PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
JOÃO GUILHERME DE MOURA ROCHA PARENTE MUNIZ
A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DAS EMPRESAS FORMADORAS DE GRUPOS ECONÔMICOS
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
JOÃO GUILHERME DE MOURA ROCHA PARENTE MUNIZ
A RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA DAS EMPRESAS FORMADORAS DE GRUPOS ECONÔMICOS
MESTRADO EM DIREITO
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência para obtenção do grau
de MESTRE em Direito do Estado, subárea Direito Tributário, sob a orientação do
Professor Doutor Paulo de Barros Carvalho.
BANCA EXAMINADORA
____________________________________
____________________________________
Dedico este trabalho para toda minha família com muito amor e carinho. Especialmente a
Lalita,
Agradeço a todos que de alguma forma contribuíram à construção desta dissertação, especialmente, ao meu orientador Professor Paulo de Barros Carvalho; aos meus professores do Mestrado da PUC/SP Clarice Araújo, Elizabeth Carrazza, Robson Maia Lins, Charles McNaughton e Rosana Oleinik; à Professora Nélida Cristina Santos e à Faculdade de Direito de São Bernardo do Campo; ao amigo Luís Merçon Vargas; à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; à Procuradoria Geral da Fazenda Nacional, à minha cunhada Manuela Constantino e à minha esposa Lalita Rodrigues Muniz.
Por que será que eu estava procedendo à-toa assim? Senhor, sei? O senhor vá pondo o seu proceder. A gente vive repetido, o repetido, e escorregável, num mim minuto, já está empurrado noutro galho. Acertasse eu com o que depois sabendo fiquei, para de lá de tantos assombros... Um está sempre no escuro, só no último derradeiro é que clareiam a sala. Digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia. Mesmo fui muito tolo! Hoje em dia, não me queixo de nenhuma coisa.
RESUMO
O objetivo deste trabalho é o de identificar os limites da responsabilidade tributária dos
grupos econômicos no direito brasileiro. O método utilizado é o hermenêutico-analítico, tendo
em vista partir-se da premissa do direito como um corpo de linguagem. O tema é abordado a
partir da análise de modelos normativos identificados na doutrina e na jurisprudência e
construídos em expressão à pretensão do Fisco em responsabilizá-los. As primeiras linhas do
estudo foram dedicadas à abordagem de conceitos jurídicos fundamentais e à explanação dos
cortes metodológicos realizados. Em seguida, após explicação sobre o percurso de construção
normativa, o foco passou à responsabilidade tributária e à personalidade jurídica e, logo após,
à definição de grupos econômicos e sua classificação, que foi construída com suporte em
tópicos do direito empresarial. Então, em solo firme, os principais modelos normativos
referentes à responsabilização tributária de grupos econômicos foram analisados pelos
prismas constitucional e legal. Ao final, restou-se reconhecido que somente haverá a
possibilidade de responsabilização de grupo econômico através da desconsideração da
personalidade jurídica nos casos de configuração de grupos econômicos ilícitos. Tais normas
poderão ser enunciadas tanto pela autoridade fiscal, com fulcro nos artigo 142 e no parágrafo
único do artigo 116 do Código Tributário Nacional, ou, mediante requerimento, pela
autoridade judicial, desde obedecidos os critérios do artigo 50 do Código Civil.
Palavras Chaves: Direito Tributário. Responsabilidade Tributária. Personalidade Jurídica.
ABSTRACT
This study aims to identify the limits of the tax liability of the economic groups and its
members in Brazilian law. The method employed is the analytical-hermeneutics, based on the
premise that the law is constituted by language. The approach begins from the analysis of
normative structures by the taxman point of view found in doctrine and jurisprudence. The
first chapters were devoted to fundamental legal concepts and some methodological
approaches. After explain about the normative construction routine, the major purpose
became the analysis of tax responsibility and juridical personality. After that, supported by
corporate law concepts, a definition of economic group was built, and a classification was
proposed. Then, already on firm ground, the main normative models regarding tax liability of
economic groups were listed and analyzed by constitutional and legal viewpoints. At last, it
was identified that the only possible way capable of making an economic group responsible
for its members tax debits was disregarding their juridical personality. Such standards could
be set either by the tax authorities, based on Article 142 and Article 116 of the National Tax
Code, or, upon request, by the judicial authority based on Article 50 of the Civil Code.
Keywords: Tax Law. Tax Liability. Juridical Personality. Disregard Doctrine. Economic
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ... 11
CAPÍTULO I – SISTEMA DE REFERÊNCIA E CONCEITOS FUNDAMENTAIS. ... 15
1.1 Considerações iniciais. ... 15
1.2 A realidade e a linguagem científica. ... 15
1.3 Método: o conceito e a definição como instrumentos analíticos. ... 23
1.3.1 Os problemas da vaguidade, da ambiguidade e da carga emotiva. ... 28
1.3.1.1 Da vaguidade. ... 29
1.3.1.2 Da ambiguidade. ... 30
1.3.1.3 Da carga emotiva. ... 31
1.4 Objeto: sistema do direito e norma Jurídica. ... 34
1.4.1 O sistema do direito. ... 35
1.4.2 A norma jurídica. ... 38
1.4.2.1 O percurso gerador de sentido. ... 41
1.4.2.2 A definição da norma Jurídica. ... 44
1.4.3 A estrutura lógica da norma jurídica. ... 45
CAPÍTULO II – A RELAÇÃO JURÍDICA TRIBUTÁRIA. ... 49
2.1 Considerações iniciais. ... 49
2.2 A regra matriz de incidência tributária. ... 49
2.3 Breves anotações sobre a incidência tributária. ... 51
2.4 A obrigação tributária. ... 55
2.4.1 O objeto da obrigação tributária. ... 57
2.4.2 Sujeição ativa na obrigação tributária. ... 58
2.4.3 Sujeição passiva na obrigação tributária. ... 60
CAPÍTULO III – RESPONSABILIDADE TRIBUTÁRIA. ... 63
3.1 Considerações iniciais. ... 63
3.2 Limites constitucionais materiais à responsabilidade tributária. ... 64
3.3 Limite constitucional formal à responsabilidade tributária e sua repercussão infraconstitucional. ... 70
3.4 A responsabilidade tributária no direito brasileiro e sua classificação. ... 75
3.6 A unidade do sistema jurídico. ... 83
3.7 O diálogo entre o direito privado e o direito tributário. ... 88
CAPÍTULO IV – EMPRESÁRIOS, SOCIEDADES EMPRESARIAIS E O EXERCÍCIO DA EMPRESA NO DIREITO BRASILEIRO. ... 92
4.1 Considerações Iniciais. ... 92
4.2 Os desafios na definição do termo empresa. ... 93
4.3 A definição de empresa. ... 96
4.4 A atividade empresarial como subclasse da atividade econômica. ... 103
4.5 As definições de empresário, estabelecimento e sociedade empresarial. ... 104
4.6 A personalização das sociedades empresariais e do empresário individual. ... 107
4.6.1 Breve histórico da personalização das sociedades empresariais. ... 108
4.6.2 Autonomia da vontade e a personalidade jurídica. ... 115
4.7 Espécies de sociedades empresariais no direito brasileiro. ... 118
CAPÍTULO V – GRUPOS ECONÔMICOS NO DIREITO BRASILEIRO. ... 129
5.1 Considerações iniciais. ... 129
5.2 Os desafios à definição da expressão grupo econômico. ... 131
5.3 Os grupos econômico na legislação e sua classificação. ... 133
5.4 Os grupos econômicos na jurisprudência e sua identificação. ... 149
5.5 A definição de grupo econômico. ... 160
CAPÍTULO VI – A RESPONSABILIZAÇÃO TRIBUTÁRIA DOS GRUPOS ECONÔMICOS. ... 163
6.1 Considerações iniciais. ... 163
6.2 A origem do problema e suas possíveis soluções. ... 164
6.3 As proposições normativas do artigo 124, I e II do Código Tributário Nacional. ... 166
6.3.1 O artigo 124, II do Código Tributário Nacional e a solidariedade tributária do artigo 30, IX da Lei 8.212/91. ... 167
6.3.2 O artigo 124, I do Código Tributário Nacional. ... 172
6.3.2.1 O artigo 124, I do CTN e o interesse comum no fato jurídico tributário. ... 173
6.3.2.2 O artigo 124, I e o interesse comum presumido dos grupos econômicos de fato. .. 177
6.4 A responsabilização dos grupos econômicos ilícitos. ... 180
6.5 A desconsideração da personalidade jurídica como possibilidade à responsabilização tributária de grupo econômico. ... 185
6.4.2 A desconsideração da personalidade jurídica e sua aplicabilidade aos grupos
INTRODUÇÃO
Na década de 1970, o governo brasileiro implementou o II Plano Nacional de
Desenvolvimento, aprovado pela Lei 6.151 de 04 de dezembro de 1974, que definiu como
meta, dentre várias outras estratégias de desenvolvimento econômico e social, o
fortalecimento das grandes sociedades empresariais nacionais e a formação de poderosos
conglomerados econômicos brasileiros.
O propósito era fomentar fusões e incorporações societárias com o intuito de
consolidar o Brasil como uma potência econômica emergente, buscando vencer a fronteira
entre o subdesenvolvimento e o desenvolvimento econômico e social. Além de consolidar o
modelo de economia de mercado.
Na busca pelo cumprimento do citado Plano, diversas medidas legislativas
foram tomadas naquela época, sempre em direção aos propósitos estabelecidos naquela
ocasião. Neste cenário, surgiu a Lei das Sociedades Anônimas (Lei 6.404 de 15 de dezembro
de 1976) responsável por introduzir no ordenamento jurídico a regulamentação dos grupos
econômicos.
Nesta mesma época, no que tange ao direito tributário, houve a promulgação
do Decreto-Lei 1.598 de 26 de dezembro de 1977 que instituía a tributação em conjunto
desses grupos societários. Entretanto, em razão do posterior Decreto-Lei 1.648 de 18 de
dezembro de 1978, a tributação em conjunto foi revogada, nunca tendo sido efetivamente
testada no Brasil por questões de prazos específicos.1
A Lei das Sociedades Anônimas, por influência da legislação alemã,
determinou que os grupos econômicos brasileiros poderiam adotar duas formas distintas: o
grupo econômico de direito, modelo formal e que exigia registro próprio, e o grupo
econômico de fato, modelo que não exigia qualquer registro, bastando a comprovação de
controle ou significativa influência.
1 GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Das Relações Internas no Grupo Convencional de Sociedades. In:
Sem embargo, a diferença entre o modelo legal adotado na mencionada lei e os
modelos de negócios costumeiramente utilizados pelos empresários brasileiros – dentre outras
questões que serão abordadas no decorrer dessa dissertação – fez com que os grupos
econômicos do direito brasileiro ficassem marcado pela total informalidade e,
consequentemente, pelo liberdade de formatação.
A informalidade é tamanha que, hodiernamente, a identificação do grupo
econômico necessariamente deverá ser pontual, cabendo ao interessado identificar, no caso
concreto, se aquele conjunto de sociedades empresariais ou empresas individuais está ou não
subordinado a um controle unitário, o que deverá ser feito através da demonstração de atos
grupais.
Se por um lado, a informalidade agrada pela liberdade de escolha que lhe é
inerente, pelo outro, a ausência de controle dá ampla margem à ilicitudes e abusos.
Atualmente, é possível a identificação concomitante de grupos econômicos integralmente
legítimos e de grupos societários formados com o único e exclusivo intuito de fraude,
sonegação e blindagem patrimonial.
Em suma, se de fato o II Plano Nacional de Desenvolvimento do presidente
Ernesto Geisel logrou instigar a formação de Grupos Econômicos, os impulsos à formalização
desses grupos estabelecidos pela Lei das Sociedades Anônimas não tiveram a mesma
efetividade.
Neste cenário, já nos primeiros anos do século XXI, a Procuradoria da Fazenda Nacional, órgão constitucionalmente responsável pela legalidade, gestão e cobrança da dívida
ativa federal, passou a investigar, através de equipe específica e especializada, a formação e o
funcionamento desses grupos econômicos, sempre que um de seus membros fosse grande
devedor da União.
Foi a partir deste marco que os grupos econômicos entraram, definitivamente,
Não tardou muito para que a Procuradoria da Fazenda Nacional passasse a
oferecer modelos normativos ao Poder Judiciário em defesa da responsabilização dos grupos
econômicos pelas dívidas milionárias de um de seus membros, Automaticamente, os
advogados desses grandes grupos passaram a tentar desconstruir tais modelos normativos,
oferecendo resistência à pretensão fazendária e, no meio desta relação, juízes federais e
estaduais passaram a enfrentar, muitas vezes em execuções fiscais, todas essas questões.
Neste diálogo processual, onde impera a linguagem técnica e, por vezes, a
linguagem ordinária, diversos modelos normativos foram apresentados e, consequentemente,
diversas normas concretas e individuais foram introduzidas no ordenamento jurídico, tanto
pelo Poder Judiciário, quanto pelas autoridades fiscais.
O objeto desta dissertação é exatamente à análise desses modelos normativos
propostos no que tange à responsabilização tributária dos grupos econômicos. A intenção é
identificar, através da interpretação do ordenamento jurídico, se há ou não hipóteses de
responsabilização dos grupos econômicos por dívidas tributárias dos seus membros.
A identificação do ordenamento jurídico como um sistema de normas
construídas a partir do discurso jurídico-positivo, faz do método hermenêutico-analítico do
construtivismo lógico-semântico o caminho escolhido para surpreender o objeto abordado.
Ademais, sempre que útil, noções de semiótica serão utilizadas em auxílio.
Nesta vereda, o trabalho se inicia com a descrição do Sistema de Referência.
onde acontece o detalhamento do método e do objeto. Nesta ocasião, os primeiros cortes
metodológicos serão traçados, abrindo caminho ao breve estudo da norma jurídica e sua construção.
Após a realizações das incisões metodológicos e a definição do objeto de
estudo e do método, o foco passará a ser a norma jurídica, especialmente a relação jurídica
contida em seu consequente, a sujeição passiva tributária e a responsabilidade tributária.
Importante anotar que a responsabilidade tributária será abordada em linhas
centrar nos pressupostos teóricos dos modelos normativos que são devidamente apresentados
no último capítulo deste trabalho.
O papel do contexto no processo comunicativo e interpretativo não é
subestimado em nenhum momento ao longo da dissertação. A técnica de descrição das
referências não se restringe aos primeiros capítulos e, sempre que conveniente, contextos
históricos, constitucionais ou mesmo pragmáticos serão trazidos à baila no intuito de melhor
analisar alguns institutos.
Também por exigência dos modelos normativos, haverá a abordagem de
institutos da Teoria Geral do Direito, em especial, a questão da personalidade jurídica. A
aptidão de ser sujeito de direitos e deveres é basilar ao estudo de toda e qualquer relação
jurídica obrigacional, sendo pressuposta a qualquer questão envolvendo responsabilidade.
Ao final, reconhecendo a personalidade como pressuposta à responsabilidade,
destacou-se a necessidade de estender o estudo a tal instituto, bem como a outros temas
normalmente desenvolvidos pelo Direito Privado. O direito empresarial também tem seu
destaque, especialmente, no que tange às modalidades empresariais.
Assim, em busca pelo conceito de grupo econômico e de uma classificação
capaz de facilitar a sua identificação e a abordagem de questões probatórias, haverá a incursão
mais aprofundada no direito privado. Nesta oportunidade, os conceitos jurídicos relacionados
ao fenômeno empresarial e a questão da personalidade jurídica serão exaltados e a definição
ao conceito de grupo econômico será estabelecida.
Por fim, após o estabelecimento de diversas premissas, no último e derradeiro
capítulo, os modelos normativos encontrados no direito posto, ou seja, nos lançamentos, nas
petições, nos pareceres, nas decisões e nos acórdãos, serão analisados de forma crítica e
criteriosa, deixando para a conclusão a resposta ao questionamento inicial: os grupos
econômicos, no direito brasileiro, são responsáveis pelos tributos devidos por seus
CAPÍTULO I – SISTEMA DE REFERÊNCIA E CONCEITOS FUNDAMENTAIS.
1.1 Considerações iniciais.
Coloque um objeto qualquer entre duas pessoas, peça para elas a descrição do
que observam e facilmente perceberás que, muito provavelmente, uma descreverá,
construindo em linguagem, uma face do objeto, enquanto a outra delineará, também em
construção linguística, a face oposta.
Eis o papel fundamental, em termos comuns, do observador e sua referência na
descrição de um objeto qualquer.
Iniciar uma descrição, em seu sentido mais profundo de construção de
linguagem e produção de conhecimento, sem expor as referências de onde se observa e de
como se dará a abordagem do objeto estudado, deixará o destinatário da mensagem perdido
dentre diversas referências possíveis, o que seguramente comprometerá o processo de
comunicação.
Assim, com o escopo de esclarecer o que se observa, de onde se observa e o
modo ou caminho que será percorrido para, descortinando o objeto de estudo, surpreendê-lo,
este primeiro capítulo é dedicado à descrição do sistema de referência que contextualiza esta
dissertação, ao esclarecimento dos paradigmas filosóficos que o cerca e às definições dos
conceitos fundamentais ao presente trabalho.
1.2 A realidade e a linguagem científica.
A construção de um trabalho com pretensões científicas exige, antes de tudo, a
delimitação de um objeto específico e a escolha de um método, que é o meio pelo qual o
observador busca surpreender o seu objeto de estudo.
O nome objectum, conforme salienta Charles Sanders Peirce (MS 693, p. 63),
tornou-se usual durante o século XIII como termo da Psicologia e significou, primariamente,
a criação da mente na sua reação com algo mais ou menos real, criação esta que se torna
significações, dentre as quais: aquilo sobre o qual um esforço é desempenhado, aquilo que
está acoplado a algo em uma relação e, ainda, aquilo a que um signo qualquer corresponde.2
O significado pelo qual se popularizou na Alta Idade Média não se afasta
inteiramente da noção etimológica do vernáculo que, segundo Paulo de Barros Carvalho,
provém do latim objectus, particípio passado do verbo objecere, que significa “atirar em” ou
“lançar contra.”3 Objeto, portanto, pode ser definido como o alvo de uma atividade de
aproximação.
Em que pese a popularidade do vocábulo somente ter aparecido no século XIII,
a ideia de objeto como algo independente e que está vinculado ao sujeito cognoscente por
meio da linguagem, habita as ideias filosóficas desde a antiguidade clássica. Assim fez Platão
(428-348 a.C.) em o Crátilo, texto que se presume datado de 388 a.C, e Kant (1724-1804) em
sua Filosofia da Consciência, na qual a linguagem é concebida como instrumento de
consolidação e comunicação do conhecimento sobre o mundo em si.4
A linguagem, em ponto comum tanto à denominada Filosofia do Ser, como à
Filosofia da Consciência, sempre foi considerada um instrumento secundário do
conhecimento até que, em fato historicamente marcado pelo lançamento do Tractatus
logico-philosophicus de autoria de Ludwig Wittgenstein (1859-1951), escrito nas trincheiras da
Primeira Guerra Mundial, surgiu uma nova concepção filosófica, caracterizada
eminentemente pelo papel criador atribuído à linguagem e que, por isso, é denominada de
Filosofia da Linguagem.
A Filosofia da Linguagem, pautada nas ideias de que a linguagem constitui a realidade cognoscível e é condição necessária ao conhecimento, aqui compreendido como a
relação entre linguagens-significações,5 revolucionou a Epistemologia em escala global.
2 SANTAELLA, Lucia. A Teoria Geral do Signos – Como as linguagens significam as coisas. São Paulo:
Cengage Learning, 2008. p. 33.
3 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 2a ed. São Paulo: Noeses, 2008. p.
13.
4CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-Semântico.
2a ed. São Paulo: Noeses, 2010. p. 12.
As ideias trazidas por Wittgenstein no Tractatus logico-philosophicus, em
parte devido à sua repercussão pelos integrantes do Círculo de Viena e ao entusiasmo com
que foram recebidas em suas lições proferidas na Universidade de Cambridge, cujo
desenvolvimento levou à edição e publicação do livro Investigações Filosóficas,
influenciaram fortemente à Epistemologia em movimento que ficou conhecido como o giro
linguístico-pragmático.
Se o Tractatus logico-philosophicus pode ser considerado como o termo inicial
do giro-linguístico, a obra Investigações Filosóficas é o marco de sua consolidação. A
construção e o caminho da obra do eminente filósofo austríaco, portanto, são um retrato
personificado do que foi o este movimento.
No universo jurídico brasileiro, o giro-linguístico provocou – e continua
incitando e desafiando – as teorias pautadas em paradigmas filosóficos mais tradicionais,
marcadas, especialmente, pela concepção de uma realidade propriamente dita e independente
do sujeito cognoscente, um universo de dados brutos nos moldes consagrados pelo plexo
teórico do Ontologismo.
As ideias do giro-linguístico aplicadas ao Direito desconstrói as bases da
tradicional Hermenêutica Jurídica e propõe um novo paradigma à interpretação jurídica.
No caso específico do Direito Tributário, esta mudança de perspectiva
filosófica é notória e bem perceptível em fenômeno acadêmico que a cada dia ganha mais
espaço dentre as obras dedicadas a este ramo do Direito. Este modelo teórico, denominado de
Construtivismo Lógico-Semântico, tem marcante viés analítico-comunicacional e busca sempre pautar-se na construção de um discurso científico rígido na esteira do movimento
filosófico chamado de Neopositivismo Lógico.
Em despretensiosa esquematização propedêutica, é possível estipular que o
Construtivismo Lógico-Semântico está fundado nas ideias basilares de que: 1) a linguagem
constitui a realidade e só o dado linguístico está acessível – e portanto interessa – ao sujeito
cognoscente; 2) o discurso científico deve obedecer à severa rigidez lógico-sintática e ser
construído sempre em consonância com as normas gramaticais vigentes, sendo capaz de gerar
do discurso científico sejam empiricamente verificáveis e que esta verificabilidade seja
trazida sempre pela produção de outro enunciado linguístico mais específico e preciso; e, por
fim, 4) que seja evitada a contaminação emotiva dos signos do discurso científico.
No que tange à verificabilidade semântica, Tárek Moysés Moussalem, ao
trabalhar a noção expressa pelo termo ‘conceito’, faz oportuna anotação quando identifica, na
esteira do pensamento de Lourival Vilanova, os conceitos a priori como condições necessária
ao conhecimento.
Estes pré-conceitos são noções provisórias e incompletas de objetos
provenientes de um mundo cultural e que constituem o discurso ordinário. São eles que
permitem a comunicação cotidiana e, portanto, apresentam-se como necessários à produção
de nova linguagem, o que implica em conhecimento.6
A verificabilidade semântica segue a mesma lógica do processo de produção de
conhecimento, uma vez que o enunciado científico comporta-se, nesta ocasião, como uma
preconcepção que deve sempre estar sujeito à verificação que, por meio de experimentos
empíricos ou outros métodos específicos capazes de gerar nova linguagem, confirmarão ou
negarão o conceito científico sob análise.
Este fenômeno é claramente observado na relação entre a Física Teórica e a
Experimental e é bastante útil à compreensão da famosa declaração atribuída7 à Pontes de
Miranda, de que não há diferença significativa entre Teoria e Prática, o que há é
conhecimento ou não do objeto.8
A importante noção de realidade cognoscível como expressão linguística
coloca a capacidade de comunicação dos seres humanos como a única possibilidade ao
6 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2a ed. São Paulo: Noeses, 2006. p. 27-29.
7
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: Fundamentos Jurídicos da Incidência Tributária. 8a ed. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 28-29.
8 No campo da ação teoria e prática são indissociáveis, entretanto, inegavelmente há o foco teórico e o foco
conhecimento9 e isto faz com que a Semiótica, também denominada de Teoria Geral dos
Signos, e a Linguística, a chamada Ciência dos Signos Verbais, sobressaiam-se como
ferramentas indispensáveis à Epistemologia e à construção de um discurso científico
propriamente dito, afinal, “o que transforma o caos em cosmos é a possibilidade de
conversação, é o vem e vai da língua.”10
Neste trabalho, portanto, é firme a noção – e posição – de que a linguagem
constitui a realidade cognoscível e somente através de operações mentais evolutivas que
substituem o signo-objeto por um signo-interpretante mais complexo e apurado, ou seja,
somente através da aquisição e produção de novas linguagens, será possível construir,
delimitar, compreender e descrever o objeto do estudo.
À ação que promove a substituição de um signo por um outro mais evoluído
dá-se o nome de semiose, fenômeno triádico marcado pelo evolucionismo e intrinsecamente
ligado à inteligência de uma mente capaz de interpretar. Nas palavras de Charles Sanders
Peirce:
É importante que se entenda o que quero significar por semiose. Toda ação
dinâmica, ou ação de força bruta física ou psíquica, ou tem lugar entre dois
sujeitos [quer reajam igualmente sobre o outro, ou um é agente e o outro
paciente, inteira ou parcialmente] ou de qualquer modo é uma resultante de
tais ações entre pares. Mas por ‘semiose’ quero dizer, ao contrário, uma
ação, ou influência, que é, ou envolve, uma cooperação de três sujeitos, tais
como um signo, seu objeto, e seu interpretante, essa tríplice relativa
influência não sendo de modo algum resolúvel em ações entre pares.
{Sémeiösis} em grego do período romano, desde o tempo de Cícero, se
relembro bem, significa a ação de qualquer espécie de signo; e minha
definição confere a qualquer coisa que assim atue o título de um ‘signo’.11
9 Neste sentido Vilem Flusser: “Há um abismo intransponível ao intelecto entre o dado bruto e a palavra. Ele
pode mergulhar introspectivamente dentro de suas próprias profundezas na ânsia de alcançar as raízes; entretanto, lá onde acaba (ou começa) a palavra, ele pára. Ele sabe dos sentidos e dos dados brutos que colhe, mas sabe deles em forma de palavras. Quando estende a mão para apreendê-lo, transformam-se em palavras. Isto justamente caracteriza o intelecto: ele consiste de palavras, e as transporta ao espírito, o qual, possivelmente, os ultrapassa.” (FLUSSER, Vilém, Língua e Realidade. 2a ed. São Paulo: Annablume, 2007. p. 47.)
10 FLUSSER, Vilém, Língua e Realidade. 2a ed. São Paulo: Annablume, 2007. p. 47.
Como já foi dito: o conhecimento é uma relação de linguagens-significações.
Some-se a isso o fato de que esta relação é marcada pelo evolucionismo, pela recorrente
substituição de um signo por outro mais apurado e de maior complexidade. O objetivo desta
dissertação, portanto, é desenvolver signos mais apurados do que aqueles que, até então, já
foram produzidos sobre o presente tema.
A semiose, em análise estática, é comumente representada por um triângulo, o
triângulo semiótico. Este gráfico é utilizado por diversos autores, entretanto, dentre eles há a
utilização de diferentes nomenclaturas na descrição das categorias identificadas em cada
vértice.
Paulo de Barros Carvalho, diante deste mesmo cenário, travou explícito pacto
semântico e adotou em sua obra a nomenclatura formulada por Edmund Husserl, qual seja:
‘suporte físico’, para designar o signo posto e o meio físico pelo qual foi enunciado;
‘significado’, referindo-se ao objeto a que o citado signo se refere e representa; e
‘significação’, como o juízo formulado pela mente do intérprete que o enuncia ao se deparar
com o suporte físico.12 Por sua solidez e penetração entre os estudiosos do Direito Tributário,
esta nomenclatura será utilizada ao longo do presente estudo.
Salutar e necessária, entretanto, uma referência à nomenclatura adotada por
Charles Sanders Peirce que, no lugar do termo significado de Husserl, utilizou-se do termo
“objeto imediato” para referir-se àquela perspectiva do objeto que é representada pelo
“suporte físico”, assim, no posto do “suporte físico” usou o termo signo para designar aquilo
que representa um objeto e, ao invés da significação, denominou o vértice superior do
triângulo semiótico de interpretante.
O objeto em sentido amplo ou dado bruto a que se refere Paulo de Barros
Carvalho13 e Vilém Flusser,14 foi denominado por Charles Sanders Peirce de objeto dinâmico
12 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 2a ed. São Paulo: Noeses, 2008.
p. 34.
13 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 2a ed. São Paulo: Noeses, 2008. p.
14.
e o objeto que compõe o triângulo semiótico (suporte físico), acessível à cognição e que trava
relação direta com o signo, de objeto imediato.15
A referência à nomenclatura do semioticista americano, além de necessária
para esclarecer o uso do termo signo ou signo-objeto no transcorrer do presente texto, alumia,
definitivamente, a diferença do termo objeto em sentido epistêmico (o objeto imediato, a
realidade cognoscível formada por conceitos a priori) e em seu sentido de dado bruto
propriamente dito (o objeto dinâmico, a realidade caótica e inacessível). Afinal, dentro de um
universo linguístico, o objeto imediato é signo, sinônimo dos já mencionados conceitos a priori, e o objeto dinâmico é inacessível diretamente e, neste sentido estrito, desinteressante
ao cientista.
Desta forma, ao considerar a linguagem como a única possibilidade criativa da
realidade cognoscível e o fenômeno comunicacional como o único caminho ao conhecimento,
fica clara a propriedade de autorreferibilidade da linguagem.
Não existe, portanto, elementos cognoscíveis externos à linguagem dos quais o
sujeito cognoscente possa socorrer-se, o que implica na impossibilidade dele acessar
diretamente o objeto dinâmico ou dado bruto, sendo sempre necessária uma camada
linguística para que a realidade cognoscível se constitua. A linguagem só se fundamenta em
outra linguagem.
15 “A classificação da realidade social como algo vivo foi elaborada por Charles Sanders Peirce, ao trabalhar
Neste sentido, explica Vilém Flusser:
Além de palavras, os sentidos fornecem outros dados. Estes se distinguem
das palavras qualitativamente. São dados inarticulados, isto é, imediatos.
Para serem computados, precisam ser articulados, isto é, transformados em
palavras. Há, portanto, aparentemente, uma instância entre sentido e
intelecto, que transforma dado em palavra. O intelecto sensustricto é uma
tecelagem que usa palavras como fios. O intelecto sensu lato tem uma
ante-sala na qual funciona uma fiação que transforma algodão bruto (dados dos
sentidos) em fios (palavras). A maioria da matéria prima, porém, já vem em
forma de fios.16
A atividade mental que liga, transformando, as sensações às palavras não
decorre nem reflete uma relação com a realidade bruta propriamente dita. Tal atividade é fruto
de uma pré-compreensão advinda de um mundo cultural. Neste sentido, após declarar que o
homem habita um universo linguístico, se posiciona Tárek Moyses Moussalem:
O conceito de uma palavra jamais chega a tocar a realidade, pois, por mais
que procure se aproximar do mundo físico, nunca o alcançará, porque
sempre estará ligado a um prejuízo ou pré-conceito. Daí dizer que o conceito
não reproduz o objeto (entendido aqui como objeto físico).17
Em decorrência, a definição do objeto de estudo deverá ser promovida por
meio de cortes epistemológicos delineadores da linguagem que constitui este objeto e caberá
ao método a definição das regras do jogo de linguagem (no caso, o jogo de linguagem
científico) que possibilitarão estas incisões no discurso da realidade social e, posteriormente,
no do próprio objeto.
Nesta dissertação, o primeiro corte promovido sobre o objeto de estudo –
seguindo tradição kelseniana – será efetuado com a definição do direito positivo, sistema de
normas válidas com fundamento na Constituição Federal, e o método será o lógico-analítico,
que dará o caminho e os instrumentos de aproximação necessários à descrição daquele objeto,
possibilitando a sua análise em todos os níveis linguísticos: sintático, semântico e pragmático.
16 FLUSSER, Vilém. Língua e Realidade. 2a ed. São Paulo: Annablume, 2007. p. 40.
Com fulcro nessas premissas, este primeiro capítulo servirá para que o sistema
de referência torne-se conhecido, conceitos fundamentais da Teoria Geral do Direito sejam
estabelecidos e cortes metodológicos explicitados.
1.3 Método: o conceito e a definição como instrumentos analíticos.
Com base nos paradigmas gerais da Filosofia da Linguagem, restou-se
assentada a necessidade da linguagem à constituição da realidade cognoscível, sendo esta a
única possibilidade disponível ao sujeito cognoscente para conhecer.
A impossibilidade de alcançar diretamente o objeto dinâmico ou dado bruto
impede, ao contrário do que já se supôs possível ao longo da história da Epistemologia, a
busca pela definição dos signos na correspondência destes com as coisas mundanas
propriamente ditas.
Neste sentido Fabiana Del Padre Tomé assevera com clareza:
Disso (refere-se à premissa de que somente é real aquilo que é inteligível ao
ser humano) decorre que a proposição cuja veracidade se examina não se
refere ao objeto-em-si, mas ao enunciado linguístico que a compõe,
inexistindo aquela suposta correspondência entre a linguagem e algo exterior
a ela.18 (A parte sublinhada é nota do autor e não está no original).
É impossível, portanto, conhecer o que convencionou-se chamar,
tradicionalmente, da essência de um dado bruto ou da natureza de um objeto dinâmico.
Esta ruptura, que afasta definitivamente a ideia de verdade como a de uma
relação de correspondência da significação ou do interpretante com o objeto dinâmico,
explica a dificuldade que sempre existiu – e ainda persiste – nos estudos e debates sobre a
natureza ou a essência de praticamente todos os institutos jurídicos importantes.
Isto acontece, inclusive, com o próprio conceito do termo direito e dos quais
não fogem outros conceitos trabalhados nesta dissertação, dentre eles o de empresa, o de
sociedade empresária e o de grupo econômico.
Ademais, também é possível atribuir à busca pela verdade por
correspondência, a posição de combate em que são colocadas algumas teorias, quando se
acredita que elas estão destinadas a explicar uma mesma realidade (objeto dinâmico)
supostamente acessível. Entretanto, quando estas mesmas teorias são analisadas sob o prisma
semiótico é possível observar que elas, nitidamente, pairam sobre perspectivas distintas
(objetos imediatos distintos) daquele dado bruto e, consequentemente, deveriam possuir
métodos de aproximação diferentes.
Reconhecer o mundo linguístico em que se vive é perceber que a verdade não
está na coincidência do enunciado com a realidade física, mas no consenso entre os
indivíduos de determinada comunidade ou cultura,19 e que o conhecimento, especialmente
aquele adjetivado como científico, refere-se ao produto de uma atividade criadora de
linguagem, cabendo à semântica a identificação “das regras pelas quais uma palavra pode ser
aplicada a um objeto ou circunstância”.20
Se as necessidades comunicacionais cotidianas dos seres humanos fazem com
que diversas significações consensuais e preconcebidas sejam impostas a cada pessoa ao se
deparar com certo signo, a necessidade do conhecimento fez o homem criar uma linguagem
artificial, obediente a regramento próprio, com o intuito de definir e classificar, de modo
seguro, essa realidade linguística em que está inserido.
A rigidez semântica da ciência determina que um signo represente uma e,
sempre que possível, somente uma ideia específica e estas ideias ou significações,
preconcebidas ou não, é o que se entende por conceitos.
O conhecer, por sua vez, implica em construir novos objetos imediatos e
organizá-los em classes que são representadas por palavras-classe e levam à mente
interpretante aquele conceito. Este é, em linhas gerais, o fenômeno descrito no triângulo
semiótico e também na cadeia semiótica. É sobre os conceitos que reside a possibilidade de
conhecimento e cabe a eles, inclusive, o importante papel de estruturar semanticamente o
conhecimento científico.
Um exemplo está em um fato ocorrido recentemente, em janeiro de 2014,
quando foi publicada a descoberta de uma nova espécie de boto, o Boto do Araguaia (Inia
araguaiaensis sp. nov.) por cientistas da Universidade Federal do Amazonas. Os autores do
estudo, ao perceberem a hipótese de estarem diante de uma espécies ainda não classificada,
realizaram um estudo detalhado através de análises de fatores morfológicos e de DNA
(Mitocondrial e Nuclear) e, ao final, comprovando a referida hipótese, identificaram o Boto
do Araguaia, uma nova classe diferente do já popular Boto Cor de Rosa da Amazônia (Inia
Geoffrensis). 21
A enunciação da descoberta dentro dos padrões científicos ou, no caso citado, a
inserção desta nova classe de boto no discurso científico, representa, em termos práticos, a
descrição de um novo objeto imediato até então inexistente na linguagem científica e a sua
classificação segundo os padrões das ciências biológicas. A partir de então, a palavra-classe
Inia araguaiaensis sp. nov. representará esta nova classe que abarcará todos os seres que
cumpram os critérios desta classe.
O conhecimento científico, portanto, é um discurso composto por um conjunto
de proposições caracterizadas pela rigidez, embasadas em conceitos e ordenadas nos padrões
da lógica alética, que tem o escopo de construir, classificar e descrever um objeto.
Se os conceitos são significações produzidas por uma mente ao ter contato com um signo, as suas definições são as explicações enunciadas destes conceitos. Neste sentido, no
momento em que se depara com a aclamada autorreferibilidade da linguagem, a busca pela
definição de conceitos deverá ser conduzida invariavelmente dentro do universo linguístico,
tendo sempre em mente que, como ensina Aurora Tomazini de Carvalho:
21 HRBEK, Tomas; SILVA, Vera Maria Ferreira da; DUTRA, Nicole; GRAVENA, Waleska; Martin, Anthony;
FARIAS, Izeni Pires. A New Species of River Dolphin from Brazil or: How Little Do We Know Our
Biodiversity. PloS One. San Francisco, CA, n. 9(1), JAN 2014. Disponível em
“definir não é fixar a essência de algo ou mesmo parte dele, mas sim eleger
critérios que apontem determinada forma de uso da palavra, a fim de
introduzi-la ou identificá-la num contexto comunicacional.”22
Um único signo muitas vezes pode significar diversos conceitos. No Direito
Tributário, a palavra “tributo”, por exemplo, caracteriza-se por ser plurívoca e comumente
leva experientes intérpretes a múltiplas significações diferentes. Se por um lado a diversidade
de significações de um signo não implica na inutilidade da linguagem ordinária ou natural,
capaz de lidar cotidianamente com tal elasticidade semântica, pelo outro, a linguagem
científica não a admite, exigindo, sempre que possível, a univocidade de cada signo.
Os tipos de linguagem, naturalmente, não se restringem à linguagem ordinária
e à científica, segundo Paulo de Barros Carvalho, com fulcro – e indo além – no
Neopositivismo Lógico, as linguagens podem ser classificadas em seis tipos: a linguagem
natural ou ordinária, a linguagem técnica, a linguagem científica, a linguagem filosófica, a
linguagem formalizada e a linguagem artística.23
Cada um desses tipos de linguagens possui
um regramento específico destinado à elaboração de proposições de sua classe.
Pelas regras da linguagem ordinária ou natural, por exemplo, um ‘mictório’ é
comumente definido como um utensílio sanitário ou, especialmente em Pernambuco, como
uma animada agremiação carnavalesca. Por outro lado, em 1917, este mesmo ‘mictório’, foi
exposto por Marcel Duchamp sob o título de Fountain, agora em obediência às regras do jogo
da linguagem artística, e acabou reconhecido, ao vencer o Prêmio Turner (Turner Prize),
como a obra de arte moderna mais influente da história da humanidade.
Para tornar o exemplo mais interessante, é válido salientar que tal decisão foi
tomada através do consenso entre 500 críticos, negociantes e curadores de arte praticamente
100 anos depois da obra ter ficado de fora do catálogo de sua primeira exibição. O consenso
transformou um mictório em uma obra de arte.
22
CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-Semântico. 2a ed. São Paulo: Noeses, 2010. p. 59.
23 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 2a ed. São Paulo: Noeses, 2008.
Assim como a linguagem artística, a linguagem científica também impõe uma
série de exigências à produção dos seus enunciados. Caracterizada por ser um discurso
descritivo artificial, a linguagem científica impõe, através das suas regras, um processo de
depuração da linguagem objeto (seja ela ordinária, técnica, artística, etc.), buscando substituir
signos eivados de imprecisões por outros unívocos ou, ao menos, aptos a indicar os
fenômenos descritos com suficiente exatidão. Além disso, segue sempre a direção a um
sistema esquematizado sintaticamente sob as regras da lógica alética, cuidadosamente
delimitado semanticamente e preocupado com a posição do utente, simpatizando com a
neutralidade pragmática.24
A regra do jogo de linguagem do discurso científico, marcada especialmente
pela rigidez, é o que denomina-se de método científico. Neste mesmo sentido, Tárek Moysés
Moussallem é preciso quando formula a distinção da linguagem científica das demais
linguagens, atribuindo ao método científico a função de descrever as regras do jogo de
linguagem que se exige ao mover-se naquele saber científico.25
Tem-se por método científico, portanto, o conjunto de critérios destinados à
formulação de enunciados científicos. Tais critérios atingem a linguagem em seu prisma
sintático, exigindo sistematização lógica do discurso com obediência às leis clássicas da
identidade, não-contradição e do terceiro excluído, em seu prisma semântico, cobrando a
precisão e a verificabilidade de cada proposição – não pela tradicional ideia da
correspondência, mas sim da autorreferibilidade – e, no viés pragmático, demandando atenção
ao utente da linguagem objeto e evitando o uso da emoção em seus enunciados.
Desta feita, no Direito o método científico implica na análise do direito positivo em seus planos sintático, semântico e pragmático, descrevendo estruturas e
construindo conceitos sempre com o propósito definitivo de promover cortes no direito
positivo capazes de descrever e, assim, no caso específico deste estudo, responder à dúvida
inicial sobre os limites da responsabilidade tributária dos grupos econômicos no direito
brasileiro.
24 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário Linguagem e Método. 2a ed. São Paulo: Noeses, 2008. p.
60.
1.3.1 Os problemas da vaguidade, da ambiguidade e da carga emotiva.
A busca pela delimitação do objeto sobre o qual incide esta dissertação, ante o
propósito de descrever e delimitar a responsabilidade tributária dos grupos econômicos no
direito positivo brasileiro, enfrenta alguns obstáculos comunicacionais. Trata-se de mais uma
questão decorrente da constatação de que a humanidade vive em um mundo construído por
linguagem.
Como visto, impõe-se àqueles que se interessam pela descrição científica de
um certo objeto, a necessidade de estabelecer uma linguagem capaz de comunicar aos seus
receptores um enunciado sintaticamente coerente, semanticamente rígido e pragmaticamente
afastado de emoções e satisfações ideológicas do utente da linguagem.
Todavia, o caráter arbitrário dos signos, em especial dos símbolos 26
, e o fato
dos pré-conceitos da linguagem ordinária estarem condicionados ao uso e imposições
culturais, tornam a tarefa de construção do discurso científico um árduo trabalho que,
necessariamente, passa por diversos obstáculos, dentre os quais o da ambiguidade, da
vaguidade e da carga emotiva presente em grande parte desses símbolos.
Esta problemática foi abordada por Carlos Santiago Nino27 ao debater a
dificuldade na definição do conceito relacionado ao termo direito, já que tal palavra está
fortemente eivada dos vícios da vaguidade, ambiguidade e da carga emotiva. Neste mesmo sentido caminhou Tércio Sampaio Ferraz Júnior quando expôs as imprecisões sintática,
semântica e pragmática também referindo-se ao vocábulo direito.28
Se por um lado, esses obstáculos linguísticos serão abordados logo neste
momento inicial, para que seja possível tratar do conceito de sistema do direito e promover o
primeiro – e mais importante – dos cortes epistemológicos deste trabalho, por outro, tais
questões voltarão à tona sempre que seja necessário definir determinada termo ou símbolo, o
26 Charles Sanders Peirce classificou os signos em três espécies no que tange à relação do signo com o seu objeto
dinâmico: o ícone, signo que mantém com o objeto dinâmico uma relação de mera comparação como é o caso de uma foto; o índice ou indicador, signo que trava relação de afetação na qual o objeto dinâmico afeta o signo, é o caso de uma pegada na praia; e o símbolo, signo que se relaciona com o seu objeto por força de uma convenção ou uma lei arbitrariamente instituída, as palavras são espécies de símbolos.(SILVEIRA, Lauro Frederico Barbosa da. Curso de Semiótica Geral. São Paulo: Quartier Latin, 2007. p. 73-77).
27MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2a ed. São Paulo: Noeses, 2006. p. 32
que se dará posteriormente, dentre outras vezes, na definição de empresa, sociedades
empresárias e grupos econômicos.
1.3.1.1Da vaguidade.
Tem-se por vaguidade a incapacidade de certo vernáculo determinar com
precisão quais são os objetos a que ele se refere, ou seja, quais elementos estão abarcados na
classe por ele representada. Nas palavra de Tárek Moysés Moussallem:
A vaguidade é o estado de indeterminação da palavra, é a sua condição de
imprecisão. É a incapacidade de determinarmos se a linguagem da realidade
social está abrangida pelo conceito de uma palavra.29
A ausência de uma correspondência direta entre o signo e o seu objeto
dinâmico ou dado bruto autoriza a afirmação de que todo signo é vago em certo ponto, afinal,
por mais consolidado que o uso deste signo esteja em uma comunidade linguística, a impossibilidade de correspondência entre o signo e o objeto dinâmico sempre implica em um
certo grau de vaguidade.
A vaguidade estaria naquilo que se denomina ‘zona de penumbra’ do signo,
sempre presente nos casos em que o conceito da palavra não corresponde exatamente ao seu
objeto imediato ou, em outras palavras, à linguagem da realidade social. A ‘zona de
penumbra’ se contrapõe à ‘zona de certeza’, onde a subsunção entre o conceito do signo e o
objeto imediato consensual se dá perfeitamente devido à consolidação do uso daquele signo
dentro daquela comunidade linguística.
O remédio para a vaguidade está na definição30. Definir, consiste em
estabelecer critérios de corte no campo semântico de certa palavra, reduzindo a zona de
penumbra e fazendo prevalecer a zona de certeza daquele símbolo, ao menos, dentro daquele
contexto específico.
29 MOUSSALLEM, Tárek Moysés. Fontes do Direito Tributário. 2a ed. São Paulo: Noeses, 2006. p. 34. 30 CARVALHO, Aurora Tomazini de. Curso de Teoria Geral do Direito: o Construtivismo Lógico-Semântico.
Um exemplo é encontrado na análise do termo ‘correr’. Se por um lado é certo
que os maratonistas olímpicos correm durante aquela secular competição, esta certeza não
pode ser facilmente constatada nos amadores corredores de rua. O termo empregado,
entretanto, é o mesmo, seja na manchete “Marilson Gomes de Souza irá correr a Maratona
Olímpica representando o Brasil”, seja na exclamação “O meu amigo Marcos foi correr no
parque e logo voltará”. Para dirimir tal vaguidade do termo, definiu-se, em consenso, que o
símbolo ‘correr’ se refere tão só àquela atividade em que um ser humano em locomoção, sem
qualquer auxílio de aparelho, percorra o espaço de um quilómetro em tempo igual ou inferior
a seis minutos (6:00 km/min).
A solução, entretanto, nunca é definitiva, afinal, a constatação de que todas as
palavras estão eivadas de vaguidade torna impossível a eliminação definitiva daquela ‘zona de
penumbra’, já que, por maior que seja o esforço para definir, as próprias palavras empregadas
na definição sempre terão a sua carga de vaguidade e sua delimitação estará sempre
condicionada ao consenso, imposto ou não por uma autoridade, daquela comunidade.
No exemplo citado, não seria de se estranhar uma pergunta sobre a influência
do vento nesta velocidade limite, afinal, correr a 6:00 km/min a favor do vento é uma coisa,
fazê-lo em sentido contrário é outra completamente diferente. Essa questão costuma ser
objeto de definição por parte da Federação Internacional de Atletismo para fins de aferição de
recorde mundial e, por conta disso, o tempo de um atleta na histórica Maratona de Boston não
é computado como marca oficial.
O objetivo, portanto, é diminuir a vaguidade, atribuindo o máximo de rigidez
que for possível ao discurso científico em construção.
1.3.1.2Da ambiguidade.
São ambíguos os símbolos que trazem consigo mais de um significado, ou seja,
aqueles que se relacionam a mais de um objeto imediato. Nas palavras de Tárek Moysés
Moussalem: “ambiguidade é o uso da palavra com mais de um significado. Ocorre quando a
palavra é usada com dois ou mais sentidos”31.
Se é possível afirmar que todos os símbolos estão eivados em certo grau pela
vaguidade, é possível dizer que a ambiguidade aparece na grande maioria deles.
Os signos ambíguos comportam a possibilidade de mais de uma significação na
mente que o interpreta. A necessidade cognitiva e comunicacional do ser humano o leva, por
meio de convenções arbitrárias, a atribuir significados diversos às palavras por eles
conhecidas. Entretanto, estas necessidades não impõe uma precisão absoluta à linguagem
ordinária. Em decorrência, é comum a utilização de signos idênticos para tratar de objetos
imediatos diferentes. A precisão semântica não é, portanto, regra do jogo da linguagem
natural ou ordinária.
Este fenômeno dinâmico faz com que, em incontáveis casos, uma mesma
palavra, a depender do seu uso, represente uma diversidade de objetos distintos e sempre que
isso ocorrer, ou seja, sempre que uma palavra possua mais de um significado, ela estará
eivada de ambiguidade. O símbolo carteira significa dois objetos imediatos diferentes nas
frases: “Pegue o cartão em minha carteira” ou “A minha carteira de clientes duplicou no
último ano” se tal fenômeno não inutiliza a linguagem ordinária, ele é inaceitável dentro da
rigidez do discurso científico.
O método científico, portanto, impõe a máxima precisão semântica dos seus
termos e o antídoto à ambiguidade está no denominado ‘processo de elucidação’.
A elucidação é o processo por meio do qual o utente da língua aponta o sentido
dado àquele termo naquele contexto comunicacional em que o utiliza, descartando todos os
demais e possibilitando ao receptor daquela mensagem a sua compreensão segura.
Se o termo ‘correr’ pode ser empregado para definir diversas condutas, faz-se
necessário ao cientista que tem por objeto de estudo o impacto da corrida no organismo
infantil, por exemplo, elucidar em que sentido o termo está sendo utilizado naquele estudo.
Trata-se, portanto, de mais um vício que, embora admitido pelo discurso ordinário, é
abominado pelo discurso científico, mais exigente e rigoroso.
Se o propósito de um discurso científico é construir com precisão um
determinado objeto, é salutar evitar o uso de definições tendentes à satisfação ideológica e
emocionais daquele que o enuncia.
A carga emotiva pode ser definida como uma gama de sentimentos que o
utente de um signo nele imprime no respectivo ato de fala.
A própria noção do termo direito costuma travar relação direta, por exemplo,
com a ideologia dominante naquele determinado local. Se por um lado, nos países que adotam
o modelo econômico-social capitalista, o direito costuma ser definido como um conjunto de
normas que tem o propósito de resolver conflitos intersubjetivos e garantir a paz social e a
segurança nas relações intersubjetivas, pelo outro, em discursos tendentes à imposição de
nova ordem jurídico-constitucional, não é incomum definir esse mesmo direito como um
conjunto de normas jurídicas que tem o propósito de manter relações de dominação e o status
quo.
O problema da carga emotiva no discurso jurídico vai muito além de reflexos
das discussões políticas fundamentais. Mesmo deixando de lado a discussão macropolítica e
concordando com o conceito de direito vinculado à ideologia dominante, no instante em que o
direito é utilizado para resolver conflitos que mexem com a emoção individual ou popular,
não é incomum a utilização de termos em forte tom de emoção, caso corrente, por exemplo,
em sentenças penais de crimes de grande repercussão midiática e que provocam clamor
popular, ou mesmo em trabalhos científicos – ou pretensamente científico – desenvolvidos
por sujeitos envolvidos diretamente na matéria.
No campo da Teoria Comportamental existem posições, como a de Hebert
Alexander Simon publicada em 1947, que indicam que uma pessoa quando institucionalizada
– a quem denomina de ‘homem administrativo’ – aceita objetivos institucionais como
premissa de valor de suas decisões.32 Esta é uma questão da carga emotiva posta em termos
práticos.
Observar o universo jurídico, especialmente no que tange ao plano pragmático,
à luz desta Teoria torna latente a carga emotiva do discurso jurídico. Defesas de teses em
congressos, faculdades, livros e até mesmo a seleção de artigos científicos são atividades que
não raramente sofrem influência marcante de carga emocional.
Desde a delimitação dos princípios basilares da ordem constitucional até na
enunciação de uma norma individual e concreta, o discurso jurídico-positivo está
contaminado por forte carga emotiva. Ao cientista do direito, por sua vez, não é permitido
pelas regras da linguagem científica, no discurso resultante da atividade de descrever o direito
positivo, imprimir esta mesma emoção aos seus enunciados, sob pena de descaracterizá-lo
como discurso científico.
Assim, o método lógico-analítico exige que o cientista do direito, em sua
atividade de construção de um discurso mais rígido e preciso do que aquele corpo de
linguagem técnica que constitui o seu objeto, afaste dos signos-objetos a sua carga emotiva,
evitando a contaminação do seu discurso descritivo por vocábulos com cargas ideológicas em
homenagem à neutralidade da ciência.
Por fim, anote-se a pertinente observação de Aurora Tomazini de Carvalho que
diferencia a valoração de carga emotiva:
O problema não está na valoração do termo “direito”, pois todo termo é
valorativo, dado que o homem (sujeito que o interpreta) é um ser cultural,
impregnado de valores. A imperfeição se mostra na carga emotiva
empregada na definição de seu conceito.
A busca pela neutralidade do discurso científico não implica na ausência de
valores na descrição dos objetos que rodeiam e interessam ao observador. O que se procura
evitar é a definição apaixonada dos conceitos de forma a comprometer pragmaticamente o
aperfeiçoamento do processo comunicacional, impossibilitando ou dificultando a própria
verificabilidade semântica das proposições científicas com os signos-objetos que formam o
1.4 Objeto: sistema do direito e norma Jurídica.
O conhecer caracteriza-se pela criação evolutiva de nova linguagem, novos
enunciados e novos conceitos, tendo como ponto de partida original aqueles pré-conceitos
estabelecidos culturalmente pela necessidade de cognição e comunicação dos humanos. São
os pré-conceitos que permitem às mentes capazes de interpretação construir a linguagem da
realidade social.
Com a pretensão de descrever essa realidade formada pelo que foi denominado
de objetos imediatos, surge a linguagem científica que, sempre obedecendo às regras do
método científico, é constituída por rígidos enunciados descritivos, estruturados segundo as
leis da lógica alética. Estes enunciados buscam confirmar ou negar as hipóteses preconcebidas
pelo cientista.
O primeiro passo, entretanto, para a construção do discurso científico é
promover um corte dentro da linguagem social, um corte metodológico do qual resultará o
objeto que se busca descrever naquele discurso. Então, a partir deste primeiro corte, diversas
outras incisões deverão ser realizadas até que se encontre a resposta à indagação originária,
confirmando ou negando a hipótese em estudo.
O corte metodológico, ato delineador do objeto de estudo, é conduta marcada
pela arbitrariedade. Trata-se de ato do sujeito cognoscente que se aperfeiçoa no instante em
que decide arbitrariamente abordar este ou aquele objeto especificamente.
Neste trabalho, busca-se, em um primeiro momento, definir o objeto de estudo da Ciência do Direito e, em seguida, decompor este objeto com novas incisões metodológicas,
sempre em postura analítica, até ser possível obter as normas jurídicas que trate da
responsabilidade tributária das sociedades formadoras de grupos econômicos ou, ao menos,
que seja constatada a inexistência de tais normas, o que implicaria na irresponsabilidade
desses grupos econômicos.
É desta forma que, ao final, será concluído se há ou não tal responsabilidade
tributária e, se houver, quais os critérios que devem ser seguidos para a elaboração da norma
1.4.1 O sistema do direito.
Norberto Bobbio, imerso no debate sobre a definição do conceito de direito,
defendeu que tal conceito não se refere, somente, a um tipo específico de norma, mas a um
tipo de ordenamento normativo. Em suas palavras:
Para maior clareza podemos também nos exprimir deste modo: o que
comumente chamamos de Direito é mais uma característica de certos
ordenamentos normativos que de certa normas. 33
Constata-se, neste sentido, que naquele universo linguístico primário
denominado de realidade social, há uma série de ordenamentos normativos, cada um com
características específicas capazes de discerni-lo dos demais. Convivem nesta realidade,
portanto, diversos sistemas normativos, dentre os quais: o ordenamento moral, o religioso e o
jurídico.
Ao defender a existência de um ordenamento jurídico, Norberto Bobbio
assumiu, portanto, a existência de uma espécie de ordenamento com características mínimas capazes de defini-lo, separando-o dos demais. Assim, lembrando de como Hans Kelsen
houvera feito anteriormente, o jurista italiano estabeleceu o critério da coercibilidade para
distinguir o ordenamento jurídico dos demais sistemas normativos especificáveis e
determinou a sanção jurídica como a coerção exteriorizada e institucionalizada.34
Por sua vez, Hans Kelsen, ao trabalhar a purificação da Ciência do Direito,
quando buscou consolidá-la na pureza positivista, colocou o ordenamento jurídico como o seu
objeto. A partir de então, a Ciência do Direito teve um objeto específico consagrado pela
maioria de seus estudiosos e o Direito passou a ser a ciência que estuda o sistema ou
ordenamento do direito.
Estabelecido este primeiro corte epistemológico que, na esteira da Teoria Pura
do Direito e da Teoria do Ordenamento Jurídico, delimita o conceito de direito ao de um