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CAPÍTULO III – À flor da pele: manifestações culturais de Saubara

3.3 O Samba de Roda no Recôncavo

Em 2004, o Samba de Roda do Recôncavo Baiano foi inscrito no Livro de Registro das Formas de Expressão (IPHAN, 2006), tornando-se patrimônio da cultura imaterial brasileira. O samba está presente em todo o Estado da Bahia e é relacionado a diversas celebrações festivas, caracterizado como manifestação musical, poética e coreográfica. Em 2005, a Unesco reconheceu como Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade.

O pesquisador Nélson de Araújo (1986, p.28) assim definiu o Recôncavo: “[...] é conhecida desde o século XVI a faixa de terra formada por mangues, baixios e tabuleiros que contornam a Baia de Todos os Santos”. No recôncavo, as primeiras povoações surgiram em torno dos engenhos de processamento da cana-de-açúcar, eram compostas por proprietários de terras, indígenas e de escravos africanos trazidos para o trabalho nas lavouras de cana-de-açúcar da região.

Um cenário que contribuiu para a formação da cultura, que se reflete nas festividades e na música. A cidade de Saubara, juntamente com outros dezenove municípios, foi reconhecida pelo governo estadual como “Território de Identidade do Recôncavo”. No entanto, para efeito desse trabalho, me interessa os traços de topofilia presentes nas representações e composições dos sambas de roda, inspirados por modos de vida da população da cidade de Saubara, fator necessário ao entendimento dos comportamentos dos atores ecológicos.

Para acontecer a performance musical dos sambadores e sambadeiras, não há uma ocasião específica. Pode acontecer em diversos ambientes e momentos, pode ser em nascimentos, casamentos ou até morte, se for um pedido. Nélson de Araújo (1986, p.95), ao visitar Saubara durante sua pesquisa, constatou que o “ [...] o samba aflora sob qualquer pretexto e em qualquer data do calendário”. Nas festas ligadas às tradições religiosas católica ou de matriz afro- brasileira, nas festas dos santos, como acontece com São Cosme e São Damião, São Domingos e Santa Bárbara. O samba é quase indispensável nos dias em que se comemora esses santos e sempre se ouve um samba de roda, cantado no terreiro ou quintal, que vai até o dia amanhecer. A cidade de Saubara, possui cinco grupos de Samba de Roda: Samba Mirim da Vovó Sinhá, Samba do Vovô Pedro, Samba do Rosário, Samba Raízes de Saubara e o Samba das Raparigas.

Em Saubara, encontramos traços de topofilia em letras do samba do “Vovô Pedro”, sambador, pescador e agricultor, marujo da Chegança em Saubara, responsável pelo Grupo de Samba que leva o seu nome, fundado em 2011. Pedro nasceu em 29 de julho de 1942, dia de São Pedro, santo protetor dos pescadores. Não alfabetizado, disse: “guardo as letras do samba na cabeça, outras faço na hora, isso é samba corrido”. Protagonista no cenário musical do Recôncavo, canta o samba corrido, “o samba corrido ou amarrado, tem um ritmo mais acelerado e os seus versos são mais curtos” (DORING, 2015, p.76).

Vovô Pedro se vale das memórias como mediador na transmissão dos conhecimentos às crianças e jovens do grupo mirim, com composições inspiradas em sua vida cotidiana, cantando a labuta do dia a dia. E disse que uma das maiores alegrias em sua vida é ir para a roça que tem no distrito de Santiago do Iguape no município de Cachoeira, ficar olhando os seus animais e a roça de mandioca, além de compor seus sambas.

Práticas, memórias e histórias de vida permeiam o samba de roda. Vovô Pedro disse: “nós canta samba raiz, eu faço um samba aqui agora, eu olho uma coisa dessa aqui faço”, e cantou para mim o que ele considera o primeiro samba de roda de sua vida, lembranças do dia a dia, da vida sofrida de trabalho, que seus pais o levavam à roça: “meu pai fazia balaio para criar a gente, trabalhava a noite inteira”, trabalhando de fazenda em fazenda: “[...] meu pai morou em mais de trinta fazendas, tratejava, dizia, ‘pode ir embora’, e ele saia andando” (Pedro de Jesus, 14/11/2016).

Nesse caminhar pelo Recôncavo Baiano, de fazenda em fazenda, a família de Pedro chega à Saubara, lugar com água boa e maré farta, considerada mãe, como bem diz Maria: “mãe que

não deixa seu filho dormir com fome”. E ali essa família fez “o espaço transforma-se em lugar à medida que adquire definição e significado” (TUAN, 2013, p.167).

Figura 41 – Pedro de Jesus, “Vovô Pedro”, marujo da Chegança Fragata Brasileira

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

E como um agradecimento ao alimento que não faltava na maré, Vovô Pedro canta: “Saubara tem bebe-fumo, tem ostra, tem sururu, tem siri, tem caranguejo, tem aratu e guaiamum. Saubara tem peixe bom, também tem o camarão, tem o povo bom. Ô mora no meu coração (bis)”. E canta também Vovô Pedro: “Bom Jesus, boa passagem, Cabuçu faz o que quer, São Domingos de Saubara, está com a frente pra maré (bis)” (Pedro de Jesus Santos, 14/07/2013).

O mundo do samba de roda do Recôncavo Baiano é fortemente marcado por mulheres. O Projeto Mulheres do Samba de Roda, consistiu no mapeamento etnomusicológico produzido em 2015 sob pesquisa e produção textual da pesquisadora Katharina Doring. Conforme prefacia no catálogo a coordenadora do projeto Luciana Barreto, o trabalho além de contribuir para valorização das mulheres em todo o contexto social, visa incentivar o aprendizado de práticas e saberes populares de matriz africana, bem como sua valorização, permanência e transformação no seio da comunidade de sambadores e sambadeiras. A pesquisa apresentou a contribuição dos saberes e memórias de 16 mestras sambadeiras de 15 localidades baianas. O trabalho trouxe a contribuição de três mestras da cidade de Saubara: as irmãs Dona Anna, Dona Zelita e dona Rita da Barquinha de Bom Jesus dos Pobres.

Figura 42 – As mestras sambadeiras do projeto Mulheres do Samba de Roda

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Mais do que música ou dança, o samba de roda proporciona união, espírito de fraternidade, comunhão, estabelece e reforça laços de amizade, afasta as dores do corpo e da alma, iluminando não só aqueles que cantam, dançam, batem palmas, mas todos os que testemunham essa ritualidade, cuja misticidade é reconhecimento para os mais iniciados e magia para os sentidos dos demais (NEUBERGER, 2014, p.1).

Dona Maria Anna Moreira do Rosário, caçula de dezoito filhos, marisqueira, sambadeira e artesã, utiliza conchas de mariscos na produção de seu artesanato, fazendo flores, pássaros, baianas, porta joias e cinzeiros. Foi uma das Mestras que durante a pesquisa do IPHAN em 2004/2005 teve participação ativa para a construção do inventário que resultou no reconhecimento do Samba de Roda como Patrimônio Cultural do Brasil. É fundadora de um dos grupos de samba mais antigos do Recôncavo, o “Samba de Raparigas, que tem sua primeira formação datada de julho de 1982” (DORING, 2015, p.13). Esse samba de roda foi considerado pelo pesquisador Nélson de Araújo (1986, p.95) como um teatro, por “exigir indumentária especial”, “em que homens se trajam como ‘senhores’, de paletó e gravata, e as mulheres como mucamas”.

Dona Joselita Moreira da Silva era carinhosamente chamada de Tia Jelita. A Mestra faleceu aos 79 anos, em 2016, considerada uma das maiores sambadeiras da cidade, uma liderança da cultura local, madrinha da Chegança dos Marujos Fragata Brasileira, considerada

pelo pesquisador Nélson de Araújo como informante que colaborou decisivamente na estruturação da pesquisa na cidade de Saubara. Deixou como um de seus legados o grupo de Samba de Roda Mirim Vovó Sinhá para a manutenção dessa tradição. Assim, vejo o florescer das manifestações culturais no colorido das flores nas saias das meninas, como verdadeiras sementes que se reproduzem preservando as memórias, sementes plantadas e cultivadas com amor e dedicação pelos mestres e mestras sambadeiras.

Figura 43 – Pés de meninas sambadeiras no encontro de Samba de Roda Mirim

Fonte: Inadja Vieira, 2015.

A alegria com que crianças tocavam seus instrumentos e sambavam na praça da cidade de Saubara, durante o encerramento do 4º Intercâmbio dos Samba de Roda Mirim que aconteceu em 2015 e reuniu mais de 200 crianças e jovens com idades de 7 a 17 anos, de diversos municípios do Estado da Bahia. O rodopiar das coloridas saias nos traz a esperança de vida longa ao Samba de Roda, pois as memórias unem e desenvolvem o sentimento de respeito e pertencimento. Entendo que a importância de se manter uma tradição não é torná-la folclórica, mas sim criar condições que possibilitem a sua atualização e manutenção. Vale ressaltar ainda a importância do convívio intergeracional para a manutenção das memórias e transmissão dos saberes às crianças e jovens, assinalando a possibilidade de continuidade de tão importante manifestação cultural.