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O mito do herói nos jogos de representação (RPG)

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Academic year: 2021

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CARLOS AUGUSTO SERBENA

O MITO DO HERÓI NOS JOGOS DE REPRESENTAÇÃO (RPG)

Tese apresentada como requisito parcial à obtenção do grau de Doutor em Ciências Humanas, Programa Interdisciplinar de Pós-Graduação Ciências Humanas, Centro de Filosofia e Ciências Humanas- UFSC. Orientador: Prof. Dr. Rafael Raffaelli Co-orientador: Prof. Dr. Hector R. Leis

FLORIANÓPOLIS

2006

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Agradeço especialmente a Fabiane, minha esposa e companheira de todas as horas e em a qual nada teria sentido; a meus pais e familiares; ao meu orientador Prof. Rafael Raffaelli pelo acompanhamento, a todos os professores do DICH pelo aprendizado possibilitado, aos praticantes de RPG de Curitiba, especialmente ao narrador que compartilhando comigo sua experiência e jogo e de vida permitiram a realização deste trabalho.

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SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO ... 1

2. O HERÓI TRÁGICO... 10

2.1. A TRAGÉDIA GREGA E O ESPÍRITO SOCRÁTICO ... 21

2.2. ULISSES COMO HERÓI DO ESCLARECIMENTO ... 26

3. MITO DO HERÓI E AS TEORIAS DO IMAGINÁRIO... 33

3.1. IMAGEM, IMAGINAÇÃO E IMAGINÁRIO ... 33

3.2. A PSICOLOGIA ANALÍTICA DE C. G. JUNG... 40

3.3. A JORNADA DO HERÓI... 70

3.4. MITO DO HERÓI E A QUESTÃO DO SIGNIFICADO... 82

3.5. A QUESTÃO DA INTERPRETAÇÃO DOS SÍMBOLOS... 84

4. HERÓI, MODERNIDADE E INDÚSTRIA CULTURAL ... 90

4.1. MODERNIDADE E INCERTEZAS SOBRE O SUJEITO ... 90

4.2. O HERÓI NA INDÚSTRIA CULTURAL ... 97

4.3. O SIGNIFICADO CULTURAL DO JOGO ... 110

5. JOGOS DE REPRESENTAÇÃO OU RPG... 119

5.1. DESCRIÇÃO DO RPG ... 119

5.2. JOGADORES E O GRUPO ... 123

5.3. PERSONAGENS: CRIAÇÃO E INTERPRETAÇÃO ... 124

5.4. ELEMENTOS DO RPG... 129

5.5. PRECURSORES DOS JOGOS DE REPRESENTAÇÃO... 135

5.6. O INÍCIO: DUNGEONS&DRAGONS ... 136

5.7. CONSOLIDAÇÃO E MUDANÇAS NO MERCADO ... 137

5.8. RPG E A INFORMÁTICA ... 143

5.9. QUESTIONAMENTOS AO RPG ... 146

5.10. RPG NO BRASIL ... 149

6. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ... 153

6.1. A ANÁLISE SIMBÓLICA: MÉTODO DA AMPLIFICAÇÃO ... 153

6.2. PROCEDIMENTOS DE COLETA E ANÁLISE DOS DADOS ... 155

7. O MITO DO HERÓI NO RPG ... 159

7.1. CONSTRUÇÃO E DESENVOLVIMENTO DO PERSONAGEM ... 159

7.2. A DUALIDADE DO HERÓI... 173

7.3. SISTEMA D&D: O HERÓI SOLAR... 177

7.4. STORY TELLER OU VAMPIRO: HERÓI LUNAR... 180

7.5. A JORNADA DO HERÓI... 191

8. SIGNIFICADO CULTURAL DO RPG ... 205

8.1. ELEMENTOS RITUAIS NO RPG ... 205

8.2. RPG E OS RITOS DE PASSAGEM... 216

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10. O INDIVÍDUO E O RPG: UMA AVENTURA INTERIOR... 237

10.1. DESCRIÇÃO DO CASO ... 239

10.2. INÍCIO DA JORNADA: O MUNDO EM DESEQUILÍBRIO... 242

10.3. PERSONAGENS: HERÓIS E VILÃO ... 246

10.4. A JORNADA: A BUSCA DA TRANSFORMAÇÃO... 248

10.5. FINAL: EQUILÍBRIO E TRANSFORMAÇÃO ... 255

11. CONCLUSÃO... 259

12. REFERÊNCIAS ... 273

13. ANEXOS ... 288 Anexo 1 - Planilha de Personagem

Anexo 2 – Questionário sobre o RPG Anexo 3 – Categorias de codificação

Anexo 4 – Aplicação do questionário e caracterização dos jogadores Anexo 5 – Entrevistas com praticantes de RPG

Anexo 6 – Entrevista com participantes da aventura Anexo 7 – Opinião do Pastor internauta

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TABELAS

Tabela 1. Motivos de escolha dos personagens... 169

Tabela 2. Personagem preferido ... 170

Tabela 3. Sistema de jogo preferido ... 173

Tabela 4. Jogar RPG modifica ou desenvolve alguma característica pessoal? ... 197

Tabela 5. Importância do RPG ... 198

Tabela 7. Motivos para jogar RPG ... 212

Tabela 8. O que o RPG lhe possibilita fazer... 215

Tabela 9. O que atrai você no RPG? ... 225

ILUSTRAÇÕES

Ilustração 1. Esquema dos níveis da psique ... 41

Ilustração 2. Esquema dos elementos estruturais da psique ... 68

Ilustração 3. Mesa de RPG de card ou cartas... 119

Ilustração 4. Mesa de RPG de Dungeons D&D ... 120

Ilustração 5. Caracterização de personagens do story teller Vampiro ... 121

Ilustração 6. Monstros do D&D: Bugbear e Belker ... 130

Ilustração 7. Modelo de cenário de sistema dungeons ... 133

Ilustração 8. Galactus- personagem de quadrinhos em RPG... 139

Ilustração 9. Mestre Yoda de “Guerra nas Estrelas” em miniatura para RPG ... 140

Ilustração 10. XII Encontro Internacional de RPG 2004/ SP ... 150

Ilustração 11. Capa de suplemento de D&D ... 178

Ilustração 12. Figura de personagens de Vampiro ... 183

Ilustração 13. Grupo RPG simulando luta de “Guerra nas Estrelas” ... 210

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RESUMO

O jogo de representação (RPG) é um jogo de imaginação regido por regras onde uma pessoa (o mestre) gerencia um mundo imaginário, no qual os outros jogadores interpretam diversos personagens que interagem entre si e com os personagens do mestre, desenvolvendo histórias e possibilitando aos participantes serem “heróis” e viverem aventuras fantásticas em grupo e por meio da imaginação. Devido a isso, o herói no RPG relaciona-se com o mito de Dioniso e elementos da visão trágica do mundo, mas o jogo possui um lado sombrio no excesso da sua prática e patologias decorrentes. Normalmente, o RPG se insere ou na polêmica sobre a violência provocada pela televisão e pelos videogames ou como ferramenta pedagógica, mas não é abordado o seu significado para os jogadores. Assim, a partir da Psicologia Analítica e da teoria do Imaginário, o objetivo desse trabalho foi realizar uma análise simbólica da vivência do mito do herói pelos praticantes de RPG de Curitiba. Para isso foi feita entre 2003 e 2005 a aplicação de um questionário (n=71), entrevistados jogadores (n=14) com longa prática e analisada uma aventura completa de RPG. No jogo, há a vivência do mito do herói pelo jogador, com a aventura dos personagens seguindo o padrão arquetípico da jornada heróica separação-iniciação-retorno, na qual o herói ou personagem de RPG representaria a consciência do próprio jogador. Na figura do herói, o jogador projetaria o que é, o que gostaria de ser e poderia adquirir uma percepção de suas próprias características por meio da interação com os membros do grupo e da interpretação do personagem. Isso é possível porque o RPG resgata aspectos lúdicos, já que possui elementos de rituais de iniciação. No jogo, emerge em forma de fantasia o que era reprimido pelo indivíduo e pela sociedade. Ele representa também o aspecto de busca de transformação ou transcendência do sujeito que na sociedade contemporânea ocorre também por meio dos produtos da indústria cultural.

Palavras-chave: mito do herói, imaginário, arquétipo, jogos de representação, indústria cultural.

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ABSTRACT

The role playing games (RPG) are imagination games governed by rules where a person (the master) manages a imaginary world and the other players interpret several characters that interact with each other and with the character of the master, developing stories and allowing the players to be “heroes” and to live fantastic adventures with the group by using the imagination. Because of this, the RPG hero is related with the Dioniso´s myth and the elements of a tragic view of the world, but the game has a dark side related to the excessive playing and the consequent pathologies. Normally, RPG inserts itself either in the violence of television and videogames or as an educational tool, but its meaning for the players is not investigated. Therefore, the objective of this work was to analyze symbolically based in the Analitical Psychology and Imaginary Theory, the experience of the hero myth by the RPG players of Curitiba. For this purpose, from 2003 to 2005, a questionnaire (n = 71) was applied by interviewing players (n = 14) with a lot of RPG practice and a complete RPG adventure was analyzed. In the game, there is the experience of the hero myth by the player, with the characters adventure following the archetypal pattern of the separation-initiation-return heroic quest, in which the hero or RPG character would represent the self awareness of the player. In the hero image, the player would project what he is, what he would like to be and what he could acquire a perception of his own characteristics by the interaction with other members of the group and with the character’s interpretation. This is possible because the RPG rescues playful aspects as it has elements of initiation’s rituals. During the play, emerges in form of fantasy what is repressed by the individual and by the society. The game also represents the quest for transformation or transcendence of the player than in the contemporary society, also happens by the products of the cultural industry.

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1. INTRODUÇÃO

Em maio de 2004, a cidade de São Paulo sediou o segundo maior evento de cards e de Role Playing Game (RPG) do mundo, com uma estimativa de participação de 20.000 pessoas, inclusive de outras cidades e estados. Muitos chegaram vestindo fantasias de seus personagens preferidos tais como super-heróis, guerreiros interestelares, cavaleiros medievais, elfos, fadas, vampiros e outros tantos da literatura dos quadrinhos, da ficção científica e fantástica. Entretanto, dependendo da opinião de algumas autoridades como promotores públicos, pessoas comuns e religiosos, eventos como este deveriam ser proibidos, pois o RPG estaria diretamente ligado com a incitação da violência, crime e satanismo.

O RPG é um jogo de representação, onde os participantes montam seus personagens, imaginam um mundo e interpretam estes personagens construindo uma história de forma interativa, mas um participante, denominado de mestre ou narrador, dirige a história controlando os diálogos, as cenas e os desafios que podem durar algumas horas ou ter muitas sessões. Estas têm duração de algumas horas e ocorrem com freqüência semanal ao longo de meses, ou até mesmo de anos, dependendo dos jogadores e da história, gerando um grande envolvimento dos participantes com o jogo e seus personagens (Cassaro, 2005).

A polêmica sobre o RPG apareceu com grande repercussão na mídia devido ao assassinato de uma estudante de 18 anos, em Ouro Preto, no dia 14 de outubro de 2001. Segundo a polícia, aparentemente, ela jogava RPG no sistema Advanced Dungeons &

Dragons (AD&D), que consiste em um universo de fantasia medieval com cavaleiros,

castelos, feiticeiros, dragões e outros seres fantásticos, e, coincidentemente, seu personagem havia morrido no mesmo dia. O seu corpo foi encontrado em cima de um túmulo no cemitério, com as mutilações e sua posição sugerindo que ela foi vítima de um ritual de magia negra inspirado no jogo. O promotor investigou uma possível relação entre o RPG e o crime e, se comprovada, pediria a proibição do jogo no Brasil. A polêmica foi amplificada devido à utilização preconceituosa do caso e à percepção, por determinados grupos religiosos, especialmente os fundamentalistas cristãos, de que o RPG é um instrumento do demônio utilizado para aprisionar as mentes dos jovens e ensinar magia negra a eles.

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Como compreender esta dualidade no RPG? De um lado é como se fosse uma festa e um carnaval, ligado ao divertimento, à alegria e à vontade de viver; de outro ligado a algo macabro, patológico e doentio.

O jogo também se insere na polêmica sobre a violência na televisão e nos videogames onde se tem a hipótese de que assistir filmes violentos aumenta a agressividade e, por conseqüência, a violência, pois existe a suposição de que ele estimularia ainda mais a agressividade do que os filmes ou videogames, devido ao fato de que no RPG os participantes representam personagens tais como bárbaros, como o personagem de filme “Conan: O Bárbaro” (1981/2002), guerreiros, bruxos e duendes e imaginam as cenas de batalhas, lutas, duelos de magia e rituais em grupo. Outro temor é de que os jogadores poderiam confundir a imaginação ou fantasia do jogo com a realidade e, neste sentido, este jogo poderia trazer malefícios à saúde mental dos participantes (Cassaro, 2005).

Os jogos de representação foram pesquisados principalmente a partir desta visão de possível prejuízo para a personalidade ou saúde mental do jogador e de estímulo à violência e agressividade (Ascherman, 1993; Carter & Lester, 1998; DeRenard & Kline, 1990, Rosenthal et al., 1998; Simón, 1997; Simon, 1998). O problema é que a maioria destas pesquisas são experimentais, utilizando-se de questionários, e efetuam estudos de correlação estatística dentro de um modelo positivista de ciência que não permite compreender ou abordar o significado do ato de jogar para o sujeito. Eles também são utilizados como uma ferramenta pedagógica, para estimular a leitura e a aquisição de conteúdos escolares. Por exemplo, pode-se utilizar um jogo de RPG como “O Desafio dos Bandeirantes” (Klimick, Andrade & Ricon, 1994), para ensinar o conteúdo das bandeiras paulistas, pois os participantes reconstroem na imaginação o universo dos bandeirantes e aprendem, de forma lúdica, os conteúdos pedagógicos; também pode ser citado o jogo “A Mansão de Quelícera”, que é utilizado como suporte ao ensino de História da Arte para crianças de 9 a 14 anos (Vargas et al., 2006).

Sendo um jogo de imaginação, as inibições se afrouxam e pode emergir em forma de fantasia o que era reprimido pelo indivíduo e pela sociedade. Este aspecto pode ser representado pela imagem de Dioniso ou Baco, que é o deus de muitos nomes, do vinho, do êxtase, da alegria, da liberação, da catarse e da exuberância. Ele é o iniciador nos mistérios e rege a transformação. Os seus excessos visam exatamente romper as amarras e inibições individuais e sociais para alcançar a divindade. Devido a

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isso, a psicologia e a psicanálise ligaram o mito de Dioniso com a ruptura das inibições e repressões do ego, o que possibilitaria a liberação das forças primitivas e obscuras do inconsciente, e com a busca de uma transformação, muitas vezes pelo êxtase e usufruto dos sentidos (Chevalier & Geehrant, 1989). Assim, ele representa o lado sombrio da perda dos limites, do desmembramento, da dissolução da personalidade e da loucura, mas também da busca pela divindade, transformação e transcendência.

A imagem dionisíaca é uma forma de compreender a dualidade entre o aspecto lúdico e prazeroso e a “patologia” presente no RPG, posto que a sociedade ocidental e sua matriz cristã possuem uma desvalorização e negação do corpo, dos afetos e da matéria e, devido a isto, foram reprimidos a fruição do mundo, o lúdico e a potência da imagem. Esses aspectos retornam por meio dos produtos da indústria cultural e geram uma tensão, dentro da qual se insere o RPG, com a posição empirista e racionalista ainda vigente, mas em crise. A sociedade contemporânea marca um retorno das imagens e do que foi reprimido durante muito tempo e isto pode ser descrito metaforicamente pelo reaparecimento do mito de Dioniso. Este mito pode ser visto como uma metáfora da situação atual do imaginário social. Este deus relaciona-se com o prazer, a bebida, as festas, a transformação e a alegria de viver, mas também é o deus dos excessos, dos êxtases e da libertação do irracional. Ele rege o processo psicológico de transformação da personalidade através do regresso ao inconsciente e às fontes primordiais da energia psíquica. Entretanto, se em excesso ou sem algo para limitá-lo, ele manifesta a ambivalência própria do símbolo, que sempre representa a dualidade e os opostos. A libertação psíquica pode resultar em dissolução da personalidade, em expressão primitiva dos impulsos básicos de agressividade e de sexualidade ou ruptura psíquica do ego ao inconsciente gerando confusão entre a fantasia e a realidade.

Entretanto, isso também pode resgatar a dimensão do jogo ou lúdica da existência, relembrar a infância, atualizar o mito do paraíso assemelhando-se a um jogo ou um faz-de-conta, auxiliar na constituição de sua personalidade, podendo ser aproximada a uma reflexão estética e acarretando o retorno das imagens e de uma sensibilidade reprimida e negada pela razão ocidental, sendo estas imagens ligadas ao psiquismo primitivo dentro de cada indivíduo, isto é, às estruturas arquetípicas.

Assim, de forma contraditória, o avanço da tecnologia traz consigo elementos estranhos e primitivos. Na sociedade contemporânea, a mais avançada tecnologia convive com arcaísmos. Isto é representado no filme "Guerra nas Estrelas" (1977/2004), onde dois cavaleiros duelam com espadas de luz dentro de uma

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espaçonave. Da mesma forma as tecnologias desenvolvem estruturas industriais de informação e comunicação (EIC) que estimulam, criam e disseminam as imagens construindo uma nova mitologia. O indivíduo está inserido no mundo destas imagens e relaciona-se afetivamente com elas, possuindo a experiência deste universo de ficção.

Na sociedade contemporânea que já foi definida como a “sociedade do espetáculo” (Debord, 1997), pode-se falar de certa forma no retorno da imagem e de sua potência após um esquecimento e repressão da mesma pelo empirismo cientificista. Este conjunto de imagens não é apenas um reflexo das estruturas sociais ou um resíduo das percepções sensoriais, mas é inerente a toda prática humana, possui uma dinâmica própria, faz parte da natureza humana e constitui-se no que denominamos de imaginário. Atualmente sua presença pode ser visível e percebida nos espetáculos, modas, no movimento em torno de celebridades de cinema, televisão e da música, no mundo do lazer, da cultura e do esporte.

Deste modo, os produtos da indústria cultural, entre os quais o RPG, a publicidade e todo o trabalho com a imagem na sociedade contemporânea vêm a ocupar o lugar das mitologias tradicionais. Evidentemente adaptados à sociedade capitalista contemporânea, os seus produtos funcionam simultaneamente como mito e como mercadoria, sujeitos às injunções do imaginário e do mercado. Este processo em relação às estrelas de cinema de Hollywood das décadas de 1910 a 1960, analisado por Morin (1989), relaciona de um modo preciso o arcaísmo dos cultos de ídolos com a modernidade do cinema e toda a sua indústria. Ele mostra que os astros e estrelas de cinema suscitaram um “culto” que pode ser visto como uma espécie de religião e o fato paradoxal é que justamente a vida urbana e burguesa, o desenvolvimento da modernidade com as cidades, a imprensa e a tecnologia tenham possibilitado e alimentado esta forma de mitologia. Interessante notar que neste culto as personalidades da mídia retomam o padrão arquetípico do culto ao herói, sendo este a imagem ou modelo dos ideais desta sociedade.

Deste modo, eles apenas mudaram de forma com “idolatria dos cultos de personalidade, a iconografia publicitária, as mitologias políticas ou filosóficas, vieram tomar curiosamente o posto amplificado das tradicionais, das verdadeiras mitologias” (Durand, 1984: 13) e anunciam o retorno do culto ao herói (Durand, 1995: 25-53), mas agora de um novo modelo de herói. Este novo herói não se apresenta de uma forma única, como senhor de suas vontades e do seu mundo, mas sujeito à transformação e ao destino, com imagem semelhante a Dioniso.

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A participação do sujeito nas imagens da indústria cultural pelo consumo destas, isto é, pela identificação do consumidor com os heróis da mídia, acaba por ser um dos modos de constituição da identidade, de integração e de desenvolvimento psíquico. Ao imitar os seus heróis, os sujeitos vivenciam a jornada do herói sob a forma simbólica. Isto é importante porque o papel do herói é, além de servir de modelo para a sociedade, pode trazer um tesouro que representa uma ligação com os deuses ou forças transcendentes, o que para o indivíduo significa uma possibilidade de construir um significado para a sua existência.

Este processo parece ser extremamente intenso na adolescência, onde ocorre a construção da identidade individual e a passagem do mundo da infância para o mundo adulto. Dadas as dificuldades de inserção do jovem no mundo adulto, não é surpresa que os adolescentes formem grupos, gangues e construam modos de viver, de ser, imagens e totens diferentes e particulares em suas pequenas coletividades e que considerem a sua existência semelhante a um jogo, elejam ídolos e heróis, identifiquem-se com eles e tentem imitá-los.

O herói é uma das principais figuras do imaginário, representando no plano social os valores e ideais da sociedade e, no plano individual, um modelo a ser seguido que separa o indivíduo da coletividade. Neste sentido, as aventuras heróicas representam o processo de desenvolvimento psíquico e de constituição da identidade ou personalidade. Considerando que as figuras e personagens “heróicos” da mídia, como histórias em quadrinhos e cinema, substituíram as mitologias tradicionais, eles podem assumir esta função social e psíquica do herói. Isto ocorre através da participação do indivíduo em grupos que se identificam e vivenciam estes personagens tais como nos jogos de representação ou RPG.

Ele é um fenômeno interessante que ocorre na articulação entre a indústria cultural, as novas formas de sociabilidade dos jovens e da imaginação, criatividade e autonomia destes jovens em suas atividades de lazer. O RPG inicia-se na década de 1960, quando os jogos de tabuleiro que simulam batalhas (war-games) entraram na moda tornando-se um produto de grande consumo e criando uma forma de sub-cultura. Também nesta época fez grande sucesso o livro de fantasia medieval “O Senhor dos Anéis” (Tolkien, 1954/2002) Alguns grupos reconstruíram o jogo de guerra, tornando-o mais stornando-ofisticadtornando-o. Eles substituíram tornando-os exércittornando-os ptornando-or perstornando-onagens deste universtornando-o fantástico e criaram novas regras e formas interativas de participar e de contar histórias. Os jogadores puderam vivenciar os seus heróis neste novo jogo e viver as

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aventuras que antes eram apenas lidas. O novo jogo, denominado de RPG ou jogos de representação, deixou de ser competitivo, tornando-se cooperativo e mais próximo de uma forma de compor e interpretar uma história de forma interativa e coletiva.

Fundamentalmente, ele pode ser considerado como um jogo de imaginação regido por regras, onde uma pessoa (o mestre) gerencia um mundo imaginário, no qual os personagens interagem entre si e com os oponentes (gerenciados pelo mestre) e desenvolvem uma história. Estes personagens são criados e vividos pelos outros jogadores a partir de uma série de regras e atributos podendo-se identificar neles características físicas, habilidades e uma personalidade, sendo para o jogador como interpretar e viver um outro personagem. As interações entre os personagens e o mundo são descritas em um livro de regras e o fator aleatório é inserido utilizando-se dados (por exemplo, o combate é parecido com a guerra no jogo de tabuleiro “WAR”). O jogo pode ser feito apenas no papel ou com marionetes, maquetes ou em uma encenação chamada de live.

O RPG ocorre como uma atividade lúdica, onde há participação afetiva do indivíduo no grupo e nas imagens construídas coletivamente; é construída uma história de forma coletiva e interativa. Os participantes constroem personagens, envolvem-se com eles, participam de aventuras, vivenciam de forma lúdica um mundo diferente e fantástico. Nele fazem coisas que não podem fazer ou não são permitidas na vida real, tal como incorporar super-heróis, magos, anões, elfos ou vampiros, isto é, ter uma “vida” com eles e ser o “herói” de sua própria história.

Deste modo, o participante do jogo vivencia ou experimenta em grupo e, por meio de sua imaginação e fantasia, a possibilidade de ser um herói e viver uma aventura fantástica, considerando que o herói é o símbolo do ego em seu desenvolvimento psicológico e um modelo a ser seguido. Isto fica claro na chamada dos livros de aventura de RPG: “Procuram-se aventureiros: participe você também do jogo mais emocionante do planeta!” (AbrilJovem, 2001) e no texto introdutório “se você optou por ser um dos heróis da aventura...” (AbrilJovem, 2001). Este aspecto da experiência ou vivência do herói salienta-se ainda mais pelo fato de muitas aventuras utilizarem-se de personagens e ambientes dos produtos da mídia. Assim, um indivíduo fã do Batman pode “ser” Batman em uma aventura de RPG, bastando para isto adquirir os livros que descrevem os personagens, as regras e os ambientes deste universo ficcional, estudá-los e reunir um grupo para jogar.

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Os jogos de representação foram abordados como objeto de pesquisa principalmente a partir de suas possibilidades pedagógicas, como um meio de estímulo à leitura e ao aprendizado, como estímulo ou eliciador da agressividade e se prejudicial à personalidade ou à saúde mental do jogador, não abordando a sua possibilidade como elemento significativo e representativo de uma das formas de constituição da subjetividade na sociedade contemporânea, onde os modelos ou “heróis” aparecem nos produtos da indústria cultural. Escapou a possibilidade do RPG ser um dos modos pelos quais o indivíduo atualiza os processos inconscientes da psique, isto é, os símbolos e imagens arquetípicas. Isso pode ocorrer no jogo por meio da representação pelos jogadores de personagens e aventuras oriundas da indústria cultural que possuem modelos heróicos. O processo de vivência e atualização das imagens arquetípicas é individual e não possui um local específico onde ocorre, sendo algo natural e uma necessidade. Ele ocorre de forma consciente e inconsciente, mobilizando o sujeito como um todo e aparece, no caso da figura do herói, quando ele identifica-se com figuras heróicas, elege heróis ou procura ser um deles. Neste sentido, trata-se de um processo que “extravasa” os canais tradicionais - como a religião - e acontece no cotidiano da sociedade, sendo visível especialmente em produtos da mídia, tal como o RPG, onde seus praticantes realizam um investimento emocional e afetivo em termos de tempo, interesse e dinheiro.

Dentro da perspectiva do mito, do arquétipo e do imaginário, o jogo de representação ou RPG neste trabalho é considerado como uma das manifestações ou modulações sociais da vivência do arquétipo do herói, especialmente do modelo de herói ligado a Dioniso.

Além da cidade de São Paulo, Curitiba também possui uma certa tradição e apresenta um número razoável de jogadores de RPG. Em 2004, segundo dois jovens que lançaram uma revista de RPG em Curitiba, a cidade possuía em torno de 4000 praticantes de RPG (Marcon, 2004). Há também encontros regulares dos praticantes, sendo o maior deles o Encontro Internacional de RPG que é vinculado ao encontro de São Paulo. Em 2003 ele ocorreu na Gibiteca da Fundação Cultural de Curitiba reunindo, devido à divulgação, em torno de 300 pessoas. Já em 2005, houve o 13° Encontro Internacional de RPG que reuniu 1.500 pessoas em Curitiba (Tudo Paraná, 2005). Tudo isso ocorre devido a uma certa tradição existente na cidade e que se articula e se manifesta por meio da Gibiteca de Curitiba. Ela faz parte do órgão da Prefeitura responsável pela política cultural da cidade, a Fundação Cultural de Curitiba.

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Ela é a primeira do Brasil, sendo inaugurada em 1982 e, desde então, vêm realizando diversas exposições, cursos, festivais de fanzines, quadrinhos e RPG entre outros. Possui um acervo de quarenta mil gibis e média mensal de três mil leitores (Calazans, 1997).

Desse modo, o objetivo deste trabalho é o de conduzir uma análise simbólica da vivência do mito do herói pelos praticantes de RPG de Curitiba, utilizando como referencial teórico a Psicologia Analítica e a teoria do Imaginário.

Na sociedade ocidental moderna, tradicionalmente são enfatizadas as características do herói guerreiro, isto é, aquele que vence seus adversários, é superior aos demais e não possui dúvidas. Entretanto, a imagem do herói é muito mais complexa que isso, pois ele é um modelo tanto para a sociedade - como um ideal de sujeito ou cidadão - quanto para o indivíduo, pois simboliza o eu ideal e as suas aventuras e batalhas, os processos psíquicos que participam da constituição da personalidade. Isso pode ser observado nas mudanças que ocorreram na imagem do herói na sociedade moderna. Nela, ele aparece fragmentado, dividido, com dúvidas, poderes limitados e, muitas vezes, perde as batalhas.

Pode-se colocar que as contradições do herói moderno refletem as próprias contradições do sujeito na modernidade e que isso já possui um antecedente histórico: o herói trágico grego. As antinomias na imagem do herói não permitem que ele realize totalmente o papel de iniciador do sujeito na sociedade, pois é um modelo cindido. Essa iniciação é representada nas aventuras do herói e nos comportamentos e atitudes que assume para vencer as suas batalhas.

Entretanto, essa iniciação não é apenas social, pois as batalhas representam também o processo de constituição da consciência contra os impulsos ou pulsões destrutivos do inconsciente. Assim, o herói é um modelo ou um arquétipo da psique humana e o RPG é uma prática ligada ao mito ou arquétipo do herói. A vivência desse mito pelo jogador na sua prática de jogo pode possuir elementos ou características de um processo ritual, especialmente de iniciação, pois todo ritual iniciatório comporta desafios e possui como personagem central o herói que é representado pelo jogador interpretando o seu personagem. Neste caso, o herói ou personagem de RPG representaria a consciência do próprio jogador e a aventura do RPG seguiria aproximadamente o modelo do mito do herói.

Um dos aspectos trágicos do herói é que ele ultrapassa os limites do ser humano, adquirindo um orgulho desmedido ou hybris e sendo castigado pelos deuses. Isso

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poderia referir-se aos “excessos” de Dioniso, deus que rege a iniciação e a transformação, e o seu lado sombrio com o excesso da prática do jogo e patologias decorrentes.

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2.

O HERÓI TRÁGICO

A representação do herói aparece claramente na mitologia heróica grega, sendo muito relacionada com a cidade-estado grega. Nessa mitologia há uma separação entre o mundo dos mortais e dos deuses. O herói pode ser um intermediário entre eles, pois a transfiguração do mortal comum ao mundo divino não é uma opção possível nesta mitologia. Este papel intermediário entre os deuses e os homens é realizado pelos heróis que são divinizados, pois para os gregos a existência humana significativa terminava com a morte; a alma era uma sombra, quase um autômato, que se dirigia ao Hades e lá permanecia. De forma diferente, o herói era individualizado, pois podia tornar-se uma potência divina, um daimon ou intermediário entre os homens e os deuses e continuava a agir após a morte.

Esta noção originou vários cultos aos heróis, sendo um dos principais a busca de proteção do herói para a cidade em guerra através de suas relíquias. O processo de iniciação do herói também se relaciona fortemente com a passagem do jovem grego ao estágio de cidadão, quando então lhe é permitido participar ativamente da vida política da cidade ou pólis. O culto ao herói também se prolonga nas ciências marciais e nas competições atléticas de luta e combates, a agonística. Inclusive alguns atletas célebres foram transformados em heróis. Uma das tarefas do herói era de fundar cidades e, assim sendo, o seu culto possui um caráter cívico, pois “é como agente da transformação criadora, de que surgiu a ordem existente no mundo atual [a cidade grega], que é também, no fundo, obra sua, que o herói está sempre pronto a defender o

status quo vigente” (Brandão, 1998b: 68).

Devido a isso, o culto do herói teve importância fundamental e grande prestígio na Grécia clássica, onde houve maior proeminência do seu culto. Basicamente, o herói grego era definido como um guardião que nasceu para servir, sendo uma idealização do homem grego e representando os seus valores, inclusive com atributos contraditórios.

Ele sempre possui uma ascendência divina, sendo normalmente filho de uma mortal com um deus. Desde o nascimento é marcado por situações críticas e as supera com seus atributos pessoais. Ele possui duas virtudes características de sua condição heróica: a aretê ou superioridade natural em relação aos homens comuns e a timé, isto é, um sentido muito forte de honorabilidade pessoal. As próprias ações dos heróis não

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ocorreram em um tempo humano, mas no tempo cosmogônico da origem do mundo, da vitória de Zeus sobre os Titãs e da transformação do caos em um mundo organizado com regras, normas e estruturas. Tudo isto refletindo o processo de consolidação das cidades-estados gregas, pois “com os olímpicos, e por assim dizer, sem o seu conhecimento, os inventores das cidades-estado fabricam deuses-cidadãos, divindades ditas “políades” que regem o panteão de uma cidade, deuses estreitamente implicados no cotidiano social e político” (Sissa & Detiene, 1990: 184).

A própria educação do cidadão reflete-se na formação do herói. Ele é separado da sua família paterna e recebe uma educação especial que pode ser considerada como um rito de iniciação. O modelo de educador dos gregos foi o centauro Quiron. Por ele passaram Jasão, Peleu, Asclépio e Aquiles entre outros heróis. Quiron possuía um saber enciclopédico, era um médico famoso, dominava a arte da oratória e da adivinhação; ele possuía vários atributos que o possibilitavam ser considerado um modelo para os jovens. O centauro residia em uma gruta e também era considerado um guia espiritual ou xamã, o que salientava o aspecto iniciatório. Este processo acabava por adicionar ao herói uma ancoragem ou invólucro espiritual que possibilitava ao mesmo enfrentar os desafios e os monstros. Dentre os comportamentos ou atitudes que caracterizam a iniciação do herói há o corte de cabelo, a mudança de nome, o travestismo, a homossexualidade, a mudança de sexo e o hieros gamos ou casamento sagrado.

Durante a sua existência, ele realiza feitos e ações espetaculares, mas está condenado a um fim trágico e ao fracasso em sua existência devido à imperfeição do seu nascimento e a um descontrole natural dos seus impulsos. O herói apresenta vários descomedimentos devido ao seu descontrole tais como o excesso de apetite sexual, a gulodice, astúcia, ladroagem, violência desmedida e sanguinária. Ele pode inclusive ser relacionado aos monstros, pois “a infração de muitos heróis, tanto nos incestos, quanto nos adultérios é consumada em sã consciência” (Brandão, 1998b: 59).

Isso ocorre porque o herói, mais próximo dos deuses que dos homens, está sempre em situações limítrofes e a sua busca de excelência, de virtude e a sua aretê empurram-no a ultrapassar os limites naturais e adequados (o métron), desenvolvendo nele a insolência e o orgulho desmedido (a hybris). Deste modo, a imagem do herói reúne características contraditórias e ambivalentes. Ele pode ser simultaneamente generoso e cruel, bom e mau, benfeitor e uma calamidade. Ao final e devido a estas características, a morte do herói costuma ser traumática, violenta ou solitária.

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Entretanto, a morte torna clara a sua diferença em relação aos mortais comuns, a sua individualidade e o seu papel como fundador ou protetor das cidades e da ordem social vigente e também como um intermediário entre os homens e os deuses da pólis.

Esse modelo de herói não questiona, pois sabe do seu destino, do seu lugar no mundo e na sociedade e é um modelo idealizado do homem grego. Ele corresponde ao ideal cívico e social do cidadão grego, mas não é o único modelo heróico existente, pois está em forte contraste com o herói que é encenado no drama trágico. Nesse, os personagens são questionados através de um debate que ocorre entre os participantes do coro. Assim, o herói trágico não é um modelo de conduta, mas “tornou-se, para si mesmo e para os outros, um problema” (Vernant & Vidal-Naquet, 1977: 12), pois ele é um homem que vive o debate e as oposições entre valores contraditórios existentes na realidade e que não estão organizados em um sistema coerente. Ele é obrigado a realizar uma escolha definitiva, orientando a sua ação em um universo instável, de múltiplos significados e de valores ambíguos.

A tragédia é um fenômeno ao mesmo tempo social, estético e psicológico, que ocorreu na Grécia ao final do século VI a.C., durando perto de oitenta anos e que traduz aspectos da experiência humana desapercebidos até este momento. Ela marca uma etapa na constituição do homem como um sujeito autônomo e responsável por seus atos e representa o pensamento social da pólis grega, em um momento no qual ocorre o confronto entre as antigas representações religiosas e o advento do pensamento jurídico e social. Há a consciência de que os planos divino e humano são distintos e opostos, mas também inseparáveis. Percebe-se que a atividade e a ação humana são objeto de uma reflexão e de um debate, mas que eles ainda não adquiriram um grau de autonomia que bastem a si mesmas, tal como no pensamento moderno. O sentido trágico da responsabilidade e o domínio da tragédia situam-se nesta

“zona fronteiriça aonde os atos humanos vêm articular-se com as potências divinas, onde revelam seu verdadeiro sentido, ignorado até por aqueles que os praticaram e por eles são os responsáveis, inserindo-se numa ordem que ultrapassa o homem e a ele escapa” (Vernant & Vidal-Naquet, 1977: 14).

Como gênero literário, a tragédia é a expressão de um determinado modelo de experiência humana que se relaciona com as condições histórico-sociais da Grécia, com a própria consciência trágica emergindo e desenvolvendo-se com a tragédia. No

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modelo trágico, há um questionamento dos valores e do homem, qualificado como

deinós,

“monstro incompreensível e desnorteante, agente e paciente ao mesmo tempo, culpado e inocente ao mesmo tempo, lúcido e cego, senhor de toda a natureza através de seu espírito industrioso, mas incapaz de governar a si mesmo?” (Vernant & Vidal-Naquet, 1977: 19).

Este questionamento estende-se ao universo do mito, que está se dissolvendo, e aos valores fundamentais do universo da cidade e, portanto, a tragédia apresenta as realidades humana e social como dilaceradas, divididas, problemáticas e atualiza a antiga lenda ou mito do herói nos personagens que vivem a tensão entre o passado e o presente, entre o universo do mito e da cidade o que contrasta com o cosmos luminoso e a clareza dos deuses olímpicos.

Sendo um fenômeno que ocorre em vários planos, pode-se considerar que a tragédia apresenta-se sob os aspectos de gênero trágico, representação trágica e homem trágico, havendo uma impossibilidade de abarcar completamente a natureza da tragédia em uma única definição, dada a sua complexidade. Assim, o termo “trágico” relaciona-se não apenas a um gênero literário ou teatral, mas a uma certa maneira de conceber e perceber o mundo. Esta denominação é utilizada por Aristóteles (384-322 a.C.) no sentido de solene e de desmedido, por autores posteriores como sinônimo de terrível, estarrecedor, empolado, bombástico e desagradável e sanguinário entre outros. Apesar disto, ela sempre indica algo que ultrapassa os limites do cotidiano e do comum (Lesky, 1996). Isso já aparece na definição dada por Aristóteles1 na sua obra “Poética”, na qual ela é a:

“imitação de uma ação de caráter elevado, completa e de certa extensão, em linguagem ornamentada e com as várias espécies de ornamentos distribuídas pelas diversas partes [do drama], [imitação que se efetua] não por narrativa, mas mediante atores, e que, suscitando o terror e a piedade, tem por efeito a purificação destas emoções” (Aristóteles, 1966: 74).

1

Está além da pretensão desse trabalho realizar uma discussão sobre a obra de Aristóteles, mas como dele parte a discussão sobre a tragédia convém salientar que, como toda a obra desse autor, não existem os originais, mas traduções, cópias e interpretações que foram realizadas ao longo do tempo e que “se há livro que melhor exemplifique o caráter “acroamático” [relativo ao ensino oral, esotérico, sublime] de todos os que integram o Corpus Aristotelicum, esse é a Poética. Nenhum outro se nos afigura mais “torturado” por notas marginais, expressões parentéticas e acréscimos sucessivos do que este.” (Sousa, 1966: 11), pois as principais preocupações na Idade Média referiam-se a lógica e a metafísica e, desse modo, a obra “Poética” de Aristóteles passou quase despercebida nesse período.

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Considerando que “as ações e o mito constituem a finalidade da tragédia [... e que...] o mito é o princípio e como que a alma da tragédia; só depois vêm os caracteres” (Aristóteles, 1966: 75), a sua ligação com o mito, a encenação cênica e todos os seus componentes eliciam emoções, principalmente o terror e a piedade, que são purificadas pela catarse (Brandão, 1990: 12s). Esta definição distingue epopéia de tragédia e concebe a arte da tragédia como mimese ou imitação da realidade apresentando cenas dolorosas e infelizes desfechos, mas sendo apresentadas em uma realidade poética que é artificial, e possuem como matéria prima o mito. Sendo arte, a tragédia é uma mimese e não possui uma função moral, não sendo boa nem má, mas funcionando como uma catarse (kátharsis), ou seja, uma purificação ou purgação. O poeta ou artista elabora uma tragédia a partir dos mitos em sua forma bruta, introduzindo e “filtrando” elementos do mito e da realidade e, deste modo, tornando a tragédia esteticamente operante. Isto significa que ela evoca no espectador sentimentos tais como terror e piedade, que opera “a purgação [catarse] própria a tais emoções, por meio de um equilíbrio que confere aos sentimentos um estado de pureza desvinculado do real vivido” (Brandão, 1990: 14).

A tragédia possui origem religiosa, relacionada com o culto do deus Dioniso2, onde era encenada nas festas em sua homenagem. Todo o ano, por ocasião da colheita da uva, celebrava-se em Atenas e por toda a Ática a festa do vinho novo, na qual os participantes embriagavam-se, cantavam e dançavam freneticamente até caírem sem sentidos. Eles disfarçavam-se de sátiros ou homens-bode, daí surgindo o termo “tragédia” ou tragoeida em latim, da junção de tragos (bode) e oidé (canto). Outra corrente coloca que a sua origem vem de tragos theios ou bode divino, que se sacrificava em homenagem a Dioniso no início destas festividades (Brandão, 1990). Entretanto, há indicações de que os sátiros nunca foram identificados com os bodes, sendo o culto a Dioniso ligado às corças e aos cabritos (Romilly, 1998).

Ela nasce porque as festas em homenagem a Dioniso perderam seu caráter original, posto que eram relacionadas aos deuses agrários e à pequena comunidade, e passaram a agregar elementos da cidade grega ou pólis que eram estranhos a esta divindade. Assim, a tragédia situa-se entre o mundo da pólis, a sociedade grega e o

2

A grafia dessa figura mitológica varia segundo a tradução para o português. Nesse trabalho é utilizado o termo “Dioniso” conforme o livro de K. Kerényi (2002) e que parece ser a mais utilizada, entretanto ele também aparece como Dionísio e Dioníso.

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tempo do mito, surgindo no final do século IV a. C., quando a linguagem do mito não representava mais a realidade política da cidade grega, e durou perto de oitenta anos (Romilly, 1998).

Na representação trágica, existe uma dualidade entre o coro e o personagem principal: o herói trágico. O coro aparece disfarçado, sendo um personagem coletivo encarnado por um grupo de cidadãos e ligado a Dioniso. O herói é representado por um ator profissional que porta uma máscara, esta é a marca distintiva do herói como uma categoria especial e possui papel estético. A dualidade da tragédia ocorre no tempo do mito e da organização social da pólis grega e entre o coro, que representa o elemento dionisíaco, e o herói trágico, que é ao mesmo tempo sujeito aos deuses e à sociedade humana. Ela é melhor compreendida através do processo de integração de Dioniso e de seus cultos na sociedade grega através da tragédia.

Deve-se observar que o deus grego Dioniso não possui uma etimologia definida, sendo seu nome originado provavelmente da Trácia. Ele era designado também pelos epítetos de Iaco, Brômio e Zagreu. Iaco representava a alma coletiva dos iniciados; é o avatar de Dioniso, o deus que conduzia a procissão dos iniciados nos mistérios de Elêusis. Etimologicamente significa “grande grito”, sendo uma exclamação que indica a presença de um daimon ou guia dos mistérios e, deste modo, representa o introdutor nos mistérios. O outro epíteto, Brômio, era entoado nos hinos a Dioniso significando “ruidoso e palpitante” e era relacionado com o transe que ocorre quando o deus se apossa de seus colaboradores. No mundo mediterrâneo, especialmente em Creta, Dioniso é denominado de Zagreu, mais relacionado ao seu lado místico, sendo mais fiel ao mundo arcaico e significando “O Grande Caçador”. De caráter noturno, era considerado por Ésquilo como equivalente a Hades ou Plutão, com seu culto relacionado com o orgiasmo, o consumo de carne crua (omofagia) e a Grande Mãe, sendo o primeiro Dioniso dos órficos (Brandão, 1998a: 113-140).

Na mitologia órfica, Zagreu, o primeiro Dioniso, nasceu da relação entre Zeus e Perséfone, sendo o preferido de Zeus e destinado a sucedê-lo. Entretanto, a esposa de Zeus perseguia-o por ciúme e ele foi escondido nas florestas do Parnaso por Apolo e os Curetes para a sua proteção. Hera descobriu o seu destino e enviou os Titãs para raptá-lo e matá-raptá-lo. Eles atraíram o jovem deus com brinquedos místicos e não foram reconhecidos, pois estavam com o rosto polvilhado de gesso. Após isto, “fizeram-no em pedaços, cozinharam suas carnes em um caldeirão e as devoraram” (Brandão, 1998a: 117). Devido a isto, Zeus fulminou os Titãs com os seus raios e os homens

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foram criados de suas cinzas. Entretanto, o coração ainda pulsando do jovem deus foi salvo por Atena ou Deméter, conforme a versão. O coração foi entregue pelas deusas à princesa tebana Sêmele, que era humana e mortal. Esta o engoliu e tornou-se grávida do segundo Dioniso. Algumas versões colocam que Zeus engoliu o coração e depois fecundou Sêmele.

Tomando conhecimento da relação amorosa de Zeus com Sêmele, Hera instigou a princesa a exigir que seu amante divino manifestasse-se diante dela em todo o seu esplendor para eliminá-la. Ele o fez e então o palácio da princesa incendiou-se e ela morreu carbonizada, mas o feto foi salvo, pois Zeus retirou-o apressadamente do ventre carbonizado de sua amante e colocou-o em sua coxa para completar a gestação. Ao nascer, a criança foi levada para uma corte distante, mas Hera fez a família real desta corte enlouquecer e se matar. Temendo a perseguição, Zeus transformou Dioniso em um bode que foi levado por Hermes para o monte Nisa, onde ficou sob o cuidado das ninfas e dos sátiros.

O tema do surgimento do homem das cinzas mostra a duplicidade humana: o mal do homem oriundo das cinzas dos Titãs e o bem devido à parte de Dioniso. O desmembramento do menino e seu cozimento convergem para um rito que na Grécia tem por objetivo conferir a imortalidade e outras virtudes, além disto a passagem pelo fogo caracteriza a iniciação xamânica. A perseguição de Hera, que é a deusa e protetora dos casamentos, a Dioniso relaciona-se com a oposição entre a ordem instituída e a orgia e o desregramento de seus cultos. Nos mitos gregos, o filho de um deus e uma mortal gera normalmente um herói, isto é, um mortal dotado de qualidades excepcionais, mas não um deus. Dioniso, ao ser gerado da coxa de Zeus, será uma emanação direta dele, um deus e um imortal e devido a este segundo nascimento, ele tornou-se tão poderoso que pôde retirar a sua mãe Sêmele do Hades e conferir-lhe a imortalidade.

O culto a Dioniso já estava presente Grécia antiga ou Hélade desde o séc. XIII ou XIV a.C.. Era um deus agrário, uma divindade da natureza ligado ao ciclo da morte e do renascimento e às potências geradoras da vida, sendo cultuado pelo povo e camponeses e relacionado ao êxtase, a liberação e entusiasmo. Ele aparece na pólis grega somente a partir do séc. IV a.C., pois até séc. VII a.C. Atenas era dominada pelos nobres ou Eupátridas. Nesta época, somente eles podiam ter posses e defender a cidade, eram senhores de tudo e se ocupavam das terras, do governo, das guerras e da religião, que era a sua expressão divina. Esta estrutura social refletia-se na organização

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dos deuses olímpicos de Zeus, Hera, Atenas e Apolo entre outros. Deste modo “a pólis e seus Eupátridas eram guardados politicamente pelos imortais do Olimpo” (Brandão, 1998b: 124).

Na Grécia Antiga, as diversas correntes religiosas buscavam o “conhecimento contemplativo (gnósis), a purificação da vontade para receber o conhecimento divino (kátharsis) e libertação desta vida geradora, [...] para uma vida de imortalidade (athanasia)” (Brandão, 1990: 11). Assim, as correntes religiosas místicas procuravam libertar-se desta vida e do ciclo de morte e nascimentos para a imortalidade através da purificação da vontade, abrindo-se para receber o divino (khatársis) e o conhecimento divino (gnosis). Isto era proclamado por divindades essencialmente populares e relacionadas à vegetação e à natureza, principalmente Dioniso. Este modelo entrava em grande conflito com a religião oficial da cidade grega que era dos deuses do Olimpo, cujo líder era Zeus, pois este reprimia qualquer tentativa dos mortais conseguirem a imortalidade, e o êxtase e o entusiasmo relacionado ao deus Dioniso liberavam o homem de condicionamentos e interditos éticos, morais, sociais e políticos. Isto ameaçava os deuses olímpicos e a cidade grega, pois o adorador de Dioniso, que saía de si pelo êxtase, superava a condição humana através do entusiasmo e comungava com a imortalidade tornando-se um herói (anér). Deste modo, o culto dionisíaco e a sua experiência religiosa colidiam com a religião oficial e existiam muitos pedidos oficiais para a moderação e o equilíbrio.

O espaço para o povo e para o culto a Dioniso abriu-se com a democracia, onde os nobres perderam parte do seu poder e o povo ascendeu. Isto ocorreu principalmente com Pisistrato (605-527 a.C.) que buscou o nivelamento das classes sociais e a conciliação dos diversos cultos pela transformação de alguns cultos ligados a Dioniso, levando ao estabelecimento de quatro grandes festas em homenagem ao deus do vinho e do êxtase: Dionísias Rurais, Lenéias, Dionísias Urbanas ou Grandes Dionísias e Antestérias.

Existem poucas informações a respeitos das Lenéias e das Dionísias Rurais. Sobre estas, sabe-se que são as mais antigas festas da Ática em homenagem a Dioniso, provavelmente destinavam-se a promover a fertilidade no meio rural. A cerimônia principal consistia em uma procissão que escoltava um falo, era festiva com cantos e danças na qual os participantes disfarçavam-se de animais ou utilizavam máscaras. A partir do século V a.C. acrescentaram-se concursos de tragédias e comédias a elas.

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As Dionísias Urbanas eram celebradas na primavera, ao final de março, duravam seis dias e participavam delas todo o mundo helênico e embaixadores estrangeiros. No primeiro dia ocorria uma grande e majestosa procissão onde transportava-se a estátua de Dioniso, deus do teatro, até o seu santuário. No segundo e terceiro dias realizavam-se os concursos dos Coros Ditirâmbicos3. Eram dez coros compostos por cinqüenta integrantes que dançavam ao redor do trono de Dioniso. Os três últimos dias eram ocupados pelos concursos dramáticos onde representavam-se três tragédias, uma a cada manhã, e um drama satírico, que possui esta denominação porque os personagens integrantes do coro se disfarçavam de sátiros, seres metade homem, metade bode e companheiros de Dioniso.

Inicialmente parece ter havido uma coexistência pacífica entre a tragédia, o drama satírico e ditirambo, mas a tragédia, desenvolvendo-se com temas solenes, majestosos e ligados ao ciclo dos mitos heróicos, desvinculou-se do drama satírico e perdeu muito do seu caráter dionisíaco. Entretanto, em 490 a.C. o poeta Prátinas realizou uma reforma devolvendo obrigatoriamente a Dioniso os coros, satisfazendo o povo que reclamava da ausência do deus do êxtase e da transformação.

Deve-se salientar que desde Píndaro (520-420 a.C.) a poesia e a tragédia tinham um objetivo educativo que satisfazia o papel da tragédia como uma liturgia e como um anexo da religião grega, apesar da presença de Dioniso que rompia com as regras e limites sociais. Isto pode ser observado no esquema trágico, onde o homem, um simples mortal (ánthropos), ultrapassa a medida de cada um (métron) e torna-se um herói (anér). No culto a Dioniso, isto ocorria após a dança vertiginosa ou a embriaguez no qual os participantes perdiam a consciência, acreditavam “sair de si”, em um “mergulho em Dioniso” pelo processo do êxtase e do entusiasmo. Deste modo, os praticantes comungavam com a imortalidade, ultrapassavam a medida do homem e tornavam-se “heróis”, como sendo “aquele que responde em êxtase e entusiasmo, a saber, o ator” (Brandão, 1998a: 132). Entretanto, ao exceder os limites do homem mortal o “ator” ou “herói” torna-se um rival dos deuses, pois, a medida natural do homem (métron) era ultrapassada, sendo considerado do ponto de vista da pólis uma violência contra si mesmo e aos deuses olímpicos imortais. Ele incidiu no

3

“Ditirambo [...] é uma canção coral cujo objetivo era, quando do sacrifício de uma vítima para gerar um êxtase coletivo com a ajuda de movimentos rítmicos, aclamações e vociferações rituais. Quando, a partir dos séculos VII-VI a.C. se desenvolveu no mundo grego o lirismo coral, o ditirambo se tornou um gênero literário, dado o acréscimo de partes cantadas [...] pelo regente [que] eram trechos líricos em temas adaptados às circunstâncias e à pessoa de Dioniso” (Brandão, 1988b: 128).

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descomedimento (hybris), o que necessita de uma punição divina (némesis). Por conseqüência, os deuses punem o herói através da vingança e o ciúme divinos que provocam no herói a “cegueira da razão” (até) e tudo o que este herói executar “daqui por diante e terá que fazê-lo, realizá-lo-á contra si mesmo” (Brandão, 1998a: 132), caindo sobre ele o destino cego (Moira) (Brandão, 1990).

Assim, a característica fundamental da tragédia é que a medida do ser humano (metron) é ultrapassada e daí advêm conseqüências inevitáveis e a pólis grega, com a mensagem apolínea de moderação, comedimento e da ética rigorosa, onde cada um deve respeitar os seus limites senão será punido pelos deuses e pelo destino; pôde integrar a tragédia na sua religião e liturgia.

Esta mensagem de moderação e comedimento contrasta com a mais antiga e quarta grande festa em homenagem a Dioniso: as Antestérias. Era uma festa da primavera, em se esperava o rejuvenescimento da natureza, uma nova brotação, daí o seu significado de “festa das flores”. Realizava-se durante três dias em fins de fevereiro e início de março, com dedicação total a Dioniso, mas restringindo-se ao campo da sensibilidade, sem atingir a reflexão como na tragédia.

No primeiro dia, abriam-se os tonéis de vinho, transportavam-no até o santuário de Dioniso, realizava-se uma libação ao deus e iniciava-se a bebedeira sagrada. O segundo dia era consagrado ao concurso dos beberrões e realizava-se uma procissão para comemorar a chegada do deus a pólis. Como no mito ele tinha vindo do mar, o cortejo era composto por uma embarcação com Dioniso empunhando uma videira e acompanhado por dois sátiros nus sobre uma carroça que era puxada por também dois sátiros. Acompanhavam a procissão vários componentes cantando, dançando, fantasiados de sátiros ou portando máscaras e um touro destinado ao sacrifício.

Ao chegar no santuário, ocorriam várias cerimônias e a Rainha, representada por um sacerdote mascarado, era considerada esposa de Dioniso. Esta subia na embarcação, agora nupcial, que conduzia o casal para a antiga residência real localizada na parte baixa da cidade, onde se consumava o casamento sagrado entre o rei Dioniso, que exercia a função sagrada da fecundação, e a rainha que representava a cidade grega. Isso simbolizava a união do deus com a totalidade da pólis.

No terceiro dia se colhiam ramos com espinhos, todos se enfeitavam com eles, as portas das casas eram pintadas de preto e todos os templos, exceto um, eram fechados e orava-se pelos mortos. Isto ocorria porque este dia era consagrado aos mortos e às deusas dos mortos.

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O processo de integração de Dioniso na pólis grega foi longo e demorado devido ao seu caráter libertário e independente que se apresenta em oposição ao modelo dos deuses oficiais da sociedade grega, os deuses olímpicos patrilineares e repressivos. Sua grande inovação foi permitir uma ligação entre o mundo dos deuses e dos homens, que antes dele acreditava-se que eram indelevelmente separados. Assim,

“a metamórphosis foi exatamente a escada que permitiu ao homem penetrar no mundo dos deuses. Os mortais, através do êxtase e do entusiasmo, aceitavam de bom grado “alienar-se” na esperança de uma transfiguração” (Brandão, 1998a: 140).

Essa transfiguração era interditada ao homem comum e cidadão da pólis grega. Desse modo, os interesses e ideais do indivíduo estavam em contraposição aos da sociedade grega e esta tensão reflete-se na tragédia por meio da dualidade do herói trágico que quer ou imagina definir o seu destino, mas termina ao encontro dele e por seguir os ditames divinos.

Portanto, a existência do herói trágico se processa em dois planos inseparáveis, mas autônomos e suficientes em si mesmos para explicar o desenrolar do drama. A ação, as atitudes, a fala e os sentimentos do herói dependem de seu caráter ou ethos, mas simultaneamente elas são a expressão de uma potência religiosa ou daimon que age por meio deles. A lógica da ação está no caráter ou ethos do herói, que se revela como a manifestação de um daimon, uma potência divina. Deste modo, o que aparece como daimon no homem é o seu caráter e, ao mesmo tempo e no seu inverso, o que se presume que é o seu caráter é o daimon ou demônio que atua através do herói. A ação dramática se desenrola simultaneamente na existência humana, que é feita de instantes sucessivos e limitados, e também no tempo dos deuses, onipotentes, e que engloba a totalidade da existência. Nesta confrontação entre os tempos do homem e dos deuses, a tragédia “traz a revelação fulgurante do divino no próprio curso das ações humanas” (Vernant & Vidal-Naquet, 1977: 27). O homem e a sua atividade são problemáticos, com um duplo sentido ou significado que não pode ser determinado ou esgotado.

No universo trágico, o conflito se estende até mesmo ao mundo dos deuses, mas as suas oposições e contradições aparecem no plano da existência humana, inclusive entre uma religião ou valores familiares e públicos relacionados ao Estado. A existência de diversos planos no drama reflete-se na linguagem, onde as palavras assumem diferentes significados conforme proferidas por diversos personagens. O

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herói pode atuar e conferir um determinado sentido a uma palavra, mas no decurso da trama um novo significado que ele não reconhecia pode aparecer para esta mesma palavra, tal como uma armadilha. Estes múltiplos níveis, ambigüidades e diversos sentidos da linguagem e da ação dos personagens são acessíveis apenas ao espectador. A mensagem trágica comunica que “nas palavras trocadas pelos homens, existem zonas de opacidade e de incomunicabilidade” (Vernant & Vidal-Naquet, 1977: 27); que quando os personagens fixam-se em um sentido apenas, eles perdem-se ou se dilaceram; e, deste modo, há muitos sentidos possíveis para a linguagem e para os seus atos. Enquanto a ação está decorrendo, os sentidos e significados são obscuros e enigmáticos, apenas ao final do drama trágico é que os atos apresentam a sua verdadeira significação e os personagens podem tomar consciência disto.

Nesse sentido, dentro do universo trágico o homem não é senhor de suas ações, havendo sempre a possibilidade de cair em armadilhas, por isto elas soam como uma espécie de desafio ao futuro, ao destino e aos deuses. Em suas ações, o homem atua de forma dupla. De um lado, ele pensa naquilo que está ao seu alcance, avalia e prevê os meios e resultados de suas ações, mas de outro lado deve sempre contar com o imprevisível e incompreensível, pois entra em um palco onde atuam forças além do seu alcance e de sua responsabilidade.

Assim, dentro da tragédia grega, a responsabilidade humana oscila entre os pólos da intenção humana e do desígnio divino resultando na interrogação sobre em qual medida o homem é responsável por seus atos, apesar de sofrer suas conseqüências (Vernant & Vidal-Naquet, 1977), tal como a interrogação que o sujeito faz sobre os seus atos na modernidade.

2.1. A TRAGÉDIA GREGA E O ESPÍRITO SOCRÁTICO

A tragédia grega realizou uma espécie de reconciliação entre o par oposto e complementar: Apolo e Dioniso, os deuses e o homem, entre os projetos humanos e os desígnios divinos. A sua decadência ocorreu justamente quando um destes pólos, o elemento apolíneo, começou a dominar o drama trágico. Este processo se consolidou com Sócrates e Platão (c.428-c.348 a.C) e instituiu a metafísica ocidental, o impulso apolíneo de clareza levou a uma racionalização progressiva da vida e o herói tornou-se cada vez mais senhor de suas ações e do seu destino. Esta é a interpretação do filósofo

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alemão F. Nietzsche (1844-1900), exposta inicialmente em “O Nascimento da tragédia e o espírito da música” (1871/1992). Segundo ele, a tragédia atingiu a perfeição através da reconciliação destes dois modos de ver o mundo, o dionisíaco e o apolíneo. O elemento dionisíaco faz o homem “sentir-se como um deus” por meio da embriaguez, da intensificação do subjetivo, do perder-se no mundo e busca uma reconciliação entre o homem e a natureza e se relaciona com a arte figurativa. À imagem do deus Apolo equivalem à música, à busca da perfeição e à verdade que parece existir nos mundos da fantasia; o princípio unificador da individuação4 que corresponde à busca da unidade na multiplicidade do mundo sensível. Frente à multiplicidade, ao sofrimento e ao caráter provisório da existência que aparece na percepção trágica ou dionisíaca do mundo, o homem grego teve de criar uma ilusão, um sonho de aparência clara, luminosa e coerente com o princípio apolíneo. Assim emergiram inicialmente os deuses olímpicos: “o grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve que colocar ali, entre ele e a vida, a resplandecente criação onírica dos deuses olímpicos” (Nietzsche, 1871/1992: 36).

Sucintamente, pode-se considerar que esta criação divina é refeita na tragédia por meio do destino do herói trágico sendo encenada no palco incluindo a música e o diálogo com o coro. O herói trágico sofre as agruras do destino e dos deuses, luta contra este destino, mas desconhece o seu desenlace. A sua imagem é a representação figurativa das características fundamentais da existência do ponto de vista trágico ou dionisíaco, isto é, da sua inevitável imprevisibilidade, prazer, dor e multiplicidade do mundo.

Na tragédia, o espectador grego ao identificar-se com o herói, participava do encontro com a existência neste seu caráter dionisíaco e, no momento da destruição do

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Ocorre muito freqüentemente confusão entre individuação e individualização, entre uma evolução social e individual, isto é, entre a evolução individual através da sociedade e uma evolução da sociedade. Neste caso, o termo mais correto é individualização. Esta confusão aparece claramente na Lei de Haeckel, segundo a qual “a ontogênese repete a filogênese”, isto é, o indivíduo no seu desenvolvimento atravessa as mesmas fases do desenvolvimento da espécie humana. Isto leva a identificar o primitivo com a infância. Esta “individualização” que se denomina neste momento do trabalho não é específica das sociedades ocidentais: “Em toda a sociedade existe, em princípio, a possibilidade de individualização. Em algumas será mais valorizada e incentivada que outras” (Velho, 1991: 25). Dumont (1993), estudando a cultura hindu e, comparando-a com a sociedade ocidental, mostrou que nela a noção de indivíduo é subordinada às noções de todo e hierarquia, deste modo, categorizou as sociedades em: holistas, seguem uma hierarquia e uma tradição como a hindu tradicional; e individualistas, nas quais que o indivíduo é o valor básico da cultura como a sociedade ocidental moderna. Neste trabalho, individuação assume o significado atribuído por C. G. Jung e já explicitado como o processo de desenvolvimento global da psique no qual a consciência estabelece uma relação produtiva com a totalidade do inconsciente, entretanto, para manter a denominação do tradutor de F. Nietzche, nesse capítulo o termo “individuação” será mantido com o significado de “individualização”.

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herói, podia sentir a ameaça de sua aniquilação orgiástica. Entretanto, neste momento emergia uma explicação para o destino, coerente com um único princípio explicativo das causas das agruras que aconteceram. Esta explicação é uma ilusão apolínea que assume o papel de um mito, mas possibilita recompor o indivíduo ameaçado pelas contradições expostas no desenlace. Assim,

“Com a força descomunal da imagem, do conceito, do ensinamento ético, da excitação simpática, o apolíneo arrasta o homem para fora de sua auto-aniquilação orgiástica e o engana, passando por cima da universalidade da ocorrência dionisíaca, a fim de levá-lo a ilusão de que vê uma única imagem do mundo” (Nietzsche, 1871/1992: 127).

O elemento apolíneo presente na tragédia leva o espectador para um completo esclarecimento do drama que se desenrolou, pois ele percebeu que apesar das ações do herói terem sido justificadas, fizeram-no sofrer e arruinaram-no. Isto deve ter comovido e emocionado a platéia, que foi envolvida pelo drama e, para justificar o que ocorreu no palco, “refugia-se no incompreensível” (Nietzsche, 1871/1992: 130). Assim, esta contradição que foi exposta pelo esclarecimento apolíneo é levada a um grau máximo tal que se mostra como uma ilusão. Neste momento, o elemento dionisíaco recupera a preponderância. O herói da tragédia, que durante a encenação aparentava ser um modelo apolíneo, ao final do drama revela-se um herói trágico. Através deste processo que ocorre na arte da tragédia, os gregos realizaram uma conciliação provisória, mas mantendo a contradição e a tensão, entre os modos apolíneo e dionisíaco, que consideravam como opostos e complementares. Desta forma, a tragédia apresentou-se, para os gregos, como um elemento fundamental para a compreensão da essência da existência, conseguindo apresentar o sabor místico do sentido da unidade da vida e da morte.

A preponderância do elemento apolíneo e a retirada do elemento dionisíaco devido ao impulso racionalizante representado pelo filósofo grego Sócrates (470-400 a.C.) determinam a queda e a morte da tragédia enquanto tal e o início da negação e da repressão deste elemento no pensamento ocidental. Isto, segundo Nietzsche, é um sintoma da decadência grega, isto é, um distanciamento do homem da pulsão originária da existência e a substituição da percepção bruta da realidade por um distanciamento dela e a fuga para o mundo da razão. Um sintoma disto ocorre quando Eurípedes (480-406 a.C.) colocou no palco da tragédia o homem comum e ela passou a reproduzir a

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realidade, considerando que a beleza está na inteligibilidade da obra e que o espectador para desfrutá-la deve entendê-la. Neste momento, novos princípios artísticos emergiram, a arte que não é compreendida é condenada, como começou a ocorre com a tragédia ática.

A esta retirada do elemento dionisíaco da tragédia corresponde a um impulso de racionalização da sociedade ocidental que tem como marca inicial e modelo de ”homem teórico” Sócrates. Ele refere-se também à intensificação do elemento apolíneo e de sua total preponderância e uma mutação na forma de entendimento do Ser, isto é, da compreensão das condições de possibilidade de existência do homem e das coisas. Perdeu-se a ligação com as energias instintivas originárias, com a multiplicidade radical das coisas, com a sua potência criativa e destrutiva, suas contradições, com o sentimento de unicidade e fusão com o mundo em favor de um impulso descontrolado de racionalização das coisas e abstração do mundo, de engendrar uma “ilusão apolínea”.

Com isto o homem passa a se desligar da existência concreta e o pensamento e a razão, como máquinas de formular juízos e retirar conclusões, passam a ser considerados suprema atividade do homem. Assim, existência humana pode ser compreendida e justificada pelo pensamento e pelo saber, eliminando o medo da morte.

Nesse processo o impulso de individualização e de unificação sobre a multiplicidade do mundo sensível torna-se dominante. A realidade sensível é considerada uma ilusão, uma aparência, um véu que recobre um princípio único e verdadeiro que está por detrás dela e que pode ser descoberto através do cálculo do pensamento e pelo saber. Portanto, com Sócrates emergiu no mundo pela primeira vez

“uma representação ilusória, [...] aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está não só em condições de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo” (Nietzsche, 1871/1992: 93).

O racionalismo torna-se tirânico; a arte trágica é avaliada como confusa e irracional e, por conseqüência, ignorada, pois desvia o homem do caminho do bem e da verdade. A arte ou obra de arte é considerada bela se obedece aos ditames da razão, isto é, quando educa o homem para o caminho do bem e da verdade. Estes são idealizados e existentes em um mundo supra-sensível, cujo acesso ocorre apenas pelo

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