UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
ADRIANA ORTEGA CLÍMACO
HISTÓRIA E FICÇÃO EM SANTA EVITA
HISTÓRIA E FICÇÃO EM SANTA EVITA
Adriana Ortega Clímaco
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do Título de Mestre em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas).
Orientadora: Profa. Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva
Clímaco, Adriana Ortega
História e ficção em Santa Evita / Adriana Ortega Clímaco.-- Rio de Janeiro: UFRJ / Faculdade de Letras, 2012.
ix, 150f. ; 31 cm.
Orientador: Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Faculdade de Letras, Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas), 2012.
Referências bibliográficas: f. 128-138
Adriana Ortega Clímaco
HISTÓRIA E FICÇÃO EM SANTA EVITA
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Literaturas Hispânicas).
Aprovada em ___/ ___/ ___
______________________________________________________________________ Presidente, Profa. Doutora Cláudia Heloisa Impellizieri Luna Ferreira da Silva – UFRJ
______________________________________________________________________ Profa. Doutora Mariluci da Cunha Guberman – UFRJ
______________________________________________________________________ Profa. Doutora Ana Cristina dos Santos – UERJ
______________________________________________________________________ Profa. Doutora Maria Lizete dos Santos – UFRJ, Suplente
______________________________________________________________________ Profa. Doutora Rita de Cássia Miranda Diogo – UERJ, Suplente
AGRADECIMENTOS
A Deus.
Ao meu amado, André Gustavo.
Aos meus pais, irmãos e sobrinhos. De forma especial, agradeço à Monica, pela ajuda prestimosa
e à Raquel, por me recomendar a leitura de Santa Evita.
À Professora Cláudia Heloísa Impellizieri Luna Ferreira da Silva pela orientação precisa, o apoio
e as palavras incentivadoras, sem os quais esta dissertação não seria possível.
Às Professoras integrantes da Banca de Exame desta dissertação, Mariluci da Cunha Guberman e
Ana Cristina dos Santos.
Às Professoras do Setor de Espanhol, do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, pelo incentivo e apoio. De forma especial, sou grata à Professora Ana Cristina dos
Santos, minha primeira orientadora nas pesquisas em Literaturas Hispânicas.
À Professora Regina Maria da Cunha Bustamante, do Instituto de História da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, que me iniciou no labor da pesquisa acadêmica.
RESUMO
CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção em Santa Evita. Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2012. 150 fls.
O tema do presente trabalho é a relação entre história e ficção no romance Santa Evita, de Tomás
Eloy Martínez. O romance foi submetido à análise a partir das considerações de Michel de
Certeau sobre história e historiografia e dos conceitos de narrativa de extração histórica,
formulado por André Trouche, e de atos de fingir, propostos por Wolfgang Iser. Na análise,
verificou-se que os limites entre a história e a ficção são relativizados através de procedimentos
textuais de ficcionalização da história como matéria histórica e mito, quebra da linearidade
temporal, tematização de personagens históricos, narrador que é autor e personagem, uso de
metáforas e símbolos; e outros, que criam um efeito de historicidade na ficção a partir da
metaficção, como elaboração de fontes, tratamento das fontes, notas, ensaio e intertextualidade.
Concluiu-se que a obra de Tomás Eloy Martínez insere-se numa tradição literária argentina de
relação entre história e ficção, e que os limites entre estes dois gêneros são relativizados em Santa
Evita, criando uma narrativa ficcional que não substitui a história, mas tematiza aquilo que esta
silenciou.
ABSTRACT
CLÍMACO, Adriana Ortega. História e ficção em Santa Evita. Dissertação de Mestrado em Literaturas Hispânicas, apresentada à Coordenação dos Cursos de Pós-Graduação da Faculdade de Letras da UFRJ. Rio de Janeiro, 2012. 150 fls.
The subject of this paper is the relationship between history and fiction in the Tomás Eloy Martínez’s novel, Santa Evita. The novel was analyzed using the considerations by Michel de Certeau about historiography and history, and the concepts of narrativa de extração histórica
(historical extraction narrative) formulated by André Trouche, and acts of pretending, as proposed
by Wolfgang Iser. The analysis found that the boundaries between history and fiction are
relativized through textual procedures of fictionalization of history as historical matter and myth,
timeline breaks, themes of historical characters, a narrator who is author and character at the
same time, the use of metaphors and symbols, and others that create an effect of historicity in
fiction from the metafiction, as an elaboration of sources, treatment of the sources, notes, essay and intertextuality. It was concluded that Tomás Eloy Martínez’s work is part of an Argentine literary tradition of relationship between history and fiction, and that the boundaries between
these two genres are relativized in Santa Evita, creating a fictional narrative that does not replace
history, but thematizes what history was silenced.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 11
1 HISTÓRIA E FICÇÃO 16
1.1 HISTÓRIA 16
1.2 FICÇÃO 25
1.3 RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO 32
1.4 HISTÓRIA E FICÇÃO NA LITERATURA ARGENTINA 44
2 FICCIONALIZAÇÃO DA HISTÓRIA 50
2.1 A MATÉRIA HISTÓRICA E O MITO 51
2.2 QUEBRA DA LINEARIDADE TEMPORAL 61
2.3 PERSONAGENS HISTÓRICOS E SUA FICCIONALIZAÇÃO 65
2.4 NARRADOR-AUTOR-PERSONAGEM 76
2.5 METÁFORAS E SÍMBOLOS 81
3 EFEITO DE HISTORICIDADE DA FICÇÃO 87
3.1 ELABORAÇÃO DE FONTES 88
3.2 TRATAMENTO DAS FONTES 97
3.3 NOTAS 102
3.4 ENSAIO 105
3.5 INTERTEXTUALIDADE 111
CONCLUSÃO 125
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 128
APÊNDICE A 138
INTRODUÇÃO
O tema da presente dissertação é o estudo da relação entre história1 e ficção no romance Santa Evita (1995), do escritor argentino Tomás Eloy Martínez (1934-2010). O interesse por este
tema surgiu com a leitura de tal romance no final da graduação em Letras, na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro. Tendo em vista a graduação anterior em História, pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro, a possibilidade de realizar pesquisa unindo as duas áreas de formação
da autora desta dissertação tornou-se bastante instigante, levando ao desenvolvimento de
pesquisa monográfica de fim de curso sobre o tema. Tal pesquisa amplia-se, desdobra-se nesta
dissertação.
Os problemas levantados inicialmente dizem respeito ao tratamento dado à história em
Santa Evita e ao modo como se dá a relativização dos limites entre história e ficção nesse
romance.
Para responder tais questões, estabeleceram-se duas hipóteses: a primeira é que o romance
Santa Evita apresenta visão revisionista da história, discutindo-a criticamente e fornecendo outras
versões, ainda que ficcionais, para os eventos históricos; e a segunda considera que, no romance
Santa Evita, os limites entre história e ficção são relativizados através de procedimentos tais
como: matéria histórica e mito, quebra da linearidade temporal, tematização de personagens
históricos, narrador que é autor e personagem, uso de metáforas e símbolos; metaficção;
elaboração de fontes; tratamento das fontes; notas; ensaio e intertextualidade.
Apresenta-se brevemente nesta introdução o tema do romance Santa Evita, que foi
publicado em Buenos Aires, em 1995, convertendo seu autor em um dos escritores argentinos de
grande projeção internacional. Tal obra foi traduzida para vinte e cinco idiomas e publicada em
mais de trinta países.
Segundo José Miguel Oviedo (2001, p. 407), Santa Evita é o romance mais notável do
período dos anos 90, na literatura argentina. Oviedo esclarece que Martínez já possuía vasta
experiência no campo do romance e do jornalismo. Sua produção jornalística foi reconhecida
com o Prêmio Ortega y Gasset (2009), na categoria Trajetória. Martínez foi classificado como
autor de visão política afiada e infatigável espírito paródico por Jorge Ruffinelli (1995, p. 387),
1
que o compara a outros grandes escritores da literatura hispano-americana, como Gabriel García
Márquez e Jorge Luis Borges.
Após escrever La novela de Perón (1985), o autor apresenta ao público, dez anos depois,
Santa Evita, que desperta interesse por mesclar, uma vez mais, história e ficção, além de vários
outros gêneros, desafiando o leitor. Tomando como tema uma das figuras mais emblemáticas da
história da Argentina do século XX, Eva Perón, símbolo do Peronismo, movimento político
desenvolvido a partir de Juan Domingo Perón, o romance apresenta questionamentos acerca da
história e dos atributos da ficção.
Os eventos históricos ficcionalizados no romance referem-se à personagem histórica
María Eva Duarte de Perón. No entanto, Santa Evita não trata exatamente da vida de Eva Perón,
e sim de seu processo de mitificação e das aventuras pelas quais passa seu cadáver
embalsamado.2 No romance, narra-se a construção do mito de Evita, destacando-se como o desaparecimento de seu cadáver eletrizou a imaginação do povo argentino. O narrador recolhe
vários relatos acerca de Eva Perón para estruturar sua visão mítica. Apresenta várias fontes
históricas ficcionalizadas, documentos oficiais e outros, construindo-se como personagem de sua
própria ficção, um narrador que combina os papéis de historiador, jornalista e romancista.
O romance apresenta vários gêneros, sendo, portanto, de difícil classificação. Embora se
apresente como romance, em Santa Evita vários gêneros são mesclados, conformando um gênero
híbrido: biografia, cartas, jornalismo, testemunho, drama, roteiro de cinema, historiografia,
ensaio. O hibridismo genérico observado em Sa nta Evita revela como as fronteiras entre os
gêneros literários tornaram-se fluidas, permeáveis e aponta para a dificuldade de se estabelecer
um único gênero para este romance.
Romance histórico, novo romance histórico latino-americano, metaficção historiográfica
são opções possíveis para caracterizar Santa Evita. Este trabalho não se preocupa em estabelecer
e defender uma determinada classificação genérica para o romance em questão. Interessa-se pela
relação entre história e ficção, a maneira como tais campos são relacionados e seus limites
relativizados.
2
A obra Santa Evita foi objeto de análise em diversos estudos com abordagens
aproximadas ou distintas da realizada na presente dissertação. Como exemplo, comenta-se o
trabalho de Delson Biondo, Santa Evita, o romance histórico de Tomás Eloy Martínez (2005).
Segundo Biondo, em Santa Evita, Martínez faz um jogo de mentiras verdadeiras a partir da forma
da reportagem, modo convincente para conferir verossimilhança a uma história completamente
inverossímil. Diferentemente da proposta desta dissertação que aqui se apresenta, buscando
refletir sobre o tratamento da história no romance, bem como procedimentos como narração,
mito, intertextualidade e metaficção, nesse artigo, o autor ateve-se à relação do romance com o
jornalismo.
Em Historia, ficción y mito: Una narrativa a partir del otro lado (2007), Marcelo Coddou
concentra-se na ánalise do mito em Santa Evita. Afirma que o místico constitui decisivamente o
cosmos narrativo da obra, ressaltando que Martínez reconstrói a realidade recuperando o
imaginário e as tradições culturais. Na presente dissertação, não se nega a relevância do mito,
mas este é relacionado aos demais procedimentos que permitem relativizar as fronteiras entre
história e ficção.
A abordagem de João Maria da Silva, em Metaficção historiográfica em “Santa Evita”
(2006), destaca a metaficção historiográfica – o pós-modernismo na literatura – e reflete sobre a biografia pós-moderna, sob a perspectiva da abdução, segundo William H. Epstein. O autor
aborda ainda a hesitante fronteira entre realidade e ficção, enfatizando o discurso jornalístico e a
recepção da obra apoiando-se em entrevistas do autor do romance, posteriores à sua publicação.
Sua discussão da relação entre história e ficção difere da pretendida nesta dissertação, pois esta
não se apoia na teoria pós-modernista, nem considera o gênero jornalístico, ou informações extra
romance, para fazer o que parece ter sido um dos objetivos de João M. da Silva - uma história da
leitura do romance. Esta dissertação enfatiza os aspectos narrativos intratextuais, aqui chamados
procedimentos, com os quais se relativizam os limites entre história e ficção.
As reflexões realizadas por Cristine F. Mattos, Para uma reflexão teórica na leitura de
obras de Tomás Eloy Martínez (2003), muito contribuíram para o desenvolvimento desta
dissertação. A autora reflete teoricamente sobre as obras de Tomás Eloy Martínez e afirma que
Santa Evita permite adentrar universos de fronteiras movediças entre a literatura e a história.
Aponta que faltariam aos trabalhos que analisam a obra martineziana adentrar a complexa rede
Martínez pode ser definido pela presença simultânea de gêneros e subgêneros, ao invés de se
buscar optar por um entre os diversos gêneros. A partir das considerações feitas por Cristine
Mattos, pensou-se na possibilidade de se refletir sobre a relativização dos limites entre história e
ficção.
O primeiro capítulo desta dissertação, História e ficção, apresenta a reflexão teórica sobre
estas duas áreas. Divide-se em três partes, sendo a primeira destinada à história, a segunda, à
ficção, e a terceira à relação entre história e ficção.
Na primeira parte, discute-se a história como ciência do homem no tempo, priorizando-se
não exatamente o passado, mas sim a existência humana. Ressalta-se o papel do historiador na
construção da história através de sua escrita – a historiografia – gênero literário do discurso histórico. Como escrita, um conjunto de práticas rege a história, tornando-a distinta da ficção. O
historiador, como selecionador dos eventos e responsável pelo seu posterior reordenamento,
transforma acontecimentos em fatos históricos, infundindo vida ao passado. A produção
historiográfica fundamenta-se sobre o critério da verificabilidade. O historiador não possui a
mesma liberdade que o escritor ficcionista possui para, com imaginação, narrar.
A segunda parte deste capítulo destina-se a discutir a ficção. Expõe-se que esta compõe
uma tríade com o real e com o imaginário que se realiza através dos atos de fingir, que são:
seleção, combinação e auto desnudamento. O mundo é representado como se fosse real, pois
através dos atos de fingir, o imaginário adquire aparência de real.
Para fechar este capítulo, apresenta-se a discussão sobre a relação entre história e ficção
na literatura, considerando-se a produtividade desta relação na literatura hispano-americana e, de
modo especial, na literatura argentina.
Revela-se a opção por considerar Santa Evita como narrativa de extração histórica, de
acordo com o conceito de André Trouche (2006), que assim caracteriza a narrativa que enceta
diálogo com a história, como forma de produção de saber e como intervenção transgressora.
Identifica-se que na narrativa de extração histórica Santa Evita há relativização dos limites entre
história e ficção, portanto são analisados os procedimentos que realizam tal relativização.
O segundo capítulo, Ficcionalização da história, contém a primeira parte da análise de
Santa Evita e trata dos procedimentos ficcionalizadores da história neste romance identificados,
o narrador que se apresenta como autor e personagem de sua narrativa e, por fim, as metáforas e
os símbolos.
No terceiro capítulo, apresenta-se a segunda parte da análise de Santa Evita. Intitulado
Efeito de historicidade da ficção, nele se reflete sobre a criação deste efeito através de
procedimentos relativizadores dos limites entre história e ficção, de caráter metaficcional,
presentes em Santa Evita, tais como: elaboração e tratamento de documentos históricos; notas;
ensaio e intertextualidade.
Por fim, apresentam-se a Conclusão e as Referências Bibliográficas, bem como os
Apêndices A e B, com a linha do tempo do romance e uma breve cronologia da história argentina,
1 HISTÓRIA E FICÇÃO
Discutem-se aqui o conceito de história, sem que se pretenda esgotar o tema devido a sua
vastidão, a função da história, o ofício do historiador como produtor da ciência histórica e o
discurso histórico materializado no texto. Além disso, discutem-se a ficção, sua definição, e o que
constitui a obra ficcional. Por fim, apresenta-se a relação entre história e ficção, questão sempre
presente na história da literatura.
1.1 HISTÓRIA
A palavra história possui vários sentidos, designando: a narração dos fatos notáveis, de
relevância, nos campos político, social, econômico e cultural da vida dos povos, em particular, e
da humanidade em geral; o conjunto de conhecimentos, adquiridos através da tradição ou
mediante documentos, acerca da evolução do passado da humanidade; a ciência e o método que
permitem adquirir e transmitir esses conhecimentos; o conjunto dos conhecimentos relativos a
essa ciência; tratado ou compêndio de história; a narração dos acontecimentos, ações, fatos ou
particularidades relativos a um determinado assunto, ou seja, um enredo.
A polissemia do termo história é destacada por Ciro Flamarion Cardoso (1992, p. 28) que
nele identifica três significados básicos: fatos e processos sociais ocorridos no tempo e espaço;
uma disciplina cujo objeto é o anterior, e o conjunto das obras dos historiadores. Segundo
Cardoso, as concepções mais comuns sobre a história são: qualquer coisa passada
(acontecimento, processo, pessoa, etc.) – a história apareceria, neste caso, como a disciplina que se ocupa do passado; só se interessaria por acontecimentos “destacados”, “relevantes”, “com repercussão social”; seria o estudo científico das sociedades humanas no tempo (CARDOSO, 1992, p. 30).
Na presente dissertação, emprega-se a palavra história no sentido da ciência histórica,
campo que permite o conhecimento do passado, e historiografia para designar a escrita da
experiência humana e como sua própria narração, interpretação e projeção” (VIEIRA, PEIXOTO, KHOURY, 2007, p. 29).
Várias definições foram dadas ao longo do tempo para a história. Faz-se necessário
apresentar aqui algumas delas.
Segundo Marc Bloch,3 considerar a história como a ciência do passado é uma maneira imprópria de falar “porque, em primeiro lugar, é absurda a ideia de que o passado, considerado como tal, possa ser objeto da ciência” (1992, p. 22).4 Sem uma delimitação prévia, uma série de fenômenos, cuja única relação é o fato de não serem contemporâneos à atualidade, não pode ser
objeto de um conhecimento racional. Bloch encontra em Michelet e em Fustel de Coulanges a
ideia de que o objeto da história são os homens; são estes que a história quer apreender. Com isto,
Bloch conclui que a história é a ciência dos homens no tempo (1992, p. 26) e não, simplesmente,
a ciência do passado. Ressalta-se que, com esta definição, não se toma o passado como tempo
privilegiado. Embora este tenha grande importância para a ciência histórica, esta se volta para a
existência humana no tempo, dado que os seres humanos são históricos justamente por estarem
inseridos no ponto de interseção entre tempo e espaço.
Como campo de possibilidades, a história constitui a experiência humana, e, por ser
contraditória, não tem um sentido único, homogêneo, linear, nem um único significado. A
história, como conhecimento e como vivência, recupera a ação dos diferentes grupos sociais,
procura entender as causas pelas quais o processo tomou determinado rumo e não outro, resgata
as injunções que permitiram a concretização de uma possibilidade e não de outras (VIEIRA,
PEIXOTO, KHOURY, 2007, p. 11).
A história segue um conjunto de práticas científicas, o que a diferencia da ficção. Em sua
prática construtora, a história parte de determinações presentes. A atualidade é seu começo real
(CERTEAU, 2000, p. 22), ou seja, os historiadores partem de seu próprio tempo para buscar
entender algo no passado:
uma leitura do passado, por mais controlada que seja pela análise dos documentos, é sempre dirigida por uma leitura do presente. Com efeito, tanto uma quanto a outra se organizam em função de problemáticas impostas por uma situação. Elas são
conformadas por premissas, quer dizer, por “modelos” de interpretação ligados a uma
situação presente (CERTEAU, 2000, p. 34).
3
Historiador francês que, com Lucien Febvre, fundou, em 1929, a revista Annales, responsável por revolucionar a historiografia no século XX.
4
Tradução nossa. No original: “porque, en primer lugar, es absurda la idea de que el pasado, considerado como tal,
A operação histórica (a pesquisa, o tratamento dos fatos e sua divulgação na forma
textual) tem um duplo efeito: por um lado, historiciza o atual, presentifica uma situação vivida;
por outro, a imagem do passado mantém o seu valor primeiro de representar aquilo que falta. Do
presente, parte-se para o passado em busca de uma compreensão para uma falta, em busca do
preenchimento de uma lacuna. Isto aponta para o fato de que a historiografia está em permanente
construção, no sentido de ser inacabada. O historiador identifica lacunas no trabalho de outros
pesquisadores, na abordagem tradicional ou costumeira de determinado evento. O não dito agora
é o silêncio sobre o que não se pode verificar; afinal o pesquisador não confessa em sua produção
o que não localizou, o que faz com que seu discurso pareça completo, fechado, acabado.
Para Edward H. Carr (1996, p. 83), a história corresponde ao processo de exame do
passado do homem em sociedade. Mas este exame faz-se através do olhar a partir do presente, pois “a história consiste essencialmente em ver o passado através dos olhos do presente e à luz de seus problemas; o trabalho principal do historiador não é registrar, mas avaliar; porque se ele não avalia, como pode saber o que merece ser registrado?” (CARR, 1996, p. 56). Considera que a história é tanto o exame conduzido pelo historiador quanto os fatos do passado que ele examina;
é um processo social em que os indivíduos estão engajados como seres sociais. Sua dupla função
seria capacitar o homem a entender a sociedade do passado e aumentar seu domínio sobre a
sociedade do presente.
Acerca da função da história, Michel de Certeau afirma que esta, enquanto escrita, possui
caráter didático, passa valores e permite à sociedade contar-se (2000, p. 55). Esta noção
verifica-se já no início do século XX, com Charles Seignobos, para quem a contribuição do ensino da
história estaria em levar os indivíduos à compreensão da sociedade em que se teria de viver. Para Seignobos (apud PROST, 2008, p. 264), “a história é uma oportunidade de mostrar um grande número de fatos sociais; ela permite fornecer conhecimentos precisos relativamente à sociedade.” Desta forma, o homem que recebeu instrução acerca da história teve conhecimento de um grande
número de transformações e mudanças profundas nas sociedades, e assim não fica estarrecido
diante dos acontecimentos no presente. Este homem, instruído pela história, sabe que a sociedade
pode ser transformada pela ação dos homens em conjunto, coletivamente, e não por obra
individual. A história teria, então, a propriedade de fornecer aos homens o procedimento eficaz
para transformação social. Possuiria uma utilidade no sentido de compreender e alterar o
que com o estudo da história a sociedade aprenderia com os erros do passado, evitando-os no
presente, com vistas a corrigir o futuro. De fato, não se sabe o quanto do presente ou do futuro
pode vir a ser alterado a partir do conhecimento histórico, no entanto, a história possui uma
ambivalência: o lugar que destina ao passado é igualmente um modo de dar lugar a um futuro
(CERTEAU, 2000, p. 93). Além disto, destaca-se a função simbolizadora da história, segundo
Certeau (2000, p. 107), pois ela:
permite a uma sociedade situar-se, dando-lhe, na linguagem, um passado, e abrindo
assim um espaço próprio para o presente: “marcar” um passado é dar lugar à morte, mas
também redistribuir o espaço das possibilidades, determinar negativamente aquilo que está por fazer e, consequentemente, utilizar a narratividade, que enterra os mortos, como um meio de estabelecer um lugar para os vivos. A arrumação dos ausentes é o inverso de uma normatividade que visa o leitor vivo, e que instaura uma relação didática entre o remetente e o destinatário.
Esta história que é ensinada é a que resulta da pesquisa científica e que se divulga
textualmente, guardadas as devidas proporções entre o saber institucional, produzido nas “oficinas da história” (termo emprestado de François Furet), a academia, os institutos que congregam historiadores, de um lado, e o que chega às escolas através dos professores da
educação básica e dos livros didáticos. Deixando-se de lado esta questão, por não ser objetivo
deste trabalho, volta-se à consideração do tecido, do texto histórico. Segundo Certeau, a história é
um texto que organiza unidades de sentido e nelas opera transformações cujas regras são
determináveis. Assim, a historiografia torna-se objeto semiótico, na medida em que constituiu um
relato ou um discurso próprio (2000, p. 51). O fato de que a história se dê a conhecer através do
texto revela que trabalha sobre o limite: situa-se com relação a outros discursos, recortando seu
objeto de análise e desenvolvendo sua própria discursividade (CERTEAU, 2000, p. 50).
A questão do limite, da determinação do que seja a história importa neste trabalho. Sobre
isto, é importante destacar, de acordo com Certeau (2000, p. 55) que, se a história deixa seu lugar,
se sai dos seus limites, decompõe-se para ser apenas uma ficção (a narração daquilo que
aconteceu) ou uma reflexão epistemológica (a elucidação de suas regras de trabalho). Verifica-se
que o limite da história é perceptível, bem marcado; só não é assim na obra histórica mal escrita e
que, portanto, não será reconhecida pela comunidade dos historiadores como história; ou quando,
deliberadamente, forçam-se os limites para construir a ficção sobre a história. A pesquisa
historiográfica está submetida a imposições, ligada a privilégios, enraizada em uma
particularidade (CERTEAU, 2000, p. 66). Já a liberdade marca a ficção ou, em outras palavras, a
apresente, entretanto, na ficção este conjunto visa à manifestação do espírito e não
necessariamente um domínio, um saber, um campo científico, como é o caso da história. Segundo
Certeau (2000, p. 78), o lugar que se dá à técnica coloca a história ao lado da literatura ou da
ciência: assim a história é mediatizada pela técnica.
Existe no relato histórico um processo de significação que visa sempre preencher o
sentido da história. Citando Roland Barthes, Certeau afirma que “o historiador é aquele que reúne menos os fatos do que os significantes” (2000, p. 52). O trabalho do historiador faz com que pareça narrar os fatos, no entanto, efetivamente, enuncia sentidos que remetem o notado, o que
foi observado e que se considera pertinente, a uma concepção do notável, o que é digno de ser
observado, ou seja, torna essencial, insigne, um determinado dado. Verifica-se, assim, que a
história é um relato, uma operação que combina um lugar social, práticas científicas e escrita
(CERTEAU, 2000, p. 66). Este lugar social é um espaço de produção socioeconômico, político e
cultural, uma instituição social que permanece como condição de uma linguagem científica. No entanto, o lugar social faz parte do “não dito”, o que não se menciona no texto histórico. Assim, as pressões sofridas pelo historiador, as tensões que sua abordagem suscita no campo
historiográfico, são disfarçadas, escamoteadas, omitidas. Isto contribui para que se considere que
a história seria naturalmente dada pelos fatos, ou encontrada nos fatos, pois não se percebe o
quanto estes são selecionados, recortados, elaborados pelo historiador que lhes confere novo
sentido. Certeau destaca este papel determinante do historiador na construção da história.
A pesquisa histórica ocorre entre o dado e o criado. A história transforma a natureza e cria
cultura, ou seja, a história participa do trabalho civilizatório que transforma a natureza, é
participante da cultura (CERTEAU, 2000, p. 50). O que faz com que a história seja história é a
representação articulada com um lugar social da operação científica (CERTEAU, 2000, p. 93),
assim, a história pode se tornar um lugar de controle, pode ser tomada por ideologias totalitárias
com fim manipulador.
O historiador, como profissional que trabalha com a história, que a produz, vincula-se a
um lugar institucional ao qual está relacionada sua produção historiográfica. Isto equivale a dizer
que o historiador depende da aprovação de outros historiadores, seus pares, para validação de seu
discurso, para que haja reconhecimento de que, de fato, a produção apresentada constitui história.
Certeau aponta que o verdadeiro destinatário do livro de história não é o público, mas os outros
reconhecidas como históricas, algumas regras precisam ser seguidas pelo historiador que,
portanto, maneja um conjunto de técnicas de coletas de dados e de escrita.
A prática do historiador assemelha-se à do operário, no sentido de que constrói a história:
transforma um objeto em histórico, historiciza um elemento. Seleciona fontes, recorta-as,
realizando uma redistribuição cultural, no dizer de Certeau (2000, p. 81), para quem o historiador
separa, reúne e transforma em documentos objetos distribuídos de outra maneira. Esta
redistribuição cultural consiste em seu primeiro trabalho:
Na realidade, ela consiste em produzir tais documentos, pelo simples fato de recopiar, transcrever ou fotografar estes objetos mudando ao mesmo tempo o seu lugar e o seu
estatuto. Este gesto consiste em “isolar” um corpo, como se faz em física, e em “desfigurar” as coisas para constituí-las como peças que preencham lacunas de um conjunto, proposto a priori (CERTEAU, 2000, p. 81, grifo do autor).
Sendo o historiador um selecionador (CARR, 1996, p. 48), a ele cabe perceber que as
informações estariam em outro ordenamento como, por exemplo, na vida cotidiana, como o
nascimento de um bebê e o registro de seu nascimento. Isto faz parte do conjunto de documentos
de que um indivíduo necessita para ter reconhecida sua cidadania. No entanto, este documento
trivial pode adquirir um estatuto de documento histórico se assim for considerado por um
historiador. Então, aquele mero registro de nascimento ganha nova significância a partir de sua
ação. Verifica-se, por meio deste exemplo simples, que o estabelecimento das fontes históricas é
feito pelo especialista da história. Assim, a história não estaria nos documentos em si, por isso o
historiador não pode simplesmente aceitar os dados, ao contrário, deve constituí-los. Afirma
Certeau que o material é criado por ações combinadas, que o recortam no universo do uso, que
vão procurá-lo fora das fronteiras do uso, e que o destinam a um reemprego diferente (2000, p.
81). O historiador confere sentido a um determinado acontecimento ou artefato, que visto fora de
seu contexto não nos apresentaria uma informação relevante.
Considerar que haveria um núcleo sólido de fatos históricos que existiriam objetivamente
e independentemente da interpretação do historiador é uma falácia (CARR, 1996, p. 48). Deve-se
cuidar, portanto, para não se cair no fetichismo dos fatos e dos documentos, comum no século
XIX, culminando na heresia, assim chamada por Carr (1006, p. 50), de considerar que a história
consistiria na compilação de um número máximo de fatos irrefutáveis e objetivos.
Ciro Flamarion Cardoso (1992, p. 51), há algo de verdadeiro e algo de falso: o historiador precisa
das fontes para confirmar suas hipóteses, no entanto deve considerar as fontes com a condição de
saber analisá-las de forma crítica – esta seria a condição suficiente para o labor histórico.
Como testemunhas, as fontes só “falam” utilmente se o historiador souber fazer-lhes as perguntas adequadas (CARDOSO, 1992, p. 52). Tais perguntas não decorrem das próprias fontes,
não nascem delas, e sim da cultura histórica do pesquisador, do conhecimento que traz consigo,
da sua base teórica externa àquele documento com o qual trabalha num determinado momento.
Ao invés de apresentar uma coletânea de fatos isolados, a história empenha-se em
organizá-los (FEBVRE apud PROST, 2008, p. 268). Destaca-se a hermenêutica realizada na
pesquisa histórica: os documentos precisam ser decifrados pelo historiador, pois fatos e
documentos por si mesmos não constituem a história (CARR, 1996, p. 55). Edward Carr, citando Carl Becker, diz que “os fatos da história não existem para qualquer historiador até que ele os crie” (CARR, 1996, p. 56). Portanto, o historiador trabalha sobre um material para transformá-lo em história. Manipula, obedecendo a regras. Transforma inicialmente matérias-primas (uma
informação primária) em produtos standard (informações secundárias); ele os transporta de uma região da cultura (as “curiosidades”, os arquivos, as coleções, etc.) para outra (a história) (CERTEAU, 2000, p. 79).
Desta forma, a história passa a ser não apenas a ciência do homem no tempo, mas também
a experiência do historiador. Esta experiência se dará através da pesquisa, que envolve a
interpretação, e da escrita. Através do trabalho do historiador, a ciência histórica avança. O
historiador constrói modelos que substituem os anteriores, impulsionando o fluxo da história.
Cabe a ele observar as posições da pesquisa e fazê-las avançar. Não se trata de um simples narrar
o que já se conhece, mas de buscar compreender o que não foi dito, preencher as lacunas
existentes. Esta é a atitude do historiador: coloca fatos onde estão lacunas, para que haja
inteligibilidade, ou seja, faz crescer o tecido histórico pela simples ação de preencher os vazios
(CERTEAU, 2000, p. 23).
Os fatos não chegariam “puros” a nós, mas mediatizados pela mente do registrador (CARR, 1996, p. 58), que os interpreta após selecioná-los. Ainda de acordo com Carr, a função
do historiador estaria não em amar o passado ou dele emancipar-se, mas dominá-lo e entendê-lo
como a chave para a compreensão do presente (1996, p. 61). Uma vez mais, manifesta-se a ideia
“a história se constitui de um processo contínuo de interação entre o historiador e seus fatos, um diálogo interminável entre o presente e o passado” (CARR, 1996, p. 65). O historiador volta-se para o que não compreende, o que está silenciado, sobre o que não se fala (CERTEAU, 2000, p.
50). Segundo Georges Duby (1993, p. 57), é o historiador quem anima o passado, despertando
com seu hálito a chama que os fatos perderam. Esta seria sua tarefa: reavivar constantemente este
calor, permitindo, assim, através de sua imaginação, dar continuidade à história (DUBY, 1993, p.
57).
Para apresentar o resultado de sua pesquisa, o historiador utiliza a escrita. Elaborando
seus relatos, a narrativa de suas pesquisas, o historiador torna-se escritor. Segundo Edward Carr,
o historiador é, a um só tempo, leitor e escritor (1996, p. 64). Em sua escritura, deve cuidar,
dentre outras coisas, para não se tornar consumidor. Isto acontece, segundo Certeau (2000, p. 79),
quando o historiador supõe que um passado já dado se desvenda no seu texto. Assim, o
historiador, como mero consumidor, receberia passivamente os objetos distribuídos pelos
produtores.
Na escritura, constrói-se o discurso histórico, seguindo marcas textuais (tais como notas,
citações) específicas ao gênero da narrativa histórica. O discurso histórico pretende construir um
conteúdo verdadeiro, no sentido de verificável, perceptível, localizável através dos documentos,
atestável. Por meio da escritura, sob a forma da narração, manifesta-se o discurso que apresenta a
historicização de um determinado acontecimento. A história não é apenas o fato, o ocorrido, mas
o discurso sobre este fato.
Esse discurso traz em si tensões, conflitos, jogos de força. No entanto, silencia sobre sua
relação com o corpo social, com o lugar social com o qual se relaciona, como já dito
anteriormente. Escamoteia as tensões próprias desse lugar, sua situação social é o não dito
(CERTEAU, 2000, p. 70). O discurso histórico é regido por um lugar social que possui dupla
função: tornar possíveis certas pesquisas em decorrência de conjunturas e problemáticas comuns;
tornar impossíveis outras. Isto não aparece claramente no discurso. O ponto cego da pesquisa
histórica seria a combinação entre permissão e interdição, entre o possível e o impossível
(CERTEAU, 2000, p. 76).
O texto assume sua relação com a instituição através, por exemplo, da marca textual da
valor em história aquela que ganha reconhecimento como tal pelos pares (CERTEAU, 2000, p.
71-72).
Além do lugar social, como influenciador do discurso histórico, há as situações sociais,
pois a prática histórica é inteiramente relativa à estrutura da sociedade. O discurso histórico é,
portanto, determinado por um labirinto de posições a respeitar e de influências a solicitar
(CERTEAU, 2000, p. 76). Esta articulação da história com um lugar é a condição de uma análise
da sociedade.
Segundo Certeau (2000, p. 94), no conjunto de práticas determinadas pela escrita, há
imposições ao discurso, tais como: a cronologia, o limite (do texto, pois a pesquisa segue, é
contínua), a estabilidade, a plenitude da escrita que preenche lacunas, ao contrário do processo de
pesquisa que, impulsionado pela falta, é contínuo. A escrita histórica permanece controlada pelas
práticas das quais resulta, e é também uma prática, é didática e magisterial. Tem o estatuto
ambivalente de “fazer a história” e também de “contar histórias”, quer dizer, de impor e de fornecer escapatórias; instrui divertindo (CERTEAU, 2000, p. 95).
Georges Duby, no balanço que faz de sua própria prática como historiador em A história
continua (1993), oferece uma bela imagem para o ofício do historiador:
Henri Gouhier compara o ofício de historiador ao do encenador. Construído o palco, plantado o cenário, composto o libreto, trata-se de montar o espetáculo, de comunicar o texto, de dar-lhe vida, e é isto o que importa: é precisamente do que nos convencemos quando, depois de ler uma tragédia, podemos ouvi-la e vê-la representada. Cabe ao
historiador esta mesma função mediadora: comunicar pelo texto escrito o “calor”, restituir “a própria vida”. Mas não nos devemos iludir: esta vida que ele tem por missão instilar é a sua própria vida. E nisto ele tem tanto mais êxito quanto mais sensível ele se mostra. Deve controlar suas paixões, mas sem estrangulá-las, e tanto melhor desempenhará seu papel se deixar-se aqui e ali levar por elas. Longe de afastá-lo da verdade, elas têm todas as possibilidades de aproximá-lo mais ainda. À história seca, fria, impassível, prefiro a história apaixonada. Inclinar-me-ia mesmo a considerá-la mais verdadeira (1993, p. 61).
Ao historiador cabe, portanto, infundir vida ao passado, fazendo surgir do conjunto inerte
de notícias, palpitantes e inconfundíveis figuras e ambientes, o que comprova que em sua tarefa
não há pouco de criação, como destaca Rafael Lapesa Melgar (1974, p. 187). Entretanto, embora
o historiador possa ser comparado a um encenador, um criador de mundos, não o é na mesma
medida de um escritor literário, um contista ou um romancista, por exemplo. Este tem o poder de
criar personagens, situações, utilizar, de acordo com sua vontade, elementos imaginários na
composição de sua narrativa. Na ficção, o escritor tem total liberdade de atuação, nada restringe
abertura para o imaginário, sua aceitação sem reservas no discurso ficcional é o principal
elemento que permite distinguir a narrativa de ficção da narrativa dos eventos históricos.
1.2 FICÇÃO
Quando se fala em ficção, o que vem à mente, de acordo com o senso comum, são as
obras literárias que não têm relação com a realidade, sendo a ela opostas obras que estariam no
âmbito da fantasia, do fingimento, do faz de conta. Embora o senso comum considere ficção tudo
o que se refere à literatura, tal generalização aqui não se admite, pois, obviamente, a ficção
constitui um gênero literário como também o faz a história, ou seja, o discurso ficcional e o
discurso histórico são gêneros discursivos, no sentido de que são elaborados na escrita.
Segundo Kate Hamburguer (1986, p. 1), a contradição entre a realidade da vida humana (da natureza, da história, do espírito) em confronto com o que experimentamos como “conteúdo” das obras literárias, o modo de ser da vida, em contraposição àquele criado e representado pela
literatura, é uma contradição apenas aparente, pois a criação literária é diferente da realidade, e a
realidade é o material da criação literária. Segundo a autora, a palavra ficção é derivada do latim
fingere, que tem os sentidos mais diversos de composição, imaginação, fábula mentirosa.
Sobre a etimologia da palavra ficção,5 Karlheinz Stierle (2006, p. 11) afirma que apenas vislumbramos o que é a ficção quando nos damos conta do conceito de fingere. O autor compara
a palavra latina fictio à grega poiesis, esclarecendo que são, por vários aspectos, semelhantes e,
ao mesmo tempo, fundamentalmente distintas:
Poiesis significa a produção de um criador, seja a produção do Criador originário, seja a feita segundo protótipos. Em Aristóteles, a poiesis só é poiesis estética quando está a serviço da mímesis, da imitação. A poesia é imitação, mas a própria imitação, do ponto de vista do que se imita, é algo completamente original. O prazer estético, tanto do que faz quanto do que recebe, é gerado não pela própria criação, mas por sua imitação. Para Aristóteles, uma poesia sem imitação é impensável. Nesta medida, em suma, o poeta é apenas poeta enquanto se põe sob a lei estética da produção que imita. Assim, o amplo campo da poiesis se estreita pela faculdade da mímesis como a faculdade de imitação particularmente dos homens em ação.
5
O que, em grego, se separa como poiesis e mímesis reúnem-se no conceito latino de
fingere e fictio. Mas fictio não é bem uma síntese de poiesis e mímesis; é antes uma designação que tanto pode corresponder, em um sentido amplo, a poiesis, como, em um sentido estreito, a mímesis, sendo, por fim, uma superposição de ambos os sentidos, de modo que, a cada momento, um deles se pode atualizar no horizonte do outro. A correspondência grega a fictio não seria nem poiesis nem mímesis mas sim plasma. Enquanto tal, ela é usada nos textos da Antiguidade tardia e bizantina para a descrição do gênero do romance (STIERLE, 2006, p. 11, grifo do autor).
Destaca-se o caráter de criação da ficção. O ato criativo é levado a efeito pelo artista
literário que recebe o nome geral de literato ou escritor, ou os específicos de poeta, dramaturgo,
romancista, ensaísta, etc., de acordo com a classe de obras a que dedique sua atividade (LAPESA
MELGAR, 1974, p. 19). O escritor cria mundos, não físicos, como um demiurgo, mas mundos
ficcionais, com imaginação. Sua atividade escritural distingue-se da realizada pelo historiador.
Este não pode criar, de acordo com sua vontade, personagens e fatos, como fazem o dramaturgo e
o romancista, embora em sua tarefa também haja um pouco de criação, pois infunde vida ao
passado, fazendo com que surjam, segundo Lapesa Melgar (1974, p. 187), do conjunto inerte de
notícias, figuras e ambientes palpitantes e inconfundíveis. A liberdade e a paixão, aliadas ao
engenho, marcam a criatividade do escritor literário.
A obra de arte forma a realidade, pois cada obra de arte “é, por um lado, expressão da realidade. Mas, simultânea e inseparavelmente, forma a realidade, não antes da obra, nem ao lado
da obra, mas na obra mesmo” (FUENTES, 2007, p. 18). A formação da realidade na obra consiste em que a obra de arte acrescenta à realidade algo que antes não estava ali. Carlos Fuentes destaca
que a liberdade da arte está em ensinar-nos o que não sabemos: “o escritor e o artista não sabem: imaginam. A sua aventura consiste em dizer o que ignoram. A imaginação é o nome do conhecimento na literatura e na arte” (2007, p. 19). No ato de criar, são propostos novas ordens, novos sistemas de pensamento e visões de mundo. Por ser assim, a criação pode ameaçar a ordem
instituída, as bases de apoio da sociedade.
Segundo Wolfgang Iser (1999, p. 67),6 a literatura é produzida mediante uma fusão do fictício e do imaginário, sem que o texto ficcional seja de todo isento de realidade. Por isso, a
relação opositiva entre ficção e realidade, embora faça parte de nosso saber tácito, chegando a
6
parecer evidente, não pode ser o critério orientador para a descrição dos textos ficcionais, “pois as medidas de mistura do real com o fictício, neles reconhecíveis, relacionam, com frequência,
elementos dados e suposições” (ISER, 1983, p. 384). Para Iser, a relação da ficção com a realidade deveria ser substituída por uma relação tríplice: “Como o texto ficcional contém elementos do real, sem que se esgote na descrição deste real, então o seu componente ficcional
não tem o caráter de uma finalidade em si mesma, mas é, enquanto fingida, a preparação de um imaginário” (ISER, 1983, p. 384).
O texto ficcional compõe uma tríade com o real e o imaginário, sendo esta relação a sua
propriedade fundamental (ISER, 1983, p. 386). O real é definido por Iser (1983, p. 412),
afastando-se da discussão ontológica, como o mundo extratextual, prévio ao texto, constituidor
dos seus campos de referência que podem ser sistemas de sentido, sistemas sociais e imagens do
mundo, assim como podem ser, por exemplo, outros textos, em que se efetua uma interpretação
da realidade. Por conseguinte, o real se determina como o múltiplo dos discursos, a que se refere
o acesso ao mundo do autor, tal como mostrado pelo texto.
Iser exime-se de definir o fictício. Apresenta-o como o que não é facilmente determinável.
Toma-o como um ato intencional, acentuando seu “caráter de ato” 7 (ISER, 1983, p. 413). Afirma que, se o fictício for tomado como o não real, como mentira ou como embuste, serve apenas
como conceito antagônico a outra coisa e isto apenas esconderia sua peculiaridade ao invés de
revelá-la.
Sobre o imaginário, novamente, Iser não apresenta uma definição. Tenta estabelecer seu
funcionamento; circunscrever as maneiras como ele se manifesta e opera. Esta designação – imaginário – aponta antes para um programa do que para uma determinação: “Trata-se de descobrir como o imaginário funciona, para que, a partir dos efeitos descritíveis, abram-se vias
para o imaginário” (ISER, 1983, p. 413). Para realizar esta operação, Iser analisa a conexão entre o fictício e o imaginário.
Na literatura, no texto, o fingimento se realiza, atendendo ao que parece ser uma
necessidade dos seres humanos, que careceriam de um meio de fingimento (ISER, 1999, p. 66).
Cabe ressaltar que o fictício e o imaginário fazem parte da experiência cotidiana dos seres
humanos. No entanto, o que distingue a literatura como meio é o fato de que ela é produzida
mediante uma fusão do fictício e do imaginário (ISER, 1999, p. 67).
7
Iser afirma que, na literatura, ocorre a fusão entre os sentidos mais comuns da palavra
ficção: mentira, falsidade e o ramo da literatura no qual se contam histórias. Um sentido
esclareceria o outro:
Ambos os significados implicam processos similares que poderíamos denominar
“ultrapassagem” do que é: a mentira excede, ultrapassa a verdade, e a obra literária
ultrapassa o mundo real que incorpora. Não deveria surpreender que as ficções literárias tenham sido tantas vezes estigmatizadas como mentiras, já que falam do que não existe como se existisse. O fictício é caracterizado desse modo por uma travessia de fronteiras entre os dois mundos que sempre inclui o mundo que foi ultrapassado e o mundo-alvo a que se visa (ISER, 1999, p. 68).
Como componentes básicos do texto, Iser apresenta os atos de fingir (1999, p. 68). O ato de
fingir não é idêntico ao imaginário; este se manifesta em situações inesperadas. O fingir se
relaciona com o estabelecimento de um objetivo. O imaginário adquire aparência de real na
medida em que pelo ato de fingir pode penetrar no mundo e aí agir (ISER, 1983, p. 387). O ato de
fingir é uma transgressão de limites; é a irrealização do real e a realização do imaginário. Através
do ato de fingir, a oposição entre ficção e realidade desaparece.
Para que a mediação do imaginário com o real aconteça no texto ficcional, são necessárias
várias funções. Assim, o texto ficcional é composto de diversos atos de fingir. Iser aponta três
atos de fingir: seleção, combinação e autoevidenciação ou autodesnudamento (1999, p. 68).
Primeiro ato de fingir, o ato de seleção refere-se à escolha de elementos presentes no
mundo contextual, ou seja, fora do texto, no âmbito da realidade, pelo autor, para integrar o
fictício. Os elementos não são fictícios, apenas a seleção é um ato de fingir. Todo texto ficcional
necessita dessa seleção. A partir do momento em que os elementos são selecionados e retirados
dos sistemas de que faziam parte, desvinculam-se de suas origens para, posteriormente, serem
projetados em outra contextualização:
cada um desses elementos selecionados é reembaralhado, reposicionado no texto, assumindo uma nova forma que não só inclui a função que o campo de referência do qual é oriundo exerce na ordem de um mundo determinado, como também depende dessa função (ISER, 1999, p. 68).
O que era campo de referência passa a ser objeto da percepção. Apenas a intervenção do
ato de seleção provoca essa possibilidade (ISER, 1983, p. 388). Assim, como ato de fingir, a
seleção possibilita apreender a intencionalidade de um texto, pois faz com que determinados
sistemas de sentido do mundo da vida convertam-se em campos de referência do texto e estes,
por sua vez, na interpretação do contexto. Iser discute que é provável que a intenção de um autor
qualidades que se evidenciam na seletividade do texto face a seus sistemas contextuais. A
intenção se revelaria, portanto, na decomposição dos sistemas com os quais se articula o texto,
para que, neste processo, desprenda-se deles. Por conseguinte, a intencionalidade do texto não se
manifesta na consciência do autor, mas sim na decomposição dos campos de referência do texto.
A invasão do ato de seleção em outros textos produz a intertextualidade. Os textos são
associados, aumentando a complexidade do tecido ficcional, pois o citado recebe nova dimensão
tanto no que se refere ao seu contexto original, quanto em relação ao novo contexto em que se
insere. A complexificação reside no fato de que ambos os contextos permanecem potencialmente
presentes, sendo revelados pelos diferentes discursos (ISER, 1999, p. 69).
Intimamente relacionado ao ato de seleção está o ato de combinação, o segundo ato de
fingir. Este é salientado pela estrutura evidenciada no ato de seleção. No ato de combinação, “as fronteiras atravessadas são intratextuais, variando de significados lexicais a fronteiras
transgredidas pelos protagonistas das narrativas, mas não se deve confundir essa última transgressão com um ato de transcendência” (ISER, 1999, p. 69).
Como ato de fingir transgressor de limites, a combinação cria “relacionamentos” intratextuais. Tais relacionamentos ganham facticidade por aquilo que por eles se origina, ou seja,
novas composições textuais são trazidas à existência a partir da combinação. São três, segundo
Iser, os planos de rompimento de fronteiras, portanto, de transgressão que se distinguem pelo
relacionamento no ato de fingir: o primeiro deles conecta-se ao processo de seleção e articula as
convenções, normas, valores, alusões e citações contidas no texto. A ficção permite a união de
uma variedade de linguagens, de pontos de vista que seriam contraditórios em outros tipos de
discurso. Na ficção, os relacionamentos sempre parecem convincentes, devido à mudança de
valores que operam (ISER, 1983, p. 393).
O segundo plano de rompimento de fronteiras diz respeito à organização dos campos
semânticos no texto literário, efetuada pelo relacionamento. Tal organização faz com que surjam
os campos de referência intertextuais, resultantes dos elementos de que o texto se apropriou
(ISER, 1983, p. 394). O plano lexical constitui o terceiro plano de rompimento de limites: os
significados lexicais aparecem e desaparecem (ISER, 1983, p. 395). O relacionamento é, ao
mesmo tempo, um processo que se manifesta desde o rompimento do significado lexical,
passando pela violação dos espaços semânticos, até a alteração do valor. Tem a propriedade de
– a combinação –, o relacionamento é a configuração concreta de um imaginário (ISER, 1983, p. 396).
Este imaginário nunca pode se integrar totalmente na língua, embora o fictício (a
concretização do imaginário) não prescinda da determinação da formulação verbal para que, por
um lado, chame a atenção para o que representa e, por outro, para introduzir, no campo dos
mundos existentes, o que se manifesta na representação. As ficções adquirem, portanto, aparência
de realidade pela linguagem e tomam dela seu caráter de realidade para então criar um termo
análogo para se expressar (ISER, 1999, p. 396).
O terceiro ato de fingir é a autoevidenciação ou autodesnudamento da ficcionalidade
(ISER, 1983, p. 397). A literatura se dá a conhecer como ficcionalidade, assinalando que é
literatura e algo diverso da realidade. Os signos ficcionais não indicam, normalmente, que por
eles se opera uma oposição à realidade, mas algo cuja alteridade não é compreensível a partir dos
hábitos vigentes no mundo da vida. Há no texto um sinal de ficção que designa o “contrato” entre autor e leitor, convenções determinadas compartilhadas por ambos:
O autodesnudamento da ficcionalidade ocasiona um ato de duplicação peculiar: o como se – a evidenciação de que algo deve ser tomado como se fosse aquilo que designa – indica que o mundo representado no texto deve ser visto apenas como se fosse um mundo, embora não o seja. O mundo textual não significa aquilo que diz (ISER, 1983, p. 69, grifo do autor).
O que o desnudamento assinala é que a ficção deve ser tomada como tal (ISER, 1999, p.
73). Isto se indica ao destinatário da ficção como, por exemplo, na capa do romance Santa Evita,
objeto de análise desta dissertação, em que o autor solicitou à editora que publicou o livro, que se
colocasse a inscrição “romance”.
Iser identifica que as ficções não existem apenas como textos ficcionais. Elas
desempenham um papel importante tanto nas atividades do conhecimento, da ação e do
comportamento, quanto no estabelecimento de instituições, de sociedades e de visões de mundo.
É possível reconhecer aqui o mesmo princípio revelado por Benedict Anderson (2008) na construção do ideal da nação como “comunidade imaginada”, processo no qual se constrói a identidade nacional, os heróis nacionais, bem como a literatura e a história da nação. Verifica-se
tal princípio também na escrita da história (historiografia) que demanda a ficção para concatenar
eventos, estabelecendo suas causas e consequências.
Estas ficções que se pretendem objetivas dissimulam seu caráter ficcional pela
compreendidas como realidades que possibilitam o esclarecimento de outras. Ao mencioná-las,
Iser (1983, p. 401) as diferencia das ficções do texto ficcional, justamente porque estas
desnudam, desvelam sua ficcionalidade. Tais ficções pretendem ser como o real e, às vezes,
parecem ser, gerando a ilusão, que não ocorre apenas pela ficcionalidade do texto, mas pela
interação com o leitor que, ingenuamente, pode pensar que não há diferença entre ficção e
realidade e que, assim, não seria capaz de registrar os sinais do ficcional.
O mundo ficcional representado no texto é considerado como se fosse real. A ficção em
seu como se permite estabelecer equivalências entre algo existente e as consequências de um caso
irreal ou impossível. O como se significa que o mundo representado não é propriamente mundo,
mas que, por efeito de um determinado fim, deve ser representado como se o fosse (ISER, 1983,
p. 402). Assim, o próprio mundo empírico se transforma num espelho, orientando o receptor para
a concepção de algo que não existe e permitindo que esse inexistente seja visualizado como se
fosse realidade (ISER, 1999, p. 72).
A função de uso produzida pelo como se tem como objetivo causar reações sobre o mundo
(ISER, 1983, p. 406). Para isso, é necessária a irrealização do mundo do texto, para assim
transformá-lo em análogo, em exemplificação do mundo, para que se provoque uma relação de
reação quanto ao mundo. Desta forma, o imaginário é ativado, com a participação do leitor.
O mundo análogo pode ter função ainda mais abrangente, pois o mundo representado no
texto é produto do fingir, resultante dos atos de seleção e combinação. A representatividade do
que é provocado pelo como se significa que as capacidades humanas se põem a serviço desta
irrealidade para, no processo de irrealização, transformá-la em realidade (ISER, 1983, p. 407). O
imaginário se converte em experiência possibilitada pelo como se do texto ficcional. Realiza-se o
imaginário provocando no leitor a demanda de fixação de sentido; afinal o leitor quer entender o
que lê. O sentido do texto não pertence ao texto como sua razão final, não está inscrito nele,
realiza-se a partir da inevitável operação de tradução provocada e tornada necessária pelo
acontecimento da experiência do imaginário (ISER, 1983, p. 408). O leitor interage com o texto,
pois, para compreendê-lo, precisa compreender mais que o texto. O imaginário é, portanto, a
energia constitutiva do texto ficcional (ISER, 1983, p. 409).
O imaginário precisa de um meio para realizar o que esse mesmo meio pretende que o
o qual este permaneceria inerte. Assim, o imaginário emerge do fictício que se realiza a partir da
transgressão de limites dos atos de fingir:
A seleção cancela a organização das realidades referenciais, ou seja, a sua semântica e a sua estrutura. A combinação torna latentes a denotação e a representação. A autoevidenciação ou o autodesnudamento explicita o caráter irreal do mundo do texto. Em cada um desses casos, algo determinado é ou cancelado, ou tornado latente, ou destituído de realidade, de modo que as possibilidades inerentes ao que é dado sejam liberadas. A seleção lida com realidades referenciais, que ao serem relegadas ao passado, prenunciam a motivação para semelhante deslocamento. A combinação lida com as funções convencionais da denotação e da representação cuja redução ao estado de latência permite novas relações enquanto alteridade. O autodesnudamento da ficcionalidade a separa de tais realidades e, por meio do seu como se, transforma o mundo resultante da seleção e da combinação em pura possibilidade (ISER, 1999, p. 73).
O fictício se qualifica, portanto, como uma específica forma de passagem, que se move
entre o real e o imaginário, com a finalidade de provocar sua mútua complementaridade (ISER,
1983, p. 411).
Em suma, a ficção é uma criação que se realiza a partir dos atos de fingir de seleção, de
combinação e de autodesnudamento. Assim, o mundo é representado no texto como se fosse real.
O discurso ficcional difere do histórico, entretanto história e ficção têm grande produtividade na
literatura, como se pode verificar a seguir.
1.3 RELAÇÃO ENTRE HISTÓRIA E FICÇÃO
O romance Santa Evita, por se tratar de obra literária e não de documento histórico, sofre,
portanto, análise literária na presente dissertação. Como se observa no referido romance a relação
entre história e ficção, faz-se necessário refletir sobre tal fato. Não se tem como propósito aqui
levantar exaustivamente a relação entre estes dois gêneros – histórico e ficcional, mas situar o presente trabalho num contexto mais amplo.8
Ficção poética de um lado e informação histórica por outro: a fenda entre estes dois polos
tem inquietado teóricos, críticos e novelistas (CAMPANELLA, 2003, p. 13). Observando-se a
história da literatura, verifica-se a presença da relação entre história e literatura desde a
Antiguidade, já na Ilíada, cuja autoria se atribui a Homero (século IX ou VIII a. C.). Nesta,
pode-se perceber o entrecruzamento entre literatura, mito e história pode-sem que pode-se distinga, por parte do
8
poeta-narrador, o que era de procedência histórica ou de procedência mítica (BASTOS, 2007,
p.15).
Aristóteles, em sua Poética (1966, p. 78), estabelece limites entre a função do historiador
e a do poeta: enquanto o historiador narra o que aconteceu, o poeta narra o que poderia ter
acontecido:
Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou prosa (pois que bem poderiam ser postas em verso as obras de Heródoto, e nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em prosa), – diferem, sim, em que um diz as coisas que sucederam, e outro as que poderiam suceder (Cap. IX).
A ênfase aristotélica estava na verossimilhança, não na métrica, e privilegiava o poeta por
aproximar-se do universal, enquanto o historiador trataria do particular: “Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta o particular” (ARISTÓTELES, 1966, p. 78).
Segundo Alcmeno Bastos (2007, p. 19-20), vários escritores e/ou teóricos da literatura
retomam a distinção aristotélica entre o poeta e o historiador, dentre eles os irmãos Edmond e Jules Goncourt (“A história é um romance que foi, o romance é a história que poderia ter sido”) e Balzac (“A história é ou deveria ser o que foi, ao passo que o romance deve ser o mundo melhor”). Aristóteles estabeleceu os limites, no entanto só no século XIX, com a definição da história como ciência ensejou-se uma separação, mas ainda assim, nem sempre foi um divórcio
muito claro ou de longa duração (ESTEVES; MILTON, 2007, p. 11). Embora possam parecer
contraditórias, a ficção e a história têm apresentado uma trajetória comum ao longo do tempo.
Dentre os vários gêneros ficcionais, o romance revela-se bastante frutífero na tematização
da história. Segundo Henry James (1995, p. 21), a única razão para a existência de um romance é
a de que ele tenta de fato representar a vida. Tal consideração de James permite recordar que,
como a história trata da vida humana, da presença humana no mundo, tentando registrar os feitos
dos seres humanos ao longo de sua existência no tempo e no espaço, aproxima-se do romance.
No entanto, uma vez mais evocando James (1995, p. 26), afirma-se a liberdade que o romancista
tem na representação da vida, que o distingue do historiador:
um romance, em sua definição mais ampla, é uma impressão direta e pessoal da vida; isso, para começar, constitui seu valor, que é maior ou menor de acordo com a intensidade da impressão. Mas não haverá intensidade alguma, e, portanto, valor algum se não houver liberdade para sentir e dizer.