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CAPÍTULO II – Caminhando entre memórias e manguezais

2.4 Imagem da mulher e das águas

Em várias tradições, mitos e poesias, vincula-se simbologias à imagem da mulher e das águas, marcando uma dicotomia ente feminino e masculino, como dois mundos: o das águas e da terra.

Segundo Oliveira (1993), as mulheres desenvolvem atividades de pesca e mariscagem principalmente nas áreas de mangues, no Recôncavo Baiano. O feminino também marca o espaço mítico, representado por divindades que são guardiãs dos mares e da maré, as quais se dedicam oferendas, agradecendo o sustento e pedindo permissão para explorar os frutos de suas águas e lama, permitindo uma boa pescaria.

A imagem da mulher é fortemente representada e expressa por divindades femininas, uma herança cultural de matriz africana que se preservou, nos apresentando a natureza dos orixás femininos no processo de valorização das mulheres. As mulheres são vistas como rainhas, mães e protetoras responsáveis pela preservação da vida em muitas culturas. As representações das mulheres no processo de assentamento humano em áreas de manguezais enunciam “[...] seu papel simbolicamente protetor e mágico – elemento doador de vida” (VANNUCCI, 2002, p. 113) e permitiram a criação de imaginário que as povoações isoladas temporárias tornaram permanentes.

Senhora de todas as águas do universo, Iemanjá, orixá feminino, rainha do mar, mãe de todos os orixás, é a divindade mais popular em todo o país, cultuada por pescadores e também pelos seguidores das religiões de matriz africana, presente no imaginário brasileiro. Sob os domínios de Iemanjá estão as águas dos oceanos, dos mares, em lagoas, rios e cachoeiras. Sua força e vibrações nesses ambientes marcam os rituais de celebração. Considerada mãe dos peixes, representa a fecundidade. Divindade vaidosa e bela, seus presentes geralmente são ligados à beleza e vaidade das mulheres: maquiagens, bijuterias, perfumes, espelho, pentes e flores.

Na labuta da maré, em meio ao sal e o suor do trabalho da mariscagem, a vaidade e o ser mulher se expressam na ligeira preocupação com a imagem e a beleza, revelados diante do pedido de autorização para fotografá-las em seu trabalho. Passando rapidamente a mão pela cabeça, respondem: “[...] o cabelo tá preso, estou feia, toda suja”. Aos cabelos é sempre dispensada maior atenção, sempre presos em toucas, lenços, bonés e chapéus, para proteção contra o sol e a salinidade marinha.

O cuidado e a preocupação com a limpeza do meio ambiente, do lugar de trabalho, se expressam nas atitudes das marisqueiras em recolher tudo o que é levado por elas, como garrafas e sacos plásticos, nada é deixado para trás, tudo é recolhido e levado de volta para o descarte. Segundo Martins (2011, p.29): “A religião dos orixás é ecológica por excelência, profundamente voltada para a natureza e para preservação da vida”.

Oxum, mãe das águas – sua essência é representada por toda água doce existente no mundo. É quem garante a continuidade da vida, pois sem seu elemento, a água doce, não há vida. “Os domínios de Oxum são os rios, córregos, cachoeiras e lagoas. O orixá também está presente no ‘encontro das águas’ (o lugar onde o rio desemboca no oceano) e, às vezes, na beira do mar” (LIMA, 2012, p.28). Rios de água doce são comparados a artérias dado sua importância no processo reprodutivo, sustenta a cadeia alimentar. No manguezal, diversas espécies animais iniciam seus ciclos de vida, por isso é conhecido como berçário do mar.

O papel protetor, maternal, doador de vida das mulheres, é representado por Oxum, de aspecto maternal, “deusa da barriga”, lembra o desenvolvimento do feto dentro de uma bolsa d’água, “[...] ela rege o ventre, a gestação e o parto e cuida das crianças recém-nascidas” (LIMA, 2012, p.30). A divindade é associada à função procriadora e provedora.

Dona Maria Isabel de Jesus Santana, 90 anos, conhecida na cidade como “dona Zozó”, rendeira, parteira, perdeu as contas do número de crianças que ajudou a vir ao mundo. Teve 12 filhos, há muito tempo se mostra preocupada com a degradação do Rio de Saubara, chamado de “rio do banho”, o qual Dona Zozó considera a maior riqueza da cidade, e diz: “[...] a água é coisa muito séria, minha gente, vamos tomar conta desse rio, cuidar, eu falei, não tire a areia aí, pelo amor de Deus, vamos cuidar, se vocês querem a grandeza de Saubara, vamos cuidar das águas” (Maria Isabel de Jesus Santana, 05/08/2017).

Figura 32 – Rio de Saubara-Ba (Rio do banho)

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Durante muitos anos, Dona Zozó se dedicou à organização da oferenda ou presente da cidade para Oxum, mãe das águas doces, por ocasião da tradicional Lavagem da Igreja de São Domingos de Gusmão, festividade que ocorre no último domingo do mês de julho e vem sendo realizada há muitos anos.

Infelizmente, os apelos de Dona Zozó ainda não foram atendidos. Em visita ao Rio de Saubara, chamado de “rio do banho”, nos anos 2015 e 2017 as areias do rio vinham e vêm sendo retirada, o despejo de esgoto sem tratamento ainda é realizado.

Figura 33 – Presente para Mãe das águas no Rio de Saubara-Ba

Foto: Heriberto Santos, 2017.

Nanã é considerada divindade idosa, a mais antiga divindade das águas, representa a memória ancestral do povo. Segundo Martins (2011, p.52) a divindade ligada à terra, lama e pântanos é Nanã, a “[...] senhora das águas paradas, estagnadas, muitas vezes insondáveis, Nanã também é um orixá da agricultura. Sua relação com a lama, a terra úmida, associada à fertilidade e aos grãos”. Nanã é a senhora de seres que habitam em seus domínios: os girinos, os sapos, os caranguejos, guaiamus e aratús.

Para Oliveira (1993), as divindades femininas Iemanjá, Oxum, Janaína, Mãe d’água e Nanã, reinam absoluto nas águas do Recôncavo Baiano e são as responsáveis por manter mulheres longe do alto mar,

[...] donas das águas doces e do mar, são representadas por mulheres belas, vaidosas, que protegem os pescadores e mantém com estes uma relação amorosa simbólica. De tempos em tempos, transformam-se inteiramente em mulheres e cantam à beira da praia para atrair o pescador escolhido. O ciúme destas “donas”, que não suportam outra presença feminina nas suas águas, seria, pois, a causa simbólica do impedimento da mulher ir ao mar e pescar em águas distantes (OLIVEIRA, 1993, p. 78).

Segundo Oliveira (1993), a simbologia do feminino e a posição da mulher na vida econômica e social das comunidades pesqueiras possuem um caráter paradoxal. O fato das

divindades femininas reinarem absolutas nas águas da região não confere às mulheres maior acesso aos recursos naturais aquáticos, nem valor social ao seu trabalho.

A personificação das divindades como mães amadas e temidas, responsáveis por essa relação de encanto, beleza e respeito, mães que amamentam, alimentam com seus frutos do mar, que dominam, impõem seus desejos e controlam a ordem e limpeza. Quanto à preservação ambiental dos manguezais em Saubara, percebemos que há uma coerência entre a imagem das mulheres marisqueiras e a imagem das divindades de matriz africana, consideradas mães, responsáveis por prover e preservar a vida, conforme várias narrativas de marisqueiras que concebem os manguezais como mãe provedora: “[...] o mangue é uma mãe para mim”; “[...] é do mangue que tirei tudo que tenho”; “[...] o mangue é a mãe de tudo”; “[...] quando não tem nada em casa, vou no mangue, qualquer coisa eu trago”. O trabalho no mangue parece demarcar o tempo para muitas mulheres que o relaciona ao parto dos filhos, e dizem: “[...] com um mês de parida eu ia pro mangue”; “estava parida de Maria, ia mariscar”. Dessa forma, ao manguezal são atribuídos cuidado e afeto que se traduzem em preservação.