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CAPÍTULO III – À flor da pele: manifestações culturais de Saubara

3.2 Onde há, redes há rendas

Mãos de mulheres que da lama da maré retiram o sustento são as mesmas que tecem finos fios de algodão, em linda e habilidosa dança com dedos e bilros no solo das coloridas almofadas de chita. Em breve os fios serão bela renda, rendas que irão pelo mundo ornar altares e noivas. É muito comum em regiões do nordeste brasileiro, em cidades próximas do mar e da maré, ouvir a frase “onde há redes, há rendas”.

Difundida a técnica de bilros na Europa, através de Portugal, teria chegado ao Brasil. Aqui, foi feita tanto por mulheres de famílias ricas quanto por escravas. Pelo litoral brasileiro, a renda de bilros se instalou, adaptou seus materiais aos disponíveis na região e foi incorporada como atividade cotidiana de mulheres ligadas ao mar, sendo elas marisqueiras ou seus maridos pescadores, como é o caso do município de Saubara (LEAHY, 2012, p.130).

A atividade de entrelaçar fios no mundo da pesca é marcada pelo fazer redes. Em Saubara, fazer rede e renda se revela uma herança familiar, tradição local, uma prática centenária na cidade, um saber que se transmite por gerações. Segundo Santos (2011, p. 53), podemos entender a tradição como “[...] aquilo que persiste do passado no presente [...]”, uma vez aceita pelos que as recebem são “[...] reformuladas em função do contexto histórico [...]” e transmitidas por gerações, marcada por um sentido de pertencimento e identificação. Entendo que o processo de identificação, conforme Santos (2011, p. 55), é um processo “[...] em andamento, contextual e flutuante” no qual os atores sociais podem assumir identificações variadas.

Figura 36 – Barco de pesca com as redes do pescador

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Assim como mariscar, o tramar ou fazer renda de bilro em Saubara começava muito cedo. Dona Sinhá, como é carinhosamente chamada, natural de Saubara, nascida em 1924, aprendeu a fazer renda com a mãe, teve dez filhos e tem bem viva em suas lembranças o trabalho na maré com filhos ainda recém-nascidos. Disse: “[...] trabalhei muito, fiz muita renda a vida toda, não tenho nada da renda. Ia pra o bebe-fumo, quando vinha, batia na renda, fazia papelão [molde de renda], com um mês de parida eu ia pra maré, não tinha nada em casa, eu ia pra maré, mamãe ia comigo” (Valdetrudes Mendes da Silva, 05/08/2017).

Lenira Santiago, rendeira, 55 anos, diz que embora tenha nascido em uma família tradicional de rendeiras, sua avó costurou renda até os 86 anos. Ela diz que fazer renda nunca lhe encheu os olhos, não tinha vontade de aprender, só foi aprender mais tarde, aos 22 anos, depois que se casou. Mulher de pescador, sentiu a necessidade de aprender a fazer renda por falta de outro meio para ganhar o próprio dinheiro: “[...] eu aprendi com minha sogra [dona Sinhá], ela fazia muita renda. Queria ter meu dinheiro, fui fazer renda, aí aprendi. É importante manter a tradição”. Saberes tradicionais ligados à vida cotidiana se perpetuam e renovam a partir das relações interpessoais e familiares, em um universo de experiências coletivas.

A participação masculina na renda, em algumas famílias, se dá na produção do instrumento que dá nome a renda, o bilro. Os bilros utilizados para tecer a renda são confeccionados com a semente de buri18 e um pedaço de madeira onde se prende a linha como disse dona Sinhá: “[...] meu marido ia pro mato buscar buri e caibo de madeira para fazer os bilros, eu ia com ele”. O enchimento do bilro também era feito pelo filho de Dona Sinhá, como contou Lenira, relatou que o seu marido era quem colocava a linha nos bilros: “[...] fiz muita renda, metro e metros, também não enchia os bilros, Zé que enchia. Tinha um balaio, ele de noite enchia todos os bilros, eu só ia trocando. Já vivi de renda! Eu e meu marido, tomava fiado na venda e pagava com o dinheiro da renda”.

O molde ou desenho que guiará o movimento dos bilros, é desenhado por algumas rendeiras, nem todas sabem fazer. Rose disse: “eu não sei tirar o papel, quando preciso de algum, peço à Maria, ela faz”. A almofada é feita pelas próprias rendeiras com saco de náilon, cheio de folhas secas de bananeira forrada de chita colorida. Pouco a pouco as linhas vão se transformando em bicos, barras, apliques e outras peças como blusas, vestidos e colchas.

18 Buri de praia, palmeira nativa nas restingas e praias litorâneas desde Sergipe até o Paraná (LORENZI. et al.,

Figura 37 – Almofada, bilros e molde para tramar a renda.

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

A Casa das Rendeiras foi fundada em 1992, como apoio financeiro de uma senhora italiana chamada Antonina Néri, época que em Saubara não faltava trabalho para as rendeiras. Em 1999, a Casa das Rendeiras passou a se chamar Associação dos Artesãos de Saubara, juntando o trabalho das trançadeiras de palha. Nesse período contava com 110 associadas, atualmente, possui 53 artesãs na ativa, 28 são rendeiras e 25 são trançadeiras da palha. A associação além de buscar mercado para os produtos, fornece a linha para as associadas e quando o produto é vendido, retiram-se os custos, uma parte é para os fundos de manutenção da entidade e o restante vai para as artesãs.

Maria do Carmo Amorim, 69 anos, rendeira e coordenadora da Associação, acredita que a queda no número de associadas se dá devido à crise que o país atravessa, como um reflexo na baixa das vendas e, consequentemente, na produção: “[...] não estamos vendendo nada nesses momentos de baixa nas vendas. As mulheres valem-se da maré, toda rendeira aqui é pescadora e marisqueira, o marisco é nossa fonte de renda, primeiro vamos para maré, e à tarde é para cuidar do marisco e fazer a renda e o artesanato. Quando a maré é baixa, saímos para mariscar, quando ela sobe, é hora de tramar”.

Figura 38 – Dona Maria do Carmo, coordenadora da Associação dos Artesãos de Saubara

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Quanto ao retorno financeiro, Maria de Carmo disse que a vantagem do marisco sobre o artesanato é que o retorno é imediato: “[...] catou, limpou, vendeu o marisco e o dinheiro tá na mão” (Maria do Carmo, 14/11/2016).

Figura 39 – Apliques tecidos em renda de bilros

Maria do Carmo explica que, embora a produção da renda seja contínua, muitas vezes demora a ser vendida e possui um custo de produção alto, devido o preço das linhas utilizadas. Em Saubara, as rendeiras utilizam a linha do tipo mercê crochê 100% algodão – escolha que lhes confere uma qualidade inigualável de renda de bilro produzida no país.

Vencedoras pela segunda vez do prêmio Top 100 de Artesanato, premiação promovida pelo Sebrae, que identifica e premia as 100 unidades produtoras de artesanato mais competitivas do Brasil, considerado o Oscar do artesanato brasileiro, Maria ressalta que a grande importância desse prêmio se dá pelo reconhecimento de uma tradição que buscam manter viva na cidade. O prêmio foi recebido pela primeira vez em 2004 e o segundo em 2016. Maria do Carmo salienta ainda que essas premiações, bem como as reportagens produzidas por programas de televisão, fazem com que alguns jovens se sintam valorizados e busquem manter a tradição da renda. Para a design de moda Marcia Ganem, “[...] a exposição sobre a cultura tradicional é um elemento fundamental para o reconhecimento da comunidade da sua percepção de autoestima” (GANEM, 2016, p. 94).

Figura 40 – Detalhe da renda de bilro Flor da Maré

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

A marisqueira e rendeira Rose, 49 anos, marisqueira desde os nove anos de idade, também rendeira há muitos anos, disse: “[...] não estou mais na renda não, a renda ficou muito barata, é melhor mariscar, ir para o mangue me distrai”. Já Crispina, marisqueira e rendeira, 60 anos,

disse que, diante de todas as dificuldades enfrentadas, a satisfação em mariscar e tramar renda é algo que ela não consegue ficar sem fazer: “[...] mariscar e fazer renda me preenche e me distrai, não fico com a cabeça vazia”. Para Denise Maria, 59 anos, filha de Dona Sinhá, uma das mais antigas rendeiras da cidade, disse: “eu nasci com a cabeça na almofada”.

O mangue é considerado porto seguro dessas mulheres, pois concebem os manguezais fonte segura de alimento, pois quando não há clientes para comprar as rendas, existe a certeza que o mangue lhes proverá o alimento: “[...] quando não tem nada em casa, vou no mangue, qualquer coisa eu trago”. O universo da vida cotidiana dessas mulheres é cercado por elementos da natureza: as águas, as conchas, os pescados, a vegetação, elementos que permeiam o processo criativo do trabalho da renda. Em 2008, Saubara foi ambientalmente atingida pelo fenômeno natural da maré vermelha, inviabilizando a pesca e a mariscagem, principais atividades da população local:

O fenômeno da maré vermelha é um fenômeno natural que se caracteriza pela floração excessiva de certos tipos de algas. O professor Oberdan Caldas, pesquisador do Instituto de Biologia e um dos responsáveis pelo laudo do CRA, aponta como causa do problema o enriquecimento nutricional da Baía de Todos os Santos, que estimula a proliferação das algas. O desastre ecológico deixou clara a vulnerabilidade econômica da região, formada por dezenas de municípios e localidades dependentes do mar. No município de Saubara, por exemplo, 60 a 70% da população é de pescadores ou marisqueiras (SANTOS, 200719).

Nesse momento tão difícil para a população da cidade, a design de moda Márcia Ganem desenvolveu um projeto de criação de novas tipologias de renda a partir das técnicas tradicionais, um trabalho de ecodesign, com o reuso da fibra de poliamida, a partir da substituição do fio de algodão. A nova técnica desenvolvida junto as Rendeiras de Saubara, manteve a forma tradicional da renda com a inovação de materiais, gerando novo produto e incorporando valores ambientais. Para as rendeiras, época de muito trabalho e ganho, ficou a saudade de um tempo bom, de muito esforço: “[...] na época em que Márcia Ganem entrou em Saubara, deu muito trabalho para casa das rendeiras, fiz muita renda, cliente hoje tá difícil, parou, tá parado” (Lenira Santiago, 05/08/2017).

A renda Flor da Maré, como explicou Ganem (2016, p.50), possui a mesma base técnica da renda de bilro, a inovação está na forma e no desenho, construído exclusivamente de flores.

19 SANTOS, Nina. A natureza não fala: Pior desastre ecológico na Baía de Todos os Santos seria “culpa” de

fenômeno da própria maré. Jornal da Facom, 2007. Disponível em:

<http://www.jornaldafacom.ufba.br/jornaldafacom2/v5/Reportagens/reportagem_14.html>. Acesso em: 12 de Jan. 2017.

A argumentação fundamental para o campo da inovação é o universo simbólico dos grupos tradicionais, pautado na vida cotidiana, no trabalho, nas relações pessoais, na religiosidade, nas festividades, na geografia e na história. A rendeira Sônia, que participou do projeto disse: “[...] eu fiz muitas, muitas flores, a flor da maré!” A coleção Flor da Maré foi lançada no Brasil e em seguida em Madri, Londres e Japão, uma alternativa produtiva para as marisqueiras rendeiras escoarem seus produtos em mercado nacional e internacional.

Percebi a intensidade da relação da labuta diária de mulheres marisqueiras e rendeiras da cidade de Saubara, e dos laços afetivos criados entre essas mulheres e o ambiente que serve de substrato sobre o qual dão significado ao lugar de vida e a partir do qual criam representações dele.