de caranguejo (Prcyon cancrivoru), por lontras (Lutra enudris e L. platensis). Ainda como visitantes frequentes [...] o jacaré, (Caiman latirostris), e diversas espécies de micos e macacos. 3- Espécies que vivem nos sedimentos de manguezais e/ou nos bancos de lama adjacentes. Este grupo inclui o maio número de espécies. Particularmente de crustáceos e moluscos. Representantes típicos desse grupo são os caranguejos Cardisoma guainhumi, Ucides cordatus, o sururu Mytella guyanensis, os bivalvos Anomalocardia brasiliana e Iphigenia brasilienses e o gastrópode Mellampus cofeus. 4- Espécies marinhas que passam parte do seu ciclo de vida

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nos manguezais. Animais expressivos desse grupo por sua importância econômica são os camarões, Penaeus schmitii e P. rasiliensis, e diversos peixes, em particular tainhas (Mugil spp.) e anchovas (Engraulidae); nesse grupo encontra-se também o peixe-boi marinho, Trichecus manatus (LACERDA, 2002, p. 200).

Figura 10 – Aratu do Mangue

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Figura 11 – Caranguejo-uça

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Podemos listar diversas funções desempenhadas pelas florestas de manguezais: área de abrigo, reprodução para várias espécies, constitui a base da cadeia trófica4 com espécies de importância econômica e/ou ecológica, fonte de matéria orgânica particulada e dissolvida para águas costeiras adjacentes, proteção da linha da costa contra erosão, prevenção de inundações, manutenção da biodiversidade da região costeira, fonte de proteína e produtos diversos associados, fonte de recreação e lazer, associada a seu apelo paisagístico e valor cênico.

4 Cadeia trófica ou cadeia alimentar. Os organismos estabelecem relação de alimentação em um ecossistema. A

Referências

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