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CAPÍTULO II – Caminhando entre memórias e manguezais

2.1 A labuta das mulheres nos manguezais

A atividade pesqueira e de mariscagem é praticada há muitos séculos, exercida em sua maioria por indígenas, portugueses e africanos, o que faz da pesca e mariscagem uma herança histórica. Para efeito desse estudo, notamos que o ambiente é dominado pela presença do feminino. As atividades realizadas nos manguezais se mostraram exclusivamente de mulheres que cotidianamente fazem a coleta artesanal de crustáceos e moluscos em áreas de manguezais, as marisqueiras. A labuta na maré se apresenta como uma rede de sociabilidade e símbolos, marcando o sentimento de pertença ao lugar, em uma relação de alternância entre o seco e o molhado, separação entre a terra e o mar, entre o passado e o presente. Em atividades que me parecem ser reguladas, em grande medida, pelo regime das marés, pela lua, chuva e sol.

Caminhando pela cidade de Saubara, durante o período de ciclos lunares, percebo o principal uso dos manguezais, no aproveitamento de seus produtos na pesca e na mariscagem.

Tal percepção, reforçada por Vannucci (2002), reafirma que os ciclos lunares e de maré regulam grande parte da periodicidade da vida animal, nos permitindo inferir que a vida das marisqueiras também é regulada pelas marés, pelas luas e chuvas.

E, referindo Diegues (2000), quando nos alerta sobre a importância do conhecimento tradicional para os pescadores, podemos afirmar também que o conhecimento tradicional para as marisqueiras é como os conhecimentos desenvolvidos por elas, sobre as características do mar e sobre o comportamento da fauna e da flora existentes nas florestas de manguezais: são aspectos fundamentais para o entendimento do mundo simbólico que permeia a vida em Saubara.

A mariscagem é uma atividade exercida majoritariamente por mulheres. O trabalho envolve as atividades de coleta, transporte, limpeza, escaldar (pré-cozimento), retirada do marisco das cascas e venda. Incluídas na categoria de pescadoras artesanais, reconhecidas por força da Lei nº 8.213/91 da Previdência Social, as marisqueiras têm garantido benefícios, tais como aposentadoria por idade ou invalidez, auxílio doença, salário maternidade, pensão por morte e auxílio reclusão.

Em Saubara, pescadores e marisqueiras são cadastrados na Colônia de Pescadores e Aquicultores Z-16. Têm na presidência Ana Cláudia Gomes Rodrigues, vice-presidente Israel Uzeda Barbosa. De acordo com o levantamento realizado em 2017, a entidade possui aproximadamente 2.000 filiados, sendo 1.500 marisqueiras e 500 pescadores.

As marisqueiras desempenham papel importante no processo cultural e econômico da cidade, visto que sua atividade envolve relações de trabalho e resistência, perpetuando memórias transmitidas por gerações, marcando aspectos de luta pela sobrevivência. O que reforça o significado de lugar, responsável pela constituição de sentimento de pertença, criando as condições necessárias para o desenvolvimento de atitudes efetivas de sensibilização e educação ambiental, auxiliares ao processo de preservação do ecossistema manguezal.

A divisão sexual no trabalho da pesca é bem marcada, pois historicamente o mangue é área reservada ao trabalho feminino, de responsabilidade das mulheres, enquanto o trabalho no ambiente marinho em alto mar é definido como lugar para homens. Apesar dos mitos que envolvem má sorte e infortúnios vinculados à figura feminina quando representada no mar, a mulher está em toda a cadeia produtiva da pesca, na confecção e conserto das redes, preparo de iscas, preparo e conserva do peixe, distribuição e venda.

O cotidiano das mulheres marisqueiras ainda é conciliado com outras tarefas e ocupações associadas, pois muitas são mães, avós, esposas, namoradas, desdobram-se em desenvolver outras atividades no seu dia a dia, são rendeiras, sambadeiras, vendedoras, donas de casa, professoras.

Mulheres que vivem junto aos manguezais a mariscar e a pescar, são as principais responsáveis pelo cuidado dos filhos e por prover o sustento destes. Conforme as narrativas de várias mulheres marisqueiras em Saubara, a exemplo de Maria: “[...] criei e formei, meu filho e minha filha sozinha aqui na maré...”. Crispina: “[...] criei meus dois filho daqui da maré... tenho um casal, o homem é pedreiro e pescador, a menina tá parida”. Rosa Marina disse: “[...] ajudei criar meus irmãos e criei meus filho na maré, todos sabem pescar”. Marinalva, “[...] criei os cinco filhos aqui na maré”. Rose, “[...] crie meus filho com ajuda da mariscagem, da maré”. Para algumas mulheres, depois dos filhos criados, o trabalho na mariscagem passa a ser visto também como uma forma de ocupação e distração. Rose: “[...] quando eu tô mariscando, não penso em nada! Esqueço tudo...”. Tuan (2012), entende que para compreendermos a preferência ambiental de uma pessoa, é necessário examinar a sua herança biológica, criação, educação, trabalho e os arredores físicos. O trabalho dessas mulheres na mariscagem apresenta o compartilhamento de saberes transmitidos por gerações.

Tabela 1 – Características sociais das entrevistadas.

Característica número Sexo Feminino 30 Faixa etária 18 a 30 2 31 a 50 10 51 a 70 11 71 a 90 6 acima de 90 1 Estado Civil Solteira 7 Casada 12 Viúva 8 Outros 3 Escolaridade Não alfabetizada 4 Ensino Fundamental 17 Ensino Médio 7 Ensino Superior 2

Nota: A escolaridade foi considerada independente de estarem completo.

Algumas mulheres ainda falam da tristeza de não terem estudado, como dona Rosa Marina, pois, tinha que ajudar a sua mãe a cuidar dos irmãos mais novos: “[...] eu não aprendi a lê, eu não tive tempo, era a mais velha, minha mãe com os filhos tudo pequeno, ela ia pra maré e eu tinha que tomar conta dos menores, não pude estudar...”. Quanto à vida de pescadora e marisqueira, não deseja o mesmo para os bisnetos: “[...] eu não quero que os bisnetos seje não, estão estudando pra não ser. Mas eu digo a eles assim, ói: vocês vão aprender, esse pequenininho aí, [Saulo], ele sabe tirar caranguejo, tenho orgulho disso, eu gosto, embora amanhã ele não vá viver disso, lá um dia, se precisar, ele sabe...” (Rosa Marina de Jesus, 01/07/2017).