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Breve histórico da personalização das sociedades empresariais 108

No documento Joao Guilherme de Moura Rocha Parente Muniz (páginas 109-116)

CAPÍTULO IV – EMPRESÁRIOS, SOCIEDADES EMPRESARIAIS E O

4.6   A personalização das sociedades empresariais e do empresário individual 107

4.6.1   Breve histórico da personalização das sociedades empresariais 108

O ordenamento jurídico tem amplo poder para eleger os sujeitos de direito, ou seja, entes capazes de participarem de relações jurídicas. Foi no exercício deste poder que o legislador brasileiro, através do Código Civil, elegeu como entes jurídicos uma série de instituições e entidades, dentre as quais, as sociedades civis e as empresariais.

Tal escolha não surgiu do nada como mero ato arbitrário, pelo contrário, ela é resultado da evolução da atividade empresarial e, em sua feição reguladora, do próprio direito comercial. Uma evolução marcada por uma série de importantes fatos históricos que condicionam e ajudam a explicar o atual regime jurídico ao qual estão submetidas as pessoas jurídicas.

Tarsis Nametala Sarlo Jorge125 ensina que o surgimento das sociedades empresariais, já em modo aproximado ao de sua configuração contemporânea, ocorreu na Idade Média quando as chamadas Corporações de Ofício, congregações de diversas classes de artesões (carpinteiros, ferreiros, etc.) e de comerciantes, passaram a se desvincular das pessoas físicas que delas faziam parte, continuando em operação mesmo após o eventual afastamento ou falecimento dos seus integrantes e líderes. Um novo comando era empossado, mas a sua estrutura e suas relações eram mantidas.

Essas Congregações de Ofício eram geralmente organizadas em modelo hierárquico-piramidal formado na base por aprendizes, subordinados a oficiais e mestres, sendo estes últimos responsáveis pela formação dos aprendizes e pela graduação dos oficiais, além de possuírem o poder gerencial sobre aquelas congregações.

125JORGE, Tarsis Namatela Sarlo. Manual das Sociedades Limitadas: uma abordagem interdisciplinar. Rio de

Se nas antigas oficinas, o falecimento do artesão punha fim àquela oficina, dando origem a uma nova oficina a cargo de seu aprendiz, nessas corporações, com o falecimento ou afastamento de um mestre, inclusive o superior, os seus sucessores assumiam a congregação que perdurava em sua estrutura e em seu objetivo social.

Além da desvinculação da instituição em si de seus membros, também foi na Idade Média que um outro fato concomitante deu destaque à divisão entre o patrimônio das instituições e dos seus integrantes. Trata-se do regramento da divisão patrimonial da Igreja Católica Apostólica Romana.

O marco originário lembrado por grande parte dos autores – como o faz San Tiago Dantas126 e Alexandre Alberto Teodoro Silva127 – está em norma de direito canônico, promovida naturalmente pela Igreja Católica de Roma para permitir a sua continuidade e preservar a sua saúde patrimonial, independentemente, da mudança dos seus integrantes. Além disso, existiam no ordenamento canônico normas destinadas a garantir autonomia jurídica às unidades patrimoniais da Igreja que, dentre outros benefícios, evitava rachas internos e mantinha a unidade institucional.

Por sua vez, a justificativa oferecida – em nada surpreendente – tinha relação com sua origem divina que a igualava às pessoas físicas, assim, tanto a Igreja quanto as pessoas eram obra de um único e onipotente deus.

Portanto, desde a Idade Média, é possível identificar o surgimento de entidades desvinculadas de seus integrantes em sua existência como instituição e, no caso da Igreja Católica Apostólica Romana, com patrimônio autônomo garantido pelo direito. Esses foram os primeiros entes personalizados.

Nos moldes atuais, a forma de estruturação das Corporações de Ofício lembra as sociedades em nome coletivo ou as sociedades em comanditas simples, tendo em vista que não havia, ainda, a noção de personalidade propriamente dita e, consequentemente, tampouco a de limitação de responsabilidades. Por sua vez, a Igreja Católica Apostólica Romana, traçou

126 DANTAS, San Tiago. Programa de Direito Civil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1979. p. 207.

127 SILVA, Alexandre Alberto Teodoro da. A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito

caminho próprio e hoje constitui o Estado da Cidade do Vaticano, estado soberano, sendo considerado uma pessoa jurídica de direito público internacional.

Ainda durante a Idade Média, porém um pouco mais adiante na história, especificamente entre os séculos XIV e XV, já operavam na Itália grandes sociedades mercantes. Em verdade, foi na Itália que surgiram as primeiras sociedades empresárias contratuais, os primeiros bancos e até as primeiras corporações multinacionais, sociedades com representação em diversos países.128 Não havia ainda, entretanto, a limitação de responsabilidades.

Além disso, a Itália possivelmente foi a pátria do primeiro Grupo Econômico na história europeia.129 Trata-se da afamada Casa Médicis, radicada em Florença, mas com filias por toda a Itália e até em outros países e que se dedicava, além da política e da atividade bancária, a diversos outros negócios envolvendo a mercancia regional e internacional, fabricação, comercialização e exportação de seda e tecidos, além do comércio nacional e internacional.

Apesar de significativos avanços técnicos (monetário, bancário, comercial, contábil, etc.) e da consolidação das sociedade contratuais, a personalização propriamente dita das sociedades comerciais somente surgiu após vários anos, especificamente no Século XVII, com a criação das grandiosas Companhias de Comércio, que ocorreu, quase que concomitantemente, na Inglaterra, na França e na Holanda com a bem sucedida Companhia Holandesa das Índias Orientais.

O fato é que essas Companhias de Comércio, constituídas em molde que hoje lembraria o das sociedades anônimas, trouxeram algumas noções importantes ao universo empresarial e que marcam o direito comercial até o presente dia e, dentre estas novidades, destacam-se a divisão do capital social em várias partes ou ações, a sua personalização e o consequente surgimento da limitação de responsabilidade dos investidores, que antes era

128

ROOVER, Raymond de. The Rise and Decline of the Medice Bank – 1397-1494. Washington D.C.: Berad Book, 1999. p. 1 e 2.

129 KOURY, Suzy Elizabeth Cavalcanti, A desconsideração da personalidade Juridica (Disregard

integral e, a partir daí, passou a ser limitada ao valor por ele investido em um empreendimento ou em uma sociedade empresarial. 130

Essa estrutura societária dividida por ações surgiu como uma alternativa ao modelo estatal português, no qual as grandes empreitadas (inacessíveis às pequenas sociedades comerciais) estavam concentradas nas mãos do estado. Tal formatação se apresentava como mecanismo hábil à atração de capital privado para uma atividade de alto risco, remunerando o investidor mediante distribuição de parcelas dos eventuais lucros. Havia, portanto, socialização do lucro e também do perigo com a navegação em si (pirataria, doenças e acidentes) e com o próprio mercado das especiarias e sua arriscada elasticidade.

No caso inglês, como ensina Ryan Bubb,131 professor da Universidade de Nova York, essas Companhias, mesmo financiada por capital privado, estavam sujeitas a forte controle e regulamentação, só surgiam com autorização expressa do Parlamento ou da Coroa e normalmente vinham acompanhada de grandes benefícios como a garantia de monopólio, seguros governamentais e, como dito, a limitação de responsabilidades.

De todo modo, o modelo teve ampla aceitação entre investidores ingleses e o sucesso das Companhias divididas em ações abriu espaço à formação do Mercado de Capital em Londres que, em 1695, já contava com 150 Sociedades por Ações operando na Capital Inglesa. Esta época foi marcada pelo surgimento de grandes companhias como o Banco da Inglaterra, a Companhia dos Mares do Sul e a Companhia das Índias Orientais Inglesa.

Assim, na Inglaterra do início do Século XVIII, existiam basicamente duas formas de estrutura empresarial: as companhias por ações ou corporações (Corporation) e as sociedades contratuais (partnerships). As diferenças entre elas, no entanto, eram abissais.

O regime jurídico das companhias por ações garantiam para esta espécie: personalidade jurídica própria, capacidade processual, administração centralizada, procedimento específico de liquidação com previsão de concurso de credores, maior liquidez do capital investido com ações negociáveis e limitações da responsabilidade do investidor.

130

LOPES, José Reinaldo Lima. O Direito na História. São Paulo: Max Limonad, 2000. p. 413.

131 BUBB, Ryan. Choosing the Partnership: English Business Organization Law During the Industrial

Revolution. NYU Public Papers, Nova York, 10 set. 2013. Disponível em

Por sua vez, as sociedades contratuais pouco tinham evoluído do modelo do final da Idade Média e, portanto, ainda não eram consideradas pessoas jurídicas, a responsabilidade de seus sócios era solidária e ilimitada, não havia processo específico de liquidação das sociedades e tampouco havia a possibilidade de administração centralizada, sendo sempre necessária a consulta dos sócios para todo e qualquer ato, inclusive para transferência de cotas, o que acabava com qualquer possibilidade de liquidez.132

Mesmo que teoricamente bem mais atrativas ao investidor, a forte restrição estatal à constituição de novas companhias por ações e o recorrente indeferimento dos pedidos de autorização à criação dessas novas companhias pelo Parlamento ou pela Coroa, normalmente sob o vago pretexto de ‘políticas públicas’, acabaram por resultar na criação espontânea de uma terceira espécie empresarial: as sociedades anônimas de fato ou corporações de fato (Unincorporated Joint Stock Company), que, inclusive, tinham suas ações negociadas em mercado paralelo.

Tais sociedades, marcadas pela informalidade, não foram bem recebidas pelo Estado Britânico que não tardou para, em meados do ano de 1720, através do seu Parlamento, proibir as corporações de fato e o mercado paralelo de ações em ato que ficou conhecido como o Bubble Act.

De toda forma, a proibição das corporações de fato e a inacessibilidade dos investidores às corporações de direito trouxe consigo um efeito mercadológico interessante que, ao cabo, resultou no fortalecimento das sociedades contratuais (partnerships). A explicação para tal fenômeno envolve a própria responsabilidade solidária e ilimitada dos sócios que passou a ser um chamariz aos investidores133 ansiosos por novos investimentos, tendo em vista que tais pessoas não necessariamente participavam formalmente da sociedade, mas tão só investiam o seu dinheiro esperando o retorno contratado.

132 BUBB, Ryan. Choosing the Partnership: English Business Organization Law During the Industrial

Revolution. NYU Public Papers, Nova York, 10 set. 2013. Disponível em

https://files.nyu.edu/rb165/public/papers/Bubb_choosing_the_partnership.pdf Acesso em 18 dez. 2013.

133 Para se ter uma ideia, na Inglaterra, entre 1760 e 1830, a Taxa de Investimento (investmente rate) dobrou e o

principal foco dos investidores era a indústria moderna, conforme comprovado por Nicholas Crafts da University of Warwick em seu aclamado British Economic Growth during the Industrial Revolution.

O risco da informalidade do investimento em sociedades não personalizadas e o receio com o mercado paralelo faziam com que tanto entre os juristas, quanto – e principalmente – entre os economistas existisse uma série de perguntas não respondidas sobre a utilidade da limitação de responsabilidade das sociedades comerciais ao desenvolvimento econômico.

A esta altura, a experiência inglesa já influenciava o Direito Comercial de diversos outros países e provocava nestas comunidades esses mesmos questionamentos. A reduzida complexidade de tais mercados em comparação com a Inglaterra fez com que, dentre eles, surgissem as primeiras normas legisladas.

Neste sentido, conforme reportam Phillip L. Jelsma e Pamela Everett Nollkamper134, em 1847, o Estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos da América, já tinha um ato legal prevendo as associações com responsabilidade limitada (limited liability associacion) e, na década de 1850, outros diversos estados americanos já admitiam o uso desta forma societária.

O verdadeiro marco legislativo mundial, entretanto, aconteceu por meio de iniciativa parlamentar na Alemanha de 1892 que, em atenção às exigências dos pequenos e médios empreendedores que não tinham volume de negócio para servirem-se do modelo das Sociedades por Ações, e também influenciada pela experiência inglesa, criou a Sociedade Limitada formal. Essa iniciativa legislativa alemã resultou na Lei de Sociedades de Responsabilidade Limitada (Gesellschaft mit beschränkter Haftung) e teve forte e rápida repercussão no mundo todo.

Então, já no fim do Século XIX, o Direito Comercial da Inglaterra, centro da economia mundial, também passou a reconhecer o que se tornaria hoje uma das principais estruturas societárias em números absolutos do mercado mundial: as Sociedades Limitadas (Limited Liability Company).

Neste ponto, as sociedades empresariais, já popularizadas e difundidas pelo mundo, passaram a ser estudadas como vetores de responsabilidade. Marcadas

134 JELSMA, Phillip e NOLLKAMPER, Pamela Everett. The Limited Liability Company. Costa Mesa –

invariavelmente pela personalidade jurídica própria, tais sociedades trazem a possibilidade da limitação de responsabilidade quanto aos seus sócios como principal bandeira.

Ante o breve histórico, é possível asseverar que a personalidade jurídica das sociedades comerciais surgiu, na perspectiva jurídica, como um instrumento do direito positivo capaz de concentrar direitos e deveres, garantindo às sociedades comerciais capacidade jurídica material e processual, e, a depender da espécie societária, operacionalizar a limitação da responsabilidade dos sócios demandada pelos empreendedores e investidores, possibilitando maior segurança nos investimento financeiro e laboral.

No universo jurídico brasileiro, influenciado pelas experiências europeia e americana, o caminho foi praticamente o mesmo, em que pese a positivação – até pela tardia industrialização – tenha ocorrido já no século XX.

Neste sentido, no que tange à personalidade jurídica, em que pese houvesse a previsão de ‘pessoas de existência ideal pública’ no Esboço do Código Civil de Teixeira de Freitas, autorizado pelo Decreto Imperial 2.318 de 22 de dezembro de 1858, as mesmas dúvidas quanto aos seus benefícios econômicos e sociais também existiam.

Em verdade, no transcorrer de todo o século XIX, tempo em que a personalidade jurídica das empresas ainda se tratava de uma novidade mundial, assim como no mundo, no Brasil também não se tinha a verdadeira noção da real eficácia econômica da limitação de responsabilidade indiscriminada e nem da necessidade de personalização destas sociedades. 135

Assim, somente com o Código Civil de 1916, através de seus traços de influência liberal, as pessoas jurídicas foram tratadas como sujeitos de direito autônomos e independentes. Tal fato foi mantido no Código Civil de 2002, entretanto, já com um viés bem mais social, inclusive, com a expressa previsão de sua desconsideração no artigo 50 da citada lei.

135 SILVA, Alexandre Alberto Teodoro da. A Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito

Por sua vez, a Sociedade Limitada teve origem no Decreto 3.708 de 10 de janeiro de 1919 e sua formatação teve forte influência jurisprudencial ante o curto texto legal. Atualmente, com a unificação do direito privado, o seu regime jurídico básico também está previsto no Código Civil.

Em verdade, o Código Civil definiu que serão pessoas: o ser humano que nasça com vida (Artigo 1o) e algumas instituições, representadas por pessoas físicas, mas com existência e personalidade próprias e que poderão ser de direito público, interno ou externo, ou de direito privado (Artigos 40 até o 52).

Desta forma, tanto uma pessoa física, como uma sociedade empresarial, uma empresa individual, um ente da federação e, dentre outros, até um estado estrangeiro, estão contidos em um mesmo conjunto, em um mesmo conceito, o conceito de pessoa. Todos eles possuem, enfim, personalidade jurídica e podem ser sujeitos de direitos e obrigações, exercendo a sua liberdade individual, estando garantida a autonomia de sua vontade.

No documento Joao Guilherme de Moura Rocha Parente Muniz (páginas 109-116)