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O HERÓI NA INDÚSTRIA CULTURAL

4. HERÓI, MODERNIDADE E INDÚSTRIA CULTURAL

4.2. O HERÓI NA INDÚSTRIA CULTURAL

A estrutura arquetípica da jornada do herói não está presente apenas nas sagas, mitos e lendas, mas possui grande influência na narrativa cinematográfica atual. Segundo Vogler (1997) a indústria cinematográfica utiliza esta estrutura como uma técnica narrativa. Ele relata sua experiência na década de 1990, como conferencista, palestrante e analista de histórias para grandes estúdios de Hollywood onde utilizou este modelo para analisar os roteiros. Chegou inclusive a escrever um pequeno manual

núcleo da tragédia, pois “na história de Édipo, o verdadeiro trágico não é o de ter matado, sem ter querido seu pai e desposado sua mãe; isto ocorreu outrora: é seu destino passado; o trágico atual consiste em que, o homem que ele amaldiçoou por esse crime de um outro, é ele próprio, e que é preciso reconhecê-lo” (Ricouer, 1969/1978: 134).

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Talvez a função da educação na modernidade esteja se modificando, retornando aos processos de iniciação, tal como as sociedades tradicionais ao invés de um ideal de um progresso e evolução na direção de autonomia e de um contrato social. Neste caso, o objetivo do sujeito nas instituições educativas não é mais ser senhor de si, mas procurar um ideal, um herói ou “mestre” do qual ele possa ser discípulo e, assumindo esta condição, poder integrar-se com alguma comunidade, com os fatores e poderes impessoais e seu próprio mundo interior e exterior, isto é, realizar de forma simbólica a “jornada do herói”, construindo um significado para si próprio.

sobre a jornada do herói e recebeu vários pedidos deles dos estúdios e que, segundo ele, tornou-se leitura obrigatória para os executivos da Disney. Segundo ele,

“era inevitável que Hollywood se aproveitasse da utilidade da obra de Campbell. Cineastas como George Lucas e George Miller reconhecem seu débito para com Campbell e sua influência pode ser percebida nos filmes de Steven Spielberg, John Boorman, Francis Coppola e outros” (Vogler, 1997: 23).

Deste modo, apesar da aparente falta de mitos heróicos, de rituais de iniciação ou de passagem institucionais na sociedade moderna, os mitos heróicos e os ritos não desapareceram, eles mudaram de forma, pois são elementos constituintes da existência humana (Campbell, 1990; Elíade, 1991; Maffesoli, 2003). Assim, a “idolatria dos cultos de personalidade, a iconografia publicitária, as mitologias políticas ou filosóficas, vieram tomar curiosamente o posto amplificado das tradicionais, mas verdadeiras mitologias” (Durand, 1984: 13), isto é, o campo do imaginário ou das manifestações culturais das imagens constitutivas da psique.

Deste modo, a partir das últimas décadas, o imaginário sai do campo das belas- artes, onde tradicionalmente é utilizado, e passa ser aplicado no domínio da vida social. Verifica-se a existência de técnicas de manejo do imaginário em todas as sociedades, confundindo-se com os mitos e os ritos, pois os guardiões do imaginário social são também os guardiões do sagrado. Enquanto nas sociedades ditas “primitivas”, os mitos possuem implicações ideológicas; na sociedade moderna, racionalizada e técnica, as ideologias escondem os mitos, pois o imaginário social é racionalizado e instrumentalizado. Nesta sociedade, emergem novas formas de trabalho com o imaginário, que conduzem a sua utilização e manipulação cada vez sofisticada e com técnicas mais refinadas, tais como a propaganda moderna (Backso, 1985: 300).

Com a ênfase cada vez maior sobre o indivíduo no processo de constituição da modernidade, este teve cada vez mais ampliadas, pelo menos teoricamente ou ideologicamente, suas possibilidades existenciais. Isto corresponde a uma evolução da individualidade que aparece nas imagens dos deuses, dos heróis e na tentativa das pessoas viverem da mesma maneira deles, isto é, imitando-os e procurando realizar todas as suas potencialidades. O grande desenvolvimento da indústria cultural com o aparecimento das estrelas de cinema e televisão e super-heróis das histórias em quadrinhos,

“correspondem a um apelo mais profundo das massas no sentido de uma salvação individual, e suas exigências, nesse novo estágio de individualidade, se concretizam num novo sistema de relações entre real e imaginário” (Morin, 1989: 21).

Considerando que o imaginário e a mitologia moderna estão presentes nos produtos da indústria cultural ou nas estruturas de informação e comunicação, ele exerce influência fundamental na sociedade deste século e originou vários estudos a respeito de sua influência. Foram abordados vários aspectos da influência do cinema, televisão, histórias em quadrinhos e outros produtos no desenvolvimento infantil, na agressividade, violência, no raciocínio e outros. Não cabe aqui resumir estudos, mas salientar que a preocupação sempre presente nestes estudos é determinar se os produtos da indústria cultural, ou este sistema como um todo, é bom ou ruim para os indivíduos e para a vida social (Coelho, sd: 7; Eco, 1970: 49).

De forma geral, pode-se denominar os produtos da indústria cultural como a cultura de massa30, sendo sua característica a sua produção de forma padronizada e industrial. Eles são limitados devido ao seu caráter industrial, de consumo freqüente e rotineiro e, deste modo, não alcançam os padrões artísticos de alta qualidade, existindo uma oposição entre a alta cultura ou arte e a cultura de massa.31. Em sua dinâmica, a cultura de massa oscila entre o pólo da padronização e repetição e o pólo da originalidade, pois o esgotamento e a saturação de conteúdos exige a criação renovada, novidade e individualização de seus produtos. A indústria cultural se organiza deste modo porque a própria estrutura do imaginário32 ou da psique é organizada desta forma, existindo os arquétipos que são como figuras–modelo ou formas constantes. Ela

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Neste trabalho o termo mass media denomina os meios de comunicação de massa como cinema, jornal, televisão, rádio, revistas e outros relacionados com a produção industrial e maciça de bens culturais que formam as estruturas de informação e comunicação. A Escola de Frankfurt utiliza o termo “indústria cultural” (IC) para enfatizar o processo de produção dos bens culturais. Os media ou mídia são considerados como o meio em que está circulando a cultura de massa ou produzida pela IC. Cazeneuve (1978: 173-174) coloca que este termo sugere a massificação, o que não é correto. Dependendo do autor, o termo mass media pode assumir significados distintos.

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Jameson (1995) afirma que oposição entre a alta cultura (Arte) e a cultura de massa deve ser repensada, pois ela parte de considerar a cultura de massa como mais popular e autêntica que a alta cultura, ou de forma reversa, utiliza a alta cultura como referência para avaliar a degradação da cultura de massa. De forma mais complexa, o fenômeno atual da cultura de massa obriga a repensar a natureza desta dicotomia.

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Para Morin (1977), o Imaginário é a estrutura complementar e antagonista ao real, que possui os ideais, desejos e aspirações e também os opostos a eles como os medos, instintos sem controle e outros, sendo seus diversos níveis expressos nas diferentes mitologias. O imaginário possui um campo comum entre os homens, independente de sua condição histórico-social, que permite várias formas de relação, identificação e projeção. O conceito de imaginário varia conforme o autor, neste trabalho serão citadas as concepções de Durand (1997) e Jung (1991), para maiores esclarecimentos pode-se ver em Silva (1986: 574s).

adapta e utiliza estes modelos adequando-os na forma de produção industrial, transformando os arquétipos em estereótipos, realizando clichês. Entretanto, a necessidade de renovação desta indústria abre um espaço para a criação e a originalidade cultural, que não podem ser totalmente integrados na estrutura de produção industrial.

Como as figuras do imaginário representam a sociedade e encarnam os valores da mesma, a indústria cultural possui claramente um aspecto ideológico. Este aspecto da indústria cultural foi inicialmente pesquisado por Adorno e Horkheimer (1976), teóricos da Escola de Frankfurt. Eles enfatizaram o seu caráter ideológico e alienante, considerando que esta indústria se define como um negócio. A transmissão ideológica, a produção em série e normatizada dos bens culturais apenas foi possível eliminando- se deles o seu caráter artístico, “sacrificando aquilo pelo qual a lógica da obra se distinguia da lógica do sistema social” (Adorno & Horkheimer, 1978: 161). Assim, a lógica de mercado atua no processo de produção cultural e a cultura torna-se mais um produto submetido à lógica do mercado com seu valor sendo determinado pelo capital financeiro investido e pela sua possibilidade de retorno financeiro e não pelo seu valor artístico.

Isto acarreta um empobrecimento artístico da obra, pois antes de sua industrialização, ela possuía um fim em si mesmo e seu objetivo era a experiência estética. O capitalismo, até o momento do surgimento da indústria cultural, preservava a cultura e as obras de arte do processo de reificação, isto é, de considerar os objetos apenas pelo seu valor de uso. O pensamento da Escola de Frankfurt pode ser "caracterizada como a extensão e a aplicação das teorias marxistas da reificação da mercadoria às obras da cultura de massa" (Jameson, 1995: 10). Esta análise, aplicada nas modernas condições de produção, inclusive cultural, considera que a vida foi transformada em “espetáculo”, isto é, "uma relação social entre as pessoas mediada por imagens" (Debord, 1997: 14). Isto ocorreu, pois inicialmente a arte e a cultura foram reificadas, sendo transformadas em produto e mercadoria, e, logo após, a própria imagem é reificada, o que acaba por transformar a própria sociedade em um espetáculo. As imagens conquistaram autonomia e uma dinâmica própria, perdendo sua ancoragem na realidade social, transformando a vida em “espetáculo” e sendo a expressão concreta da alienação na sociedade atual. Deste modo, o desenvolvimento do capitalismo e a acumulação de capital levaram ao espetáculo que é "o capital em tal grau de acumulação que se torna imagem" (Debord, 1997: 25).

Estas análises demonstram os processos e estruturas ideológicas nos produtos da indústria cultural, entretanto os estudos sobre ela abordando apenas estes aspectos podem acabar por verificar apenas manipulação e conformismo e se restringir a caracterizar as técnicas de marketing político e ideológico e análise de textos e materiais de publicidade (Jameson, 1995: 25). Considerando a cultura como saturada de imagens e que as grandes forças produtivas são do saber e da comunicação (Negri, 1996: 175), há necessidade de recuperar o imaginário utópico que impulsiona esta cultura para realizar uma crítica significativa à indústria cultural (Jameson, 1995).

As diversas posições sobre os produtos da indústria cultural podem ser tipificados principalmente em dois pólos opostos, a saber, os apocalípticos e os integrados (Eco, 1970). Aqueles que possuem uma visão pessimista, considerando que a cultura de massa é sinal de uma queda, que destrói o gosto estético e que manipula são os apocalípticos. Eles partem de uma crítica externa aos produtos da indústria cultural, considerando que existem grupos que preservam a arte, o bom gosto e estão separados da manipulação e do imaginário constituído a partir dela. Outro grupo, os integrados, são otimistas e partem de uma leitura interna, a partir de dentro da indústria cultural, considerando que ela disponibilizou muitos bens culturais e o mundo atual é justamente o mundo da cultura de massa. Ao pensar a cultura atual33, deve-se evitar o engano de “pensar que a cultura de massa seja radicalmente má, justamente por que é um fato industrial e que hoje se possa dar cultura subtraída ao condicionamento industrial” (Eco, 1970: 49).

A indústria cultural é um produto tecnológico não previsto do projeto iluminista da modernidade e que possui elementos que se opõem a ele, que é um projeto homogêneo de domínio da natureza, do indivíduo e da sociedade. Ele que consolidou a modernidade e possui seus matizes correspondentes nas ciências físicas, no freudismo, no behaviorismo e nos positivismos em geral. Teve seu apogeu no século XIX e pretendeu planificar a felicidade individual e social exclusivamente através da utilização dos instrumentos da razão. O indivíduo é considerado como senhor de si e

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Em muitos estudos pode ocorrer uma satanização da mídia e da sua relação com o seu espectador, pois ela é considerada como onipresente e esmagando o espectador com seu poder (Negri, 1996: 174). A crítica de base marxista tende a enfatizar a manipulação ideológica e considerar os espectadores de modo passivo. A semiologia e as ciências da comunicação tendem a concordar que a mídia ou indústria cultural produz códigos destinados a impedir e bloquear os mecanismos de produção simbólica e deste modo, tendem a abordar apenas o aspecto discursivo e eliminando os aspectos ético, subjetivo, político e poético da relação do espectador com a mídia e os diversos produtos da indústria cultural (Debray, 1995: 135; Negri, 1996). Devem-se recuperar estes aspectos na análise teórica para atingir a "operatividade coletiva, ética-política, emotiva e criativa, que age no mundo da comunicação" (Negri, 1996: 174).

do mundo ao seu redor, uma entidade homogênea, tendendo à perfeição e à unificação, um átomo social e físico. O contraditório, o aleatório, o fantástico e a pluralidade existentes no indivíduo, na sociedade e no real são considerados desvios e erros, devendo ser reduzidos ou eliminados. Este pensamento procura unificar, controlar e racionalizar. A solidariedade e a comunhão naturais entre os homens são substituídas por uma estrutura social racionalizada e racional tal como o “Estado” e por dispositivos de comunicação institucional entre os indivíduos (Maffesoli, 2004).

Pode-se descrever este modo de pensar pela metáfora literária do “drama”, onde há uma linearidade, existindo um problema inicial, um desenvolvimento e uma resolução final a partir de uma via reta e justa. Este modelo pode ser encontrado no pensamento cristão de Santo Agostinho na fórmula de sua Cidade de Deus: “Com a ajuda do Senhor Nosso Deus, uma razão evidente quebra os círculos que giram sobre si mesmos” (Agostinho citado por Maffesoli, 1997: 50). A incoerência e o desamparo são afastados pela utilização correta da razão e se desdobra na seqüência da história ocidental moderna das tentativas de salvação do mundo pela via revolucionária profana ou religiosa. O paraíso terrestre pode ser alcançado através de um percurso previsível e traçado racionalmente, segundo uma evolução e um progresso. As contradições e desvios são ultrapassados e chega-se à perfeição utópica, assim há uma tendência que os “protagonistas das visões totalizantes sejam conduzidos a tornar-se totalitários” (Maffesoli, 1997: 51). Este processo passou do sistema religioso católico para a sociedade laica, inicialmente através dos reis e imperadores, depois pela organização e ideologia do “serviço público” e da constituição do “estado” político, onde este se responsabilizaria e dirigiria o bem público determinando racionalmente a vida social, ordenando-a e fundamentando-a na razão do “dever-ser” (Maffesoli, 1997).

Esta ordenação da vida social e do indivíduo é feita do “espírito” para a “terra”, de um modelo abstrato de pensamento indicando como a realidade e a vida das pessoas deve ser, freando o caos e a desordem, implantando um monismo de valores que tem sua imagem no monoteísmo. Assim a anarquia, o politeísmo – enquanto admitindo uma pluralidade de valores e modos de ser e contradizendo, dessa forma, a dinâmica da existência individual e social - tendem a ser eliminados e reprimidos formando uma “sombra” que emerge na falência dos valores da modernidade.

Deste modo o indivíduo, como uma unidade articulada, homogênea e racional, tal como a modernidade o conceitua, não passa de uma ilusão ou um fantasma do desejo deste mesmo pensamento. A complexidade do mundo, sua pluralidade de valores, a

contradição dos afetos não podem ser reduzidos a uma unidade abstrata. O pensamento mítico exprimiu esta heterogeneidade em uma multiplicidade de deuses com vidas desregradas e aventureiras, um politeísmo que integra com lógica específica os vários elementos heterogêneos que compõem o real, o social e o indivíduo, lógica essa denominada de contraditorial, porque a desordem e a anarquia têm um certo espaço no cotidiano social (Maffesoli, 1997).

Por outro lado, a expressão mítica da racionalidade e dos valores ocidentais é um monismo cristão que valoriza a ordem, a hierarquia, a perfeição e o dever-ser e está representado nas imagens de um Deus único e do bem absoluto que desencantam o mundo impondo a razão, o utilitarismo e o planejamento sobre o sentimento, o lúdico e o espontâneo, estes justamente efeitos do impacto do imaginário que o racionalismo quer minimizar ou eliminar e acaba por retirar da sociedade e do indivíduo a força vital que os anima e que se manifesta “na não participação política, no desengajamento sindical, desencantamento político e do associacionismo [que] inquietaram os observadores sociais” (Maffesoli, 1997: 118).

Em termos simbólicos, a desordem, o caos, a heterogeneidade e a contradição são associados ao Diabo e ao mal e negados ou reprimidos, diminuindo ou impedindo uma dinâmica natural e relativista que conduz o mundo à Unidade e, por extensão, ao totalitarismo, à inércia existencial e ao tédio. Entretanto, esta dinâmica é contínua e regularmente ocorrem explosões deste recalcado, da desordem e das paixões. Estas explosões evocam justamente a pluralidade de valores, o politeísmo, a multidimensionalidade e dificilmente são controláveis, pois se encontram ocultas na estruturação social. Neste sentido elas são francamente subversivas, estilhaçam a ordem social, agitam, transgridem a moral e o dever-ser, mas atraem os indivíduos, pois elas são depositárias das projeções de todos os prazeres e satisfações que os indivíduos não podem obter na normalidade ou pelas vias legais (Maffesoli, 2004).

Esta dinâmica entre o movimento da ordenação e da regulação social por meio de uma idealização racional e as paixões e explosões anárquicas do cotidiano levam a constituir uma duplicidade, um jogo duplo no relacionamento do indivíduo e das coletividades com os poderes de regulação e dominação social. Esta duplicidade aparece nas muitas formas de resistência, atitudes e comportamentos que visam driblar a ordem social e, se ela representa o interesse de muitos indivíduos, desenvolvem-se como prática social (Maffesoli, 1997: 75-150). Este jogo duplo encontra uma forma de expressão no lúdico e no tempo de lazer que aparece nas sociedades contemporâneas.

No lúdico e no lazer busca-se “teatralizar”, isto é, representar um personagem e ser algo que não faz parte do dia-a-dia gerenciado socialmente. O indivíduo tende a tornar- se indiferente ao que escapa à sua ação e lhe parece distante, o sentido ou o significado de sua vida não é mais procurado externamente “seja em uma utopia inacessível ou na racionalização da existência [...] o sentido é encontrado aqui e agora, o que desperta a potência popular“ (Maffesoli, 1997: 118). O popular, aqui denominado, é uma denominação descritiva de uma série de práticas irracionais e inconstantes, altamente volúveis que devem ter aproximação empírica e uma descrição a partir do fenômeno, pois não são um conceito. Elas constituem “uma série de pequenas escapatórias, de pequenas astúcias que tornam a vida suportável” (Maffesoli, 1997: 120) e formam uma reação da coletividade que não consegue se reconhecer mais ou em seus representantes ou no pensamento dominante; que busca de forma confusa um novo equilíbrio e uma nova tradução de si mesma, possuindo como um exemplo a prática juvenil dos jogos de representação.

O indivíduo, que era uma entidade tipificada em identidades estáveis como a sexual, profissional e ideológica, perde coerência e unidade, substituindo a lógica da identidade pela lógica das identificações sucessivas em diversos campos da vida social, exercendo assim diversos papéis ou “personas”, por meio das quais pode exprimir as diferentes possibilidades que a caracterizam (Maffesoli, 2004: 95s). Deste modo, a sociedade contemporânea aparece multifacetada e sem sentido, as tentativas de pensá- la e teorizar sobre ela muitas vezes esbarram em algumas teorias negativistas ou catastróficas como o esvaziamento do indivíduo e da cena política, na manipulação ideológica, da falta de sentido e de projetos entre outros. Esta teorização não considera o ambiente ou atmosfera da situação contemporânea onde há prioridade do global sobre os diversos elementos que o compõem e uma atitude de contemplação em relação ao mundo, onde a prevalência da estética, de diferentes formas do cuidado de si como o culto ao corpo e a beleza, a perspectiva ecológica e uma não ação política são modulações desta atitude contemplativa do mundo. Ocorre também uma valorização do próximo e da evidência comum aceita, isto é, do senso comum. Esta atmosfera ou este tipo de “ambiência” pode produzir um ethos comum, um certo corpo coletivo, uma sensibilidade e uma certa postura intelectual, um modo “estético” que está na etimologia da palavra, “partilhar emoções, sem considerar critérios utilitários e identificáveis definidos pela razão” (Maffesoli, 1997: 163). Isto se apresenta na disseminação das seitas, grupos intelectuais fechados e “tribos urbanas”. Estes

funcionam principalmente pela identificação emocional e marcam o ressurgimento do fenômeno comunitário e a emoção partilhada em conjunto faz entrar novamente no tempo do mito e do rito. Este fenômeno é amplificado pela tecnologia da comunicação e pela indústria cultural, onde há o retorno do coletivo imemorial da psique, os arquétipos. Assim,

“o rock, o jazz e outras músicas ‘bárbaras’, o consumo frenético de objetos, as