• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – Caminhando entre memórias e manguezais

2.2 Mãos de mulheres

Dentre as características comuns em primatas está a de possuir cinco dedos nas mãos e nos pés. As mãos são muito mais eficazes que os pés dada força e habilidade, o que confere aos humanos a capacidade de manusear as coisas. O sistema háptico8, vai além do tato, permite a comunicação ou exploração ativa do ambiente e está relacionado diretamente com a percepção de textura, o macio e o áspero, o quente e o frio, força e movimento. Conforme Tuan (2012, p. 24): “[...] ver não é ainda acreditar: por isso Cristo se ofereceu para ser tocado pelo apóstolo incrédulo”, demonstrando a importância desse sistema nos trabalhos realizados com as mãos. É na primeira infância que ocorre o despertar dos sentidos, permitindo a exploração do meio e “[...] a mobilidade das mãos introduz muito cedo a dupla função do gesto: gesto técnico (segurar, largar, quebrar) e código gestual” (CLAVAL, 2014, p.72).

8 O sistema háptico está relacionado com a percepção de textura, movimento e forças através da coordenação de

esforços dos receptores do tato, visão, audição e propriocepção. (LABTATE – Laboratório de Cartografia Tátil e Escolar. Disponível em <http://www.labtate.ufsc.br/ct_mapas_tateis_sistema_haptico.html>. Acesso em 2017).

Figura 18 – Marisqueira Joselina cavando o solo do manguezal em Saubara

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Mulheres e meninas agachadas, calmamente cavam o solo lamacento que vai aos poucos exibindo o bebe-fumo, molusco que, de um a um, enche as mãos das mulheres, os baldes, as panelas e sacos. A calma é deixada para trás quando a maré começa a encher. Em breve as águas estarão de volta, expulsando-as, e logo inundarão todo o manguezal outra vez, em uma alternância entre o seco e o molhado.

Dona Rosa Marina, 70 anos, marisqueira e pescadora, filha de marisqueira e pescador, viúva de pescador, nascida em Saubara, participa da Chegança Feminina há 23 anos. Nas mãos, ela identifica as cicatrizes de cortes sofridos nas afiadas conchas de ostras e sururus, dificuldades enfrentadas na vida de marisqueira: “[...] eu vou pescar camarão de ridinha, vou pra lá do farol de canoa, tirar sururu, ostra e sambá9. O sambá fica enterrado na pedra, tiro com uma faca. Eu fico cheia de calo e cortes, aqui ói, de tirar sambá e catar siri, esse talho aqui foi de tirar ostra, na lama” (Rosa Marina de Jesus, 01/07/2017).

Figura 19 – Mãos da marisqueira e pescadora Rosa Marina

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Na comunidade de Saubara, experiências, modos de transmissão de conhecimentos, parecem permanecer inalterados para as crianças que acompanham e ajudam as mães e avós na labuta dos afazeres diários. Aprendizagens quanto aos domínios da natureza, dos ventos, das marés, das luas, estão presentes ao longo da infância dessas crianças. Quanto à memória, de quando e com quem foram pela primeira vez para a maré mariscar, de forma geral, as entrevistadas responderam: “menina e com a mãe”. As palavras de Rose foram as de muitas marisqueiras. Ela conta com a voz embargada: “[...] com nove anos, já ia para cavar, pegava pouco mais pegava, e ia, na época minha mãe era viúva, levava os filhos para ajudar a cavar e mariscar, aí não deixei mais de ir” (Rose Macedo de Souza, 25/01/2017).

Segundo Diegues (2008), os conhecimentos das populações tradicionais se traduzem como forma de preservação da natureza, uma vez que essas populações possuem um saber acumulado sobre os ciclos naturais, reprodução e migração da fauna, a influência da lua nas atividades de corte da madeira, da pesca, sobre os sistemas de manejo dos recursos naturais, as proibições do exercício de atividades em certas áreas ou períodos do ano, tendo em vista a conservação das espécies.

O manguezal é fonte permanente de alimentação dos corpos e das almas dessas mulheres. A pesca e a mariscagem, atividades intensas na cidade de Saubara e, segundo a Bahia-Pesca

(2016): “[...] mais de 50% da população local é formada por pescadores, que vendem peixes e mariscos nas ruas e utilizam atravessadores para escoar a produção”. O manguezal e o mar são as principais opções de renda e sobrevivência, o que torna a população vulnerável aos impactos no ambiente ou mudanças na biota10 local, tornando a comunidade economicamente fragilizada. Como foi o caso do fenômeno natural da maré vermelha, ocorrido em 2008 na Baía de Todos os Santos, que inviabilizou a pesca e a mariscagem na região, expondo à vulnerabilidade econômica a população local.

Em Saubara, a labuta da mariscagem, assim como o fazer renda de bilro, são atividades predominantemente femininas, transmitidas por gerações de mulheres. Os diversos discursos apontam que marisqueiras e rendeiras aprendiam a mariscar e tecer rendas com suas mães, mulheres que vivem entre a terra firme e o lamaçal dos manguezais a mariscar, e se reúnem para tecer rendas e trançar a palha cantando “mulher rendeira”11.

Assim, conforme afirma Tuan (2013), transformam o espaço em lugar à medida que suas labutas as fazem conhecê-lo e atribuir-lhe valores e significados, dotando seu lugar de moradia e trabalho de características decorrentes de suas vivências culturais, de forma direta e íntima. Os lugares, ou melhor, os manguezais, são então resultado da variedade de modos de vida construído pelas relações com o meio, o que implica mais do que morar ou se organizar em espaço, adapta-se aos ritmos da natureza.

Figura 20 – Marisqueira Dona Marinalva catando Siris (Callinectes sapidus)

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

10 Biota refere-se a todos os organismos, incluindo animais, plantas, fungos e microrganismos encontrados em uma

determinada área.

11 “Olé mulher rendeira/ olé mulher renda/ tu me ensina a fazer renda, que eu te ensino a namorar”. “Lampião

Dona Marinalva, 65 anos, marisqueira, cata siris à porta de casa, atividade cotidiana na vida de muitas mulheres em Saubara. Dona Marinalva diz que assim como várias outras mulheres marisqueiras, teve o primeiro contato com a maré ainda menina, na primeira infância: “[...] minha mãe era marisqueira. A primeira vez que fui pra maré foi com sete anos de idade. Fui com minha irmã mais velha, ainda me lembro, dei um desacerto que cortei o pé. Minha vida foi na maré, nunca parei, me aposentei por contribuição na pesca. Tô até hoje, tiro ostras, cato siri, tudo no marisco eu faço”, assim criou os 5 filhos (Marinalva Santiago, 01/07/2017).

Durante o verão, devido à alta movimentação turística na região das praias, algumas marisqueiras criaram alternativas para a venda do pescado como forma de ganhar um pouco mais de dinheiro na alta estação. O beneficiamento dos mariscos no preparo de moquecas agrega valor. Segundo dona Marinalva, o quilo do bebe-fumo (Anomalocardia brasilians) in natura, é negociado com os comerciantes da cidade por R$ 20,00; já o prato da moqueca com acompanhamentos, vatapá e arroz, é vendido aos banhistas e turistas nas praias de Cabuçu e Bom Jesus dos Pobres com o preço entre R$ 12,00 e R$15,00, gerando um lucro que ela considera significativo, uma vez que o quilo de marisco processado lhe rende entre dez ou doze poções ou pratos.

Assim dona Marinalva, prepara a moqueca e os acompanhamentos, coloca sobre a cabeça em um tabuleiro e vai vender nas praias da cidade. Dessa forma, as mulheres seguem sua labuta, atuando como empreendedoras informais:

[...] marisqueiras, com seus passos miúdos, como em um balé primitivo, movimentam-se nas praias e manguezais. E nesse universo adveio uma culinária típica e apreciada por todos, famosa pela quantidade de pratos preparados com moluscos, leite de coco e azeite de dendê (LODY, 2005, p.13).

Vi meninas com a desenvoltura de mulheres adultas no manuseio de uma haste de metal, pequena foice12, confeccionada para cavar e ou raspar a areia dos manguezais e capturar os mariscos. Observei e conversei com Fernanda e Maíara, 12 e 10 anos de idade respectivamente, filhas e netas de marisqueiras, pai pescador, as meninas acompanhavam sua mãe na mariscagem, olhos fixos a me olhar, seriedade de adultas e sorrisos de crianças para a foto. Durante o tempo que permanecemos próximas, suas mãos alisavam a lama da maré como se

12 A foice das marisqueiras é um instrumento de metal com um cabo, confeccionado por elas próprias e utilizado

acariciassem um brinquedo ou pessoa, como um traço de topofilia, pequenos corpos de crianças sentados à lama da maré a encher pequenas vasilhas com os mariscos retirados da lama.

Figura 21 – Fernanda e Maíara, mariscando no manguezal em Saubara-Ba

Fonte: Inadja Vieira, 2017.

Como prenúncio da divisão sexual do trabalho no mangue, os meninos não tinham vasilhas para encher com mariscos, pois “[...] homem e mulher recebem papeis diferentes; são ensinados na infância a se comportarem de maneiras diferentes” (TUAN, 2012, p.84). Durante o tempo em que Roquilda mariscava cavando a lama e recolhendo os bebe-fumo, seu filho, um garoto de 9 anos, permaneceu ao seu lado brincando com a lama da maré, acentuando aquilo que Tuan (2012) já havia afirmado, ou seja, que embora as diferenças fisiológicas entre homem e mulher sejam especificáveis, o impacto dominante da cultura, também nesse locus, tende a acentuá-la. “[...] O lugar adquire profundo significado para o adulto mediante contínuo acréscimo de sentimento ao longo dos anos” (TUAN, 2013, p. 47), o horizonte de uma criança se expande à medida que ela cresce e o sentimento pelo lugar é influenciado pelo conhecimento de fato básico.