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A TRAGÉDIA GREGA E O ESPÍRITO SOCRÁTICO

2. O HERÓI TRÁGICO

2.1. A TRAGÉDIA GREGA E O ESPÍRITO SOCRÁTICO

A tragédia grega realizou uma espécie de reconciliação entre o par oposto e complementar: Apolo e Dioniso, os deuses e o homem, entre os projetos humanos e os desígnios divinos. A sua decadência ocorreu justamente quando um destes pólos, o elemento apolíneo, começou a dominar o drama trágico. Este processo se consolidou com Sócrates e Platão (c.428-c.348 a.C) e instituiu a metafísica ocidental, o impulso apolíneo de clareza levou a uma racionalização progressiva da vida e o herói tornou-se cada vez mais senhor de suas ações e do seu destino. Esta é a interpretação do filósofo

alemão F. Nietzsche (1844-1900), exposta inicialmente em “O Nascimento da tragédia e o espírito da música” (1871/1992). Segundo ele, a tragédia atingiu a perfeição através da reconciliação destes dois modos de ver o mundo, o dionisíaco e o apolíneo. O elemento dionisíaco faz o homem “sentir-se como um deus” por meio da embriaguez, da intensificação do subjetivo, do perder-se no mundo e busca uma reconciliação entre o homem e a natureza e se relaciona com a arte figurativa. À imagem do deus Apolo equivalem à música, à busca da perfeição e à verdade que parece existir nos mundos da fantasia; o princípio unificador da individuação4 que corresponde à busca da unidade na multiplicidade do mundo sensível. Frente à multiplicidade, ao sofrimento e ao caráter provisório da existência que aparece na percepção trágica ou dionisíaca do mundo, o homem grego teve de criar uma ilusão, um sonho de aparência clara, luminosa e coerente com o princípio apolíneo. Assim emergiram inicialmente os deuses olímpicos: “o grego conheceu e sentiu os temores e os horrores do existir: para que lhe fosse possível de algum modo viver, teve que colocar ali, entre ele e a vida, a resplandecente criação onírica dos deuses olímpicos” (Nietzsche, 1871/1992: 36).

Sucintamente, pode-se considerar que esta criação divina é refeita na tragédia por meio do destino do herói trágico sendo encenada no palco incluindo a música e o diálogo com o coro. O herói trágico sofre as agruras do destino e dos deuses, luta contra este destino, mas desconhece o seu desenlace. A sua imagem é a representação figurativa das características fundamentais da existência do ponto de vista trágico ou dionisíaco, isto é, da sua inevitável imprevisibilidade, prazer, dor e multiplicidade do mundo.

Na tragédia, o espectador grego ao identificar-se com o herói, participava do encontro com a existência neste seu caráter dionisíaco e, no momento da destruição do

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Ocorre muito freqüentemente confusão entre individuação e individualização, entre uma evolução social e individual, isto é, entre a evolução individual através da sociedade e uma evolução da sociedade. Neste caso, o termo mais correto é individualização. Esta confusão aparece claramente na Lei de Haeckel, segundo a qual “a ontogênese repete a filogênese”, isto é, o indivíduo no seu desenvolvimento atravessa as mesmas fases do desenvolvimento da espécie humana. Isto leva a identificar o primitivo com a infância. Esta “individualização” que se denomina neste momento do trabalho não é específica das sociedades ocidentais: “Em toda a sociedade existe, em princípio, a possibilidade de individualização. Em algumas será mais valorizada e incentivada que outras” (Velho, 1991: 25). Dumont (1993), estudando a cultura hindu e, comparando-a com a sociedade ocidental, mostrou que nela a noção de indivíduo é subordinada às noções de todo e hierarquia, deste modo, categorizou as sociedades em: holistas, seguem uma hierarquia e uma tradição como a hindu tradicional; e individualistas, nas quais que o indivíduo é o valor básico da cultura como a sociedade ocidental moderna. Neste trabalho, individuação assume o significado atribuído por C. G. Jung e já explicitado como o processo de desenvolvimento global da psique no qual a consciência estabelece uma relação produtiva com a totalidade do inconsciente, entretanto, para manter a denominação do tradutor de F. Nietzche, nesse capítulo o termo “individuação” será mantido com o significado de “individualização”.

herói, podia sentir a ameaça de sua aniquilação orgiástica. Entretanto, neste momento emergia uma explicação para o destino, coerente com um único princípio explicativo das causas das agruras que aconteceram. Esta explicação é uma ilusão apolínea que assume o papel de um mito, mas possibilita recompor o indivíduo ameaçado pelas contradições expostas no desenlace. Assim,

“Com a força descomunal da imagem, do conceito, do ensinamento ético, da excitação simpática, o apolíneo arrasta o homem para fora de sua auto- aniquilação orgiástica e o engana, passando por cima da universalidade da ocorrência dionisíaca, a fim de levá-lo a ilusão de que vê uma única imagem do mundo” (Nietzsche, 1871/1992: 127).

O elemento apolíneo presente na tragédia leva o espectador para um completo esclarecimento do drama que se desenrolou, pois ele percebeu que apesar das ações do herói terem sido justificadas, fizeram-no sofrer e arruinaram-no. Isto deve ter comovido e emocionado a platéia, que foi envolvida pelo drama e, para justificar o que ocorreu no palco, “refugia-se no incompreensível” (Nietzsche, 1871/1992: 130). Assim, esta contradição que foi exposta pelo esclarecimento apolíneo é levada a um grau máximo tal que se mostra como uma ilusão. Neste momento, o elemento dionisíaco recupera a preponderância. O herói da tragédia, que durante a encenação aparentava ser um modelo apolíneo, ao final do drama revela-se um herói trágico. Através deste processo que ocorre na arte da tragédia, os gregos realizaram uma conciliação provisória, mas mantendo a contradição e a tensão, entre os modos apolíneo e dionisíaco, que consideravam como opostos e complementares. Desta forma, a tragédia apresentou-se, para os gregos, como um elemento fundamental para a compreensão da essência da existência, conseguindo apresentar o sabor místico do sentido da unidade da vida e da morte.

A preponderância do elemento apolíneo e a retirada do elemento dionisíaco devido ao impulso racionalizante representado pelo filósofo grego Sócrates (470-400 a.C.) determinam a queda e a morte da tragédia enquanto tal e o início da negação e da repressão deste elemento no pensamento ocidental. Isto, segundo Nietzsche, é um sintoma da decadência grega, isto é, um distanciamento do homem da pulsão originária da existência e a substituição da percepção bruta da realidade por um distanciamento dela e a fuga para o mundo da razão. Um sintoma disto ocorre quando Eurípedes (480- 406 a.C.) colocou no palco da tragédia o homem comum e ela passou a reproduzir a

realidade, considerando que a beleza está na inteligibilidade da obra e que o espectador para desfrutá-la deve entendê-la. Neste momento, novos princípios artísticos emergiram, a arte que não é compreendida é condenada, como começou a ocorre com a tragédia ática.

A esta retirada do elemento dionisíaco da tragédia corresponde a um impulso de racionalização da sociedade ocidental que tem como marca inicial e modelo de ”homem teórico” Sócrates. Ele refere-se também à intensificação do elemento apolíneo e de sua total preponderância e uma mutação na forma de entendimento do Ser, isto é, da compreensão das condições de possibilidade de existência do homem e das coisas. Perdeu-se a ligação com as energias instintivas originárias, com a multiplicidade radical das coisas, com a sua potência criativa e destrutiva, suas contradições, com o sentimento de unicidade e fusão com o mundo em favor de um impulso descontrolado de racionalização das coisas e abstração do mundo, de engendrar uma “ilusão apolínea”.

Com isto o homem passa a se desligar da existência concreta e o pensamento e a razão, como máquinas de formular juízos e retirar conclusões, passam a ser considerados suprema atividade do homem. Assim, existência humana pode ser compreendida e justificada pelo pensamento e pelo saber, eliminando o medo da morte.

Nesse processo o impulso de individualização e de unificação sobre a multiplicidade do mundo sensível torna-se dominante. A realidade sensível é considerada uma ilusão, uma aparência, um véu que recobre um princípio único e verdadeiro que está por detrás dela e que pode ser descoberto através do cálculo do pensamento e pelo saber. Portanto, com Sócrates emergiu no mundo pela primeira vez

“uma representação ilusória, [...] aquela inabalável fé de que o pensar, pelo fio condutor da causalidade, atinge até os abismos mais profundos do ser e que o pensar está não só em condições de conhecê-lo, mas inclusive de corrigi-lo” (Nietzsche, 1871/1992: 93).

O racionalismo torna-se tirânico; a arte trágica é avaliada como confusa e irracional e, por conseqüência, ignorada, pois desvia o homem do caminho do bem e da verdade. A arte ou obra de arte é considerada bela se obedece aos ditames da razão, isto é, quando educa o homem para o caminho do bem e da verdade. Estes são idealizados e existentes em um mundo supra-sensível, cujo acesso ocorre apenas pelo

caminho do pensamento. Isto é patente nos três aforismos do pensamento socrático: “virtude é saber; só se peca por ignorância; o virtuoso é mais feliz” (Nietzsche, 1871/1992: 89) e acarreta uma visão otimista da dialética da vida, pois moralidade e os atos morais sublimes são vistos como um produto do bom uso da razão e, conseqüentemente, podem ser aprendidos, ensináveis e desenvolvidos pelo pensamento. Nessa concepção a tragédia muda de caráter e “morre”, o coro é eliminado gradativamente, a música é expulsa e o herói torna-se um modelo de virtude e de saber, abrindo caminho para o romance.

Com a preponderância do princípio de individuação e de unificação no contato do homem com o mundo e no entendimento de si próprio, há uma impossibilidade de manter em tensão os impulsos e instintos contraditórios, acarretando o fim do herói trágico, pois ele suporta e glorifica esta tensão. Há ainda uma contenção da existência humana em “um círculo estreitíssimo de tarefas solucionáveis” (Nietzsche, 1871/1992: 108) dentro do qual este homem se satisfaz. Para se defender do mundo e de si mesmo, o homem se contém, há um rebaixamento em direção a um modelo uniforme e anônimo que se satisfaz com prazeres determinados e comuns. Esforçando-se em dominar a contradição, a complexidade e o sem-sentido da realidade, o impulso lógico procura compreender tudo, todos e eliminar o que está fora do seu alcance. Neste processo, cego em relação a si mesmo e ao mundo, pelo seu próprio movimento de dominação, ele perde os limites e atua como um instinto ou impulso desgovernado e sem restrições. A ilusão apolínea que o homem utilizou para dominar o mundo e a existência passa a dominar próprio homem.

Esse processo iniciou-se com a eliminação do elemento dionisíaco na tragédia, a descoberta da dialética otimista de Sócrates para o descobrir a verdade e, segundo Nietzsche, com Platão se consolida e termina por modificar a própria forma de perceber e sentir o que é o homem e a sua relação com a natureza. Também se alteram os horizontes do pensamento, a saber: “o predomínio dos ideais ascéticos, o triunfo da incondicional vontade de verdade, a separação entre arte e ciência e a instituição de um significado moral para a existência do mundo e da história humana” (Giacóia Jr, 2005: 27). A isto corresponde um novo modelo de herói, apolíneo e guerreiro, que conforma o mundo e a si mesmo a uma vontade superior, luta por sua existência e procura negar ou derrotar o que se opõe a sua verdade. O impulso racionalizante alcança sua vitória completa sobre o mito e a tragédia no século XVIII com o Iluminismo ou Esclarecimento.