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CAPÍTULO II – Caminhando entre memórias e manguezais

2.3 A produção do pescado e da dor

A quantidade dos pescados está relacionada ao clima e às estações do ano, muitas vezes definidos como tempo bom e tempo ruim, marcando a relação ser humano e natureza. O tempo ruim está relacionado ao inverno, períodos de chuvas, pois em dias de chuvas, o pescador não vai para o mar. Os “ciclos de trabalho” estão intimamente ligados aos “ciclos da natureza”. Chovia e fazia frio, encontrei com Sr. Gregório, 65 anos, pescador, agricultor e marujo, participante da Chegança. Pensativo, ele calmamente costurava uma grande rede de pesca. Observei por um longo tempo a serenidade do pescador, e perguntei: “O que o senhor vai pescar com essa rede de malhas tão largas?” Com um leve sorriso ele respondeu: “Essa rede é para pescar arraia”. Conversamos entre lembranças de um passado em Salvador. Ele me disse preferir viver em Saubara: “[...] não sei mais andar em Salvador, prefiro ficar aqui em Saubara, aqui faço um telhado, pesco, faço roça de feijão, mandioca...” E relatou não ter vontade alguma de voltar a Salvador (Gregório Santos, 26/07/2015).

É no verão que ocorre o ciclo de reprodução do caranguejo-uçá, fenômeno conhecido popularmente como “andada do caranguejo”. Período que vai de novembro a março, com pico em janeiro. Em alguns estados brasileiros, como é o caso da Bahia, é proibido a captura total ou parcial do animal quelas13, beneficiamento e comercialização. Neste período, machos e fêmeas, saem de suas tocas ou galerias e caminham ativamente pelo manguezal para acasalamento e liberação de ovos, o que os tornam vulneráveis à captura. Momento que é instituído o defeso, medida que visa a proteção e manutenção da espécie. Em março de 2016, a Bahia Pesca (BP) realizou o repovoamento da região, colocando nos manguezais 500 mil megalopas, filhotes de caranguejo.

Figura 22 – Caranguejo-uçá no manguezal em Saubara-Ba

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Homens e mulheres que vivem entre a terra e o mar desenvolveram tipos de pesca com técnicas artesanais, muitas transmitidas por gerações. Os principais tipos de pesca artesanal da cidade descritos por Barros (2006) são:

Pescaria de redinha – é a pesca de camarão e de siri miúdo.

Pescaria de grozeira – tipo de armadilha em que se fincam dois ou três paus dentro d’água, amarra-se a grozeira (cordão ou corda comprida com iscas para atrair o siri), depois sai recolhendo a mesma com o jereré, a fim de capturar os siris.

Pescaria faxiada – realizada em noite escura, na qual se pesca siri mole. Pescaria de rede pequena – também chamada rede de fundo.

Pescaria de catueiro – realizada na pesca de grandes peixes.

Pescaria de paruzeira e bagueira – pesca apropriada para pegar o paru e o bagre.

Pescaria de mangue – é a pescaria mais comum nos dias atuais, se pesca bebe-fumo, siri mole e siri duro, ostra, sururu, sambá, caramuru, sarnambi ou lambreta, dentre outros.

Figura 23 – Peixes secando ao sol na na praça da Rocinha em Saubara

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Em diversos momentos durante a pesquisa, escutei sobre as dificuldades próprias do ofício de marisqueiras, reclamações de dores no corpo, muitas fruto das posições e repetição quase à exaustão de certos movimentos em que costumam trabalhar. O esforço realizado na labuta da maré se acentua de acordo com o tamanho da mesma. A maré demarca o tempo de trabalho: na maré grande ou cedeira, o tempo disponível para a mariscagem aumenta, portanto, será maior o esforço realizado devido o tempo de permanência na atividade.

É necessária força física, pois cada etapa do trabalho da mariscagem requer esforço. Na coleta, a jornada de trabalho das marisqueiras em Saubara é de quatro a cinco horas dentro do manguezal, embaixo de sol forte, corpos dobrados, cabeça para baixo ou agachadas, descalças a raspar com uma pequena foice improvisada de metal a areia e a lama da maré. Os mariscos coletados são armazenados em baldes, panelas e sacos de náilon, lavados na água da maré para retirada do excesso de areia, a fim de diminuir o peso que será carregado por longa distância, entre a maré e as residências das marisqueiras.

Figura 24 – Balde com Bebe-fumo (Anomalocardia brasilians) coletados em Saubara e foice utilizada por marisqueiras para retirar os mariscos da lama do manguezal

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

No transporte dos mariscos para casa, o esforço parece dobrar, etapa em que se ouve falar muito no peso que será carregado, aproximadamente sete ou mais quilos são carregados sobre a cabeça ou nas mãos apoiadas à frente da barriga. Com semblantes cansados, mas a sorrir e conversar, percorrem quase dois quilômetros de volta para suas casas.

Figura 25 – Marisqueiras caminham sorrindo de volta para suas casas após mariscagem

Em casa é hora de escaldar [pré-cozimento] os mariscos. No fogo à lenha os bebe-fumo são fervidos até que as conchas se abram. A fase da catação do marisco é realizada em grupo, por todas as mulheres da casa, envolve a retirada da parte comestível das conchas de um a um, com certo cuidado para não fragmentar o marisco, etapa bastante trabalhosa devido ao movimento repetitivo e rápido das mãos.

No ambiente da catação do marisco, observamos a postura e posição de trabalho das marisqueiras, alguns constrangimentos ergonômicos, sentadas ao chão ou em objetos como blocos de construção, pernas afastadas ou abertas, coluna vertebral curvada, forçando a coluna cervical e lombar, posição extremamente incômoda resultando em inúmeras reclamações de dores musculares, sintoma característico de lesão aguda tipicamente associada a esforços de grande intensidade.

Figura 26 – Mulheres catando mariscos com coluna vertebral mal posicionada

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Ao perguntar se todas sentem dores na coluna após um dia de mariscagem, as mulheres mais jovens queixam-se e relatam que sentem muitas dores por todo o corpo no dia posterior à mariscagem: “[...] o corpo fica todo quebrado, no outro dia você não aguente nem levantar”, já que, como me informa Francisco Másculo (2011, p. 185), quanto às posições de trabalho, a posição curvada “[...]é uma das mais cansativas, pois os músculos têm que assegurar o tronco e a cabeça mais ou menos verticalmente”.

Embora se reúnam em grupos, a organização do trabalho dessas mulheres na mariscagem é autogestionária. O ato da coleta e o produto do bebe-fumo, siri, samba e/ou caranguejo é individual, cada uma tem direito à porção que coletou na maré. A produção é utilizada para consumo próprio e para a comercialização.

Figura 27 – Esquema de comercialização do marisco

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Sobre os estoques de mariscos, algumas marisqueiras entendem que a oferta atualmente é mais abundante: “[...] hoje tem mais marisco, eu pego muito mais, eu nunca peguei sozinha um quilo de bebe-fumo, antigamente era um pouquinho assim que mariscava, pra dá um quilo!” A mesma entrevistada atribuiu a maior quantidade de mariscos atualmente à redução de marisqueiras na exploração do mangue. Zenilda, explicou ainda que as dificuldades financeiras nas décadas de 70 e 80 eram maiores, havia muitas famílias que dependiam exclusivamente dos manguezais e viviam apenas da mariscagem: “[...] ia para maré por necessidade, porque era só o que tinha, a maré...”.

Para as irmãs Rose e Zenilda, o acesso das pessoas aos benefícios sociais a exemplo do Bolsa Família14, retirou muitas famílias dos manguezais. Um ganho social e ambiental, pois a melhoria da qualidade de vida das pessoas apresenta reflexo no ambiente natural, a diminuição na exploração implica na recuperação dos estoques de mariscos e pescados. Utilizar os recursos naturais de forma racional, sem colocá-los em risco de esgotamento é definido como “etnoconservação” por Diegues (2000).

Ao longo dos anos, o Governo Federal15 vem criando uma série de programas sociais, visando diminuir a desigualdade e aumentar a inclusão social. Os programas foram criados para famílias que vivem em condições de pobreza e extrema pobreza, diversos incentivos visam resolver as principais necessidades, criando condições para que possam melhorar suas vidas e viverem com mais dignidade. Para Zimmermann e Espínola (2015 p.147) o benefício do Bolsa Família, contribuiu na redução das desigualdades e se configura como a segunda renda mais importante para as famílias, sendo superada apenas pelos rendimentos do trabalho.

No processo de atualização das tradições, verificamos transformações nos apetrechos utilizados na pesca. O tradicional manzuá16 utilizado na pesca do siri, no passado, segundo os pescadores, era condicionado com bambus e linha de poliamida e com malhas larga. Hoje é confeccionado com canos de PVC e tela de náilon miúda (8mm), que, segundo os próprios pescadores, é a principal responsável pela redução do pescado na região, pois a captura de forma predatória de siris pequenos impede o crescimento e a reprodução da espécie. Os pescadores reconhecem que o equipamento é impróprio, mas alegam que nada podem fazer: “[...] depois que inventaram essa malhinha miúda aí, ó, a produção caiu pra zero. Antigamente, nós sai aqui não aguentava trazer a quantidade de siri, hoje nós vai e falta a quantidade pra nós trazer, traz assim na mão” (Pescador 1, 14/07/2013).

14O Bolsa Família é um programa que contribui para o combate à pobreza e à desigualdade no Brasil. Foi

criado em outubro de 2003 e possui três eixos principais: Complemento da renda, Acesso a direitos e Articulação com outras ações. O Programa Bolsa Família está previsto em lei — Lei Federal nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004 — e é regulamentado pelo Decreto nº 5.209, de 17 de setembro de 2004, e outras normas. Disponível em: http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-família Acesso em: 25 de Abr. 2018.

15 O Ministério do Desenvolvimento Social-MDS foi criado em Criado em janeiro de 2004 pelo presidente Luiz

Inácio Lula da Silva, ao MDS cabe a missão de coordenar, supervisionar, controlar e avaliar a execução dos programas de transferência de renda, como o Fome Zero, cujo maior expoente é o cartão Bolsa Família. Disponível em: http://mds.gov.br/assuntos/bolsa-família Acesso em: 25 de Abr. 2018.

16 O manzuá é uma armadilha fixa, com armação de madeira (bambu) ou PVC, revestida por uma tela de arame

Figura 28 – Manzuá, apetrecho utilizado na pesca do siri em Saubara

Fonte: Inadja Vieira, 2013.

O descarte dos resíduos sólidos provenientes da mariscagem, ou seja, as conchas dos mariscos, são depositadas geralmente nos quintais e entorno das casas. Posteriormente, são utilizados para a construção e/ou reforma das próprias casas. Algumas marisqueiras quando não possuem espaço nos quintais, descartam as conchas no lixo ou em áreas próximas aos manguezais, fato que representa um problema ambiental, pois ocorre a atração de insetos e roedores, proporcionando o surgimento de doenças.

Figura 29 – Deposição das conchas de mariscos em frente à casa da marisqueira

Bem comuns são os relatos de acidentes ocorridos com materiais perfuro-cortantes: vidro, ponta de anzóis, espinhas de peixes e outros, mas nada se compara ao medo que as pessoas têm do encontro com o temido Niquim, espécie (Thalassophryne nattereri), considerado peixe peçonhento, extremamente venenoso, que possui espinhos no dorso conectados a glândulas de veneno que é injetado na vítima no momento do contato. Normalmente as pessoas são acidentalmente feridas nos pés e mãos desprotegidos. O peixe possui hábito bentônico, fica a maior parte do tempo enterrado e imóvel na lama dos manguezais, comportamento que facilita o número de acidentes e demanda atenção redobrada de pescadores e marisqueiras nas regiões de manguezais.

Figura 30 – Peixe Niquin (Thalassophryne nattereri) no manguezal em Saubara

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

As manifestações clínicas observadas na maioria dos casos de acidentes com o Niquin são: dor, edema local, sensação de queimação, febre, dormência e, em casos graves, até necrose. Maria conta que o seu irmão, pescador, foi acidentalmente ferido ao pisar em um Niquin e não teve os cuidados necessários com o ferimento, por esse motivo vem há mais de três anos sofrendo com a enfermidade, perdeu parte dos movimentos da perna e já se submeteu a uma cirurgia, mas a recuperação continua ainda muito difícil. Saubara possui hospital municipal com 13 leitos hospitalares, atendimento ambulatorial, equipes de Programa Saúde da Família

(PSF)17, mas, segundo alguns relatos, muitos atendimentos têm de ser realizados nas cidades de Santo Amaro e Salvador.

Na ilha dos pescadores, conheci o menino Saulo, 8 anos, que me disse com muita propriedade que é pescador, participa da Chegança mirim, filho de pescador, bisneto de Rosa Marina. Notável o encanto do sorriso e do olhar de Saulo ao ver a câmera fotográfica em minhas mãos e o pedido para que tirasse sua foto, dizendo: “Tia, tia, eu sou pescador, eu sou pescador como o meu pai”! Ao solicitar autorização de Rodrigo, pai de Saulo, o pescador, a princípio um pouco tímido hesitou, mas não resistiu aos apelos do filho para tirar a foto. Saulo, com a curiosidade de criança, me pediu para olhar a imagem na máquina, prometi levar a foto, e ele me perguntou duas vezes se eu iria mesmo. A sua avó Rosilene, 45 anos, marisqueira, com uma bacia de siris no colo a catar sorridente, confirmou que o neto é pescador: “...ele sabe pescar, ele pesca peixe, com o pai, ele tira caranguejo”. O sorriso de Saulo no momento que me encontrou e reconheceu como “a moça que tirou a foto”, só foi menor que a alegria em se ver com o pai e a prima na fotografia no momento em que lhe foi entregue.

Figura 31 – Saulo com o pai Rodrigo e sua prima Evelyn

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

17 O PSF é a estratégia prioritária para a reorganização da atenção básica no País, instituída pela Portaria Nº 648,

de 28 de março de 2006, tida pelo Ministério da Saúde e gestores estaduais e municipais como estratégia de expansão, qualificação e consolidação da atenção básica por favorecer uma reorientação do processo de trabalho com maior potencial de aprofundar os princípios, diretrizes e fundamentos da atenção básica, de ampliar a resolutividade e impacto na situação de saúde das pessoas e coletividades, além de propiciar uma importante relação custo-efetividade. Disponível em: http://dab.saude.gov.br/portaldab/ape_esf.php Acesso em: 28 de Abr. 2018.

Entendi que a transmissão dos conhecimentos no universo do mangue começa desde cedo, crianças aprendem a conviver com a diversidade ambiental da fauna e flora locais, práticas tradicionais da pesca e da mariscagem, garantindo a perpetuação das memórias e a convivência intergeracional.